sexta-feira, 1 de abril de 2011

Entrevista: Professor Tadeu

O PROFESSOR QUE AMA AS PALAVRAS E OS LIVROS

O professor Francisco Tadeu da Silva nasceu em Campina Grande. Nesses tempos em que a leitura, a formação cultural, a arte de pensar e o exercício da inteligência parecem estar fora de moda, ele é um oásis nesse espectro de ignorância. Para quem aprecia uma conversa com conteúdo, dialogar com o professor Tadeu é como experimentar um manjar preparado pela deusa de mais alto escalão na culinária. Bibliófilo, ele é mordaz nos seus comentários e crítico do que considera menor. Conheci o professor Tadeu em João Pessoa, no final do ano passado. Na primeira ocasião em que nos encontramos, ele esgrimiu tantos conhecimentos e comentários interessantes que tornou-se impossível não agendar essa entrevista. Conversamos em uma segunda-feira pela manhã, em um bar próximo à praia de Tambaú. Não foi fácil encontrar um bar aberto por volta das dez da manhã na capital paraibana. Cidade tão linda e vocacionada para o turismo, JP tem muito a melhorar nos seus serviços. Também não foi fácil localizar novamente o professor. Mas nem essa “seca” que dominou metade da conversa (só começamos a beber meia hora depois do início do bate-papo) comprometeu o resultado. Vale a pena ouvir o que o professor Tadeu tem pra contar. Antes de lhe passar a palavra, gostaria de fazer um agradecimento especial à Josélia Nacre, funcionária da Universidade Estadual da Paraíba. Exemplo de servidora pública, foi ela quem me colocou em contato novamente com o professor para que eu pudesse tirar algumas dúvidas sobre a entrevista que você lê a seguir. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – O que os seus pais faziam?
TADEU – Nasci em Campina Grande. Aos dois anos de idade fui morar em Recife. Meu pai colocou um laboratório em sociedade com um amigo, dos tempos de solteiro. Depois eles passaram para um armazém de grosso. Isso foi já da metade para o final da década de 1950. Desde o exame de admissão, estudei com os padres salesianos no colégio lá de Recife. Fiz a admissão ao ginásio, o ginásio, depois fiz o clássico. Apesar de a ordem salesiana ser até hoje profundamente conservadora, foi com os padres salesianos que despertei para a paixão pela palavra e pela leitura. Tudo começou aí, por volta dos 13 anos.
ZONA SUL – Como saiu muito novo de Campina Grande, você não deve ter lembranças do período em que viveu por lá. Mas, de Recife, o que você recorda?
TADEU – Em Recife fiz o curso de filosofia, a graduação...
ZONA SUL – E antes disso? Por exemplo: como foi a sua infância?
TADEU – Morei em uma rua chamada Dom Bosco, que era exatamente a rua do Colégio Salesiano. Para ser bem preciso, morei de frente ao Colégio São Vicente de Paula, que é um colégio de freiras. Nesse período fui ajudante de missas. As freiras encontravam dificuldade para arrumar alguém para ajudar o padre, nas missas. Como mamãe era muito religiosa e tinha amizade com as freiras, elas perguntaram se era possível eu ajudar. Me ensinaram e fiquei o tempo todo ajudando. Eu era bem tratado. O colégio era de freiras, só tinha mulheres. Eu e o padre éramos os únicos dois homens que tínhamos livre acesso aos corredores.
ZONA SUL – O padre provavelmente não deveria fazer proveito dessa regalia, mas, e você?
TADEU – (risos) Fui um menino meio treloso. Às vezes tinha umas festas lá e aquelas meninas maiores me colocavam no colo. Eu era menino mesmo, e era muito querido. Em algumas ocasiões, até na hora da missa eu ficava flertando com as meninas menores. Mas eram aqueles flertes bestas. Algumas vezes a freira me repreendeu: “você quando estiver ajudando na missa, preste atenção, porque você às vezes se vira...” Foi um tempo muito bom. Tive um grande aprendizado. No Salesiano também. O colégio ainda hoje tem uma grande estrutura, é muito bom. A biblioteca de lá, pra mim, foi uma grande descoberta. Foi lá que comecei a ler de verdade. Lembro bem que com 13 anos tirei aquela coleção “Titãs da Literatura”. Aliás, é uma coleção muito boa, ainda hoje tenho.
ZONA SUL – O que mais você recorda de ter lido naquela época?
TADEU - Com 13 para 14 anos li “Noites Brancas”, de Dostoiévski. Foi maravilhoso. Nessa mesma época li “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi. Daí comecei também a ler aqueles livros de aventura, como os livros de Karl May. Inclusive, há não muito tempo atrás foi que descobri a biografia dele. Era um alemão que nunca tinha ido aos Estados Unidos. O gozado é que sua obra, mais de seis volumes, é toda voltada para a trajetória do índio americano, aquelas paisagens. Fisicamente ele nunca esteve por lá.
