UMA VIDA POR TRÁS DAS LENTES
Durante quase uma hora e meia, Marco Antônio Gonçalves desfiou detalhes da sua vida. Sobretudo, ele falou da sua experiência de onze anos como cinegrafista da Rede Globo. Nesse período todo, o trabalho na principal emissora do país rendeu momentos marcantes, como a exclusiva cobertura do desastre aéreo ocorrido em Brasília com um avião da Vasp, no início dos anos 1980. Marco Antônio também falou de sua infância e adolescência transcorridas em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Brasília. Com orgulho, lembrou das parcerias teatrais que estabeleceu com uma Françoise Fourton em início de carreira. Enquanto eu capturava cada palavra de Marco Antônio, o fotógrafo pernambucano João Batista Azevedo, o Jotabê, não deixava escapar os gestos do entrevistado. O resultado você confere a partir de agora. (robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL – Onde
você nasceu?
MARCO – Em Belo
Horizonte, mas logo aos cinco anos fui morar no Rio. Meu pai era mineiro e minha
mãe era carioca. Não guardo na memória muitos registros do período em que
passei na capital de Minas Gerais. Meu pai, Dilo Guilherme Gonçalves, foi
representante de laboratório farmacêutico. Minha mãe, Hercy Ribeiro Gonçalves,
se formou na Escola de Enfermagem Anna Nery, no Rio de Janeiro. Os dois já
faleceram. Minha mãe trocou o Rio por Brasília para trabalhar no Hospital de Base.
Já em Brasília, ela foi designada pelo hospital para atender uma solicitação da
Presidência da República: aplicar uma injeção no então presidente, Castelo
Branco, no Palácio da Alvorada. Minha mãe foi e, logo em seguida, a convocaram para ficar como enfermeira à disposição do Palácio do Planalto.
ZONA SUL – Você tem
irmãos?
MARCO – Sou o mais
novo de sete filhos. Gilberto é aposentado da Caixa Econômica Federal. Emílio
também é bancário aposentado. Márcio, que já morreu, era advogado. Glória era
dona de casa. Ela também já faleceu. Paulo, também falecido, era bancário.
Geraldo está aposentado. Trabalhou como representante de vendas.
ZONA SUL – O que
você lembra do período de cinco anos no qual morou em Belo Horizonte?
MARCO – Só de
algumas brincadeiras de infância, como participar de guerras de mamona. Hoje em
dia usam a mamona até para fazer combustível, mas, naquela época, ela só servia
para jogar nos outros. E era um barato.
ZONA SUL – Você
lembra de ter sentido algum impacto em trocar Belo Horizonte pelo Rio?
MARCO – Não,
excetuando a praia, que era uma coisa diferente. Do mar guardo lembranças desde
o início. Recordo, por exemplo, que a gente trocava de roupa na própria areia,
na hora de voltar para casa. Os adultos construíam uma barreira com toalhas e a
gente ficava pelado para poder vestir o short e pegar o ônibus. Era chato ficar
peladão na praia, era meio complicado. Tenho muitas dessas lembranças
diferentes.
ZONA SUL – No Rio,
onde você morava?
MARCO – No subúrbio
do Encantado. Zico é do Quintino, que é praticamente colado. O bairro não é
muito longe do centro. A gente pegava aquele trem que chamavam “parador” porque
ele parava de estação em estação. Naquela época não tinha esse negócio de trem
de luxo ou metrô. Nesse “parador”, as portas e janelas ficavam abertas. Ia gente
pendurada em tudo que é lugar. Eu costumava descer e subir quando o trem
estava em movimento.
ZONA SUL – E os
estudos?
MARCO – Estudei em
colégio de freiras, o Nossa Senhora da Piedade, lá no Encantado. É um colégio
bem tradicional. Às vezes, no meio de uma aula, a gente ouvia o som de um
piano, ao fundo. Era um negócio bem bucólico. O colégio era bem grande: ainda
lembro aquelas freiras andando pelos corredores, parecidas com urubus, usando
aquelas roupas, aqueles hábitos. Era um negócio diferente.
ZONA SUL –
Estudante costuma se apaixonar pela professora. Você se apaixonou por alguma
das freiras do colégio?
MARCO – Não. Como o
colégio era misto, senti aquelas paixões tímidas por outras alunas. Aquela era
uma outra época, a gente costumava ficar só nos olhares. Naquele tempo não
existia a maldade que tem hoje. Aquela sensação de inocência era muito gostosa.
