segunda-feira, 17 de março de 2008

ENTREVISTA: GLAUCO PORTO

O HOMERO DA PARAÍBA



Não foi tarefa fácil convencer Glauco Porto Barreto a conceder esta entrevista ao Zona Sul. Seria timidez? Difícil dizer. Quem, nesse mundo, pode afirmar alguma coisa, quando o assunto é Glauco? O jornalista, cantor e compositor Nelson Oliveira, por exemplo, classifica este paraibano de Catolé do Rocha de "O Homero da Paraíba". Sim, o leitor do Zona Sul não está enganado: Homero da Paraíba. Glauco não concorda. Nelson, porém, chama a atenção para o caráter homérico dos adjetivos e dos apostos, além da intrincada teia de relações entre pessoas, que é típica do linguajar e das mensagens de Glauco. Vejam se esse trecho de e-mail não lembra o lendário aedo grego contando as peripécias do divo e astucioso Odisseu: "...gostei tanto do CD, que presenteei o amigo Roberto Homem e Adauto, que é casado com Noélia (aquela homenageada na música Nossa Senhora do Cerrado), e é amigo de Rubi, além de meu amigo percussionista Paulão e da esposa dele, que é irmã de Noélia, etc, etc...".


Para quem não quer se dar ao trabalho de vagar pela Odisséia, talvez a leitura dessa entrevista, da qual também participou Nelson, possa ajudar a entender a comparação. De todo modo, o leitor deve estar se perguntando: se foi difícil para Glauco aceitar o nosso convite, o que o motivou a proferir o "sim"? Se está certa a teoria de Nelson, por ser homérico (grandioso, enorme e extraordinário, segundo o dicionário Houaiss), Glauco topou porque soube que a conversa seria transmitida ao vivo para o mundo inteiro pela Internet. Com Glauco, o Zona Sul inaugurou em um sábado do final de fevereiro as entrevistas ao vivo pelo site http://www.myspace.com/robertohomem Mas, vamos ao que interessa, vamos saber um pouco mais do violonista e ferrenho crítico de tudo o que classifica como "música ruim". (Roberto Homem)



ZONA SUL – É verdade que você conhece o Chico César desde a época de colégio?
GLAUCO – Nasci em Catolé do Rocha, em uma cidade que não tem mais que 30 mil habitantes. Vivi os primeiros anos entre aquela pequena cidade e a zona rural, onde meu avô tinha umas fazendas. Fui aluno de um colégio de freiras que havia por lá, onde também estudava Chico César. Ele é uns dois anos mais velho que eu. Conseqüentemente, na escola ele era mais adiantado duas séries. Talvez por isso, só mantivemos contato musical quando eu já tinha saído de lá. Saí de Catolé do Rocha quando completei 14 anos. Fui morar em Campina Grande.

ZONA SUL – Qual o motivo da mudança?
GLAUCO – Meu pai, que trabalhava no Banco do Brasil, queria que eu me preparasse para a universidade. Eu era o filho mais velho e estava concluindo o ensino fundamental. Mudamos a família inteira. Passei a encontrar Chico César a partir de 1981, sempre quando voltava para Catolé do Rocha, nas férias escolares. Ele já morava em João Pessoa há alguns anos e, como eu, sempre retornava no mesmo período. Antes de eu mudar para Campina Grande, tinha tomado umas aulas de violão com um poeta lá de Catolé, o Cosme Almeida. Ele tocava pouco e parece que hoje até já desistiu da música.

ZONA SUL – O que você costumava ouvir na sua infância?
GLAUCO - Quando eu era criança, não escutava música decente. Na minha casa meu pai gostava de botar para tocar discos da orquestra de Ray Conniff e coisas assim. Do que ele ouvia, era o que mais me agradava, pelo que lembro. Só fui passar a escutar música nordestina pra valer, por exemplo, quando conheci esse cidadão com quem fui ter aula, Cosme Almeida. Ele fazia umas poesias caseiras. Eu digo caseiras porque ele não tinha ambição de publicá-las. E nunca publicou, a não ser através de uma graficazinha lá de Catolé do Rocha, apenas para distribuição local. Cosme tocava poucos acordes, mas isso não é demérito nenhum, até porque ele era poeta. Pedi que ele me ensinasse esses acordes e, a partir daí, me desenvolvi minimamente. Quando mudei para Campina Grande passei a ter aulas de verdade.