ZONA SUL – Como era o seu ambiente familiar?
TADEU - Eu morava em uma casa que tinha um primeiro andar. Nesse andar morávamos eu e um irmão. Certa vez, antes de minha mãe morrer, a vi conversando com meus dois filhos. Fiquei observando. Ela reclamava por eles não gostarem muito de estudar: “nenhum de vocês puxou a seu pai. Ele estudava demais e eu brigava para ele deixar de estudar”. Na verdade, não era bem assim. Está certo que eu estudava, porém, mais do que isso, eu lia muito. Eu gostava de ler. Me trancava no quarto, após o almoço, e começava a ler. Às vezes a minha mãe vinha e mandava eu descer para brincar. No colégio criei problemas para os padres não por desacato ou indisciplina, mas porque eu não gostava de fazer educação física. Sempre achei aquilo estúpido. O Salesiano tinha um militar como professor de educação física. Ele era de uma rigidez, dando aquelas aulas. Na minha visão aquilo era totalmente estúpido. Eu tinha pavor àquelas aulas de educação física. Ainda bem que parece que tiraram isso dos colégios.
ZONA SUL – E de praticar esportes você gostava?
TADEU – Não. Eu jogava voleibol e basquetebol obrigado. Os padres obrigavam, acho que para incentivar essa coisa do coletivo. Eu era exatamente o contrário. Eu não gostava do coletivo. Eu gostava mesmo era de estar isolado, lendo.
ZONA SUL – Sua diversão era bem individual.
TADEU – Era. Até hoje eu não gosto de praticar esporte nenhum. Nem jogo de salão, nem nada. Não tenho muita habilidade, nem gosto. Eu era muito personalista, gostava de estar isolado, de sonhar com os personagens dos livros. Muitas vezes os colegas tiravam onda e faziam chacota comigo porque eu ficava lá na sala e o padre vinha e me obrigava a vestir calção para ir jogar. No Salesiano, quando um professor faltava – coisa que raramente acontecia – quando era no intervalo entre aulas, tinha uma figura chamada de padre-prefeito. Era uma figura bem durona. Ele escolhia um aluno e colocava no birô do professor para anotar os nomes dos colegas que conversavam. Uma coisa que o meu pai me ensinou desde pequeno foi a não ser dedo-duro. Isso é uma questão de honra. E o filho da mãe do padre, um dia, acho que até por pirraça, chegou e me chamou para aquela tarefa. Foi na segunda série ginasial, lembro como se fosse hoje. Meus próprios colegas começaram a rir, porque eles mesmos entendiam que eu não servia para aquilo. Não que eu fosse tímido, eu até era meio sonso. Aquilo me deu uma raiva danada. Eu estava no bolso da farda com saquinhos de sequilhos. Eu estava com o bolso cheio. Me sentei. Pouco depois que o padre deu às costas, tirei os sacos do bolso e joguei no meio da sala, dizendo: “olha aí para vocês”. Meu amigo, destruíram umas quatro carteiras, quebraram perna de gente, foi um alvoroço... (risos) Lembro disso com muita honra.
ZONA SUL – E quando o padre voltou?
TADEU – Ele perguntou o que era aquilo. Eu disse que o responsável era eu. “O que foi que você fez?”. Expliquei o que tinha acontecido, enquanto o padre olhava um chorando e o outro com a perna quase quebrada. Ainda hoje as salas do Salesiano de Recife são as do tempo em que eu frequentava. Fizeram uma grande reforma, mas continuam as mesmas. Tinha umas colunas enormes. Depois da confusão que provoquei na sala, o padre disse: “pegue seus livros e fique ali em pé, perto das colunas”. E mandou chamar meu pai, que morava perto do colégio. Fiquei de dez e meia ao meio-dia em pé, sem poder me mexer. Os alunos foram embora e nada do meu pai chegar. Já perto de uma da tarde, meu pai chegou. O vi conversando com o diretor. O diretor gesticulava, meu pai falava... Até que meu pai chegou perto de mim e mandou eu pegar os livros para irmos para casa.
ZONA SUL – O que seu pai fez?
TADEU – Fique esperando a reação dele. Meu pai na frente, eu acompanhando. Ele não deu uma palavra. Em casa, minha mãe perguntou: “por que esse menino está chegando essa hora?”. Meu pai respondeu: “eu quero lá saber, esses padres não têm o que fazer, colocam o menino em pé até uma hora dessas por causa de uma besteira”. Meu pai era um homem analfabeto. Aliás, analfabeto em termos, pois ele sabia escrever, e tal. Também dava conta da parte espiritual. Mas era um homem profundamente limitado. Porém, veja a visão crítica dele, que leitura de mundo: não fez nada contra mim porque entendeu meu gesto. Lógico que, quando joguei os sequilhos, eu fiz uma besteira. Mas foi a forma que encontrei para sair daquela função tão violenta.
