segunda-feira, 5 de abril de 2004

Entrevista: JORGE FREDERICO

O MASSACRE DA PACHECO FERNANDES




O baiano Jorge Frederico é jornalista cinqüentão radicado em Brasília há muito tempo. Intelectual, humanista e homem de esquerda, ele convive há anos com um sonho: quer ver esclarecido o episódio ocorrido durante a construção de Brasília que ficou conhecido como o massacre da Pacheco Fernandes. A versão oficial é a de que um operário morreu e alguns ficaram feridos. A história que Jorge conta, embasada em diversos depoimentos que recolheu ao longo dos anos, é diferente. Este é o tema da entrevista que o Zona Sul trás para seus leitores, com exclusividade.

7 de fevereiro de 1959. Sábado de Carnaval. Canteiro de obras onde se construía Brasília, a futura capital do Brasil. Alojamento da construtora Pacheco Fernandes. A Guarda Especial de Brasília (GEB) foi chamada para debelar uma revolta dos trabalhadores. O motivo do protesto foi que a comida servida naquele dia estaria estragada. Depois do confronto envolvendo policiais e operários, um morto e alguns feridos. Esta é a versão oficial.

1968. Começo da noite. O jornalista Jorge Frederico de Almeida Santos e um amigo, depois de passarem a tarde tirando fotografias em Planaltina, resolvem tomar cerveja e jogar sinuca em um boteco daquela cidade, localizada no entorno de Brasília. A dupla não dá muita atenção a um desconhecido embriagado que os aborda, querendo saber a intenção da visita dos dois forasteiros. Jorge Frederico explica que é repórter e que foi para lá apenas tirar algumas fotos. O homem contesta: “vocês não são de nada, eu queria ver era contarem a história de quando mataram mais de cem...”. Jorge nunca tinha ouvido falar neste assunto.

Brasília. Setor Comercial Sul. Tomando cerveja com amigos. Um tipo mal encarado passa. Jorge faz um comentário. Um dos colegas responde: “Esse não tem apenas cara de mal encarado, ele é mesmo bandido”. E justifica: “ele pertenceu a GEB, que matou não sei quantos durante a construção de Brasília”. Imediatamente Jorge lembrou do desafio feito pelo bêbado, anos atrás. Depois de revelar para o amigo o episódio ocorrido em 1968, em Planaltina, recebeu uma relação de nomes de possíveis testemunhas do massacre da Pacheco Fernandes.

Noite de 12 de março de 2004. Super Quadra Sul. Apartamento de Jorge Frederico. Durante mais de duas horas conversamos sobre o que teria ocorrido no acampamento da Pacheco Fernandes. Jorge, hoje trabalhando na cobertura política dos trabalhos do Senado Federal, revelou a versão que ouviu sobre os fatos daquele Carnaval. (Roberto Homem)


ZONA SUL – De posse da lista dos contatos fornecidos pelo seu amigo, naquele bar do Setor Comercial Sul, qual sua reação?
JORGE – Com base na relação de nomes que esse amigo me deu, fiz as primeiras investidas. Imediatamente observei que as pessoas não queriam falar de maneira alguma. Ainda era o período dos governos militares, o que dificultava. Mas o tema passou a me interessar muito, como Brasília me interessava e ainda interessa até hoje. Considero Brasília como sendo um momento de emancipação desse povo. O brasileiro teve a oportunidade de se ver capaz de construir aquilo que seria a principal característica da modernidade: uma urbe dentro de padrões revolucionários para qualquer país, não apenas para um país de terceiro mundo. Na medida em que fui descobrindo que Brasília era tudo isso, fui me ligando mais a essas histórias sobre a origem da cidade. E voltei a carga em cima das pessoas relacionadas na lista que recebi.

ZONA SUL – Como você conseguiu superar esse bloqueio, essa negativa inicial aos seus pedidos de entrevista?
JORGE – Depois de muito insistir, encontrei alguém disposto a falar. Esse primeiro contato tinha o apelido de Carioca, que, na época que conversei com ele, trabalhava na marcenaria da Universidade de Brasília (UnB). Ele foi o meu elo com os outros operários. Carioca, que na verdade era baiano, estava dentro do canteiro de obras quando aconteceu o massacre. Ele não apenas me deu seu depoimento, mas forneceu outros nomes. Aí é que está a grande história. Havia uma certa irmandade entre os que participaram da construção da cidade e que foram testemunhas deste episódio extremamente sério. Ele me deu o nome de um, que me deu o nome de outro e de outro, e assim eu fui procurando cercar todas as informações para ter uma idéia exata do que aconteceu. Terminei conseguindo reunir informações suficientes para uma matéria, que foi publicada no Jornal de Brasília, em 1977.