ZONA SUL – Chico César já era famoso nesses reencontros que vocês tiveram em Catolé do Rocha?
GLAUCO – Não. Mas eu me lembro de uma notícia que o tornou, digamos assim, uma personalidade lá na Paraíba. Ele fez uma greve de fome em um movimento de estudantes. Ele era aluno, salvo engano, do curso de Letras ou Filosofia. Chico César ganhou destaque nos jornais da Paraíba por causa dessa greve de fome. Em Catolé, nós participávamos de trabalhos sociais organizados pelas freiras. Um desses trabalhos era nas imediações de um bordel. Eu lembro que foi a primeira vez que ouvi alguém falar a palavra brega. Essa palavra, que hoje está bem em moda, naquela época era usada para designar um bordel.

ZONA SUL – Chico César também estava nessa ocasião?
GLAUCO – Sim, estávamos tocando violão. Eu tinha aspirações de ser compositor, aspirações essas que abandonei há muitos anos. Uma mulher, alvo do trabalho cultural das freiras, disse: “eu não sou do brega não, apenas apareço por lá vez ou outra”. Ela quis explicar que só exercia a antiga profissão às vezes... (risos). Mas, voltando um pouco, foi através do professor-poeta Cosme Almeida que descobri Zé Ramalho, que era de Brejo da Cruz, uma cidade vizinha à minha, e comecei a escutar também artistas como Fagner e Alceu Valença. Essas foram as minhas primeiras referências musicais.

ZONA SUL – Você resolveu aprender a tocar violão para melhorar seu cartaz com as namoradas ou foi mesmo em nome da arte?
GLAUCO – Foi iniciativa do meu pai. Ele comprou um violão quando eu tinha 12 anos. Meu pai tocava e ainda toca um pouquinho. Ele pega um palito de fósforo e fica ali tocando uma corda de cada vez, fazendo uns poucos acordes que aprendeu. Eu lembro também da minha mãe cantando lá no sítio que até hoje é do meu pai, onde passávamos os fins de semana. Não tinha energia elétrica. À noite o pessoal usava esterco de vaca queimado pra espantar as muriçocas e ficávamos ali na calçada, vendo as estrelas. É incrível o céu do sertão: milhões de estrelas no céu. A gente lá, olhando a lua, e meu pai e minha mãe cantando um pouquinho. Ele então comprou um violão e quis que eu aprendesse. O instrumento passou um ano guardado em cima de um guarda-roupa. Depois desse período, apareceu lá na cidade uma caravana do Mobral. Era um caminhão-baú com equipamentos de som. Eles iam nas cidades descobrir valores e chamar a atenção das pessoas para os artistas. Salvo engano, o caminhão se chamava Mobralteca. Esse movimento proporcionou que eu conhecesse Cosme Almeida, que eu nem sabia que existia, mas morava vizinho à casa da minha avó. Lembro claramente: ele tava tocando Mucuripe e fazendo uma espécie de encenação. Achei aquilo muito interessante, totalmente diferente daquelas porcarias que eu escutava até então.

ZONA SUL – Você trabalhou em banco?
GLAUCO - Fui empregado do Banco do Brasil. Eu achava que não precisava ir além daquilo para viver bem, para ser feliz. Meu grande sonho de consumo era trabalhar como bancário, ter um salariozinho e, com este salário, com essa estabilidade mínima, tocar o meu violão. A música era realmente o que eu gostava. Então, quando eu estava ainda para completar 18 anos, meu pai me ligou e disse que havia um concurso para outro banco, o Banco do Nordeste. Passei e trabalhei por lá durante 13 anos, até que vim morar em Brasília e me tornei servidor da Receita Federal, onde estou passando um tempo.

ZONA SUL – E a faculdade?
GLAUCO – Foi outra novela. Entrei em 1985 e só fui terminar em 2005. Comecei fazendo Computação. Achava que dentro de um banco a coisa mais interessante era trabalhar com os computadores. Ingressei na universidade em Campina Grande, mas o banco nunca me permitiu morar lá. Fiquei rolando de uma cidadezinha pequena para outra até que cheguei à conclusão que jamais terminaria o curso de Computação para o qual tinha sido aprovado na Universidade Federal da Paraíba. Pedi transferência para qualquer capital do país onde pudesse estudar. Fui morar em Fortaleza e me transferi para uma universidade estadual. Depois fui para Recife e me transferi para uma universidade particular. Acabei abandonando o curso de Computação e percebi que devia também abandonar o banco. O governo de Fernando Henrique Cardoso não foi muito bom para bancário.

