quinta-feira, 29 de janeiro de 2004

Entrevista: JOÃO CLÁUDIO MORENO

O FAZEDOR DE ANARQUIA


Segunda metade dos anos 80. Depois de viajar, de ônibus, 8 horas para Fortaleza e outras 10
para Teresina - visando participar do Encontro Regional de Estudantes de Comunicação Social (Erecon) - logo no primeiro dia, no alojamento do centro de treinamento da Emater da capital piauiense, fui apresentado a João Cláudio. Estudante de jornalismo e padre. Foi o que me contaram. Trajado de padre à paisana, com direito a colarinho clerical e todo aquele palavreado peculiar dos religiosos, não pude deixar de acreditar. Aliás, somente alguns anos após fiquei sabendo que, de padre, João Cláudio tinha apenas o talento para imitá-los. No encerramento daquele encontro, João apresentou-se cantando uma canção que, na época, fazia sucesso num duo de Luiz Gonzaga com Raimundo Fagner. Rogério Cadengue, professor de jornalismo da UFRN – que hoje repousa no cemitério de Ponta Negra – na época era assessor de imprensa do então ministro da Administração Aluízio Alves. Morando em Brasília, há alguns sem visitar o Nordeste, Cadengue chorou emocionado ao ouvir a interpretação de João Cláudio. Ele conseguiu imitar com perfeição tanto Fagner quanto Gonzagão. Alguns anos depois, João Cláudio, já com o sobrenome Moreno incorporado, engrossou a trupe de Chico Anysio. Um dos seus personagens mais conhecidos foi Caretano Zeloso. Como Caretano, João Cláudio contracenou com Chico Anysio, que fazia o papel de Zelberto Zel. É esse piauiense de Piripiri o nosso entrevistado do mês. Anjo? Demônio? Padre? Pai-de-santo? Ateu? Eu não saberia defini-lo de uma outra forma que não fosse: gênio do humor. (Roberto Homem)


ZONA SUL – Como eu não soube defini-lo, repasso a tarefa para você. Quem é João Cláudio? Você se vê mais como anjo, demônio, padre, pai-de-santo ou minha constatação está certa: seu corpo é mesmo permanentemente alimentado por sua veia humorística?
JOÃO CLÁUDIO – Minha mãe, que hoje tem 78 anos, há uns dez anos atrás me definiu muito bem. Ela disse que eu sou um “fazedor de anarquia”. Interessante que essa definição, dada por uma mulher tão inteligente e que me conhece muito bem, chega a me assustar. Eu persigo um tom de seriedade e verdade, muito valorizado e embutido, em tudo o que eu faço. Daí a proposta de uma discussão mais ampla e filosófica: de fato eu quero ser um padre. Vivenciar todas aquelas circunstâncias que cercam um padre. Mas, quero celebrar a missa sem ser ordenado. Então eu estabeleço a anarquia. É muito complexo. Me sinto mais um ator do que um humorista.

ZONA SUL – E a vida em Piripiri? Conte-nos como foram aqueles tempos. A tendência para o humorismo, como surgiu? Sofreu influências? Antigamente era bastante comum as emissoras de rádio dedicarem espaço para programas humorísticos, você costumava ouvi-los? Conheceu o Coronel Ludugero?
JOÃO CLÁUDIO – Eu sou um típico homem do Piauí. Vaqueiro, filho de vaqueiro, neto de vaqueiro e bisneto de vaqueiro. O Piauí tem todo seu fundamento histórico, social-político e cultural neste tipo humano interessante. Eu não consigo me libertar disso. Eu gosto de uma frase de José Nêumanne Pinto, que é de Uiraúna, interior da Paraíba. Ele diz: “eu sou um homem de raízes e asas”. Minhas asas vieram surgir de um tempo para cá, mas elas não anularam as raízes. Eu fui obrigado a ser humorista, uma coisa que nunca havia pensado antes. Eu queria ser jornalista, mas as pessoas me achavam engraçado – coisa que não sou. A minha principal influência, quer seja consciente ou intuitiva, foi Chico Anysio. Quando fiz o primeiro show, era intuitivamente uma imitação do show do Chico. Mesmo sem eu nunca ter visto um. Isto é incrível, não é? Eu não tinha visto o show... Mas já tinha escutado o disco. O Coronel Ludugero era uma delícia. Eu ouvia pelos discos antigos da minha casa. Havia o Barnabé, também. Era um comediante caipira do interior de São Paulo que fazia um sucesso enorme. Mas meu humor já nasceu muito diferente do deles. Optei pela sátira política, ácida, uma irreverência desconcertante. Uma anarquia mesmo, como minha mãe propôs.

