quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Entrevista: Noélia Ribeiro

A MUSA DO LIGA TRIPA

A pernambucana Noélia Maria Ribeiro da Silva nasceu emRecife, mas saiu de lá aos três anos de idade. Depois de um período no Rio de Janeiro, fixou-se em Brasília. Foi protagonista – junto com os poetas Nicolas Behr e Paulo Tovar, com o artista Renato Russo e com a turma do grupo Liga Tripa – da cena cultural da capital federal. No final do ano passado lançou o livro “Atarantada”, reunindo poemas inéditos e alguns revisitados. Paralelo à produção literária, é testemunha ocular da história do Brasil atuando como taquígrafa da Câmara dos Deputados. Para entrevistar Noélia, o Zona Sul contou com a colaboração dos músicos Glauco Porto (violão) e Paulão (percussão) e da cantora Fátima. Não fosse a reunião marcada para esse bate papo, poderia ter sido organizado um ótimo show. Em tempo: Fátima é irmã de Noélia e mulher de Paulão. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – Você permaneceu durante muito tempo em território pernambucano?
NOÉLIA – Até os três anos de idade, quando minha mãe foi transferida para o Rio de Janeiro.
ZONA SUL – Apesar de ter saído tão cedo, você guarda alguma recordação de Recife?
NOÉLIA – Nada, nada. Aos três anos minha mãe se separou do meu pai e foi para o Rio. Então, não lembro nada... Alias, lembro um pouco da casa onde a gente ficava, na Rua do Lima, no bairro de Santo Amaro. Lembro da gente brincando: eu, minha irmã e meu irmão. Basicamente é só isso.
ZONA SUL – Por que o destino de sua família foi o Rio e não outro local qualquer?
NOÉLIA – Minha mãe era do Ministério da Fazenda e pediu transferência. Talvez tenha escolhido o Rio por ser uma cidade grande. Ela passou a vida inteira trocando um lugar menor por um maior. Está no seu sangue.
ZONA SUL – No Rio, onde a família foi morar?
NOÉLIA – Em Botafogo, na Rua da Passagem.
ZONA SUL – O baiano Hélio Contreiras tem uma música que fala nessa rua... Quais suas recordações desse tempo?
NOÉLIA – Muita coisa. Lembro, por exemplo, de estar torcendo na Copa do Mundo de 1970.
ZONA SUL – Contra ou a favor?
NOÉLIA – A favor. Naquela época eu ainda não era rebelde. Lembro de quando eu ia comprar Coca-Cola em um bar chamado “Orquídea”, para tomar assistindo aos jogos. Lá eu via as pessoas ligadas na TV, aguardando o começo das partidas. Também recordo de trocar figurinhas com os meninos da rua e de pedir pra namorar o vizinho do outro andar. Lembro ainda da minha atuação como patrulheira escolar de segurança. Eu ficava no sinal com as bandeirinhas de “PARE” e “SIGA”.
ZONA SUL – Essa época era a do regime militar. Você entendia que o país vivia sob uma ditadura?
NOÉLIA – Nem tinha noção. Eu era muito novinha e não era rebelde. Só entendi dessas coisas quando me mudei para Brasília, aos 12 anos. Fátima – minha irmã mais velha – e meu irmão participavam de encontros desse tipo. Eu preferia assistir novela e escutar aquelas trilhas sonoras.
ZONA SUL – A mudança para Brasília também foi para acompanhar sua mãe...
NOÉLIA – Isso. Foi uma mudança completa na nossa vida. No Rio morávamos em uma quitinete com um quarto bem grande. Toda a família dormia nesse quarto: eu, minha irmã, meu irmão, minha tia Cáritas e minha mãe.
ZONA SUL – Diga o nome das pessoas, pois até agora você só nominou Fátima e sua tia Cáritas.
NOÉLIA – Meu irmão é o Vinicius. Cáritas é a irmã mais nova da minha mãe, que se chama Dorinha.
ZONA SUL – E o seu pai?
NOÉLIA – José Raimundo. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Não tive contato com ele após sair de Recife. A separação foi abrupta. Minha mãe deu um dinheiro a ele e disse que estava saindo do casamento. Ele ainda perguntou se podia se despedir dos filhos. Minha mãe respondeu que não, que depois nos explicaria. Em um dia eu estava com o meu pai, no outro não estava mais.
ZONA SUL – Em que ele trabalhava?
NOÉLIA – Acho que era bancário. Espera: Fátima está dizendo que ele era comerciário. Diferente de mim, ela teve contato com ele após a separação.
ZONA SUL – Você guardou alguma mágoa dele?
