segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Entrevista: Abimael Silva

A LITERATURA POTIGUAR É VERMELHA

Apesar de reunir todas as cores, é inegável que, hoje, a literatura do Rio Grande do

Norte carrega um tom encarnado. Antes que julguem o contrário, é bom que se diga que não estamos falando de política. O rubro que permeia a cultura potiguar vem de Abimael Silva. Mais precisamente, da sua editora: a Sebo Vermelho Edições. Ex-bancário e ex-vendedor de loja de discos, o sebista e editor é antes de tudo um entusiasta das coisas que dizem respeito ao solo papa-jerimum. A entrevista a seguir foi realizada em parceria com o jornalista, amigo e meu xará Roberto Fontes. Do seu apartamento, Roberto e Abimael conversaram comigo, que estava na minha casa, em Brasília. Via Skype as ideias no ciberespaço e o resultado você pode conferir agora. O texto também está disponível no site http://www.zonasulnatal.blogspot.com


ZONA SUL – Qual o seu nome completo?
ABIMAEL – José Abimael da Silva. Nasci no Agreste potiguar, na cidade de Várzea. Mais precisamente em um lugarejo chamado Tanque do Boi. No final dos anos 1960 fui morar em Tibau do Sul. Fiquei por lá até 1973. Depois mudei para Natal.
ZONA SUL – Em que seus pais trabalhavam?
ABIMAEL – Minha mãe era dona de casa e trabalhava com artesanato, com sisal. O meu pai, carpinteiro, fazia de tudo: móveis, porta, cama e até caixão de defunto quando morria alguém... No tempo em que moramos em Tibau ele construía barcos no porto, além de fazer as outras coisas.
ZONA SUL – Qual o nome deles?
ABIMAEL – O nome da minha mãe é Maria Rodrigues da Silva. E o meu pai, Severino Hercílio da Silva. Só a minha mãe está viva. Lamentavelmente meu pai morreu no ano de 1980.
ZONA SUL – Por que sua família trocou Tanque de Boi por Tibau?
ABIMAEL – No tempo em que a gente morava nesse lugarejo, o meu avô por parte de pai – Manoel Florêncio, o Seu Quincas - de repente resolveu vender a sua propriedade. Cada um dos filhos morava em uma casa dentro dessa área. Meu pai, por ser o filho mais velho, foi o primeiro a ser sacrificado. A gente teve que ir morar junto com outros familiares lá em Tibau.
ZONA SUL – Qual a sua idade nessa época?
ABIMAEL – Uns cinco anos. Lembro da mudança e até da comida que a gente comeu nesse dia. Foi leite de vaca escaldado com farinha. Um pirão, uma comida bem de pobre mesmo. A gente comeu e saiu do sítio em direção à cidade, transportando os móveis... Coisa bem de retirante mesmo.
ZONA SUL – As principais lembranças de sua infância são de Tibau...
ABIMAEL – É. Inclusive, no tempo em que eu morava em Tibau, Pipa não era nada. Havia certa rivalidade entre os moradores de Tibau e os de Pipa. Quando passava, por exemplo, os moradores de Pipa em direção à feira de Goianinha, as pessoas de Tibau jogavam pedra e gritavam: “lá vem os pipeiros”. Era aquela concorrência besta.
ZONA SUL – Qual o motivo dessa rivalidade?
ABIMAEL – Era rivalidade normal de um lugarejo com outro, de uma cidade com outra. Mas eu falava sobre a minha infância em Tibau. Nesse tempo não tinha luz elétrica. À noite, entre 6 e 9, era ligado um gerador. De manhã cedo eu ia pegar água no chafariz para a minha mãe fazer o trabalho doméstico. Depois eu ia ao porto. Todos os dias o meu pai fazia barcos lá. Nossa família era bem pobre, necessitada. Naquele tempo tinha muita lagosta na praia. Quando chegava um barco, os pescadores, com um garfo, dispensavam a cabeça da lagosta e ficavam só com a cauda. Meu pai pegava umas cinco ou seis cabeças das maiores. Meu trabalho era pegar essas cabeças de lagosta e levar para a minha mãe fazer um cozido. A gente comia isso com batata, com macaxeira, com inhame, com farinha mesmo...
ZONA SUL – E os estudos?
ABIMAEL – Em Tibau estudei o básico. No começo dos anos 1970, minha mãe, já preocupada com os estudos dos filhos, resolveu que a família deveria mudar para Natal ou, pelo menos, enviar para a capital os filhos mais interessados. Dois dos meus irmãos não estavam nem aí para os estudos. Foi assim que a gente veio: eu e duas irmãs, que hoje são freiras. Uma mora em Angola, Irmã Maria Dionice, e a outra, Irmã Maria José, em Emaús. Ambas são da congregação Filhas de Santana.