ZONA SUL – Mas foi bom pra banco, né? Pra banqueiro sempre é bom...
GLAUCO – Pois é, pra banqueiro é sempre bom. Quando Fernando Henrique deu um aperto geral no salário dos bancários, decidi abandonar aquele negócio. E abandonando o projeto de ser bancário, desisti também da idéia de fazer o curso de Informática, que, aliás, já estava se arrastando por tempo demais. Fui fazer Direito. Comecei na federal de Pernambuco e acabei em uma universidade particular aqui em Brasília. Passei quase cinco anos enrolado com uma tal de monografia de conclusão de curso. Assistir as aulas e participar dos debates era interessante, mas ler aqueles livros de Direito não me fascinava. Eu deveria era ter feito faculdade de Música, como meu grande amigo Marcelo Brazil. Ele era técnico em eletrônica no metrô do Recife, fez curso de Engenharia Elétrica até a metade e resolveu abandonar tudo e fazer Música. Hoje é maestro, professor de música e vive em São Paulo.

ZONA SUL – Sua maneira de falar, escrever e qualificar as pessoas é muito interessante. Em algum momento você não pensou em se encaminhar para o mundo das Letras?
GLAUCO – Pensei quando resolvi abandonar o curso de Informática. Na época eu era muito ligado ao movimento político de esquerda, ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Convidado por uma amiga do MST, fiz um curso de extensão na Universidade São Francisco, na área de Jornalismo. Pensei em ser jornalista, mas acabei abraçando o curso de Direito. Mas, aqui entre nós, ainda hoje cogito a hipótese de cursar Comunicação Social e me tornar um dia jornalista. Eu poderia escrever na imprensa essas minhas críticas aos discos e aos músicos que os colegas mais próximos e os amigos já conhecem tanto.

ZONA SUL – Por que você se afastou do movimento esquerdista do país?
GLAUCO – Quando eu era adolescente, em Campina Grande, passei a ter vontade de participar mais ativamente da política depois que vi o movimento Diretas Já. Interessei-me pelos partidos comunistas até o dia em que vi o governo Sarney sendo apoiado por eles. Achei esquisito aquilo. Então, amigos que eram do PT me levaram para a militância. Participei ativamente da eleição da primeira prefeita de capital do PT: Maria Luiza Fontenele, em Fortaleza. Naquela época integrávamos um pequeno grupo chamado Núcleo de Bancários do PT. Fernando Pimentel, relator do último Orçamento, também participava. Éramos umas 30 pessoas. Nesse primeiro momento eu simpatizava com a corrente majoritária, por achar as outras muito radicais. No entanto, com o passar dos anos, comecei a achar que os mais radicais eram os que de fato trabalhavam. Os outros estavam ali querendo se dar bem. Muitos queriam apenas ocupar cargos. Enquanto bancário, morei na Paraíba, no Piauí, em Pernambuco e no Ceará. No Piauí fundei o PT em uma cidadezinha chamada Oeiras, que foi a primeira capital daquele estado. Entrei no PT quando tinha 18 anos de idade e passei outros 18 anos no partido. Quando saí, tinha passado a metade da minha vida militando no PT.

ZONA SUL – Houve algum motivo específico para você deixar o PT?
GLAUCO - Saí no exato dia em que Heloísa Helena foi expulsa do partido. Eu já tinha avisado aos amigos do núcleo organizado no Cruzeiro, do qual eu participava, que deixaria o partido se Heloísa Helena fosse expulsa. No dia de sua expulsão, eu estava na confraternização desse grupo, que era o Núcleo Cruzeiro Unido do PT. Ali mesmo anunciei a minha saída do partido e, no dia seguinte, procurei o diretório para me desfiliar. Liguei para um 0800 – era um absurdo, havia filiação por 0800 – uma moça atendeu. Mas ela não sabia como proceder minha desfiliação. É igual a cartão de crédito, celular ou assinatura de tv: pra você entrar é a coisa mais fácil do mundo. Hoje em dia você ainda se filia ao PT pelo 0800 e até pela Internet. Mas para sair é uma dificuldade.

ZONA SUL – Alguns o consideram um crítico implacável. Por exemplo: sobre o disco “Seda Pura”, da cantora Simone, você comentou em um site da Internet que ela é uma “cantora desprezível”. O pior é que você fez escola e os dois comentários seguintes trouxeram a mesma opinião sobre Simone: cantora desprezível.
GLAUCO – Não fui eu. Deve ter sido um homônimo. Mas, pensando bem, acho que fui eu mesmo. Nem lembrava mais, faz tanto tempo... Mas, de fato, tenho essa opinião mesmo. Pra mim algumas cantoras merecem essa mesma qualificação. A Elba Ramalho é uma, apesar de minha conterrânea. Até gostei dela no primeiro disco, “Ave de Prata”, e no segundo também. Mas me decepcionei talvez até por ela ter se distanciado muito da cultura lá nossa terra. Simone também me agradou em um primeiro momento. “Cigarra” era uma música que eu costumava cantar bastante. Mas, nos últimos tempos ela tem feito uma carreira que, pra não falar mal demais, vou só dizer que não me agrada absolutamente em nada. Quando escuto a voz dela, assim como a de Elba Ramalho, já mudo de faixa. Pra mim é absolutamente insuportável.