ZONA SUL – Depois desse episódio você ficou marcado no colégio?
TADEU – Não. Apesar desse meu lado, sempre fui bem tratado. Mamãe frequentava muito o colégio, pois morávamos bem próximos. Lá também funcionava como internato. Muitos ex-alunos do Salesiano depois se destacaram. Alguns politicamente, outros na área jurídica. Aos sábados passava filmes. Também tinha festas e jogos: era muito interessante. Como disse, eu também ajudava na missa, aos domingos. Sempre gostei de ajudar. O sagrado sempre me seduziu. Isso me lembra um episódio interessante. Contei certa vez em uma palestra, ninguém aguentou. Na entrada da capela, naquela nave bonita, tem um Cristo com uma cruz que é uma coisa linda. A religião católica e o cristianismo são meio sanguinolentos. Vejo até com certa brutalidade. Aquele Cristo do Salesiano é uma coisa impressionante. Dia desses estive lá e tive a mesma sensação de quando eu era menino. Só que, no tempo de menino eu tinha até medo daquele Cristo ensanguentado olhando pra mim.
ZONA SUL – Mas qual foi o acontecimento que gerou tanta comoção em sua palestra?
TADEU – Certa vez cheguei em casa depois de ter me confessado. Nós, estudantes, éramos obrigados a assistir uma missa às sete horas da manhã do domingo. Tinha até que levar a carteira, para registrar presença. Valia nota de religião. Havia esse rigor besta, mas tudo bem, isso não me afetou. Nesse dia cheguei em casa e disse a minha mãe que Jesus tinha rido pra mim. Querendo ser santo logo, contei aquela história. Talvez esse episódio tenha ocorrido na época do lançamento de “Marcelino Pão e Vinho”. Fiquei impressionado com aquele filme, ao ver Jesus batendo papo com aquele menino. Quando eu disse a mamãe que Jesus tinha rido pra mim, ela explicou: “meu filho, você se confessou, é até pecado dizer isso. Não quer dizer que você não possa ser santo, mas não é assim, leva tempo. Você pensou que ele riu, mas isso não aconteceu”. Depois que ela deu aquela lição, eu insisti: “ele riu”. Minha mãe foi perdendo a calma: “você não diga que Jesus riu pra você porque isso não aconteceu”. Continuei insistindo: “riu”. Ela pegou a correia da máquina e ameaçou: “diga agora que Jesus riu pra você, cabra safado. Diga que eu vou quebrar você de pau agora”. (risos). Meu pai estava em uma cadeira de balanço e interveio: “deixe de besteira, você se trocando com um menino. Não é possível, uma pessoa adulta”. Foi assim que ela parou, mas já estava me pendurando no braço para dar uma surra.
ZONA SUL – Você era danado mesmo...
TADEU – Escute essa outra história... Nos álbuns de fotografias familiares sempre tem alguns retratos que a gente não gosta. Geralmente um deles é o filho homem vestido de mulher, com uma chupeta pendurada. É um negócio feio danado. Outra foto é terrível é a da tal primeira comunhão. O cara segurando aquela vela que parece um símbolo fálico. O menino todo de branco, com cara de abestalhado. A minha primeira comunhão foi diferente. Certo dia, mamãe, muito religiosa, puxou conversa com meu pai, que estava sentado em uma cadeira de balanço. Ela falou: “temos que providenciar a roupa de Tadeu, porque a primeira comunhão dele é no próximo mês. Vamos ver logo isso”. Na mesma hora eu respondi que não ia fazer a primeira comunhão vestido de branco. Minha mãe era uma mulher muito dura. Ela retrucou imediatamente: “você vai, você vai porque não é diferente de ninguém. Se todo mundo vai de branco, por que você não vai de branco?”. Teimei que não iria. Ela já foi logo fechando a mão: “você não diga que não vai. Quero ver se você não vai”. E meu pai calado. “Vou não”. Mamãe me pegou pela orelha: “diga, safado, que você não vai de branco”. E já foi tirando a chinela. Meu pai intercedeu: “solte o menino. Ele faz a primeira comunhão se quiser. Não botei filho no mundo pra negócio de igreja ou de primeira comunhão. Botei foi pra estudar. Se ele não quiser, não vai. Não vou obrigá-lo”. Aí mamãe recuou, quando viu que eu tinha o apoio logístico do meu pai. Você não vai acreditar, mas obriguei mamãe a comprar um terno azul marinho. Não pude fazer com a turma, porque todos fizeram vestidos de branco. Fiz sozinho. Você acredita nisso? Se você me perguntar por que eu fiz isso, eu não saberei responder.