ZONA SUL – Por que você trocou Piripiri por Teresina? O percurso original foi esse mesmo? Como ocorreu a transposição para o Sudeste brasileiro? E Chico Anysio, como entrou na sua vida? Fale sobre esse tempo de convívio com outros expoentes do humor brasileiro. Como era o relacionamento entre vocês humoristas?
JOÃO CLÁUDIO – Para um vaqueiro de Piripiri, chegar ao Rio de Janeiro, trabalhar na Globo, escrever na revista Domingo, do Jornal do Brasil, conhecer, trabalhar e conviver com pessoas como Chico Anysio, Ziraldo, Rogério Cardoso e Bibi Ferreira foi uma jornada extraordinária. Mas é claro que para receber esse impacto eu tive que passar por Teresina e pela universidade. A universidade, o curso de comunicação social, foi um divisor de águas. Foi o embrião, em todos os sentidos, de tudo o que estou fazendo até hoje. Inclusive dando esta entrevista. A primeira fase da minha passagem pela Globo foi maravilhosa. Gravávamos no Teatro Fênix. Não era essa coisa triste, impessoal e sem energia do Projac. A convivência no Teatro Fênix era fraterna. A gente se encontrava: os novos e os velhos comediantes. Eu não largava a turma da Atlântida. Milton Carneiro, Lúcio Mauro, Luis Delfino, Walter D’Ávila, Carvalhinho... E o Chico, que foi um pai para mim. Ele me recebeu no Rio muito bem, dando conselhos, dirigindo dois espetáculos meus, me levando para a Globo, prefaciando meu livro e me ensinando para a vida. Como nos conhecemos, é uma história longa, cheia de altos e baixos, achaques emocionais, mal-entendidos e até uma febre... psicológica. Mas só isso levaria uma entrevista inteira para detalhar.

ZONA SUL – A relação dos humoristas com os fãs é semelhante à dos músicos e cantores? As pessoas pedem para você contar piadas, imitar alguém? Como você encara esse contato com o público?
JOÃO CLÁUDIO – Quando o humorista é realmente engraçado e está na mídia o assédio é uma coisa louca. Parece mesmo o assédio a um cantor, ou um galã de novela. Eu aproveito para dar meu recado, dizer o que eu penso, mostrar o meu outro lado, quando sinto que vale a pena. Não conto piadas porque não sei contar piadas. Só imito alguém quando há o clima espontâneo para tanto. Agora não sinto ainda tão fortemente a caracterização profissional, ou exclusivamente profissional, naquilo que eu faço. O João Cláudio do palco é o mesmo da rua, somente com a diferença dos recursos técnicos e da ordenação da platéia.

ZONA SUL – Quais suas referências no meio humorístico? Quem ocuparia, na sua avaliação, uma seleção do humor nacional e internacional? E sobre o humor potiguar, o que você conhece?
JOÃO CLÁUDIO – Chico Anysio, Sérgio Rebelo, Cláudia Gimenez, Fafi Siqueira, Marisa Orth, LoLô (Heloísa Perissé)... Na minha opinião, a grande novidade são as mulheres, porque a nossa profissão é muito machista. Ronald Golias é o maior comediante vivo do Brasil. Dercy Gonçalves é um monumento. Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo estão acima da média do que se faz no mundo, em termos de humor escrito. Os internacionais são os clássicos de sempre: Charles Chaplin, Jerry Lewis, Rowan Atkinson (que faz o Mister Bean), Woody Allen. Do humor potiguar, só tenho notícia de Espanta Jesus, que agora se considera cearense... Dele já me falava há muitos anos atrás o José Dias - que foi do Projeto Seis e Meia, é ex-marido da Julieta e fascinado por MPB, principalmente por Caetano Veloso. Agora, quem tem Câmara Cascudo, o maior intelectual do Brasil de todos os tempos, e humorista nato e profícuo, não precisa de mais ninguém.

