sábado, 19 de março de 2005

Entrevista: JOSIAS WANZELLER

JOSIAS E O SEU TEATRO DE BONECOS



Enquanto Chico Daniel luta para não deixar morrer o mamulengo no Rio Grande do Norte, em Brasília o artista plástico Josias Wanzeller da Silva empunha esta mesma bandeira, que tem como objetivo final a preservação da cultura popular brasileira. Josias, que por sinal é discípulo e amigo do potiguar Chico Daniel, é o entrevistado do mês do Zona Sul.

Josias Wanzeller é o candango mais nordestino que conheci até hoje. Impossível negar um título de cidadão de qualquer um dos nove estados da região para ele. Admirador da cultura popular e artista da manipulação de bonecos, além de não ser nordestino, ele é filho de capixabas. Natural do Distrito Federal, Josias pode ser incluído, sem favor nenhum, no rol dos benfeitores da humanidade. Alma iluminada, ele desenvolve sua arte sem cobrar nada em troca, a não ser a preservação da própria arte. O melhor de tudo é que o leitor do Zona Sul vai poder conferir, na próxima Bienal do Livro de Natal, prevista para junho próximo, se cada palavra dessa entrevista é ou não é verdade. (Roberto Homem)

ZONA SUL – Fale um pouco sobre sua vida. Onde e quando nasceu? Qual sua formação? De onde vieram seus familiares? Você é casado? Tem filhos?
JOSIAS – Nasci em Brasília e completo 40 anos agora em junho. Meus pais são do Espírito Santo. Meu pai é de Fundão, e minha mãe nasceu na capital, Vitória. Meu pai é marceneiro e minha mãe sempre foi doméstica. Trabalhou como diarista, mas, por motivo de doença, teve que parar. Também foi costureira durante muito tempo. Eu sou apenas um artista plástico formado em 1998 pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Agora estou tentando uma vaga em um curso de extensão na Universidade de Brasília (UnB), na área de Educação e Cultura. Sou casado com uma belíssima companheira que está terminando mestrado agora, na área de Políticas Públicas. Também tenho duas filhas maravilhosas: Ana Beatriz, com oito anos, e Ana Caroline, com cinco.

ZONA SUL – Como surgiu a paixão pela arte popular, mais especificamente pelo mamulengo?
JOSIAS – Quando eu morava com meus pais, gostava de sair pelo mundo. Apreciava andar por aí, de mochila. Nessas aventuras eu parava em um lugar ou noutro. Foi quando comecei a ter contato com circo. Às vezes dormia em um. A partir daí passei a me interessar pela cultura popular. Quando estava prestes a ingressar na faculdade, vi um professor dando aula de bonecos, o mestre Chico Simões. Isso me chamou bastante atenção. Fui saber o que era. Ele explicou. Quando entrei no curso, paguei essa disciplina com ele. Desde então comecei a gostar dos bonecos. Identifiquei-me imediatamente. Eu já procurava uma outra parte do leque das artes que não fosse as artes plásticas, já que ela eu já domino um pouco: pinto, faço esculturas, ilustro... Tentei música, não fui nada bem. Nada afinado, nada de coordenação. Tentei o teatro tradicional: não consegui. No teatro de bonecos, me dei bem. Talvez porque nele eu não precise aparecer. Eu fico no meu anonimato, por trás da tolda, e quem aparece são os bonecos.

ZONA SUL – O aprendizado foi difícil?
JOSIAS – Sim, muito. Tive que observar muito, quebrar bastante a cabeça. Fiz alguns bonecos, mas nunca brinquei com nenhum deles. Os construídos pelos mestres são melhores: mais engraçados, mais ágeis e mais fáceis de manusear. No começo, foi difícil. Inclusive para dominar os textos do espetáculo. Depois descobri que no mamulengo você brinca com estórias já elaboradas por alguns dos mestres ou então faz adaptações a partir delas. Eu procurei fazer as minhas sempre vinculando com relação à educação. Essa área me chama muita atenção, junto com o lúdico, a brincadeira. Sempre gostei de brincar, de cantar, contar história para criança. Minha intenção com o mamulengo é desenvolver um trabalho social, retribuir algo para a sociedade. Hoje trabalho em orfanatos e em outras entidades... Não ganho dinheiro. O mamulengo é para minha satisfação pessoal.

ZONA SUL – Levado pelo Senado Federal, você esteve em Natal, há dois anos, apresentando um espetáculo na Bienal do Livro de Natal. Como foi a experiência?
JOSIAS – Aquela foi a segunda vez que eu acompanhei o Senado Federal em feiras de livro. Dias antes, tinha feito a estréia na Bahia. Foi uma brincadeira legal. Até então não havia apresentado pra ninguém fora de Brasília. Todos gostaram. Na Bahia contratei um sanfoneiro, um zabumbeiro e um rapaz para tocar triângulo. Fizemos um forró grande. Depois fomos para Natal. Eu já sabia que era a terra de Chico Daniel - grande mestre por quem eu tenho enorme respeito. Somos amigos. Mas, na feira, mostrei minha brincadeira e fui muito bem recebido, apesar de alguns problemas técnicos, principalmente com relação ao sistema de som. Estive na casa de Chico Daniel e também mantive contato com Joaquim Cardoso, de quem comprei alguns bonecos. Também conheci Manoel Marinheiro, outra figura importante da cultura popular. Adorei a cidade, eu não a conhecia ainda. Natal é pequena, limpa, bonita e tem pessoas maravilhosas.