NOÉLIA – Não, pelo contrário. Guardei mágoa da minha mãe, por não ter deixado que ele se despedisse de mim. Até idealizo um pouco, porque não o conheci.
ZONA SUL – Como foi trocar o Rio por Brasília?
NOÉLIA – Trocar uma quitinete por um apartamento de quatro quartos foi como mudar de classe social. De certa forma mudamos, já que o padrão financeiro melhorou. O quarto maior da casa era meu e de Fátima. Meu irmão tinha um quarto só para ele e minha mãe também. O último ficou para assistir televisão, essas coisas.
ZONA SUL – Quais suas primeiras impressões da nova cidade?
NOÉLIA – Fiquei encantada. Era começo dos anos 70, Brasília estava ainda sendo construída. Não tinha nada muito pronto. Fomos morar na quadra 109 Sul. Até hoje a minha mãe mora lá. Conheci muita gente, a adolescência em Brasília foi maravilhosa.
ZONA SUL – Tudo foi bom nessa mudança? Você não sentiu falta do mar e dos amigos que tinha conquistado no Rio?
NOÉLIA – Quando criança, não. Depois que fui crescendo é que passei a sentir falta do mar.
ZONA SUL – O tamanho do apartamento compensou...
NOÉLIA – Hoje não compensaria, jamais! Naquela época tudo era novo. Eu ficava sentada na jardineira ainda sem planta, conversando com a primeira amiga que fiz, a Gerti. Éramos vizinhas de janela. Ela sentava na jardineira do apartamento dela e eu na jardineira do meu.
ZONA SUL – E o colégio?
NOÉLIA – Comecei no Ginásio Setor Oeste, que era na 912. Ia a pé com as amigas. Essa independência eu não tinha no Rio. Também podia ficar embaixo do bloco. No Rio não tinha isso, e nem era por causa da violência. Não existia esse costume de ficar conversando embaixo de bloco, como em Brasília.
ZONA SUL – Brasília era majoritariamente uma cidade de forasteiros vindos de todos os cantos do país. Você sentiu dificuldade no relacionamento com pessoas tão diferentes?
NOÉLIA – A maioria das pessoas que morava no meu bloco tinha vindo do Rio. Muitos eram do trabalho da minha mãe. Ficamos perto desse pequeno núcleo já conhecido. Depois fui conhecendo outras pessoas.
ZONA SUL – Nessa época você já tinha alguma identificação com a literatura?
NOÉLIA – Comecei a fazer poemas aos nove anos de idade. Ia ao trabalho da minha mãe e lá perguntava o nome das pessoas para fazer versinhos para elas, rimando. Um dia alguém me deu um caderno para eu registrar o que escrevia. Acho que foi minha mãe. O primeiro poema que fiz tinha o nome de “A borboleta prosa”. Aliás, era música, bem jovem guarda. Eu gostava de fazer letra com música.
ZONA SUL – Antes de escrever, você deve ter lido alguns poemas...
NOÉLIA – Não lembro se tive contato com poesia naquela época. Talvez tenha ocorrido na escola. Depois, fiz Letras na Universidade de Brasília. Segundo a minha mãe, aprendi a ler sozinha, antes de ir para a escola. Com a poesia deve ter ocorrido o mesmo. Lembro que adorava minhas professoras de Português. Mas não lembro ter lido poesias ou minha mãe me incentivando a ler.
ZONA SUL – Você tomou gosto pela leitura em qual época?
NOÉLIA – Já em Brasília. Demorei um pouco a ler, era meio preguiçosa. Lia obrigada pelo colégio. No ensino médio, que na época era o segundo grau, é que tomei gosto. Fui incentivada pelos professores de Português. Me identificava com eles.
ZONA SUL – Você começou lendo o que?
NOÉLIA – Na começo li Machado de Assis, José de Alencar e aquelas coisas da escola. “Dom Casmurro” me impressionou um pouco. Eu ainda não sabia que a literatura seria a minha praia. Na época eu lia muito prosa, obrigada pelos professores. Quando entrei na universidade, a poesia tomou conta de mim. Comprei a coleção de Fernando Pessoa, em papel bíblia, e a de Cecília Meireles. Drummond foi outro que li loucamente. Na universidade, Álvares de Azevedo me impactou muito. Vieram os simbolistas: até hoje tenho as obras completas de Cruz e Souza. Augusto dos Anjos é autor do primeiro poema que decorei: “Versos Íntimos”. Outra influência poética, que é tida como segunda categoria foi Bruna Lombardi. Tenho todos os livros dela.
ZONA SUL – Qual o primeiro livro que lhe agradou verdadeiramente?