As professoras eram freiras e havia muita cobrança no que diz respeito à
disciplina e à moral. Não tinha a mínima condição de alguém se apaixonar por
uma freira. Diferente de hoje – quando se escuta até “rap e funk” nas escolas –
no meu tempo a gente era obrigado a cantar o Hino Nacional antes do início das
aulas. Hoje em dia o negócio é mais bagunçado.
ZONA SUL – Estudar
em colégio de freiras o transformou em um homem religioso?
MARCO – Pode até
não ter transformado, mas a parte metódica da educação eu absorvi. Foi bom
porque essa formação valeu para a minha vida toda. De lá fui para o Colégio São
Judas Tadeu, também no Encantado. Nessa época minha mãe já havia se mudado para
Brasília e eu morava com a minha avó.
ZONA SUL – E o seu
pai?
MARCO –
Praticamente não tive relacionamento com o meu pai. Pouco depois que nasci ele
ficou doente do pulmão, contraiu tuberculose, e foi internado. Quem pegava essa
doença era obrigado a se internar em um sanatório. O remédio era uma mudança de
ares, para um município de serra. Meu pai se internou em Petrópolis. A
tuberculose parecia estar ligada ao romantismo e a extravagâncias como fumar
exageradamente. Era comum entre cantores e poetas. Parece que alguns até
procuravam essa doença. Meu pai deu bobeira e ficou tuberculoso. Por isso não
tive muito contato com ele.
ZONA SUL – Depois
que ele foi internado em Petrópolis você não o viu mais?
MARCO –
Praticamente não. Lembro de tê-lo visto umas duas vezes. Por esse motivo não
pude vivenciar uma relação entre pai e filho. Minha mãe ia sempre visitá-lo,
mas como era uma doença contagiosa, não nos levava. Quando meu pai morreu, nem
pude experimentar o sentimento de luto, pois, além do pouco contato, eu também
era muito novo: tinha uns dez anos.
ZONA SUL – O que
mais você contaria para encerrar esse seu ciclo no Rio de Janeiro?
MARCO – Ao sair do
Rio, abdiquei do futebol (que eu gostava de acompanhar pelo rádio) e das peladas
(que eu costumava assistir). O interessante é que, mesmo gostando de ouvir as
partidas, nunca escolhi um time para torcer. Da mesma forma, também não
participava das peladas: eu curtia ficar vendo, do lado de fora da quadra de
futebol de salão. A primeira vez que tentei jogar, quebrei a perna. Aí, desisti.
Em termos de exercício físico, o que eu fiz mesmo foi andar de bicicleta. Como
morava em um prédio de cinco andares, no
Encantado, e não tinha elevador, era obrigado a pegar aquela bicicleta e
levá-la nas costas todos esses lances de escada. Era um exercício obrigatório.
O pior é que eram aquelas bicicletas de pneu balão, bem mais pesadas, que na
época eram as mais modernas. Não tinha também esse negócio de marcha, a gente
pedalava no dedão mesmo.
ZONA SUL – No Rio
você frequentava qual praia?
MARCO – Como eu era
menino, tinha que frequentar uma praia mais tranquila e perto de casa. Então
minha avó me levava para a Praia Vermelha, no bairro da Urca. Era uma praia
mais mansa, não tinha aquelas ondas pesadas.
ZONA SUL – Como se
deu a mudança do Rio para Brasília?
MARCO – Eu já
estava praticamente indo e vindo, pois minha mãe já morava em Brasília. Então,
na Revolução de 1964, mudei de vez. Todo mundo estava indo morar em Brasília,
já que a cidade representava a esperança de um novo tempo. Vim de ônibus. Foi a
partir daí que tudo aconteceu: a juventude, os 15 anos, o colégio... Tudo muito
diferente dos outros lugares. Naquela época não tinha violência, as amizades
eram melhores e o trânsito quase não existia.
ZONA SUL – Brasília
era uma criança, ainda...
MARCO – Exatamente,
tinha apenas quatro anos. A gente sequer ouvia falar nesse negócio tão
difundido hoje, que é a corrupção. Eram poucos os casos. Até o Congresso
Nacional tinha um ônibus que pegava na escola os alunos filhos de deputados e
de outras pessoas, e levava para casa. Era tudo muito calmo, não tinha briga de
colégios, de gangues, nada disso. Havia rivalidades, mas o pessoal gostava
apenas era de bandalhar. Não tinha esse negócio de turma A enfrentar a turma B.