ZONA SUL – Você tem quantos irmãos?
ABIMAEL – Cinco irmãs e dois irmãos. Sou o mais novo entre os homens e o quarto filho.
ZONA SUL – Em Tibau você demonstrava interesse pelos estudos?
ABIMAEL – Com relação a gostar de ler, como eu já falei em vários momentos, devo tudo ao

professor Antenor Laurentino Ramos. É um brilhante professor de língua portuguesa, literatura e francês. Ele foi o grande mestre, um incentivador para eu gostar de ler e de alguns autores, principalmente José Lins do Rego, que é o preferido dele.
ZONA SUL – Vamos voltar um pouco no tempo para você comentar como foi a transição de Tibau para Natal. Você sentiu algum impacto ao vir morar na capital?
ABIMAEL – Senti um impacto forte ao chegar em Natal, no começo dos anos 1970. Fui morar nas Rocas. Morei no Areal e depois fui morar no Alto da Castanha, na Rua Desembargador Lemos Filho. Fui estudar no Isabel Gondim. As Rocas tinha toda aquela efervescência. Existia a festa de Santos Reis, o cinema Panorama... Quando saía da aula, eu ficava no Canto do Mangue curtindo o movimento dos barcos. Como não tinha outra diversão, eu ia na fábrica de gelo que tinha ao lado e pegava duas pedras de gelo e ficava chupando. De repente a gente pode encontrar a felicidade em uma pedra de gelo.
ZONA SUL – Além de estudar no Isabel Gondim você, nessa época, precisava trabalhar para ajudar no sustento da família?
ABIMAEL – Nesse tempo eu não trabalhava, mas logo em seguida comecei a vender confeito. Meu pai construiu um tabuleiro e eu passei a vender confeito na porta das escolas e nas praias do Meio e dos Artistas. Sempre tentei sobreviver de alguma maneira, para não ter que ficar pedindo dinheiro ao meu pai ou à minha mãe. Eles eram tão necessitados que eu resolvi que precisava ter uma certa independência. Eu era muito criança, acho que tinha uns doze anos. Todo ano, quando chegava o inverno, eu falia. É que todos os confeitos e chocolates amoleciam e colavam. Ficava aquela bola de doce. Só quando o inverno terminava eu me recapitalizava para começar tudo de novo. Quando terminou a coisa dos confeitos, trabalhei um tempo em uma padaria enchendo os sacos de brotes e de bolachas. Trabalhava de cinco às onze da manhã e estudava no período da tarde.
ZONA SUL – Nesse ritmo você conseguiu ser um bom aluno?
ABIMAEL – Fui um aluno razoável em algumas matérias. Quando passava para aquela coisa de cálculo, eu me lascava todo. Em matemática sempre fui um fracasso. Também nunca me dei bem em química, física... Em 1976 fui morar nas Quintas e passei a estudar no Colégio João XXIII. Foi lá que conheci o professor Antenor. Ele trabalhava muito José Lins do Rego. Depois acabei conhecendo Pilar, local onde acontece toda aquela trama de Menino de Engenho. Fui com Antenor. Foi uma viagem que até hoje lembro. A gente viajou de Kombi o dia todinho para chegar em Pilar. Até hoje Antenor é um amigo. Ele sempre foi um professor muito dedicado.
ZONA SUL – Além de José Lins do Rego, o que mais ele recomendou a você, nessa época?
ABIMAEL – Ele trabalhava muito os nordestinos: Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e um pouco de Jorge Amado.
ZONA SUL – Você concluiu o segundo grau?
ABIMAEL – Na verdade eu sou um ordinário. Não concluí o segundo grau, parei no terceiro ano. Tudo por causa de um professor de matemática. Minhas notas não estavam muito boas e eu disse a ele que tudo o que eu queria mesmo era concluir o ano. Ele respondeu que não me aprovaria porque lá na frente eu poderia ser reprovado em um concurso e colocar a culpa nele. Insisti, mas ele acabou me reprovando. Fiquei com raiva e disse a ele: “não irei concluir o segundo grau por sua culpa”. ZONA SUL – Quando o Sebo Vermelho entra na sua vida?
ABIMAEL – Antes de ter deixado o colégio, eu já havia aberto o sebo. Isso ajudou na decisão de não concluir o segundo grau.
ZONA SUL – Mas antes do sebo você teve outras atividades...
ABIMAEL – Trabalhei em uma loja de discos, a Discol, durante quatro ou cinco anos. Vendia discos, fitas. Depois trabalhei quatro anos no Unibanco. Tenho 48 anos, mas na verdade me considero um cidadão de 44 anos. Os quatro anos que passei no banco considero perdidos.