ZONA SUL – Encontramos também na Internet o seguinte comentário seu sobre o disco “Canções do Brasil”, de Sandra Peres e Paulo Tatit: “trabalho louvável, a música sobre o Piauí é uma pérola”. Quem diria encontrar Glauco elogiando alguma coisa...
GLAUCO – Eu elogio muita coisa. Meu universo musical é quase que inteiramente restrito ao Brasil. Exceto um jazz ou um clássico ou outro. Também gosto de Bob Dylan e Beatles. Quando eu estava pra ser pai, recebi de presente de um colega de trabalho o cd “Canções de Ninar”, da gravadora Palavra Cantada. Desde então, todos os amigos mais próximos que vão ser pai, ou as amigas que vão ser mãe, ganham de mim esse disco. Tem participação de Arnaldo Antunes, Ná Ozzetti, Mônica Salmaso... Foi a primeira vez que eu ouvi falar em Mônica Salmaso. Achei incrível. Esse “Canções do Brasil” é da mesma gravadora e reúne músicas recolhidas pela Sandra Peres e Paulo Tatit. Contém uma música de cada estado. A que eles gravaram do Piauí é muito legal. Chama-se “Cavalo Piancó”.

ZONA SUL – Está ficando claro que você prima pelo gosto musical mais apurado e não tolera a música brega. O seu conterrâneo Chico César gravou um disco chamado “Mama Mundi” no qual ele interpreta uma canção explicitamente brega, “Sou Rebelde”. O que você achou disso?
GLAUCO – Achei terrível. Chico César, diga-se de passagem, é um músico talentosíssimo. Ele tem uma capacidade acima de qualquer suspeita. Porém, assim como Caetano Veloso, ele descobriu que é possível atingir um público maior e ganhar mais dinheiro fazendo uma música mais simples, que podemos classificar como brega. Nesse disco ele gravou a música “Sou Rebelde”. Vale salientar que o “Mama Mundi” é um disco muito bom. Comprei o CD e pedi ao amigo Roberto Homem para fazer uma cópia do disco excluindo a tal da “Sou Rebelde”. Vendi o original em um sebo aqui de Brasília, o Musical Center. Lá eu já vendi dezenas ou centenas de CDs.

ZONA SUL – Você acha que Chico César gravou essa música por uma questão comercial, ou estava tentando passar algum tipo de mensagem - assim como Caetano, que no início da carreira gravou músicas consideradas cafonas no sentido de dizer para o Brasil que aquilo também fazia parte do país e devia ser aceito?
GLAUCO – Acho que era mais isso. Nessa música em particular, acho que esse era o sentido. Tanto que depois ele gravou um disquinho com duas músicas, chamado “Compacto e Simples”, que eu jamais comprei e jamais compraria. Neste CD ele faz essa música brega e escrachada pra tentar dizer que não tem preconceito. Mas eu tenho preconceito! Eu comprei o “Mama Mundi” e me desfiz dele porque não mantenho na minha casa um disco que tenha uma faixa brega. Não quero correr o risco de deixar o disco tocando e, de repente, precisar ir ao banheiro e ser obrigado a escutar aquela faixa brega. Isso não! A música ruim, pra mim, é como um cheiro ruim para outras pessoas. As pessoas investem esforços para apurar o ouvido, perceber nuances e sentir prazer. Tentei perseguir esse objetivo, estudei música durante um tempo pra isso. Às vezes sinto uma sensação muito boa ouvindo música de qualidade. Do mesmo jeito acho que me incomodo mais do que a maioria das outras pessoas quando ouço uma música ruim.

ZONA SUL – O “Mama Mundi” foi o único disco que você se desfez por conter apenas uma faixa brega?
GLAUCO - Não. Os primeiros discos de Rita Ribeiro também tinham músicas bregas, e me desfiz. O primeiro, por exemplo, que tem coisas extraordinariamente boas, eu pedi que copiasse o disco inteiro, excetuando uma que era brega. Ela própria já deu entrevistas dizendo que não nega que é brega. Em todo disco ela bota um bregão. Então, não tem condições. Comprei o disco na loja, paguei, e fiz uma cópia tirando aquela música. Passei o disco adiante.