Existiam as brincadeiras praticadas contra determinados segmentos,
especialmente os gays e os recos, que eram os soldados novatos. Mas não era
nada de espancar ou tocar fogo: no máximo a gente jogava ovos. Não passava
disso. Os recos que ficavam passeando, de bobeira, querendo namorar as
empregadinhas domésticas, eram alvos fáceis. Mas era só sacanagem mesmo.
ZONA SUL – E os
seus primeiros namoros?
MARCO – Ninguém se
importava em ter namoro sério. A gente era como os recos, também gostava de
arrumar confusão com as empregadas domésticas. Tudo era bandalhação. Quando
pegava uma menina de 12 anos, era namoro família, comportado. Ninguém entrava
numas de sacanagem, era um negócio mais puro. A confusão toda era com as
empregadas domésticas. Elas também gostavam, pois os garotões - para elas -
representavam divertimento. Outra característica daquela Brasília dos primeiros
anos é que a cidade não tinha sinal de trânsito, não tinha pardal, não tinha
nada. Isso contribuiu para o surgimento de vários pilotos de automobilismo como
Nélson Piquet e Roberto Pupo Moreno. Muitas corridas de rua ficaram famosas.
Uma delas foi os 1000 quilômetros de Brasília, cuja largada era à meia-noite e,
a chegada, ao meio-dia. Participei da Federação de Automobilismo e ajudei em
algumas corridas como fiscal ou bandeirinha. Foi muito divertido.
ZONA SUL – Você
chegou a pilotar?
MARCO - Sempre tive
vontade, mas nunca pilotei. Esse negócio ficava mais para os malucos. Na
verdade, ninguém sabia muito bem o que era pilotar. Sabia era fazer loucura em
cima dos carros. A sorte é que naquela época os automóveis eram de baixa
cilindrada, como Volks, V-Maguetes... Hoje não se compara as velocidades.
Muitos carros ficavam pelo caminho, não chegavam ao final da prova.
ZONA SUL – Brasília
era uma boa cidade para os jovens viverem?
MARCO – Sim. Uma
coisa bacana é que havia muita união entre os estudantes. Não tinha muita
rivalidade entre as escolas e rapazes e moças circulavam por todos os colégios,
sem problemas. Foi a fase do crescimento do rock por aqui. A juventude de
Brasília, no início, era muito mais sadia que a de hoje. Antes não havia
preocupação com cocaína ou outras drogas pesadas. Ninguém sabia o que era isso.
No máximo, esporadicamente aparecia maconha, mas não era um negócio muito
visível. O pessoal vivia mais em torno de curtir a cidade e a liberdade que ela
nos oferecia. Depois do surgimento de uma turma ou outra reunindo filhos de
políticos é que a cidade começou a mudar para pior.
ZONA SUL – Devido a
impunidade?
MARCO – Com
certeza. Como eram filhos de gente importante, eles achavam que podiam usar e
abusar. Foi aí, com essa junção de poder com a impunidade, que Brasília ganhou
uma fama pejorativa. Esses garotões aprontavam e tinham seus pecados abafados.
Não eram apenas políticos: filhos de militares também estavam no meio dessas
turmas. Quando algo de ruim era feito por uma turma dessas, as investigações
nunca levavam a nome nenhum e os jornais também não estampavam as fotos dos
responsáveis. Tudo era abafado devido ao envolvimento de filhos de senadores,
deputados, ministros e militares. Um caso emblemático foi o assassinato de Ana
Lídia Braga, ocorrido nos anos 1970, durante a ditadura militar. Ela tinha sete
anos de idade quando foi sequestrada do colégio onde estudava. Depois de
torturada e estuprada, ela foi morta por asfixia. Seu corpo foi encontrado por
policiais em um terreno da UnB. Ela estava nua e tinha marcas de cigarro no
corpo. O crime nunca foi esclarecido. Entre os suspeitos estavam filhos de
políticos influentes e membros da sociedade de Brasília. O caso foi abafado.
Ana Lídia hoje é considerada santa. Brasília perdeu a pureza a partir desse
episódio de impunidade. Foi a partir daí que a cidade recebeu o apelido de Ilha
da Fantasia.
ZONA SUL – Foi
nesse período que você passou a se envolver no movimento cultural da cidade
através do teatro?
MARCO – Exatamente.