ZONA SUL – Talvez por pirraça...
TADEU – É, pode ter sido pirraça. Mas, meu amigo, eu tenho a foto lá em casa.
ZONA SUL – Mas a vela você segurou...
TADEU – Nem lembro se segurei a vela. As fotos são sem vela, sem nada. Um tempo desses peguei esse retrato e comecei a rir. Até a minha mãe não aguentou e começou a rir também. Ela já idosa, comentou: “é, ele era assim mesmo, esse menino me deu tanto trabalho”. Mas não era trabalho! Na minha visão já era uma leitura meio crítica do mundo, da realidade.
ZONA SUL – Nessa época você pensava em futuro, em profissão, em direcionar os estudos para alguma direção?
TADEU – Não pensava em nada disso. Mas deixe eu traçar um paralelo. Você conhece aquele livro de François Truffaut, que é uma entrevista que ele fez com Hitchcock?
ZONA SUL – Não.
TADEU - É um álbum fotobiográfico, uma coisa assim, com uma longa entrevista. Eu tenho. Dia desses eu estava lendo. Lá Truffaut faz essa mesma pergunta a Hitchcock: “Você jovem já tinha a ideia do cinema?”. Hitchcock foi um gênio. Eu não lembro se naquela época eu já tinha noção do rumo para o qual desejava direcionar a minha vida. Porém eu recordo que duas coisas eu não queria ser: juiz e militar. Isso eu tenho certeza que não queria. (risos)
ZONA SUL – Nem padre...
TADEU – Nem padre. Tenho a impressão que meu pai queria que eu fosse um jurista ou um médico. Minha mãe é filha de senhor de engenho falido. Eles sonhavam com uma carreira de destaque. Minha mãe sempre nos dizia que saiu do sítio pra poder dar educação aos filhos. Ela não queria que a gente crescesse amarrando cavalos. Logicamente não era isso, há um certo exagero, mas, de qualquer forma, o estudo e a formação são importantíssimos. É muito importante a pessoa ter uma visão de mundo. E essa visão só se adquire através do estudo, da absorção de conhecimentos. Não estou nem me referindo tanto ao estudo formal, mas a descoberta de mundo se dá por aí. Quando isso falta a uma pessoa, é muito cruel.
ZONA SUL – Quantos irmãos você tem?
TADEU – Éramos quatro, mas um faleceu tragicamente, muito jovem ainda. Ele se chamava Paulo Roberto. Morreu aos 12 anos, afogado em Tambaú. Um outro, Francisco de Assis, mora em Belo Horizonte e trabalha com publicidade. É muito interessado na profissão e adora cinema. Tenho uma irmã que mora em João Pessoa e trabalha com seguros: Verônica da Silva.
ZONA SUL – Hoje você acredita que a sua vocação era essa mesmo voltada para o ensino?
TADEU - Naquela época se falava em vocação, hoje não mais. Vivemos em uma sociedade onde se discute muito a praticidade. Vamos ser práticos: atualmente a carreira é o dinheiro. Naquela época não era dessa forma. Falava-se em vocação, que é uma coisa bonita. Eu admirava a figura do professor. E nós tínhamos bons professores. Pra você ter uma ideia, os professores que ensinavam no ginásio, clássico ou científico, terminaram catedráticos da universidade. Tínhamos escritores ensinando português... Isso foi muito bom pra mim. Eu tinha um verdadeiro encanto por aquelas figuras. Assisti aulas maravilhosas. Não esqueço nunca o latim que a gente aprendia.
ZONA SUL – O latim foi abolido há muito tempo das escolas...
TADEU - Na quarta séria ginasial a gente traduzia Cícero, Horácio... Era um negócio bonito. Hoje, muitos alunos na universidade não sabem ler. Vi uma entrevista de Antônio Houaiss, acho que em Jô Soares. Houaiss dominava bem essa questão da língua. Ele comentou que nos Estados Unidos o americano médio (o que completa a universidade) domina um universo de 3.500 a 3.800 palavras. Um indivíduo com essa mesma escolaridade no Brasil domina menos de 900 palavras. Fiquei estupefato com essa informação. Se você não conhece uma língua, como pode pensar? Para pensar tem que ser através de uma língua. Esse talvez seja um dos processos mais violentos de asfixia do pensamento. Vivemos numa sociedade onde a condição de ler é proibitiva. E as pessoas estão fechadas com relação a essa questão. Tirando um pouco o exagero de Darcy Ribeiro, ele colocava isso muito bem quando dizia que aqui se gasta milhões para deseducar. Ele não falou isso irresponsavelmente. É tão forte essa afirmação, que às vezes a gente pode até pensar que seja pessimismo demais. Se você não tiver uma visão crítica, você não quer acreditar nisso, mas é verdade. Esse é um dos grandes crimes da nossa classe dominante. Toda a história da nossa classe dominante passa por uma frase que até virou título de tese do historiador Edgar de Decca: “O silêncio dos vencidos”. A única maneira de silenciar os vencidos, na história, é vedar a eles a capacidade de ler a sua própria história. E no Brasil os vencidos estão silenciados.