ZONA SUL – Hoje você vive dividido entre o Ceará e o Piauí, mas costuma se apresentar em todo o país. Como foi trocar o eixo Rio-São Paulo? Fortaleza transformou-se, talvez, no principal pólo de humor do Brasil. Os cearenses gostam mesmo tanto de rir assim?
JOÃO CLÁUDIO – Fortaleza é uma das grandes cidades brasileiras que se impõem em detrimento do eixo Rio-São Paulo, que está ficando saturado. É uma cidade com um grande mercado. Para a região Nordeste, constitui-se em uma grande vitrine. Há uma proliferação de humoristas e espetáculos de humor. Essa convivência com tantos comediantes me beneficia muito. Apesar de que o meu humor é muito diferente do que se faz lá. O cearense tem um “si virodrómo” fantástico. É uma raça que, apesar da adversidade, inventa, cria, produz, projeta uma forma de sobreviver. E, o que é mais importante, uma forma de vencer. Hoje, aos 36 anos de idade, eu estou convencido de que antes de ir para o Rio deveria ter feito um estágio em Fortaleza. E é isso que estou fazendo agora. Em Fortaleza me sinto tão em casa quanto no Piauí. Sem contar a vantagem de que Fortaleza fica apenas a 400 quilômetros de Piripiri, onde mora minha mãe e onde estou lutando agora com uma escola. Veja só com o que fui me meter...

ZONA SUL – Além de humorista você é apresentador de um programa de entrevistas em uma emissora de TV de Teresina. Também é cantor e compositor. E agora tem essa escola... Como conciliar tanta coisa? Fale-nos mais sobre estas suas facetas de músico e jornalista.
JOÃO CLÁUDIO – Eu acho que não faço bem nenhuma das coisas a que me proponho. No Brasil essa versatilidade implica em prejuízo para a carreira. No meu caso, eu sinto, às vezes, um prejuízo até mental. Fico estressado, sinto fadiga. Mas é que tenho que experimentar todas as formas de me expressar. Não sei se isso tem a ver com o ego exacerbado, ou simplesmente com a carência cultural da Terra. Eu sou um inquieto que vê o mundo contemporâneo com muita reserva. E o mundo, por sua vez, me olha com mais reserva ainda. O jornalismo é minha formação. O humor, uma necessidade. Mas minha vocação é de ator. Se eu me dedicasse, estou convicto que seria um ator imbatível em cena.

ZONA SUL – Assisti, em Brasília, ao espetáculo “O Dia Em Que Mão Santa Perdeu o Emprego”. O próprio Mão Santa (ex-governador do Piauí cassado por abuso de poder econômico na campanha que o elegeu, e hoje senador), estava na primeira fila da platéia. Fiquei impressionado com a perfeição de sua imitação e também com o fato de Mão Santa ser um dos mais entusiasmados com o show de humor, apesar de algumas das piadas não o deixarem com uma imagem muito confortável. Funciona assim com todas as pessoas que você introduz nas suas piadas? Ou Mão Santa é um caso único?
JOÃO CLÁUDIO – O meu humor é essencialmente político. Me debruço sobre outros temas como religião, sexo, costumes... Mas a política é o tema central, perdura em todos os textos. Nesse inventário de tipos humanos, os políticos são os que mais me fascinam. O mesmo teor de indignação costumo combinar com o fascínio. Talvez seja por isso que o Mão Santa aplauda o show, e, como ele, todos os políticos que levei pro palco. Alguns nem mereceram a minha atenção. No Piauí, ser satirizado por João Cláudio é uma glória para qualquer político que pretenda ter alguma importância. No cenário do folclore político brasileiro, o Mão Santa já é figura exponencial. E ele, como bom populista, estimula essa imagem. Ele sabe que só através dela conseguirá o estrelato que deseja.