Minha ligação com a parte artística de Brasília foi muito ampla e dinâmica, na
época. Como a cidade não era muito grande, havia a possibilidade de uma maior
proximidade entre as pessoas. Era mais fácil se conhecer e se enturmar. Também
contribuía o fato de não ter praia ou muitas outras opções de lazer. Ou as pessoas ficavam nas garagens, aprendendo a tocar guitarra, ou se envolviam com a
dança ou o teatro. Foi então que conheci pessoas que estavam começando no
teatro, capitaneadas por um diretor de espetáculos infantis, Donato Donati, que
sempre vinha de Belo Horizonte fazer peças em Brasília. Integrava esse grupo a
atriz Françoise Fourton, que se envolveu muito cedo com o teatro, aqui em
Brasília. Tive a oportunidade de trabalhar com ela em algumas peças. Uma delas
foi A Bela Adormecida. Foi nessa peça que Françoise Fourton deu o seu primeiro
beijo artístico. Ela era a Bela Adormecida e eu encenava o Príncipe. Tenho até
uma foto, com dedicatória assinada por ela, lembrando o fato de ter sido comigo
o seu primeiro beijo em cima de um palco. Depois disso ela foi para o Rio de
Janeiro.
ZONA SUL – Por que
você também não tentou seguir o caminho do teatro?
MARCO – Na época até havia essa possibilidade. A Rede Globo ainda estava começando a produzir suas
novelas e não havia artistas com fama nacional. A chance de alguém sair de
Brasília e chegar ao estrelato era muita, porque o mercado no Rio de Janeiro
ainda estava aberto. Acredito que se eu tivesse arriscado voltar para o Rio,
poderia ter feito uma peça aqui e outra acolá e, quem sabe, chegar até a Rede
Globo como ator. De qualquer forma cheguei na Globo pelo lado do
telejornalismo.
ZONA SUL – Teve
algum motivo específico para você largar a carreira no teatro?
MARCO – O principal
é que, com a saída de Françoise Fourton - ela que era a estrela principal - o
nosso grupo se desmanchou. Sem ela não seria mesma coisa. Ela já era
importante, tinha feito balé na Academia Lúcia Toller...
ZONA SUL – Paralelo
à atividade no teatro, o que você fazia da vida?
MARCO – Eu só
estudava. No teatro eu ganhava algum dinheiro e, graças a ele, fazia algumas
propagandas para televisão. Fui contratado para fazer comercial de móveis
devido ao meu porte físico: tinha os cabelos grandes, um ar despojado... Era
cabeludão, parecia hippie. A parte técnica das emissoras de Brasília era bem
precária: não tinha grua e as câmeras eram bem simples. A gravação era na TV
Brasília, a primeira emissora da cidade. Esse material não existe mais, deve
ter se perdido com o tempo.
ZONA SUL – Como se
deu sua entrada no telejornalismo?
MARCO – Foi coisa
do destino. Comecei a namorar uma menina cujo pai era jornalista em Brasília.
Ele recebia sempre uns amigos, também jornalistas, para jogar carteado. Numa
dessas ocasiões, fui apresentado a um diretor de jornalismo da TV Globo de Brasília.
Ele me convidou para visitar a emissora. Dei a sorte de, nessa visita, conhecer
um cinegrafista do Rio de Janeiro que cobria a Presidência da República, o
Evilásio Carneiro. Por intermédio desse diretor de jornalismo da Globo, ganhei
a oportunidade de fazer iluminação para Evilásio, em reportagens cobrindo o
Planalto. Foi aí que me empolguei com o lance de televisão. Seis meses depois
deixei de ser pau de luz (assistente de cinegrafista) e fui promovido a
cinegrafista da Globo. Naquela época era uma ascensão muito difícil de
acontecer, porque não era videotape, era cinema. Para se trabalhar como
cinegrafista na TV de antigamente a pessoa tinha que aprender cinema, e não
videotape. Tudo começou com filme preto e branco de 16 milímetros. A televisão
custava muito mais caro do que hoje em dia. Agora é possível fazer várias
gravações por cima da outra em uma mídia só. Antes o filme era revelado e não
tinha mais como mexer nele. E era preto e branco. Depois foi que a Globo
implantou novamente o sistema de filme, dessa vez já o colorido. Depois do
filme colorido veio o videotape. A partir daí a bagunça ficou formada. Na ordem
natural das coisas, o motorista vira assistente de cinegrafista, que passa para cinegrafista. No Brasil não tem escola para formar profissionais aptos a
trabalhar na parte de vídeo, cinema etc.
ZONA SUL – Você já
começou como assistente de cinegrafista no Palácio do Planalto?