ZONA SUL – O que você fazia no banco?
ABIMAEL – Comecei como contínuo. Até aí, tudo bem: eu saía, resolvia as coisas do banco, dava uma volta na rua. Depois fui para o setor de contas correntes. Uma chatice: todo dia tinha que somar 500 cheques e chegar a um valor exato. Era uma tortura. Consegui suportar quatro anos na marra. Depois resolvi sair. Com todo respeito a quem trabalha em banco e aos militares: se você passar 20 anos como soldado, se lhe perguntarem o que você sabe fazer, quando deixar o quartel, a resposta será: “nada, eu fui soldado”. Com o bancário é a mesma coisa. Você trabalha, trabalha, trabalha e não tem nenhuma utilidade.
ZONA SUL – Qual a reação da sua família quando você resolveu deixar o Unibanco para montar um sebo?
ABIMAEL – Só quem deu força foi minha irmã que hoje é freira e mora em Angola. Todos os outros disseram que eu estava maluco. A minha mãe, mesmo, ficou horrorizada: “como pode sair de um banco para botar um sebo, vender livro velho”. Foi um horror. Mas eu estava decidido. Saí por ter participado daquela famosa greve geral dos bancos de 1985, começo de 1986. Fiz piquete na porta do banco. Quando me demitiram, senti um alívio grande.
ZONA SUL – Natal já tinha outros sebos quando você abriu o Sebo Vermelho?
ABIMAEL – Tinha o sebo da família de Jácio. O meu foi o primeiro a usar a palavra “sebo”.

Quando coloquei, pichei alguns muros e coloquei “Sebo Vermelho” junto com algumas frases de efeito: “Transar fiado, no pau ou fazer troca-troca, vá de Sebo Vermelho”. Saí pichando tudo que foi esquina e algumas pessoas se chocaram com essa coisa de sebo. Perguntaram se eu sabia o significado da palavra. Não só as pessoas de fora, mas as da minha família. Tive que mostrar o dicionário para minha mãe, para ela entender que sebo era livraria que vende livros usados. Mesmo assim ela insistiu que aquela era uma palavra horrível. Por parte da família de Jácio eu era o intruso, aquele que não podia dar certo. Tanto que o pai dele, seu Raimundo, ficava lá no início dizendo que era melhor eu vender manteiga do sertão, caixas de uva. Comecei o sebo com a minha biblioteca, sacrificando 90 por cento dos meus livros.
ZONA SUL – Quantos títulos, mais ou menos?
ABIMAEL – Comecei com uns 600 livros. Vendi com a maior pena. Mas era o capital inicial e tinha que ser dessa maneira. Foi muito duro.
ZONA SUL – De um começo de 600 livros, hoje o acervo do Sebo tem quantos?
ABIMAEL – Uns 30 mil.
ZONA SUL – Por que Sebo Vermelho?
ABIMAEL – Tinha que ter um nome. Funcionava em uma cigarreira na Vigário Bartolomeu, quase em frente ao Banco do Nordeste, próximo à Praça Padre João Maria. Natal tinha cigarreira amarela, azul, verde, branca... Só não tinha preto e vermelho. Se pintasse preto, não daria certo por causa do calor. Resolvi pintar de vermelho, que é vida, sangue, energia e é a cor do amor. Toda propaganda importante tem vermelho.
ZONA SUL – Ancorado no Sebo Vermelho você lançou também um jornal.
ABIMAEL – Em 1986 abri o Sebo. Em 1990 lancei o jornalzinho do Sebo. Em 1987, junto com Dorian Lima, eu já fazia o jornal “A Franga”, que era razoavelmente anárquico ironizando e concorrendo com “O Galo”, jornal oficial do Governo do Estado. Estou reeditando em fac-símile a coleção completa, os cinco números. Depois fiz o jornalzinho do Sebo e, em seguida, “O Canguleiro”, um jornal sobre a Ribeira. Fiz também “O Cascudinho”. O “Jornal do Sebo Vermelho” circulou de 1990 a 2004. Teve 55 números com textos importantes. Era mensal, mas saía conforme os patrocinadores.
ZONA SUL – Nos primeiros anos do Sebo Vermelho o que vendia mais? Livros ou discos?
ABIMAEL – No início, principalmente discos. Mas livros também vendia bem, tanto que eu ia comprar em Recife, lá na “Livro 7”. Comprava livro com preço defasado e vendia no sebo.
ZONA SUL – Depois da chegada do CD caiu a procura pelo sebo?