NOÉLIA – Lembro muito de um livro de Dalton Trevisan, “O vampiro de Curitiba”, que eu gostei muito. Fiquei com ele na cabeça.
ZONA SUL – Quando?
NOÉLIA – Em 1977 ou 1978. Quando comecei a namorar o Nicolas Behr - na época em que ele começou a fazer livros como “Iogurte com farinha” - eu já estudava Letras na UnB. Nesse tempo eu sabia mais de poesia do que ele. Nicolas escrevia intuitivamente. Depois ele passou a ler mais, embora nunca tenha feito curso superior.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre Nicolas Behr para os leitores que não o conhecem.
NOÉLIA – Antes deixa eu voltar um pouquinho. Em Brasília comecei a me relacionar com muitas pessoas. Conheci músicos como o Sérgio Duboc, do Liga Tripa. Gostei de ingressar no mundo dos músicos, poetas e artistas. Passei a escrever para mostrar e ver se as pessoas gostavam. Além do Duboc, também faziam parte dessa turma a Gerti (minha amiga de infância), o Aldo Justo (outro compositor da cidade) e o Vicente Sá (poeta). Assisti a todos os festivais de Brasília. Antes de conhecer o Nicolas fiz um poema chamado “Humanita qualquer”. Houve um concurso de letrista e músicos no “Elefante Branco”. Pedi a Abraão para ele fazer uma música para aquele poema. Ele nem gostou muito da poesia, mas fez. Tirei o primeiro lugar no festival. Abraão colocou outra música dele, além da nossa parceria. Ele ficou em segundo lugar com sua música e em primeiro com “Uma Anita qualquer”. Eu era novinha, tinha uns 16 anos. Terminei o ensino médio no “Elefante Branco”. Depois fiz cursinho e passei no vestibular para Letras.
ZONA SUL – Concluiu o curso?
NOÉLIA – Sim. Nessa época conheci os poetas Paulo Tovar, que já faleceu, e Sóter. Nós três lançamos um livro juntos, o “Salada Mista”. A tiragem foi pequena. O livro era rodado em mimeógrafo, grampeado e vendido de mão em mão. Foi minha primeira participação em livro, isso em 1978, por aí. Esqueci de falar que antes de namorar o Nicolas, na época em que conheci os músicos de Brasília, a gente lançou uma cooperativa de músicos e poetas chamada COPPO, com dois “pês”. Eu era secretária da COPPO, recebia as inscrições. Os artistas preenchiam uma ficha e me entregavam, junto com uma foto. Todos os músicos de Brasília passaram pela minha mão de alguma forma: Eduardo Rangel, Zelito Passos, Paulo Cauim...
ZONA SUL – Você falou que esse COPPO tinha dois “pês”, mas tinha muitas garrafas também?
NOÉLIA – Muitas. Tinha muita cachaça “Velho Barreiro” e outras marcas da época. A gente também tomava conhaque de alcatrão “São João da Barra”. Realizamos o primeiro show da COPPO com Kaluca (piano), Sérgio Duboc (violão) e mais alguém que não lembro. Os músicos tocavam, Gerti e eu dizíamos poemas. Ao final do show dei meu primeiro autógrafo, a um senhor que pediu.
ZONA SUL – E o Nicolas Behr?
NOÉLIA – Junto com Tovar e Sóter fomos lançar o “Salada Mista” em Catalão (GO). Foi lá que conheci o Nicolas. Voltei com ele, os meninos ficaram. Na viagem de volta, dentro do ônibus, começamos a namorar. Niki tinha lançado o livro de poesias “Iogurte com Farinha”. Vendia em escolas, cinemas, na rua, nos bares e restaurantes... Passei a acompanhá-lo. Niki brilhando e eu ao seu lado. Eu tinha poemas guardados que ninguém lia. Eu era a que estudava literatura e Nicolas o que fazia poesia. Paulo Tovar foi quem teve a ideia de lançar meu primeiro livro individual, também em mimeógrafo, o “Expectativa”. O desenho da capa é da Fátima. Tem uns 20 poemas, é um livro pequenininho. O lançamento foi legal, o Paulo Tovar ajudou muito. Foi no Centro Cultural da 508. Vários músicos da cidade tocaram. Vendi um pouquinho, embora não tivesse muito jeito pra isso. Tovar me ajudou. Namorei o Nicolas por cinco anos. Era um namoro muito intenso. Fiquei mais conhecida por causa de um poema que ele fez pra mim: “Te amo 24 horas por segundo”. Ele até pichou seu quarto com esse poema.