ZONA SUL – O que é música boa no Brasil? Quais suas preferências? O que você escuta com prazer?
GLAUCO – Escuto com prazer Egberto Gismonti e Jackson do Pandeiro, por exemplo, apesar de serem bastante diferentes. Também gosto de Chico Buarque, de Ednardo... Ednardo tem uma característica que às vezes me afasta da música dele, que é mudar muito o andamento. Ele vai num andamento bem animado e de repente dá uma queda. Mas ele tem coisas impagáveis. A cantora Ceumar é a cantora que mais me agrada no Brasil. Acho que existem três excelentes cantoras no Brasil, fora aquelas consagradas, como Gal Costa e Maria Bethânia. São Ceumar, Mônica Salmaso e Ná Ozzetti. Elas estão em um patamar de excelência máximo. Porém, Ceumar tem um repertório mais alegre, e isso me agrada. Mônica Salmaso é maravilhosa, mas tem umas faixas muito tristes nos discos dela. Tanto que nesse último, onde ela interpreta Chico Buarque, só copiei umas músicas da internet, porque mais da metade é exageradamente triste para os meus padrões. Estive em Pernambuco há pouco tempo e escutei o disco de Siba, o rabequeiro que era líder do grupo Mestre Ambrósio. Achei uma maravilha. Cada vez mais ele se aproxima da música da Zona da Mata Norte de Pernambuco. É um negócio incrível. No final do disco há um frevo com a morte como tema. É uma beleza! O CD chama-se: “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”. Tem a participação de algumas pessoas que estão na mídia, como a cantora Céu, cantora que não me agrada muito.

ZONA SUL – Você é parceiro de Nélson Oliveira há vários anos. Chegaram a fazer alguns shows e você participou de um disco produzido por ele, “Vazantes do Grande”, com músicas do avô de Nélson, tocadas por um tio dele. Você também participou do CD “Linguagens”, de Nélson. Fala um pouco sobre esses trabalhos.
GLAUCO – O disco do tio de Nélson é muito interessante. “Vazantes do Grande”, em minha opinião, é um disco com elementos singelos, digamos assim. Não é uma coisa muito rebuscada, mas trás aquela música autêntica, de origem popular. As músicas foram feitas não porque o compositor sentou-se à mesa e disse: “agora vou fazer uma música”. Não é assim que se deve fazer uma música. O cara tem que estar naquele contexto. O avô de Nélson, Antonio Maria, já falecido, não teve a obra registrada porque naquela época era difícil. Mas deixou um filho, Jerônimo Maria, que também toca sanfona e que resolveu gravar a obra do pai. Nélson fez a letra para uma música que já estava pronta para entrar no disco, me mostrou e eu coloquei uns acordes simples para que ele pudesse cantar. Depois fiz uns pequenos floreios e achei muito bom o resultado. Hoje eu acho que deveria ter sido gravada em um andamento um pouco mais acelerado, mas eu gosto muito daquela música. Vale dizer que é um disco quase todo de sanfona. Ela está presente em quase todas as faixas, exceto em umas trilhas de depoimentos. Roberto Corrêa, o violeiro, mais conhecido aqui em Brasília, foi quem coordenou esse processo de estúdio.

ZONA SUL – Quando você chegou a Brasília, em 1998, quais os compositores ou grupos que lhe encantaram na cidade?
GLAUCO – Essa pergunta me dá ensejo pra continuar falando também da música de Nélson, que me pareceu de grande qualidade, grande potencial. Quando cheguei, de início me organizando por aqui, não tive contato com outros músicos. Mas logo fui conhecendo o pessoal do Senado, onde trabalha a mãe dos meus filhos. Ela trabalhava com Roberto e Nélson, que estão aqui comigo. Nélson me apresentou algumas músicas. Esse contato com Nélson surgiu mais ou menos quando Cátia de França veio fazer alguns shows aqui em Brasília, trazida por Roberto. Acabou hospedando-se na minha casa. Nélson foi mostrar algumas músicas para ela, mostrou a mim também, e depois me convidou a tocar com ele. Havia um projeto de tocarmos em bares. Achei que algumas composições tinham grande potencial, mas ele tocava um violão muito pequeno, na época. Hoje ele está tendo aulas com Alencar Sete Cordas e está melhorando. Mas, reconhecendo esse potencial, iniciei essa parceria com ele que resultou, por exemplo, em minha participação no disco dele. Aqui em Brasília, gostei demais de ter conhecido o grupo Liga Tripa. Fiquei impressionado quando ouvi, indicado pelo percussionista Paulão, que também participou desse projeto com Nélson. Paulão é um baiano que está há décadas em Brasília, e conhece muita gente do meio musical. Apresentou-me o grupo Liga Tripa que tem uma sonoridade espetacular. Gostei demais. Além do Liga Tripa, gostei muito de escutar aqui um duo de violões chamado Mandrágora, cujo disco está disponível na Musical Center, e também de um grupo chamado Alma Brasileira Trio. Um dos três integrantes é o flautista que toca no Liga Tripa. Esse grupo, que não sei se ainda está em atividade, tem um disco absolutamente fantástico com o mesmo nome: Alma Brasileira Trio. No encarte do disco há depoimentos de Egberto Gismonti e Wagner Tiso...