ABIMAEL – De 1992 para cá, o vinil entrou em decadência total. Seu espaço foi ocupado pelo CD. Mas hoje em dia o elepê está voltando a ser procurado, tem todo um encanto. Algumas gravadoras estão fabricando vinil. Acho isso puro sentimentalismo besta. Não tem mais condições. Ninguém tem mais agulha, vitrola... Como vai gravar um vinil desse tamanho podendo gravar tudo isso em um arquivo que é a metade de uma unha?
ZONA SUL – Como surgiu a ideia de o Sebo Vermelho editar livros?
ABIMAEL – Começou com um livro de Anchieta Fernandes, sobre a história do cinema de Natal. Ele estava com dificuldade para publicar o livro. Em 1991 fiz uma parceria com Varela Cavalcanti, que era presidente do Sindicato dos Bancários do RN. Ele disse: “compre o material que eu imprimo”. Assim foi feito. “Écran natalense” foi um grande sucesso e está adotado, inclusive, no curso de Comunicação da UFRN.
ZONA SUL – A primeira edição saiu com quantos exemplares?
ABIMAEL – No geral as nossas edições saem com 300 exemplares. Talvez essa de Anchieta tenha saído com 500, por ser o primeiro livro e ter aquele encantamento todo. O livro recebeu críticas favoráveis de jornalistas da cidade como Nélson Patriota e Otto Guerra.
ZONA SUL – Até então o projeto era o de apenas lançar esse livro, e não uma editora. Como você sentiu que tinha espaço para o Sebo Vermelho ter sua editora?
ABIMAEL – Como esse primeiro livro foi um sucesso, despertou o interesse de continuar. Eu tinha na minha biblioteca particular a primeira antologia poética do Rio Grande do Norte. Reeditei essa antologia em 1993: “Poetas do Rio Grande do Norte”, de Ezequiel Wanderley. Tinha sido publicado em 1922, em Recife. Reúne 108 poetas do RN. Fiz uma reprodução fac-similar em có-edição com Carlos Lima, da “Clima”. O livro foi um sucesso estrondoso. Foi resenhado no Jornal do Brasil, com direito a figurar entre os lançamentos do mês. De repente o livro esgotou. Só na noite do lançamento foram vendidos 102 exemplares. Ao todo, foram vendidos 500. Tomei um gosto danado e resolvei tentar publicar pelo menos um livro por ano. Sempre em parceria, principalmente com Wodem Madruga, na época presidente da Fundação José Augusto.
ZONA SUL – Existe literatura no Rio Grande do Norte?
ABIMAEL – E como tem! O que falta é as pessoas descobrirem. Claro que tem que separar o joio do trigo. Tem muita coisa comum, sem futuro mesmo. Mas, procurando, tem poetas de importância internacional, cronistas, contistas, romancistas e grandes historiadores. No Rio Grande do Norte o que falta é essa separação e também uma divulgação, uma janela que mostre esses autores.
ZONA SUL – Qual o livro da editora que mais vendeu até hoje?
ABIMAEL – O livro que mais vendeu das edições do Sebo Vermelho é um livro de Marlene da Silva Mariz e Coquinho (Luis Eduardo Brandão Suassuna): “História do Rio Grande do Norte”. Quase todo ano a gente faz uma reimpressão dele, de 300 exemplares. Outro que deu um impacto danado foi um livrinho de Celso da Silveira e José de Souza: “O valor que o peido tem”. Esse livro causa um zumzumzum danado. Quase toda semana chega alguém lá no sebo procurando um exemplar. O livro mostra o peido no lado científico. A composição do peido, a descrição...
ZONA SUL – Qual o livro que mais lhe orgulhou publicar?
ABIMAEL – Existem vários livros que até hoje eu não canso de ler e reler. O principal é “Cartas de Drummond a Zila Mamede”, organizado por Graça Aquino. Pretendo reeditá-lo agora em 2012. Reúne mais de 60 cartas que Carlos Drummond de Andrade enviou para Zila Mamede, cada uma mais carinhosa que a outra. Esse livro foi um marco nas nossas edições. Foi o 20º título da Coleção João Nicodemos de Lima.
ZONA SUL – Quem foi João Nicodemos de Lima?
ABIMAEL – Foi o primeiro sebista do Rio Grande do Norte. Teve um sebo, de 1932 a 1975, na Ribeira, na Tavares de Lira. Foi um homem de grande importância, citado por Cascudo em alguns livros, como “O tempo e eu” e “Na ronda do tempo”. É um cidadão completamente esquecido. A única homenagem que ele recebeu foi essa nossa coleção. Não tem um nome de rua, de praça. Depois de João Nicodemos, Natal teve outro sebista, Cazuza. Mas João Nicodemos foi o primeiro.
ZONA SUL – O livro das cartas de Drummond a Zila é uma reedição ou era inédito?
ABIMAEL – É uma edição mesmo.
ZONA SUL – Como você conseguiu essas cartas para publicar?