ZONA SUL - Como você compõe seus personagens? O humor dá muito trabalho? Existe alguma receita para ser engraçado? As pessoas acreditam que o humorista deve ser alguém que obrigatoriamente deve estar sempre de bem com a vida e pronto para transformar tudo em piada. Isso tem algum fundo de verdade?
JOÃO CLÁUDIO – O verdadeiro humorista é antes de tudo um filósofo. Tem que estar atento às circunstâncias existenciais do homem. O comediante é um mero ator cômico. A comédia é o gênero teatral mais difícil de se fazer. Mas tem a compensação da resposta imediata. O público ri, e isto basta para que, no palco, aprimore seu trabalho. Dizem que os melhores palhaços são pessoas tristes, de uma vida interior profunda, que cultivam muito o silêncio e a nostalgia. Eu sou uma pessoa de pouquíssima brincadeira. Às vezes até entro em confronto com o público que me julga o contrário. O mais difícil para mim tem sido isso, fazer o povo entender que eu sou sério, que falo sério... Que não gosto de perder tempo com banalidades. Mal humorado eu também sou muito. Mas o mal humor é uma demonstração do temperamento do homem, que eu acho a mais engraçada.

ZONA SUL – O espetáculo “O Dia Em Que Mão Santa Perdeu o Emprego” foi transformado em CD. Além dele, você tem dois discos de forró. Sua discografia abrange mais algum título? Já lançou livros também? Como fazer para adquiri-los? Como contratá-lo para apresentações?
JOÃO CLÁUDIO – Gravei um disco de forró em 1992 e um outro dez anos depois. Mas não tenho a pretensão de ser cantor. Sou um ator que canta. Eu imito Luiz Gonzaga. É imitação mesmo. Pura e boa, é técnica e emocional. As pessoas consideram uma imitação mediúnica. Agora, eu só gravo coisas inéditas, coisas que ele nunca gravou, mas que, com certeza gravaria se estivesse vivo. Gravei dois discos com shows de humor ao vivo: “O Dia Em Que Mão Santa Perdeu o Emprego” e “Um Piauiense no Rio de Janeiro”. Esse último, embora independente, com uma tiragem de 15 mil discos esgotados. Lancei um livro de crônicas em 1998 com o prefácio e o apadrinhamento editorial de Chico Anysio. Chama-se “Hemorragia de Goiaba”, que tem o mesmo título da coluna semanal que escrevo no jornal O Dia, em Teresina, e em alguns portais da Internet pelo mundo afora. Para adquirir livros, cds e outros produtos, o melhor caminho é pelo endereço eletrônico entrenomes@ig.com.br . Pode tratar com Polyana ou Vanessa Leite. Para contratar apresentações, o telefone é (87)8804-0013, diretamente com minha empresária, Vanessa Leite.

ZONA SUL – Fique à vontade para suas despedidas. Se quiser, até pode contar uma piada...
JOÃO CLÁUDIO – Vai ter despedida? Já acho que falei tanto... Não vou me despedir. Vou fazer um apelo. Me convidem! Me chamem! Me levem a Natal, pois faz mais de 15 anos que eu não ponho os pés nessa cidade. No entanto, o coração sempre esteve aí. Minha saudade é enorme! Do tamanho da orelha de Lavoisier Maia, aquele protótipo humano que representa bem a anti-estética do povo potiguar.

5 comentários:

  1. Bob,
    Essa sua foto com João Cláudio foi no encontro de Teresina, quando você viajou 18 horas para a reunião com os estudantes de jornalismo? ou é mais recente?

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  2. É bem mais recente. Foi tirada em Brasília. Eu já morava aqui. Ele tinha vindo gravar umas entrevistas para seu programa de TV, que é transmitido em Teresina. Depois que ele terminou as gravações, almoçamos no restaurante do hotel mesmo.

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  3. Gostaria muito de saber de foram transforma-dos os discos do coronel ludugero em cd e como poderemos adquiri-los.

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  4. Anônimo, obrigado pela visita. Pena q vc não deixou qualquer email de contato. Mas, por desencargo de consciência, fiz uma busca na internet e achei um dos discos do Coronel Ludugero no seguinte link http://rapidshare.com/files/95149194/CORONEL_LUDUGERO.zip.html

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  5. adorei a sua entrevista zona sul foi demas nas perguntas .

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