ZONA SUL – Estão tentando proibir até Monteiro Lobato...
TADEU – Pra você ver... Há pouco tempo fiz uma palestra no Instituto de Assistência à Saúde
do Servidor (IASS), em João Pessoa. O superintendente, grande amigo meu, reorganizou uma biblioteca que já existia, mas era como se não existisse, e me convidou. Fui chamado para falar sobre essa questão da leitura, do livro e da biblioteca. O grande crítico literário Haroldo Bloom, que também era professor de universidade, tem um livro chamado “Como e por que ler”. Ele dizia que um dos grandes crimes que a universidade cometeu, e concordo com ele, é que a universidade hoje tirou do aluno a vontade de ler. Não oferece mais aquela leitura prazerosa. Concordo. Às vezes a gente culpabiliza muito o aluno. Falo de cátedra, pois fui professor a minha vida toda. A primeira aula que dei foi em 1968. Hoje o que predomina é uma pedantocracia acadêmica, um bocado de pedante. Fazem esses doutorados chiques em Paris, Inglaterra, Alemanha e não sei o que mais – enchem a boca pra dizer isso. Às vezes um curso todo marcado pelo colonialismo cultural. Alguns chegam na universidade para dar suas aulas e nem na graduação querem ensinar. Se acham pesquisadores. Conheci de perto. Dar aula na graduação, para alguns desses, é coisa menor. Veja que visão. Pra mim era exatamente o contrário.
ZONA SUL – Mas você atuou também na pós-graduação...
TADEU - Minha experiência com pós-graduação não foi boa. O aluno já vinha com aquela visão preconcebida de que ele já sabe. Fica ruim para o professor tirar. Alguns estão fazendo o curso de pós-graduação quase que por exigência, mas não têm nenhum interesse. Às vezes vêm de áreas completamente desvinculadas com aquele contexto. Pra píorar, o professor joga uma apostila, que é uma coisa perversa. Às vezes é o capítulo de um livro que descontextualiza o pensamento do autor e, pior ainda, todo o conteúdo do livro. Às vezes, além de o texto estar descontextualizado, o professor o desconhece também. Isso é mais grave ainda. (Nessa hora o garçom comunica que finalmente o bar pode começar a vender cervejas. São 11 da manhã em João Pessoa. O professor pede uma “mofada”). O aluno, como diz Bloom, passa a odiar a leitura.
ZONA SUL – Como foi a sua transição de aluno para professor? Por favor, fale sobre a sua carreira acadêmica.
TADEU – Quando terminei o clássico, prestei vestibular para filosofia, em Recife. Fiz o curso na Universidade Federal de Pernambuco e vim para João Pessoa. Meus pais vieram morar aqui. Meu pai vendeu tudo o que tinha lá e veio para João Pessoa. Na época fiquei chateado porque queria que ficássemos em Recife. Hoje vejo que ele acertou. Recife, atualmente, é uma cidade terrível. Tenho um primo lá. A cidade ficou horrorosa no sentido de que transformou-se em uma metrópole com problemas gravíssimos. Pernambuco é um estado que estagnou. Meu pai acertou na mosca. Depois de vender tudo, colocou o dinheiro na poupança e veio para João Pessoa. Morreu tranquilo, sem nunca precisar de nada, com 93 anos. Quando cheguei, não podia ensinar, apesar de já ter o diploma. Não podia porque a ditadura estava tirando do currículo o ensino da filosofia e colocando em seu lugar organização social e política brasileira (OSPB) e educação moral e cívica. Na universidade implantaram a tal da EPB, estudos de problemas brasileiros. Eu queria ensinar. Os professores que ensinavam filosofia e sociologia foram absorvidos pelos colégios para lecionar outras disciplinas. Chegar para um colégio particular dizendo que era professor de filosofia era até crime. Eles já olhavam pra você como um possível comunista.
ZONA SUL – Como você superou esse impasse?