MARCO – Sim,
cobrindo a Presidência da República. Quando eu ainda era assistente de
cinegrafista, aconteceu um fato pitoresco. Era época dos militares. Apesar de
trabalhar como iluminador, tinha oportunidade de fazer uma imagem aqui, outra
ali. Foi quando me chamaram para fazer uma filmagem dentro do gabinete do então
presidente da República, João Figueiredo. A câmera era ainda de cinema. Fui
filmar o presidente porque estava sem cinegrafista na redação. Fiquei tão
nervoso que na hora de preparar a câmera – era uma câmera com três jogos de
lente (grande angular, média e normal) – posicionei metade de uma lente com
metade da outra. O resultado é que aparecia metade da cara do presidente e a
outra metade era apenas escuridão. Esse filme não foi aproveitado pela
emissora. Uma oportunidade dessas a gente não pode perder, mas foi um momento
difícil. Aliás, gravar um presidente da República não é mesmo fácil. Na época
dos militares a gente entrava para filmar o presidente com tempo cronometrado.
Já entrava com a câmera ligada. Os fotógrafos já começavam a bater antes de
entrar. Se demorasse um pouco, os assessores dos militares começavam a desligar
nossas luzes das tomadas, porque sem luz a gente não podia filmar. Ninguém
filmava ou fotografava mais nada. O tempo era muito curto. No máximo dava para
fazer três ou quatro fotos.
ZONA SUL – Você
começou com qual presidente?
MARCO – Comecei com
João Figueiredo. Trabalhei onze anos na TV Globo, como cinegrafista. Fiz várias
viagens. É uma profissão muito interessante: você tem oportunidade de conhecer
vários lugares e sabe que milhares de pessoas estão acompanhando o seu trabalho.
Por outro lado, trabalhar em uma emissora de ponta amplifica um erro que você possa cometer. A TV depende muito de suas imagens e você não pode perder. A Globo é
diferente porque sempre exige dos seus profissionais o melhor: as melhores
imagens, os melhores ângulos e as melhores falas. Ser profissional de uma
emissora como a Globo não é fácil. Não se pode negar que a qualidade da Globo é
diferente das demais. A responsabilidade de um cinegrafista da Globo é muito
grande.
ZONA SUL – Os onze
anos foram na Presidência?
MARCO – Sempre
cobrindo a Presidência e o Congresso Nacional. Na verdade, quando necessário eu
cobria todo o Distrito Federal. Cobria desde o mármore de carrara até uma
favela. Corria atrás de cenas perigosas e fazia também o dia a dia da política.
ZONA SUL – Conte
alguma cobertura perigosa da qual você participou.
MARCO – Em 1982 um
avião da Vasp partiu-se ao meio durante uma aterrissagem no Aeroporto
Internacional de Brasília. Estava caindo um temporal muito grande na cidade.
Duas pessoas morreram nesse acidente, que ocorreu durante a madrugada. Como eu
morava perto da emissora, sempre era o primeiro a ser chamado nessas
emergências. Na televisão ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo.
Quando cheguei no saguão do aeroporto, vi vários repórteres sem informação
nenhuma. Fui no carro da Globo, com o nosso repórter, circular o aeroporto para
tentar conseguir alguma imagem diferente. Nisso, encostamos o carro perto da
grade que protege a pista. É bom lembrar que a área do aeroporto é de segurança
nacional. Ninguém pode entrar numa pista de avião sem autorização. Então
passamos um rádio para a televisão dizendo que só havia um meio de ver o que
estava acontecendo: pular a cerca do aeroporto JK. Mas se pulássemos e fôssemos
pegos, seríamos presos. O chefe de reportagem de plantão autorizou: “pode
pular, se vocês forem presos, a gente tira”. Todos os outros repórteres no
saguão, e a gente ali. Pulamos, percorremos um matagal de dois metros de
altura, e entramos na pista do aeroporto. Minha câmera de filmar parecia uma
metralhadora. Botei ela pra baixo, como se fosse uma arma. Essa câmera a TV
Globo tinha comprado depois do fim da guerra do Vietnã. Já estava em desuso nos
Estados Unidos. Era uma câmera pesada, pronta para a guerra. Era toda com chassi
blindado de um metal muito forte. Conseguimos caminhar e chegar perto do
acidente. Éramos a única equipe que estava na pista. O avião estava com o bico
para um lado e a traseira para o outro, divido ao meio. Filmei aquilo e ninguém
mais tinha aquelas imagens. Fiz o suficiente até que passou um trator e a gente
subiu nele, como se fôssemos funcionários de alguma empresa. Saímos pela porta
da frente do saguão sem falar nada com nenhum repórter. Pegamos o carro,
voltamos para a Globo e esse material saiu no primeiro jornal da emissora.