ABIMAEL – Na lei do direito autoral, a carta pertence a quem recebe. Se você mandar uma carta para o Papa, o Papa é quem vai ter os direitos autorais. Mas se ele lhe enviar uma carta, o direito autoral será seu e você terá total liberdade de publicar essa carta. Zila Mamede manteve correspondência não apenas com Drummond, mas também com João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e com Geir Campos. A família tem muitas cartas. De João Cabral, tem 37. De Manuel Bandeira, se não me falha a memória, tem 18. De Geir Campos tem mais de 100. Essas cartas pertencem à família de Zila Mamede. Uma professora, Graça Aquino, reuniu, e eu publiquei. Os herdeiros de Drummond ficaram com a cara toda enjoada, querendo fazer confusão pelos direitos autorais. Mas, no pé da letra, a carta pertence a quem recebe.
ZONA SUL – Existe algum título que você gostaria muito de publicar.
ABIMAEL – Dezenas. Tenho nos meus papéis mais de 80 títulos que pretendo reeditar. Na verdade, o que gosto mesmo é de reeditar um livro que tenha alguma importância, além do interesse pessoal. Só de Cascudo - mas aí vou ter que me entender com a família dele - tenho material que dá para fazer mais de vinte livros inéditos, reunindo coisas de grande importância que ainda não foram concretizadas. Como, por exemplo, material de Cascudo só sobre livreiros e editores. Uma série de vinte artigos descrevendo a questão. Tenho uma coleção bem razoável de livros no prelo. Agora mesmo estou publicando o primeiro livro sobre cangaço no Brasil. É de um paraibano chamado João Bandeira. Ele publicou um livro, em 1929, chamado “Cangaceiros do Nordeste”, quando a Paraíba ainda era Parahyba do Norte. Esse livro nunca foi reeditado. Estou fazendo uma reprodução fac-similar dele.
ZONA SUL – O fato de hoje se encontrar livros e fragmentos de praticamente todo tipo de texto na Internet de alguma maneira interferiu no seu negócio como editor e sebista? As novas tecnologias afastaram o leitor do livro?
ABIMAEL – Pelo contrário: a internet só viabilizou, só tornou o livro mais viável, mais íntimo do leitor comum. A Sebo Vermelho Edições, por exemplo, já tem quase 350 livros publicados. A grande maioria sobre o Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – O Poder Público estimula o seu trabalho de alguma maneira? Você tem alguma parceria com governo ou prefeitura?
ABIMAEL – Até o presente momento, não. Mas, se for esperar pelo Poder Público, não se realiza nenhum sonho. O Poder Público só chega junto quando envia ofícios solicitando a doação de livros para essa ou aquela biblioteca. Até hoje nunca um governo estadual, municipal ou federal chegou para comprar nem dez títulos sobre a história do Rio Grande do Norte, de Natal, de Baixa Verde, ou de Mossoró...
ZONA SUL – A editora é rentável?
ABIMAEL – Você fez uma pergunta cruel. É e não é. Aqui e acolá um livro acontece, mas no geral a gente espera muito e é aquele fracasso. Às vezes a gente até perde a amizade com o autor porque ele estava esperando vender 100 exemplares e vende oito ou dez. Mas sempre tem um livro que vai compensando os outros. Meu único objetivo é com a venda de um livro viabilizar a publicação de outro.
ZONA SUL – Excetuando o Rio Grande do Norte, qual o estado que mais compra as publicações da editora?
ABIMAEL – É a Paraíba O difícil do livro nem é publicar, mas fazer ele livro acontecer, distribuir. O duro é convencer o dono da livraria a expor o seu livro, que ele poderá ganhar um bom dinheiro com aquilo. Agora mesmo, por exemplo, uma grande livraria de um shopping de Natal não tem nenhum livro de autores do Rio Grande do Norte. Isso é um descaso muito grande, é um desserviço à cultura do estado e ao desenvolvimento da nossa região.
ZONA SUL – Hoje quem é o grande nome da literatura do Rio Grande do Norte?

ABIMAEL – É difícil citar só um, mas pegando como exemplo um nome que a grande maioria conhece, eu escolheria Nei Leandro de Castro. Ele é um ótimo romancista, ótimo poeta e bom cronista. Tem livros publicados por grandes editoras, como a Nova Fronteira e a Siciliano. Mas não é o único: Sanderson Negreiros é um grande cronista, Iracema Macedo já mereceu o reconhecimento da crítica a nível nacional e temos muitos outros nomes de talento.
ZONA SUL – E o Abimael escritor?