TADEU - Fiz outra graduação: geografia. Na época em que entrei na faculdade aqui na Paraíba, no final da década de 1960, início da de 70, tínhamos um dos melhores cursos de geografia do Brasil. A equipe era coordenada por um casal francês. Eles tinham uma metodologia fabulosa, a geografia humana. Quando entrei, a ditadura tinha colocado pra fora, em uma lapada só, quase todos esses professores. E tinha contratado praticamente todos os alunos do último ano do curso. Alguns até inexperientes. O mais grave é que o curso passou a ter nova metodologia, voltada para a geografia física. Isso me provocou uma decepção grande. Eu estava atrás daquela geografia humana. Mesmo assim tirei um grande proveito, mas me arrastei muito para concluir o curso, quase que não termino.
ZONA SUL – Enquanto isso você já lecionava?
TADEU – Sim, logo comecei a ensinar. Na época o estado tinha deficiência de professores. Resolvia contratando estudantes sob contrato de emergência, uma coisa assim. Esse aluno virava professor e ia ficando. Acho que na década de 1970 o governo fez um concurso e aproveitou praticamente todo mundo. Também dei aula em colégio particular, mais no interior, e fui professor de cursinho em João Pessoa e Recife durante vários anos. Minha vida toda foi como professor.
ZONA SUL – E o mestrado?
TADEU - Fiz mestrado aqui na federal da Paraíba, em filosofia da cultura. Na sequencia fiz doutorado na Universidade de São Paulo, na USP, de história econômica. Trabalhei muito tempo em universidade privada, e também na universidade estadual. De lá saí para a federal, depois de aprovado em um concurso para a Universidade Federal de Alagoas. Me aposentei por lá.
ZONA SUL – Durante quanto tempo você morou em Alagoas?
TADEU – Durante oito anos. Fui lá para montar uma pós-graduação.
ZONA SUL – Como foi lecionar durante a ditadura?
TADEU – Havia todo aquele policiamento ideológico e os cursos da área das ciências humanas eram muito fiscalizadas. Em 1978 participei de uma semana da educação, como convidado. Darcy Ribeiro também se fez presente. Todos os debates e palestras foram gravados e repassados aos órgãos de segurança para serem analisados e arquivados. Tive o prazer de receber de um colega esse material todo em forma de revista. Havia muita fiscalização. Marilena Chauí dizia que houve um período na universidade em que havia dois motivos para alguém ser contratado: ser competente ou dedo-duro. Esse era o melhor currículo para ingressar na universidade. Tirando os exageros, tínhamos bons professores. Mas às vezes eles sentiam receio. A leitura era um complemento. Lembro de um colega que tinha aquele livro de Che Guevara, “A guerra de guerrilhas”. Hoje você compra em qualquer supermercado de livros. Aliás, no Brasil a gente tem poucas livrarias e muitos supermercados de livros. Mas combinei com esse colega para ele me emprestar o tal livro de Guevara. Foi um problema. Marcamos às dez da noite, em uma praça de frente ao Palácio do Governo. A Praça João Pessoa. Ele trouxe o livro por baixo da camisa. Já era emprestado de outro. Eu não podia saber quem era esse outro, porque se fosse preso com o livro não tinha como denunciar. Ficamos conversando na praça e em determinado momento ele puxou o livro, me entregou e eu coloquei sob minha camisa. Saí de lá pra casa, lembro bem, parecia que estava levando uma bomba. Cheguei em casa, comecei a ler e amanheci o dia ainda lendo. Hoje tenho esse livro em casa, guardo até como recordação, e é um livro simples, datado. Trás orientações até singelas da vida de guerrilheiro. Se naquela época você fosse flagrado com esse livro, estava perdido. Nunca fui militante, mas li muito.
ZONA SUL – A ditadura o importunou em algum momento?
TADEU – Quando eu ensinava em cursinho, fui chamado duas vezes à Polícia Federal, junto com um colega, para receber conselhos. Sugeriram que não continuássemos debatendo alguns temas considerados inconvenientes pelo regime. Fui bem recebido. O delegado contou que eu e o meu colega havíamos sido denunciados por tematizar nossas aulas. Pediu que a gente evitasse porque aquilo poderia ser mal interpretado e tal.
ZONA SUL – Comenta-se que a educação perdeu muito em qualidade, no decorrer dos anos. Qual seria o motivo?