Imagens inéditas mostrando o avião dividido. Ninguém viu a gente nem entrando e
nem saindo. Como minha câmera parecia uma metralhadora, passamos como se
fôssemos soldados.
ZONA SUL – Tem
outra história de perigo?
MARCO – Na verdade,
a história que contei foi mais de emoção, pelo fato de testemunhar aquela
tragédia, do que propriamente de perigo. O perigo mesmo que passei foi em uma
visita à aldeia caiapó, no Xingu. A aventura que vou contar foi fotografada
pelo fotógrafo de O Globo, Jamil Bittar, que morreu recentemente. A Globo
recebeu a notícia de que os índios estavam mantendo como reféns funcionários da
Funai dentro do galpão da aldeia. Eles diziam que só libertariam os
prisioneiros quando fosse resolvido o problema de pescadores ilegais que
estavam atuando em território da reserva indígena. Diversas emissoras de
Brasília mandaram equipes para lá. Foram vários aviõezinhos daqui para o Xingu.
Era a primeira ocasião em que índios prendiam funcionários públicos e
mantinham-nos como reféns. A TV Globo e o jornal O Globo fizeram uma parceria e
fomos juntos para o Xingu. Chegamos um pouco antes dos concorrentes dos outros
veículos. No momento em que aterrissamos, fomos recebidos pelo Raoni. Ele, com
toda aquela indumentária de cacique, conduziu a gente até o centro da aldeia,
que ficava perto. Lá, os índios estavam todos vestidos e pintados para guerra,
apontando flechas para a gente: eu, meu assistente, o fotógrafo do Globo e uma
jornalista. Nesse momento, começaram a nos dar bordunadas. O fotógrafo, quando
viu o cerco se fechando, pulou fora e começou a fotografar a cena, bem de longe
da confusão. Meu assistente era evangélico, ao começar a levar bordunadas, ele
se ajoelhou e começou a pedir ajuda a Deus. Até o cacique Raoni deu bordunadas
na gente, enquanto os índios, todos pintados, gritavam uh-uh-uh pra cá e pra
lá. Eu pensei: “vou morrer, mas não vou desligar minha câmera”. E não
desliguei: gravei toda a nossa possível morte. Foram uns três minutos a gente
apanhando. A emoção foi tão grande que eu não sabia se filmava, se rezava ou se
morria. O interessante é que as pancadas não doíam muito. Não sei se era por
causa da adrenalina... Eu ainda tentei me defender com a câmera que estava
usando.
ZONA SUL – Era a
blindada?
MARCO – Não, era
uma bem frágil. Jamil conseguiu tirar algumas fotos dessa pancadaria toda na
gente. O mais interessante é que, logo que acabou a pancadaria, o Raoni chegou
perto da gente, pediu desculpas e falou que aquilo era apenas um desabafo. Os
índios estavam querendo desabafar em alguém, e como nós fomos os primeiros a
chegar, pagamos o pato. Em pouco tempo começou a descer teco-teco pra cá e
teco-teco pra lá com o resto da imprensa. Eles não sofreram nada, o “desabafo”
foi todo em cima da gente. Depois disso foi aquela amizade, com beijos e
abraços.
ZONA SUL – Conte
outro fato interessante, não necessariamente de perigo, que você vivenciou na
sua profissão.
MARCO – Certa vez
fui destacado para viajar até o Piauí. Recebi um envelope lacrado, com ordem de
só abri-lo dentro do avião. Eu encontraria com uma equipe da repetidora da
Globo, em Teresina. Tinha um caso interessante no estado. Eu receberia os
detalhes quando desembarcasse. Viajei com uma câmera de cinema. No avião,
quando abri o envelope, descobri que o objetivo da viagem era filmar uma santa
que estava aparecendo em Piripiri. Imediatamente pensei: como vou filmar uma
santa? Ao chegar no aeroporto, encontrei a equipe que ia me conduzir ao local
das aparições. Só que o jornal local havia divulgado uma matéria contando que
uma equipe do Jornal Nacional estava chegando para filmar a santa que estava
aparecendo em Piripiri. No dia seguinte fui com um repórter de lá. Quando
estávamos chegando perto de Piripiri, começamos a ver na estrada bicicletas,
charretes, cavalos, ônibus e carros vindos de tudo o quanto é lado. A notícia
do jornal local havia chamado atenção e as pessoas tinham resolvido acompanhar
a filmagem em uma romaria enorme. A santa tinha sido vista por duas crianças.