ZONA SUL – Você deve sentir uma dificuldade imensa por morar em Brasília e não suportar o Legião Urbana...
GLAUCO – Não diria nesses termos, para não me indispor com os fãs. Mas, é o seguinte, eu não gosto, em geral, do rock and roll. Gente como Arnaldo Baptista e grupos como Mutantes não são a minha praia, entendeu? Até já comprei discos desse pessoal, mas todos eles tiveram o mesmo fim: o Sebo Musical Center, na 215 Norte. O rock and roll, em geral, não está no meu sangue. Tenho identidade é com a música de Jackson do Pandeiro. Como estudei música instrumental, gosto de Egberto Gismonti e de quem trabalha essa parte instrumental.

ZONA SUL – Como é possível adquirir o cd “Linguagens”, de Nélson Oliveira, que conta também com a sua participação?
GLAUCO – É só mandar um e-mail pra ele: nelson.palavra@gmail.com Quem está aqui em Brasília pode comprar na Discoteca 2001. A faixa “Linguagem”, parecida com o título do disco, é muito boa. Outra faixa que me agrada bastante é um xote. Uma outra que também acho ótima é “Beira Mar”. Ainda essa semana estava ouvindo a primeira versão que ele me mandou de “Beira Mar”. Eu disse na hora: “rapaz, isso ta muito ruim, não faça isso não”. Eu critiquei a participação de um sanfoneiro, que estava na linha daquele forró de plástico do Mastruz com Leite e da Banda Calypso. Ele respondeu que já tinha pago ao cara. Eu disse que era melhor ele perder o dinheiro, mas não deixar no disco. Estava péssimo. Parece que no final ele deixou alguns segundos do sanfoneiro. Ele pegou a música, não sei se só por causa do meu comentário, e chamou Alencar Sete Cordas. Alencar fez um arranjo e ficou outra coisa. Ficou uma beleza, mas poderia ter ficado muito ruim se ele não tivesse rearranjado.

ZONA SUL – Durante a entrevista, transmitida ao vivo pela Internet através do site www.myspace.com/robertohomem, a internauta Ângela fez o seguinte comentário: “puxa vida, parece que o entrevistado não gosta dos novos talentos da MPB. A Céu é maravilhosa!”.
GLAUCO – Não, eu não gosto não. Na verdade essa cantora me parece estar nessa linha aí do rock, dessa coisa mais próxima. Eu morei dois anos em Pernambuco e meus dois filhos são pernambucanos e eu me identifico demais com a cultura de lá, com o frevo. Gosto demais da cultura de Pernambuco, mas não me identifico com essa coisa do Mangue Beat e com esses grupos que têm os dois pés no rock. Alguns considero até insuportáveis, como aquele que tem um cara chamado Fred 04. Por esse motivo eu me afasto de algumas cantoras que têm mais elementos de rock.

ZONA SUL – Recentemente você perdeu parte de sua família em um acidente automobilístico. Você gostaria de alertar às pessoas sobre a necessidade de usar o cinto de segurança, mesmo no banco de trás?
GLAUCO – Sem me alongar nesse assunto, pra não ser chato, diria que é preciso mesmo que as pessoas se conscientizem sobre a necessidade de usar cinto de segurança no banco de trás. No dia de Natal, 25 de dezembro agora de 2007, minha irmã, a única que eu tinha, faleceu em um acidente de automóvel no caminho de João Pessoa para Catolé do Rocha, onde ela morava. Nesse acidente não só faleceu minha irmã, como faleceram também o filho de cinco meses que ela levava no braço e uma menor sob guarda do meu pai que estava grávida e tinha casamento marcado para o dia 6 de janeiro. Foi uma tragédia. Três pessoas e um feto sumiram num acidente, somente pela falta do uso do cinto de segurança. Nós verificamos as condições do automóvel e estava intacta a região onde as pessoas iam sentadas. Elas foram arremessadas por não estarem com o cinto. Muitos não usam por acharem que não serão multadas. As pessoas usam cinto hoje em dia basicamente pra fugir da multa, por uma questão financeira. Mas não é isso. Espero que as pessoas não precisem de uma tragédia na sua família para tomar providências de segurança. Mas vamos voltar à música porque essa coisa é realmente muito triste.