TADEU – Logo após a Segunda Guerra, falou-se muito em um mundo livre, em liberdade. Mas durou pouco, pois logo em seguida veio a Guerra Fria, que para mim se caracterizou como um período extremamente chato, com a divisão do mundo entre capitalismo, de um lado, e do outro o comunismo ou pseudo socialismo. Tudo indicava que o mundo continuaria divido assim. De um lado o bloco dominado pela ideologia da lógica do capital. Do outro o comunismo, a ditadura do proletariado. Diziam que esse cenário duraria até o fim do mundo. Foi preciso a queda do muro de Berlim para entendermos que isso não passava de duas ideologias fajutas. Nem existia comunismo e o capitalismo, na prática, era algo feroz e coisificante que, como dizia o próprio Marx, quebrava qualquer solidez. Nessa desossatura do que era sólido, quando tudo se desmanchou no ar, se inclui a educação. Todas as vezes em que se tentou discutir educação no Brasil foi em período de ditadura. Foi assim sob o patrocínio de Getúlio Vargas, quando o Estado Novo pensou em uma ideologia educacional, e também após o golpe de 1964. Antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação implantada em 1971, a educação era elitista. Só tinha acesso àquele acúmulo de conhecimentos, quem tinha tempo para estudar. Quando eu era aluno do Salesiano, para dar conta daquelas matérias, tinha que estudar o dia todo. Como era elitista, quem não tinha poder aquisitivo econômico bom, era excluído. Era uma educação profundamente elitista. Aliás, era uma escola profundamente elitista. É bom deixar bem claro: no Brasil nunca tivemos uma educação. Tivemos e temos escola. Podemos falar em reforma da escola, de educação, não. Basta ler a história do Brasil para ver que a classe dominante sempre foi sábia nesse sentido.
ZONA SUL – Quer dizer que essa fragilização do ensino foi e continua sendo premeditada...
TADEU – Acredito que é um programa. O próprio Darcy Ribeiro dizia isso. No Império, entre as primeiras escolas criadas no Brasil por Dom Pedro II estão o Instituto dos Cegos e o Instituto de Surdos e Mudos. Darcy Ribeiro - apesar de reforçar seu apreço e consideração com os cegos, os surdos e os mudos – dizia não entender essa preocupação toda com esses portadores de necessidades especiais enquanto quem via, falava e escutava não tinha onde estudar. Quer dizer, esse desapreço com a educação vem desde o Império. E olha que estamos falando sobre escola básica, quando o assunto é universidade, nem se fala. As primeiras escolas de ensino superior de direito criadas no país foram as faculdades de direito de Olinda e de São Paulo. Elas foram fundadas para formar quem? A classe dominante, os filhos da oligarquia falida do açúcar que não queriam trabalhar duro. Eles precisavam se formar para ascender a cargos públicos. Aliás, o funcionalismo público viria a ser a grande promessa do republicanismo. O conteúdo programático dessa escola de direito de Olinda era o pensamento positivista europeu. Os alunos saíam do curso com uma visão cultural europeia, sem conseguir enxergar o Brasil. Eles faziam uma leitura altamente europeia e preconceituosa. Somente na década de 1930 é que vamos ter os primeiros pensadores que foram capazes de tocar no tecido da realidade brasileira. Um dos que está nessa lista é Sérgio Buarque de Holanda, autor de “Raízes do Brasil”, um dos primeiros livros que “redescobre” o Brasil. Também é o caso de Gilberto Freire com “Casa Grande e Senzala”, Capistrano de Abreu com “Ensaios e estudos” e Euclides da Cunha, com “Os Sertões”.
ZONA SUL – Nessa relação caberia Câmara Cascudo?
TADEU – Claro que sim. Ele também foi um dos grandes intelectuais brasileiros. Não tive o prazer de conhecê-lo, mas possuo alguns dos seus livros e já li entrevistas e comentários a seu respeito. É uma figura que tem um trabalho muito sério e deu uma grande contribuição ao país.
ZONA SUL – Cascudo coletou todo o material para seus livros através de cartas e pesquisas pessoais. Mesmo hoje - com o auxílio da internet, do e-mail e de tantos outros recursos - seria difícil alguém produzir uma obra como a dele, imagine naquele tempo. O que ele teria produzido se fosse dessa geração? Mas, mudando um pouco de assunto, o que você diria a respeito do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que vem apresentando tantos problemas?
TADEU – Câmara Cascudo realmente tem uma obra vastíssima e importante. Sobre o ENEM, ele chegou a um ponto que suas avaliações terminam fazendo um perfil até burlesco. O aluno é completamente despreparado, não tem uma leitura de mundo sobre a realidade. De qualquer forma, como avaliação, é importante. Hoje em dia, por causa dessa sociedade globalizada, o conhecimento vem em kit, através dos grandes grupos econômicos. Esses grandes conglomerados determinam o que é ciência. Para um país como o Brasil, que é dependente tecnologicamente, isso é algo gravíssimo, porque somos obrigados a importar. Aí sofremos mais essa grande intromissão.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre sua mulher e seus filhos.