ZONA SUL - Alguma novidade para a Bienal de Natal deste ano, prevista para junho?
JOSIAS – Sim. Pretendo apresentar uma outra brincadeira educativa: O casamento de Chiquinha Muito Prazer com Tião Sem Sorte. Inclusive, Chico Daniel me autorizou a incluir nesse espetáculo partes de um texto seu. Também estou comprando uma igreja que está sendo confeccionada pelo filho do artista. No final do ano passado, quando esteve em Brasília, Chico Daniel me disse que esse seu filho vai continuar com a brincadeira de mamulengo e que seu neto, de cinco anos, também já está manuseando os bonecos.
ZONA SUL – Qual sua impressão sobre Chico Daniel?
JOSIAS – É um cara simples, bacana, humilde e uma pessoa maravilhosa. Como artista, sou até suspeito para falar, pois o considero um mestre. Há algum tempo ele recebeu muitos elogios de alguns dos melhores manipuladores de luvas da Europa. Ariano Suassuna também classificou Chico Daniel como um dos melhores artistas no que ele faz e também como um grande repórter do cotidiano.

ZONA SUL – Além de se apresentar em shoppings, encontros ou outros eventos, você costuma levar sua arte para creches, escolas e hospitais. Quais as diferenças e como são essas experiências?
JOSIAS – Com relação às apresentações em hospitais, têm diferença sim. Lá as pessoas não estão em seu estado natural. Estão preocupadas e enfrentando problemas. Quando me apresentei em um hospital de Porto Alegre, por exemplo, conheci uma criança que aos três anos de idade tinha ficado tetraplégica, depois de sofrer um atropelamento. Ela já estava há cinco anos naquele hospital e a previsão era de permanecer por lá até os 12. Depois disso não sabia ainda para onde iria. Meu empenho é levar para essas pessoas um pouco de emoção e alegria através da cultura. O mamulengo é meu instrumento.

ZONA SUL – Como está a situação do mamulengo no Brasil?
JOSIAS - O mamulengo hoje está se perdendo por falta de políticas públicas, pela ausência de carinho com mestres como Chico Daniel, Saúba, Zé Divino, Zé do Rojão, Zé Lopes... O governo devia investir no ensino e na preservação da cultura popular. Nós, brasileiros, temos uma das culturas mais ricas do mundo, mas não a valorizamos. A cultura é latejante em tudo o que é lugar, mas a maior parte da população desconhece. Se falar em mamulengo, babau, joão redondo ou cassimiro-coco, poucas crianças vão saber o que é. Meu interesse é juntar a educação e a cultura popular. Apesar de o mamulengo ser uma manifestação mais nordestina, sua linguagem, a de bonecos, é muito forte e universal. A linguagem de bonecos é muito fácil. O que o boneco fala, a criança assimila imediatamente. Tinha um grande mestre de Carpina, interior de Pernambuco, o mestre Solon, que gostava de dizer que o boneco é anterior ao homem.

ZONA SUL – Quais as suas apresentações mais marcantes?
JOSIAS – Uma delas aconteceu recentemente, quando me apresentei na Associação de Portadores de Hanseníase de Brasília. Pessoas humildes e carentes da periferia de Brasília estavam lá para receber cestas de Natal. Quando eu falei que faria uma exibição de mamulengo alguns deles já identificaram e perguntaram se o Benedito, o Baltasar e outros bonecos iriam aparecer. Já sabiam o que é que era. Também tinha uma senhora muito participativa. Ela brincava, sorria e no final veio me agradecer. Lembro de uma criança que, antes do início, dizia que não gostava e coisa e tal. Depois, sorriu, e, ao final, confessou que tinha gostado muito. Teve uma outra apresentação, no povoado de Pau d’Arco, município de Santa Bárbara do Pará (PA), que me marcou muito. Depois do som montado, tudo organizado, eu comecei a fazer aquela tradicional brincadeira de palhaço, quando ele vai dizendo as frases e as pessoas vão respondendo. “Hoje tem marmelada?”, perguntei. Mas ninguém respondeu. “Hoje tem palhaçada?”. Nada. Foi então que a diretora da escola informou que nenhuma daquelas crianças tinha sequer visto um circo na vida. Aquilo me sensibilizou e me chocou muito. Não conheciam circo, nem palhaço.