ZONA SUL – Antes de voltar à música, você converteu-se ao anglicanismo. Como é isso? Você era católico?
GLAUCO – Eu deixei de ser ateu. Eu era ateu.

ZONA SUL – Então foi uma mudança radical.
GLAUCO – Desde que eu era adolescente e comecei a me interessar pelo movimento comunista, desacreditei de Deus. Achei que era uma invenção das pessoas e me afastei totalmente. Mas nunca fui assim de jogar pedra. Todo trabalho que fiz de fundação do PT em Oeiras, foi feito em parceria com a igreja, por exemplo. No entanto, eu era ateu totalmente. Quando, há menos de dois anos, minha mãe teve um câncer que a levou à morte em fevereiro do ano passado, senti necessidade de ter um consolo. Procurei o amigo Pedro Ivo, assessor da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, que tinha passado por uma experiência semelhante. Eu sabia que ele era ateu como eu, e que tinha se convertido quando os pais dele morreram. Primeiro tentei voltar para a igreja católica, mas o meu rigor musical não me permitiu ficar à vontade. Era um negócio de “balancem as mãos pra cá”, e “balancem as mãos pra lá”... Tinha até bateria e verdadeiras bandas de rock dentro da igreja.

ZONA SUL – Quer dizer que o gosto musical formatou a sua nova concepção religiosa.
GLAUCO – Não me senti à vontade em nenhuma igreja católica. Talvez até me sentisse à vontade se tivesse ido ao Mosteiro de São Bento, pois o canto gregoriano me agrada. Falei com Pedro Ivo e ele me levou à igreja anglicana, que na visão dele é a igreja mais de esquerda. Quase todo mundo lá se diz de esquerda. Quando cheguei à igreja, havia um piano tocando de uma maneira muito bonita, um piano acústico. Na hora percebi que aquela era minha igreja.

ZONA SUL – Nem precisou ouvir a palavra do pastor...
GLAUCO – Pois é, exatamente. Depois, convivendo com as pessoas, me identifiquei muito. O primaz dessa igreja no Brasil é lá de Pernambuco, uma pessoa muito legal. A igreja anglicana tem muitos elementos da igreja católica, é uma igreja católica. Igreja católica anglicana. Ela fez parte da igreja católica romana até aquele episódio conhecido do casamento de Henrique VIII.

ZONA SUL – Hoje em dia o músico está enfrentando uma dificuldade muito grande para vender o seu CD porque é possível achar quase tudo de graça para baixar na Internet. Qual o futuro da música?
GLAUCO – Faz tempo que músico bom não consegue mesmo chegar ao mercado. Tenho certeza que a boa música não vá deixar de existir. Os bons músicos não devem ter uma grande dificuldade com isso, porque eles já não fazem parte do mercado. Quem faz parte é só um punhado de personalidades como Caetano Veloso e Chico Buarque. Talvez estes sejam afetados de alguma maneira, mas eles estão muito ricos e mesmo que a partir de hoje não ganhem um centavo na vida, não sentirão falta.

ZONA SUL – E os que estão começando?
GLAUCO – Os que estão começando já enfrentam dificuldade. O mercado há muito tempo transformou a música em um produto como o sabonete. A pessoa vai lá e compra a música como quem consome um xampu ou uma camiseta de grife. Consome porque está na mídia. Hoje nem é tão difícil gravar um cd, a pessoa pode gravar na própria casa, mas pra colocar esse disco nas lojas, a dificuldade é muito grande. Os músicos vão viver de fazer show ou da carreira internacional. Ainda que eles não arrebanhem milhões de pessoas, sempre vai haver gente como eu ou como você que vai se dispor a dar uma certa quantia pra vê-lo tocar.

ZONA SUL Ceumar não é sua única amiga na MPB. Você também é amigo de Hélio Contreiras, de Escurinho, de Parahiba, de Cátia de França, Adeildo Vieira... Você é amigo de vários artistas...
GLAUCO – Amigo pra valer eu era mesmo de Escurinho. Ele morou na minha cidade.