ABIMAEL – Publiquei alguns livrinhos: “Guia dos Sebos de Natal & textos afins”, “Eu e Natal”, “As 14 mais da poesia potiguar” (uma antologia com 14 poetas que eu acho que são figuras importantes aqui) e estou preparando “Como comprar, preparar e comer um bom caranguejo uçá”. Será a primeira publicação sobre caranguejo na gastronomia brasileira. Também estou organizando uma antologia chamada “Poesia Futebol Clube”. O livro reunirá 23 poetas do Rio Grande do Norte, todos escrevendo sobre futebol. Tem Adriano de Souza, Chico Ivan, Ferreira Itajubá e muita figuras interessantes.
ZONA SUL – Onde se pode adquirir os livros da Sebo Vermelho Edições? Eles estão disponíveis pela internet?
ABIMAEL – Um sebo de Campina Grande comercializa na internet todas as edições do Sebo. Na Estante Virtual (http://www.estantevirtual.com.br/) tem muita gente vendendo. Estou pensando em começar a dar cabimento à internet. Ainda sou da máquina de escrever. Mas meus livros estão disponíveis no Sebo Vermelho (Av. Rio Branco, 705, Cidade Alta – Natal) e em algumas livrarias como a Potylivros.
ZONA SUL – Você ainda não utiliza a internet para vender os livros?
ABIMAEL – O Sebo tem um blog (http://sebovermelhoedicoes.blogspot.com/) organizado por Alexandre Oliveira, o meu capista. Ele é um danado, é quem mexe e faz tudo. Quando alguém pede um livro, eu separo e ele envia para o sujeito. Além do blog tenho outra página, também, mas é a minha esposa quem dá os pitacos lá e coordena tudo. Eu nem lembro o danado do nome dessa página.
ZONA SUL – Você pretende comercializar suas publicações também em formato digital?
ABIMAEL – O caminho é esse, embora eu ache que o livro de papel ainda vá durar uns 200 anos. Mesmo com toda a tecnologia e essa história de não derrubar árvores, ele vai continuar existindo. A tendência é que os dois formatos sejam oferecidos ao leitor. Acredito demais no impresso e até no livro como objeto de arte.
ZONA SUL – Fale sobre a entrevista que você deu a Jô Soares.
ABIMAEL – Foi em 2003, quando completei 40 anos e recebi o título de cidadão natalense. Na mesma época eu tinha editado o centésimo livro da editora Sebo Vermelho. A produção de Jô deve ter tomado conhecimento através de matérias que saíram no Diário e na Tribuna. Quando eles mantiveram contato, no início pensei que era brincadeira. O diferencial para a entrevista acontecer foi o fato de o Sebo Vermelho ser o único do país que edita livros. Esse foi o gancho. Pra se sincero, eu viajei meio temeroso. Jô Soares joga muito pesado quando entrevista um cidadão comum. Quando é uma autoridade, ele faz aquele lengalenga. No cidadão comum ele bota pra lascar mesmo. Se ele viesse dizer, por exemplo, que nordestino come calango ou lagartixa, eu responderia à altura. Fui preparado: para a guerra ou para a paz.
ZONA SUL – Você levou uns caranguejos para preparar no programa...
ABIMAEL - Quando a produção estava me entrevistando, antes de agendar a entrevista, falei do projeto de escrever o livro sobre caranguejo. Imediatamente eles pediram para eu levar alguns caranguejos. Foi uma novela danada, uma burocracia tremenda, transportar esses caranguejos. Só o frete no aeroporto, na época, foi quase 80 reais. Caranguejo tem que ser comido quentinho, morno. Se esfriar a carne não sai com facilidade. E como a cozinha ficava longe do estúdio, preparei os caranguejos e pedi a um cara para ele levar quente, durante a entrevista. Do contrário o ar-condicionado muito pesado estragaria o caranguejo. O problema é que quando o cara foi buscar, perdeu o horário. Eu tinha preparado duas cordas de caranguejo. Depois vi pessoas comendo - um músico, um funcionário - mas Jô Soares não comeu.
ZONA SUL – O que Jô Soares procurou abordar na conversa que teve com você?
ABIMAEL – A conversa foi sobre o sebo. Eu mostrei a ele um cartaz feito na primeira eleição pra presidente, em 1989. Reunia depoimentos fictícios de várias figuras. Tinha Lula com um chapéu dizendo: “eu tiro o chapéu para o sebo vermelho”. Gabeira falando: “porra, Abimael bem que podia criar o Sebo Verde, também”. Jô Soares abriu e ficou lá, paparicando Ulysses Guimarães, Afif Domingos e Brizola. Quando a entrevista terminou ele disse: “agora eu conversei com essa figura extraordinária” e papapá. Foi bem interessante. A entrevista foi no dia 2 de julho de 2003.
ZONA SUL – Selecione alguns livros imperdíveis de sua coleção.