ZONA SUL – Você ainda tem o material que o subsidiou a escrever estas reportagens?
JORGE – Tenho as gravações, em fitas cassete, dos depoimentos de algumas das pessoas que estavam lá e testemunharam o episódio. O contexto da história é o seguinte. Havia um ritmo frenético e alucinante onde se trabalhava nos três turnos. Àquela altura, gente do Brasil inteiro - sobretudo do Nordeste - estava em Brasília ajudando na construção da cidade, para que ela fosse inaugurada antes do final do mandato de Juscelino Kubitschek. Os caminhões que vinham trazer material de diversas partes do país eram alugados para ficar com os faróis ligados iluminando a obra, e, dessa forma, permitir que o pessoal trabalhasse durante a noite. Até por parte dos trabalhadores havia um sentimento de consciência da importância daquele trabalho.


ZONA SUL – Mas se havia esse sentimento e essa consciência toda em relação a importância da construção de Brasília, por que houve a revolta dos trabalhadores?
JORGE – Havia realmente esse estímulo no seio dessa massa grande de operários. Para que não houvesse balbúrdia, nem qualquer interrupção no trabalho, no início era desestimulada a presença de qualquer mulher. Em função disso, os operários se juntavam em grupos, alugavam caminhões, e iam a Anápolis ou a Formosa - cidades goianas - fazer suas farras na zona do meretrício. Era algo que não chegava a ser oficial, mas ocorria com freqüência. Isso gerou uma certa preocupação entre os administradores das obras. Eles temiam que a saída de um grande número de funcionários, aos finais de semana - muitos deles voltando embriagados para o canteiro de obras - pudesse comprometer o andamento dos trabalhos. Além disso, alguns se metiam em brigas e ocorriam até mortes. A partir desses “excessos” passou a ser exercido um controle ainda mais rigoroso. Os operários passaram a viver sob um regime parecido com o de quartel. Se um sujeito fosse pego, no canteiro de obras, com uma garrafa de cachaça ou qualquer outra bebida, era gravemente advertido. E, se fosse pego novamente, não tinha outra chance. Pior, entrava em uma lista negra que o impedia de ser contratado por qualquer outra empresa.


ZONA SUL – Como estava o clima naquele Carnaval de 1959?
JORGE – Faltava pouco mais de um ano para a inauguração de Brasília. A Pacheco Fernandes tinha obras da maior importância. Ela foi quem construiu o Palácio do Planalto, por exemplo. Vou contar a versão que me chegou por testemunhas que estavam no local quando ocorreu esse grave episódio. Era sábado de Carnaval no canteiro de obras da Pacheco que ficava perto do Clube da Imprensa, na Vila Planalto. Já havia sido servido o almoço quando três operários chegaram meio embriagados. Estavam vindo da Cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante. Era onde tinha o rebuliço, onde tinha hotel, armazém, onde a vida tinha o mínimo de aparência de normalidade. O resto era só canteiro de obra e o pau comendo o dia inteiro e a noite também. Esses três chegaram e encontraram dentro do canteiro de obras uma certa animosidade. Talvez para tentar evitar que o pessoal saísse em grande quantidade para “trocar o óleo”, o pagamento da semanada estava estrategicamente atrasado. A água também estava cortada. Então, tinha um clima de tensão que perpassa toda essa história.


ZONA SUL - O que, na sua opinião, aconteceu realmente naquele sábado de carnaval de 1959, no alojamento da Pacheco Fernandes?
JORGE – Esses três caras chegaram atrasados, tinham bebido. Sem água e sem dinheiro, havia esse clima de reclamação geral dentro do canteiro de obras. Eles exigiram a comida. Houve aquele bate-boca. O chefe da cozinha, que salvo engano chamava-se Prezo, autorizou que o almoço fosse servido aos retardatários. Quando pegaram a comida, ela estava gelada. Um deles, mais abusado, pegou o bandejão, jogou para cima e disse uns desaforos. Apesar dos operários já terem comido, alguns deles permaneciam no local. Então, houve aquela gritaria, aquele tumulto. Os três atrasados apenas acenderam o estopim. Já havia um clima. Ficou aquele bate-boca. O pessoal da administração temeu que houvesse um quebra-quebra. Foi aí que esse Prezo, receoso que o episódio adquirisse uma dimensão maior, chamou seu irmão, entregou a chave de um Jeep e mandou ele avisar à polícia, na Cidade Livre. Naquela época, havia uma estrada vicinal muito rudimentar ligando a Vila Planalto à Cidade Livre. O percurso, apesar da distância ser relativamente curta para se fazer de carro, em conseqüência da precariedade da estrada, demorava. Chegando na Cidade Livre, ele transmitiu a notícia para o pessoal da GEB (Guarda Especial de Brasília) com um certo nível de preocupação e exagero para o delegado. Aí entra uma suspeita que me contaram de que quem estava de plantão era um cidadão que tinha uma diferença pessoal com um crioulo grandão que trabalhava na Pacheco.