TADEU – Minha mulher, Maria Lindaci, veio de São Paulo para estudar em João Pessoa. Ela fez graduação em história. Foi quando nos conhecemos. Fez mestrado na área de educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Depois fez doutorado na área de educação. Ela trabalha com a importância da charge como instrumento educacional. Sua tese de doutorado foi muito elogiada. Vez por outra professores até da USP pedem cópia a ela. Hoje Lindaci está perto de se aposentar. Tenho um filho de 29 anos que seguiu a carreira militar: Paulo Roberto de Souza e Silva. Ele ajuda a comandar a polícia no sertão, na cidade de Curemas. É primeiro tenente, mas em breve será promovido a capitão. O outro filho, Flávio Rubens de Souza e Silva, tem 26 anos. Ele decidiu deixar o curso de direito no meio do caminho. Tem uma visão muito limitada da universidade. Acha que as carreiras formais não abrem espaço nenhum. Sempre disse que não gostaria de fazer concurso para burocrata. Gosta de estar no campo. Aproveitou essa abertura que o governo deu e está construindo casas populares. Tenho uma filha, Maitê de Souza e Silva, com 22 anos. Ela terminou enfermagem na universidade federal e agora está complementando o seu grande sonho: cursar medicina. Na época, com medo de não passar no vestibular, preferiu fazer enfermagem. Essa é a minha família.
ZONA SUL – Como grande leitor que você é, que livros classificaria como imprescindíveis de ler?
TADEU – É fundamental, até para a formação do cidadão, uma releitura ou até uma leitura dos clássicos da nossa literatura. Existe hoje um grande número de novos autores. Mas os clássicos são imprescindíveis. Leio ficção muito devagar. Prefiro o gênero dos diários, do memorialismo. Essa pe a leitura prazerosa que faço hoje. Porém, não deixo de acompanhar os novos autores através de publicações como a revista Cult. Ela sempre trás dossiês sobre o que de novo é feito na literatura. Aos 63 anos, minha leitura agora é mais exigente. Procuro ler algo que, além de me dar prazer, me ofereça certa solidez para esse percurso que me resta. Parafraseando Guimarães Rosa: há um certo tempo na vida em que devagar já é ligeiro. Estou exatamente nesse trecho. Por mais devagar que eu queira ir, estou notando que a vida está me empurrando com muita velocidade. Então a leitura tem que ser prazerosa e que me possibilite viver e morrer com dignidade.
ZONA SUL – Deixe um recado pro leitor do Zona Sul.
TADEU – Tomo como exemplo Jorge Luiz Borges. Até mesmo pela sua condição física - uma cegueira precoce - ele substituiu o mundo real pelo mundo onírico. Mas não foi uma simples substituição. Para ele o que era ficção era esse mundo que conhecemos como real. A verdade estava nos livros, a sua paixão. Havia muito mais verdade, ele descobria muito mais verdade na condição de cego. Então é bom que se diga que nós também estamos cegos diante de um processo que provocou em nós uma desossatura interior. Perdemos essa condição de humanidade do homem. Nós não construímos o nosso etos, vivemos em uma sociedade que nos impede. Da mesma maneira que Borges foi capaz de descobrir a partir da leitura, da ficção, uma realidade que deu um sentido à sua existência, nós também podemos construir uma consciência de mundo a partir não só da redescoberta, mas da descoberta da leitura. Seria esse meu conselho para o leitor do Zona Sul: a leitura como instrumento não só de formação, mas instrumento produtor de uma consciência de mundo.

6 comentários:

  1. Esse professor é muito do arretado!

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  2. Brilhante entrevista! Parabéns ao Professor e ao Jornalista pelo profissionalismo.

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  3. Gostei bastante da entrevista, na qual partilho do contexto em relação a importância de se viajar através dos livros, considerando que estamos convivendo na contemporaneidade muito mais com a leitura digital, por outro lado gostaria também de parabenizar a secretária Josélia Nacre pela dedicação e compromisso em relação ao papel desempenhado na instituição na qual trabalha, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade Estadual da Paraíba.

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  4. Gostei bastante da entrevista, na qual partilho do contexto em relação a importância de se viajar através dos livros, considerando que estamos convivendo na contemporaneidade muito mais com a leitura digital, por outro lado gostaria também de parabenizar a secretária Josélia Nacre pela dedicação e compromisso em relação ao papel desempenhado na instituição na qual trabalha, Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade Estadual da Paraíba.

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  5. Nunca é demais dizer que Josélia Nacre foi fundamental para a concretização dessa entrevista. Obrigado aos leitores do Zona Sul pela presença também aqui no site.

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  6. Eu tive a honra de ter sido aluna do Dr. Francisco Tadeu. Nunca esquecerei suas belíssimas aulas. Com agradecimentos, Dra. Graça Vasconcelos.

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