ZONA SUL – Escurinho foi percussionista de Chico César e hoje faz carreira solo de sucesso não só no Brasil, mas também na Europa...
GLAUCO – Exatamente. Ele fazia um trabalho muito interessante com um grupo de teatro, especialmente em uma peça chamada “Val da Sarapalha”, adaptação de um texto de Guimarães Rosa. Escurinho morou na minha cidade. O pai dele morava dentro da subestação de energia.

ZONA SUL – Devia ser um senhor elétrico.
GLAUCO – Quando eu era menino em Catolé do Rocha, aquela casa era considerada fantástica. O irmão de Escurinho, Eduardo, estudava comigo. Fui algumas vezes àquela casa. Era toda cercada por uma grade de ferro. Não sei se para proteger o visitante de alguma descarga elétrica. Havia aquele famoso desenho que tem em propaganda de veneno com uma caveira e dois ossos embaixo, formando uma cruz. Ele saiu para João Pessoa mais ou menos junto com Chico César.

ZONA SUL – Você também foi amigo de infância do paraibano Adeildo Vieira?
GLAUCO - Não, o conheci depois de conhecer sua música. Ouvi seu disco e achei fantástico. Liguei pra ele, me identifiquei como uma pessoa que poderia promover um show dele aqui em Brasília e ficamos amigos. Quando Adeildo veio a Brasília, fiquei um pouco frustrado comigo mesmo porque não consegui levar um grande público para assisti-lo. Eu contava levar a comunidade paraibana em Brasília para ver o show dele, mas, por coincidência, Chico César fez um show promovido pelo Açougue Cultural T-Bone, ao ar livre, grátis, na mesma noite que Adeildo ia fazer um show pago. Fiquei meio frustrado, mas um dia, conversando com um primo meu, soube que Adeildo tinha feito um show em Natal, na Casa da Ribeira, cujos únicos pagantes foram esse meu primo, sua mulher e a filha. A menina nem precisava pagar a entrada, mas, sensibilizado, meu primo pagou. Além deles três só havia a produtora do show e a irmã de um dos músicos.

ZONA SUL – E Cátia de França?
GLAUCO – Ela é uma pessoa por quem eu tenho uma admiração antiga, desde a época em que morei em Campina Grande. Fui ter acesso a Cátia quando Roberto promoveu um show dela aqui em Brasília. Ela veio para ficar hospedada em um hotel e resolveu esticar a hospedagem, quando acabou o período pago pelo patrocinador. Então mudou-se para o meu apartamento. Passou uma quantidade de dias que nem me lembro qual. Outra vez que ela veio fazer shows em Brasília, ficou também na minha casa, quando terminou o período de hospedagem assegurado. Parece que a minha casa é o segundo lar dela em Brasília. Por fim, só pra não deixar sem comentários os outros artistas citados, os conheci primeiro por sua música. Hélio Contreiras, por exemplo, eu tive contato depois que Roberto propôs trazermos ele para um show. Promovemos essa apresentação no Feitiço Mineiro e, depois, em viagens que fiz ao Rio de Janeiro a trabalho, comecei a encontrar o Hélio Contreiras. Meu contato com Ceumar foi mais ou menos por aí. Ela veio fazer um show no Centro Cultural Banco do Brasil. Me apresentei, disse que era fã, conterrâneo de Chico César e me ofereci para ajudá-la, caso ela pretendesse voltar para outras apresentações em Brasília. Meses se passaram, um dia ela mandou um email perguntando se a proposta estava de pé. Temos hoje um contato esporádico, eu gosto muito dela.

ZONA SUL – E Clodo Ferreira? Ele até pediu que avisássemos que não seria possível ele assistir à entrevista pela Internet, por já ter outro compromisso.
GLAUCO – Eu já disse aqui que gostaria de ser aluno do curso de jornalismo, se eu fosse, seria um prazer ter Clodo Ferreira como professor. É uma pessoa decentíssima.

ZONA SUL – Para quem não recorda, Clodo Ferreira é compositor de músicas como “Revelação” e “Cebola Cortada”, ambas gravadas por Raimundo Fagner.
GLAUCOClodo é uma pessoa que tem um talento acima de qualquer suspeita, é um poço de cultura acerca da música popular brasileira. Quando trouxemos Ceumar pra tocar em Brasília, reunimos amigos para tocar no Clube da Imprensa. Clodo esteve presente. Disso aí até fizemos uma gravação em MD que, soube outro dia, já está na Internet.