ZONA SUL – Mas o crioulo a que você se refere seria um dos três que chegaram atrasados, bêbados e iniciaram a revolta?
JORGE – Não. Os operários que eu entrevistei apenas falam a respeito dessa desavença. Mas o fato concreto é que o irmão do Prezo comunicou, e aí a GEB veio imediatamente com um grande número de guardas. Não eram policiais profissionais, era uma guarda, era uma coisa meio improvisada. Inclusive a GEB tinha a fama de ser constituída por pessoas despreparadas. Na maioria eram homens que haviam cometido crimes em suas terras de origem e vinham se esconder aqui. De fato, Goiás tinha naquele período, antes da inauguração de Brasília, uma certa fama de valhacouto, de lugar para esconderijo. A GEB tinha fama de truculenta e violenta. E esses guardas vieram, já do meio pro final da tarde, para o acampamento da Pacheco Fernandes na Vila Planalto. Quando eles chegaram, já deviam ter passado duas, três horas do início da confusão. O ambiente dentro da Pacheco era absolutamente outro, não tinha nenhum aspecto daquela algazarra, nem daquela possibilidade de se tornar uma coisa mais grave. Pelo contrário, tava tudo sossegado, quieto. Os operários me contaram que, naquele momento, eles jogavam damas, lavavam roupa, escreviam cartas para a família ou então apenas conversavam entre eles.


ZONA SUL – Se havia mesmo esse clima todo de paz e calmaria, então o que teria provocado o massacre?
JORGE – Os caras da GEB, quando viram tudo sossegado e parado, interpretaram aquilo como uma cilada. Pela maneira exaltada como o irmão do Prezo contou, que estava havendo aquela balbúrdia, aquela ameaça de quebra-quebra e, de repente, eles vêem tudo tão sossegado, eles suspeitaram que aquilo era uma cilada e abriram fogo. O acampamento era de tábua. Aí não precisa contar muito... As balas vararam as tábuas. E depois de alguns minutos de tiroteio, carga firme em cima do acampamento, eles fizeram um corredor polonês, colocaram policiais de um lado e do outro e obrigaram os operários a passarem no meio, não sem aplicar umas cacetadas. E a parte final da história: os próprios operários carregaram os mortos e feridos e colocaram no basculante de dois caminhões. E desapareceram. Inclusive os motoristas que foram conduzindo estes caminhões teriam morrido também, de acordo com a versão que ouvi dos operários.


ZONA SUL – Como seria possível provar que esta é a versão verdadeira?
JORGE – A grande questão está em você localizar os corpos. A prova do crime é a presença dos corpos. Aliás, é consenso que houve o conflito. A diferença das versões está no número de mortos. Achei um depoimento que me pareceu absolutamente apropriado para você fazer uma base de quantas pessoas teriam morrido. Eu insisti com cada pessoa com quem conversei sobre o número de vítimas. Nenhum dos operários falou em menos de 50. Houve quem estimasse em 120. Mas, para mim, o dado convincente foi o seguinte: apareceram cerca de 93 malas sem dono dentro do acampamento, no dia seguinte. Esse número, 93, é extremamente convincente. São pessoas extremamente humildes, que não tinham porque deixar seus pertences. Se as malas estavam ali abandonadas seria necessário ter havido algum fato trágico. Agora, do ponto de vista da localização dos corpos, soube que uma parte deles teria sido levada para onde hoje existe um trevo que liga Planaltina, Brasilinha e Formosa. Outra área seria na beira do Lago Paranoá, na entrada da Vila Planalto. E um terceiro local seria a Vila Amauri, onde hoje existe Taguatinga.


ZONA SUL – Entusiasta e aficcionado pela construção de Brasília, o presidente Juscelino Kubitschek acompanhou de perto a construção da nova capital. Você acredita que ele tomou conhecimento do conflito?
JORGE – A construção de Brasília significava muito para a segunda eleição de Juscelino. Com Brasília construída e inaugurada, seria praticamente impossível deixar de reeleger esse presidente extraordinário. Apesar de saber que JK não teve participação alguma no episódio, acredito que não era possível desconhecê-lo. Imagino que os fatos foram ocultados porque se houvesse uma apuração do massacre naquele momento, Brasília não seria concluída no governo de Juscelino. E se não fosse construída ali, é provável que tivéssemos nos anos seguintes uma imensa obra fantasma aqui dentro desse Planalto Central.