ABIMAEL – Começaria citando dois sobre os quais já falei nessa entrevista: “Poetas do Rio Grande do Norte”, de Ezequiel Wanderley, e “Écran Natalense”, de Anchieta Fernandes. Nessa relação, incluiria “Os americanos em Natal”, de Lenine Pinto. É uma reedição do Sebo de um livro publicado pela Gráfica do Senado, em 1975. É a melhor crônica sobre Natal durante a guerra. Tem também um livro de Djalma Maranhão que considero o livro mais natalense que publiquei: “Esquina da Tavares de Lira com a Dr. Barata”. Um outro imperdível foi organizado por Moacy Cirne e Nei Leandro de Castro: “69 poemas de Chico Doido de Caicó”. Esse livro virou peça que foi encenada no Teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Ficou três meses em cartaz. Imagina, uma peça baseada em um livro publicado no Rio Grande do Norte, com resenhas na Veja, no Estadão, Globo, Jornal do Brasil... Outro que eu gostaria de acrescentar é o livro organizado por Manoel Onofre Jr., “Contistas Potiguares”. É uma antologia com os principais contistas do Rio Grande do Norte. Do jeito que tem livros esses livros especiais, tem outros que fico um pouco sem querer lembrar. Chega muita gente querendo publicar livro reiera mesmo. Um amigo, Inácio, bispo de Taipu, certa vez pediu que eu publicasse um livro. Eu disse que não publicaria de maneira alguma, que o texto era muito sem futuro. Ele então sugeriu: “crie uma coleção chamada “Langanha” para editar tudo o que chegar de porcaria”. A ideia é até boa, mas quem é que vai querer ver seu livro sair pelo selo “Langanha”? (risos)
ZONA SUL – Quais os projetos para o futuro?
ABIMAEL – Eu pretendo, agora em 2012, publicar uns 50 títulos. Por ser um ano eleitoral, tudo fica mais fácil. Se você fizer um lançamento na caixa d'água do Banespa, chega fulano, sicrano,

beltrano e tudo que é candidato. Eles vão e compram o livro, tiram uma fotografia e tal. Quando o ano não é eleitoral, como foi 2011, tudo fica mais complicado. Mesmo assim, em 2011 publiquei uns 30 títulos. Agora no começo do ano vai sair um livro que tem tudo para se tornar um best-seller: “Histórias de um taxista”. É de um motorista de táxi de 30 e poucos anos que tem tendência a ser literato. Ele tem histórias ótimas. Uma delas é a seguinte. Um cachorrinho daqueles bem miudinhos morreu. Como a família ficou arrasada, o veterinário se ofereceu para providenciar o enterro em um cemitério de animais localizado em São Gonçalo do Amarante. O dono do animal aceitou. Então o veterinário telefonou para esse taxista e pagou para ele transportar o cachorro, que estava dentro de um saco plástico, até o cemitério. O motorista colocou a “encomenda” na mala do carro e resolveu que levaria o bicho pra São Gonçalo após a última corrida do dia. No final da tarde ele pegou uma corrida de uma família que tinha feito compras no Hiper. Acomodou as compras na mala e fez a viagem. No destino, a família levou as compras e ele continuou a trabalhar. No final do dia, quando resolveu levar o cachorro para o cemitério, cadê o saco? A família tinha tirado, junto com as compras. Quando me contou essa história, o taxista comentou: “só fiquei com pena da mulher quando foi guardar as compras e encontrou aquele cachorro morto”. (risos)
ZONA SUL – Pelo visto vai ser mesmo um sucesso.
ABIMAEL - O cara é demais. Ele está escrevendo e um amigo meu, professor de língua portuguesa, está fazendo uma revisão rigorosa. Outra história contada pelo taxista é de uma mulher que chegou perguntando quanto ele cobrava para ir procurar o marido dela nas Rocas, no picado do Monteiro - no Alecrim - e no bairro Nordeste. A mulher era linda, segundo o taxista. Chegaram em uma espelunca pesada, nas Rocas. O marido não estava. Dez e meia, onze horas, o cara também não estava no Alecrim. Foram para o Bairro Nordeste e ela viu logo o carro do marido. Estava na casa da amante. Ela esculhambou o marido, pegou uma pedra, amassou uma porta e quebrou o para-brisa do carro. Dois minutos depois o marido saiu, só de cuecas e com sono. Ela esculhambou: “Seu cachorro, você não tem vergonha de estar na casa dessa rapariga”. Foi o maior escândalo. A amante saiu também e começou a confusão entre as duas. O marido chegou para o taxista e disse: “rapaz, leva essa mulher daqui”. O taxista perguntou logo: “E a corrida?”. “Eu pago, quanto foi?”. “Trezentos reais”. O cara deu o dinheiro. O taxista chegou para a mulher e disse: “dona, vamos embora que a polícia está chegando, a vizinhança já denunciou”. Quando entrou no carro, ele disse: “a senhora é muito mais bonita do que ela e também o estrago que a senhora fez no carro ele nunca mais vai esquecer”. Assim ele conseguiu levar a mulher. Outra história parecida foi a corrida que ele fez para pegar um cliente em um motel. Quando chegou, uma cinquentona e um garotão com cara de 16 anos. Quando chegou na casa da mulher, o marido fez o maior escândalo. “Como você chega uma hora dessa”. A mulher respondeu no ato: “só vim agora porque sabia que você ia dar esse escândalo”. O marido perguntou quem era o garoto. A esposa já tinha a resposta na ponta da língua: “Dormi na casa da minha prima, esse é o filho dela. Ele veio pra evitar de você me bater. Agora, pague a corrida e dê algum dinheiro ao garoto”. O cara pagou e ainda deu uma gorjeta ao boy. O cara contando é coisa de você gravar e comparar com as histórias de Gabriel Garcia Márquez.