Seus pais não queriam propaganda. Antes de ir ao local da aparição, visitamos o
bispo da igreja católica. Teoricamente ele era o cara mais confiável para dar
um depoimento sobre o assunto. A igreja é contra esse tipo de romaria para
dizer que santo tá aparecendo. Mesmo que exista esse tipo de aparição, a igreja
não concorda com essa propaganda. Como suspeitava que a gente não seria bem
atendido, já cheguei gravando a cena em que o nosso repórter pergunta ao bispo
se o aparecimento da santa era verdade. “De jeito nenhum, não está aparecendo
santa nenhuma, isso não existe, não quero falar nada, isso é boato”, foi a
resposta que o bispo deu. Pra gente foi o esperado. De lá fomos ao local da
suposta aparição. No caminho, encontramos várias pessoas a pé, uma romaria
danada: gente vestida de branco, crianças, distribuição de santinhos...
ZONA SUL – Como era
o local da aparição?
MARCO - Era em um
matagal danado. Perto de uma cerca estava cheio de caminhão, carro e tudo o
mais estacionado. Andei um pouco e um cara disse que a santa tinha aparecido
próximo a um toco que ele estava apontando. O toco estava rodeado por velas.
Olhei pro repórter e perguntei: “e agora?”. Para não perder a viagem, resolvi
subir em uma árvore. Lá de cima joguei o microfone, com um cabo bem grande,
para o repórter. Pedi para ele entrar no meio do povão. De cima da árvore,
chamei todo mundo para rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria, pra ver se a santa
aparecia. Filmei o toco em primeiro plano, as pessoas mais humildes em segundo
plano, junto com aquelas velas e aquele matagal todo. Essa cena já salvava a
minha viagem. Começaram a se ajoelhar, a entrar na minha, todo mundo rezando um
Pai Nosso pra cá, uma Ave Maria pra lá. Para captar imagens de outro ângulo,
desci da árvore e fui filmar em volta do toco. Coincidentemente, no instante em
que desci o pessoal começou a chorar e a dizer que estava vendo a santa. Não
sei se queriam aparecer na filmagem, mas começaram a apontar e a dizer que a
santa estava vestida toda de branco. O material começou a crescer com aquelas
pessoas falando, enquanto outras choravam. A gravação foi ficando bonita pra
diabo! Esse material saiu no Jornal Nacional do sábado seguinte. A repercussão
foi muito boa. A televisão disse que não havia santa, que era apenas um toco,
que aquele povo teve uma catarse naquele lance da filmagem, todo mundo junto.
Outra coisa interessante que deixava uma ponta de dúvida, apesar da fantasia da
filmagem, é que fomos para a aldeia procurar as pessoas que viram, para dar
credibilidade à matéria. Fomos até a casa de uma das meninas que primeiro tinha
visto a aparição. O pai, muito humilde - na porta de sua casa de palha, com um
cachorrinho por perto - pediu para não filmarmos as filhas dele. Então eu
perguntei o que ele pediria à santa se a visse. Ele respondeu que pediria para ela
aparecer também para as outras pessoas, para a família dele não passar por
mentirosa. Interessante, porque ele podia falar que queria saúde pra todo
mundo, dinheiro, felicidade... Mas pediu apenas para a santa voltar a aparecer
para que suas filhas pudessem recuperar a credibilidade. Apesar de toda aquela
preparação das imagens, de toda a plasticidade da televisão - que é uma
fantasia - saí mais ou menos acreditando que realmente as meninas teriam visto
aquela santa.
ZONA SUL – De
cobertura específica no Planalto, o que você lembra de mais inusitado que
aconteceu?
MARCO – Hoje em dia
a parte técnica de televisão está bem mais cuidadosa do que antigamente. Antes
tinha uns paus de luz que viviam pipocando na cara dos outros. Aconteceu um
caso interessante, na época da guerra fria, quando o secretário de Estado
norte-americano, Henry Kissinger, visitou o Palácio do Planalto. Ele era muito
visado até em termos de atentado terrorista. Quando a gente estava filmando o
discurso dele, no salão nobre, as luzes de um cinegrafista pipocaram,
explodiram. No mesmo instante Kissinger se abaixou, achando que estava sendo
atacado. O norte-americano e seus seguranças acharam realmente que naquele
momento estava sendo promovido um atentado em pleno salão nobre do Palácio do Planalto.
Depois desse episódio, o Planalto baixou uma determinação obrigando toda
iluminação ter uma tela de metal na frente da lâmpada, para evitar de acontecer
o mesmo que ocorreu com Kissinger. O susto foi grande, pois o barulho da
lâmpada de mil quando pipoca é semelhante ao de um de tiro. Na hora Kissinger
se abaixou por trás do púlpito e instantaneamente os seguranças foram para
cima, para protegê-lo.