ZONA SUL – E nessas brincadeiras em hospitais?
JOSIAS – Quando brinquei na Santa Casa, em Porto Alegre, descobri que a pediatria de lá, mesmo do SUS, disponibilizava em cada quarto TV a cabo e ar-condicionado. Isso me deixou extremamente satisfeito. Também na capital gaúcha, pude conhecer dois irmãos gêmeos referência no Brasil em boneco de luva. Inclusive um deles me convidou a brincar na UTI de um hospital. Foi lá que conheci a criança atropelada, sobre quem falei antes. Quando estou dentro da tolda, só ouço o barulho. Não consigo ver nada. Só escuto a participação deles. Mas isso é proposital. Eu poderia fazer um furo na empanada, mas acho que tiraria minha atenção, eu ficaria tentado a olhar para o público. Então, é melhor assim mesmo do jeito que está.

ZONA SUL – Você lembra de alguma história engraçada que ocorreu nessas suas andanças apresentando espetáculos de mamulengo?
JOSIAS – Quando estive em Porto Alegre, me apresentei na escola neo-humanista Ananda Marga. Esse colégio é baseado nos ensinamentos filosóficos de um guru indiano chamado Prabhat Ranjan Sarkar, criador de uma teoria que busca coletivizar o bem-estar social e econômico da sociedade. Os alunos dessa escola são acostumados a vivências de auto-conhecimento e a sessões de meditação, yoga e relaxamento. Quando chegamos lá, inclusive, tocavam mantras no sistema de som da escola. Só que, foi só começar a brincadeira de mamulengo e toda a meditação, o relaxamento e a yoga deixaram de valer qualquer coisa. Os alunos ficaram tão elétricos que quase invadiram a tolda onde eu manipulo os bonecos.

ZONA SUL - Além de sua dedicação à arte popular, você também tem uma grande paixão por objetos antigos, especialmente automóveis. Fale um pouco sobre essa sua outra faceta.
JOSIAS – Nunca fui de jogar nada fora. Sempre gostei de arrumar as coisas quebradas, de usar tênis e roupas mesmo depois de ficarem velhos. Aí comecei a comprar objetos. Comprei um relógio de bolso antigo. Passei a comprar canetas. Depois que casei, comprei rádios e outras antiguidades. Um dia, pensei: está me faltando um carro. Então comprei um Standard Vanguard, de 1950, de uma fábrica inglesa já extinta. Montei e agora estou terminando. Só estão faltando os pára-choques. Tenho sorte por minha esposa gostar também de antiguidades. Fomos há pouco tempo a São Paulo e compramos, na feira de antiguidades que se instala todo domingo na Praça do Bexiga, uma mesa e uma cristaleira. Estou reformando, com meu pai. Estou procurando também um refigerador Frigidaire, daqueles que tem uma alavanca para abrir. Mas está difícil.

ZONA SUL – Você trabalha na gráfica do Senado Federal. Como é essa atividade?
JOSIAS – Estou por lá há 20 anos. Sempre fui lotado na Secretaria Especial de Editoração e Publicações (SEEP), que antigamente era conhecida como Gráfica do Senado. Trabalhei na cópia, no fotolito e também chefiando a sessão de artes, cargo onde desempenhei minhas funções durante 15 anos. Nesse período todo desenhei, ilustrei, fiz capa de livros... Depois que foi criado o Conselho Editorial, passei a participar dele auxiliando também na diagramação, além de continuar na elaboração de capas e ilustrações. Nesse tempo todo, sempre procurei me atualizar na área de diagramação em computador. Fiz cursos na Adobe e nas demais melhores escolas brasileiras. Até pouco tempo cogitei fazer um curso superior de design de artífice, mas infelizmente as aulas eram em São Paulo, o que inviabilizou o plano. Hoje faço parte da área de multimídia. Elaboro cartões e também atuo nas áreas de Internet e Intranet, onde colaboro na criação da home page da SEEP.

ZONA SUL – Um dos seus trabalhos no Senado que atingiu maior repercussão foi a recuperação do livro As aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora, os primeiros quadrinhos brasileiros...
JOSIAS – Estes personagens foram criados pelo ítalo-brasileiro Ângelo Agostini, um dos jornalistas e ilustradores mais importantes que passaram pela imprensa brasileira. A obra retrata muito bem o Rio de Janeiro no período de 1869 a 1883. Se um cineasta pegar esse livro, terá em mãos um storyboard pronto para fazer um bom filme. Estou até desenvolvendo um projeto com um colega, que está me incentivando a fazer a animação de alguns capítulos. Se der certo, vamos pleitear um patrocínio para transformar em filme. O livro de Agostini foi um trabalho não só meu, mas também do professor Athos Eichler Cardoso, responsável pela organização. Recuperamos todos os desenhos e os textos. Eu e o professor Athos estamos trabalhando na recuperação de algumas edições da revista Tico-Tico. Como ela comemora cem anos, vamos lançar uma edição para divulgar a data. Infelizmente a atual produção brasileira de quadrinhos se resume aos personagens da Turma da Mônica.