ZONA SUL – E história desse tipo vivida por você? Tem muita?
ABIMAEL – Antigamente, quando perguntavam se eu publicava livro, eu já respondia que sim. Certa vez chegou uma senhora no Sebo Vermelho. Era começo de semana, duas e meia da tarde.

Ela perguntou se eu publicava livros. Respondi que sim. Ela disse que queria publicar um. Expliquei que geralmente o Sebo pagava 50% dos custos e a pessoa interessada pagava a outra parte. “Dinheiro não é problema: quero pagar tudo”, ela respondeu. Nesse instante, já fiquei com uma pulga atrás da orelha. “Quero fazer um livro sobre o meu neto, que está completando cinco anos. Vai ter uma festa bonita e só o contrato com o buffet foi R$ 5 mil ”. Nessa época, com R$ 2 mil a gente editava o livro que ela queria. Aperreado, comecei a me perguntar como eu ia conseguir sair daquela camisa de sete varas, já que eu tinha dito que publicava o livro. Um livro sobre o neto de cinco anos... Se fosse um neto de 30 ou de 40, tudo bem. Ainda perguntei se ela não achava que estava muito cedo para fazer um livro para o neto. “Não, é um presente. Isso aqui já está programado”. Nisso, do outro lado da rua estava uma Pajero. O motorista tinha ficado para estacionar o carro. Tentei explicar à mulher que só publicava se fosse sobre a história do Rio Grande do Norte. Mas ela não aceitou de jeito nenhum. “Nosso acordo é esse e eu vou pagar tudo”. A conversa continuou até que chegou uma hora em que ela disse que queria o livro publicado em uma edição bilíngue - português e inglês - e com capa dupla. Vi aquilo como a minha salvação. Disse logo que eu não fazia capa dupla e emendei: “Seu neto também não tem grande importância, ele é muito novo para a senhora fazer um livro, e ainda por cima em edição bilíngue”. Encerrei dizendo que não tinha a mínima condição de fazer e sugeri que ela procurasse outro. Dei o endereço da Offset Gráfica e autorizei ela a usar meu nome quando fosse falar com Ivan Júnior. Ela insistiu disse que queria o livro com o selo do Sebo Vermelho, que até podia fazer em outro local, mas com o selo do Sebo. Não concordei. Certa hora o motorista ligou e eu só ouvi ela falar: “não, não deu certo. O garoto aqui está todo queixudo”. Eu sentado numa cadeira, tomando uma cerveja, três horas da tarde. “E ele tá me encarando aqui, venha, traga o carro, ele não quer fazer de maneira alguma. Está me encarando agora”. Quando ela botou o pé fora do sebo, fiz um juramento com Padre João Maria: “Nunca mais cometerei esse deslize, esse antiprofissionalismo de dizer que publico qualquer coisa”.
ZONA SUL – Para finalizar, deixe um recado para o leitor.
ABIMAEL – Leia, mesmo que seja bula de remédio, revista Tio Patinhas, Tex, Sabrina, Bianca, Júlia ou jornal disso ou daquilo. A coisa mais importante é ler. Com a leitura você vai descobrir caminhos e fazer novas viagens. O conhecimento é a única coisa que, depois que você adquire, é para sempre. Por fim, quero dar os parabéns a Costa Júnior e a Edson Benigno por manterem esse jornal que já circula há muitos anos. Eu, como idealizador de alguns jornais, sei a dificuldade, a complicação que é fazer e manter um periódico. É muito louvável essa iniciativa.

Um comentário:

  1. Parabéns, li toda a entrevista. Adorei as histórias do taxista (rsrs)

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