ZONA SUL – Depois
desses onze anos na Globo o que você foi fazer da vida?
MARCO – Desisti da
Globo porque teria que me mudar para o Rio de Janeiro ou talvez pegar uma
sucursal fora do país. Então parti para fazer gravações por conta própria. Como
eu tinha aparelhagem de videotape, decidi fazer gravações por conta própria no
Congresso Nacional. Era um grande filão, pois não tinha TV por lá, ainda. Foi
quando me deparei acidentalmente com o então deputado federal Ratinho, que hoje
é famoso em todo o país através da tela do SBT. Na época ele tinha um programa,
na CNT do Paraná, chamado Cadeia. Ele era deputado e fazia esse programa
policial. Acidentalmente cruzei com ele no Congresso e, durante a conversa, ele
me chamou para fazer algumas filmagens para o programa Cadeia. Como ele era
maluco e eu acompanhei um pouco a maluquice dele, fizemos muitas coisas interessantes
juntos. A primeira foi durante a discussão que estava havendo no Congresso a
respeito de monarquia ou república. Tive a ideia de fantasiá-lo como rei.
Peguei a fantasia emprestada da escola de samba do Cruzeiro. Ratinho se vestiu
como rei e apareceu no programa falando sobre a monarquia. Outra matéria foi
comparando as cúpulas do Congresso com discos voadores. As pessoas começaram a
gostar e a querer saber quem estava fazendo aquilo para o Ratinho. Dessa forma
fui indicado para ser o responsável pela abertura do canal CNT, em Brasília.
Aceitei e fiquei por 16 anos como diretor de jornalismo da emissora. Me
desliguei do Ratinho para essa tarefa. Foi até uma pena, porque se eu tivesse
ficado com ele provavelmente hoje estava rico. Depois da CNT fiz algumas coisas
em redações de televisão até que fui convidado para ser produtor executivo da
NBR, fazendo as coberturas ao vivo nessa TV do governo federal. Estou gostando
muito de trabalhar com coberturas ao vivo, pois durante vários anos da minha
vida atuei apenas com tudo gravado. Qualquer erro, na gravação, você volta. Ao
vivo, além de trazer uma repercussão imediata, exige um cuidado redobrado e uma
responsabilidade grande. Também estou dando suporte na parte de gerenciamento
de risco de imagem no Ministério da Previdência Social.
ZONA SUL – O que
você diria a alguém que pretende ingressar na carreira de cinegrafista?
MARCO – É uma profissão
que vale a pena, apesar de ser muito estressante. A televisão é uma mistura de
arte, profissionalismo e estresse. Se a pessoa quiser ir para o campo da imagem
- quer seja na cinegrafia ou na fotografia – vai encontrar um bom campo para
trabalhar, porque hoje em dia todo mundo quer aparecer. Também vale a pena
enveredar por esse ramo porque no momento em que você está com o olho no visor,
praticamente esquece do resto do mundo. É o seu olho capturando a vida através
da câmera. Você vai, através daquelas imagens capturadas, oferecer ao
telespectador a sua versão da realidade.
ZONA SUL – Você
conhece o Rio Grande do Norte?
MARCO - Estive em
viagens presidenciais, mas não pude ficar muito tempo. Acompanhei, por exemplo,
o presidente Figueiredo em uma passagem rápida. Mas pude passar vinte dias de
férias em Natal. É uma cidade muito legal. Tenho planos de, quando me aposentar,
ir morar na beira da praia. O litoral potiguar é um dos favoritos nessa futura
opção que farei. Enquanto esse dia não chega, vou continuando a minha batalha.
Muito bom Nenem, nesta foto acima, vc paraece tá mais magro ou pelo sorriso apertado vc tá usando CINTA?????rsrsrs
ResponderExcluirabraços
sérgio almeida
Nenhuma das duas opções, rsrsrs...
ResponderExcluirLEGAL TIO MARCÃO ESTA SUA ENTREVISTA CONTANDO UM POUCO DA SUA HISTORIA DE VIDA! ABRAÇOS PAULO ROBERTO!
ResponderExcluirValeu cabelo, vc é uma pessoa muita querida e um irmão amado por todos nós. beijo do seu irmão Gilberto e familia.
ResponderExcluirMacarrão é você????? Xexa meu facebook é Maria Celi Canedo Fonseca
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