ZONA SUL – Um elefante branco descomunal...
JORGE – Mais do que isso, uma manada! Imensa! É bom lembrar que países como os Estados Unidos fizeram o que puderam, inclusive se aliando à UDN de Carlos Lacerda, para impedir o êxito desse projeto. Eles sentiam que a construção de Brasília seria uma maneira desse jovem país se expressar e se lançar perante o mundo inteiro como uma nação capaz, organizada e detentora de um nível de técnica invejável.


ZONA SUL – Em abril do ano 2000, o soldado da Aeronáutica, Alcimar Batista, concedeu entrevista ao jornal Correio Braziliense garantindo que não houve massacre algum. Ele disse que esteve no acampamento uma hora depois da confusão e só encontrou alguns feridos, mas nenhum morto. Na versão que Alcimar Batista apresentou, ninguém morreu na hora do confronto. Você leu esta matéria? O que achou do depoimento?
JORGE – Li essa matéria, tenho ela arquivada. Não tenho condições de fazer uma avaliação sobre os motivos que levaram esse cidadão a desmentir categoricamente o episódio. O que estou fazendo aqui é apenas reproduzindo o que pessoas que estiveram dentro do acampamento me contaram. Que viram os colegas baleados, que tomaram bordoada.


ZONA SUL – Você recolheu depoimentos apenas de operários?
JORGE – Não. Também estive em São Paulo para conversar com o engenheiro que chefiava aquela obra da Pacheco Fernandes, Fausto Favali. Ele defende a tese de que apenas um operário morreu, um homem chamado Evaristo, que teria levado um tiro na veia femural e se escondido embaixo de um dos blocos da construção. Sangrou até morrer de anemia aguda. Toda construção com mais de cem operários é obrigada a manter um diário. Fausto me mostrou a anotação que fez sobre aquele episódio. Só tem um porém. Ele confessou que não estava no local naquele sábado de Carnaval. Sua filha, na época com dez anos, tinha torcido o pé depois de cair de um armário. Como não havia aparelho de raios-X em Brasília, ele foi com a esposa e a filha a Anápolis, para tirar radiografia do machucado.


ZONA SUL – Qual das entrevistas marcou mais?
JORGE - O clima de pânico e terror que se instalou dentro desse acampamento foi um negócio tão sério, que em alguns casos demorei de seis a oito meses para convencer pessoas que estiveram lá a falar. Era grande o receio de contarem o que tinha acontecido e sofrerem represálias. Estive em São Paulo, em 1975, para colher o depoimento de um dos operários. Era um domingo de manhã, bem cedo. Quando estava me aproximando do endereço indicado, ouvi o barulho de bolas rolando em uma mesa de sinuca. Vi um homem de uns 50 anos, talvez um pouco menos, jogando sinuca com dois rapazinhos, seus filhos. Vindo de dentro de casa, escutei aquele barulho inconfundível de alguém batendo bife e um rádio tocando dobrados militares. Parecia cena de um filme. O homem me convidou para entrar e deixou os filhos jogando. Sabendo do temor que essas pessoas tinham de abordar o tema, não entrei direto no assunto. Conversamos sobre a construção de Brasília de uma maneira genérica. Finalmente, comentei que, como em toda história, Brasília também deveria ter vivido episódios tristes na época de sua construção. Eu notei que ele fez uma cara de quem tinha entendido o motivo de toda aquela conversa. Ele disse, “pergunte direto”. Senti-me autorizado: “Pacheco Fernandes Dantas, o que aconteceu?” Imediatamente, o rádio abaixou e o barulho do bife cessou. Apareceu uma mulher na porta da cozinha: “o que é que vocês quer (sic) com meu marido, com essa conversa até hoje?” Foi um susto que tomei. Minha mulher, que me acompanhava, percebeu que a situação estava ficando meio ruim. E foi conversar com a esposa do operário, lá dentro. Ela explicou que nós tínhamos sido pessoas perseguidas pela ditadura, tínhamos nos escondido, o que era verdade. Foi dessa forma que a senhora percebeu que não tínhamos intenção nenhuma de prejudicá-la ou ao seu marido. Depois disso, até adotei como comportamento omitir os nomes das pessoas. Troquei as identidades quando escrevi a matéria. Era a única maneira de preservar a integridade deles. Mas tenho as gravações com seus nomes verdadeiros. Da mesma forma como ainda guardo todo esse material, preservo também a esperança de que a verdade seja um dia contada com todas as suas letras.

3 comentários:

  1. Escutei ontem pela televisão esse comentario e fiquei chocada!!

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  2. Malditos Gebianos, malditos militares, malditos empreteiros, maldito Captalismo...Quando o ser humano humilde e trabalhador sera respeitado?
    Oque aconteceu em 59, acontece até hoje em varias partes do pais e nos não ficamos sabendo

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  3. Quero escrever uma história sobre isso. Um roteiro. ALguém me ajuda?

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