ZONA SUL – Como é o poema?
NOÉLIA – “Te amo 24 horas por segundo”. Esse é o poema. Niki pegava o microfone nos “Concertos Cabeças” e falava pra mim. Era um namoro superfestejado.
ZONA SUL – O que eram esses “Concertos Cabeças”?
NOÉLIA – Eram apresentações periódicas promovidas pela galeria de artes “Cabeças”. Ocorriam na 310 Sul. Eram shows ao ar livre com muita música, teatro, dança, poesia e artes plásticas. Também tinham uns joguinhos, umas adivinhações sobre música. Eu e o Niki acertávamos todas. A gente ganhava tudo que era oferecido naqueles concertos. Nesse meio tempo, acredito que antes do lançamento de “Expectativa”, participei do livro “Aí é que são elas”. É uma coletânea da qual participamos eu, Tita (a mãe do Haroldinho Matos e do Paulinho Matos) e Teca.
ZONA SUL – Que tipo de música você escutava nessa época?
NOÉLIA – Todos os de Minas: Lô Borges, Milton Nascimento... Eu era louca pelo Beto Guedes. Fiz poema pra ele. Minha poesia tem um pouco de letra de música. Até hoje sou ligada em letra de música. Muito letrista me inspira. Eu também sofria influência da minha irmã, que ouvia Gonzaguinha, Ângela Rorô... Aprendi a gostar. Ouvi muito o “Boca Livre”. Eu tinha uma discoteca enorme, um baú entupido de coisa. Tudo o que era lançado, eu ia olhar. Também adorava os baianos.
ZONA SUL – Você falou de muita gente, mas não citou ninguém de Brasília.
NOÉLIA – Eu estava com os músicos de Brasília o tempo inteiro. Não citei porque eles ainda não tinham gravado discos, e a pergunta foi sobre os elepês que eu ouvia. Convivi muito com os músicos daqui: Gadelha, Flávio Faria, Sergio Duboc, Aldo Justo, Abraão, Paulo Tovar, Calouro...
ZONA SUL – Você conviveu também com artistas de outros estados que moraram em Brasília, como Fagner e Ednardo?
NOÉLIA – Os cearenses também faziam parte da minha discoteca. Tive o primeiro disco de Ednardo, Rodger e Téti. Pedi a minha mãe, que estava em São Paulo, para procurar o primeiro de Belchior nas discotecas de lá. Gostava do Fagner e era apaixonada pelo Clodo. Mas minha ligação era apenas de fã. Quando Ednardo veio fazer um show aqui, dei um vinho pra ele. Sempre tive essa coisa de fã. Até já disse ao Djavan que o amava... Eu amava todo mundo. Era apaixonada pelo Climério, queria conhecê-lo. Um dia me levaram até a sua casa. Ele abriu a porta e eu fiquei paralisada, sem saber o que fazer. Fui embora pra casa porque não dava conta de falar com Climério. Acabou que ele fez um livro e colocou um poema meu. Fiz minha monografia sobre canções do Paulinho Moska. Fui até a casa dele, o entrevistei e até hoje trocamos e-mail. Ainda cultivo essa coisa de fã.
ZONA SUL – Paulão está nos lembrando que saímos um pouco do rumo da conversa. Estávamos falando sobre o Nicolas Behr.
NOÉLIA – Sim. Outro poema que ele fez para mim foi “Estou perdendo o medo de gente: já pego na mão da minha namorada”. E teve o que acabou virando música, que foi o “Travessia do Eixão”. É mais ou menos assim: “Nossa Senhora do Cerrado / Protetora dos pedestres / Que atravessam o Eixão / Às seis horas da tarde / Fazei com que eu chegue são e salvo / Na casa da Noélia”. Ele atravessava realmente o Eixão para ir à minha casa. Nicolas morava na 415 Sul e eu na 109 Sul.
ZONA SUL – A oração funcionou? Ele conseguiu sempre atravessar o Eixão ileso?
NOÉLIA – Funcionou, nunca aconteceu nada. Amigos dizem que até hoje rezam quando vão atravessar o Eixão. Continuei convivendo com amigos músicos, como o Nonato Veras. Nessa época o “Liga Tripa” estava começando a aparecer. Um dia fui ao apartamento do Nonato. Ele mostrou a música que fez pro poema “Travessia do Eixão”. O “Liga Tripa” criou uma versão e incorporou às suas canções. Nesse meio tempo, conheci o Renato Russo. Ele era fã dos poemas do Niki. Como eu namorava o Niki, a gente foi se conhecendo. Renato acabou se aproximando da gente em encontros na noite. Nunca fui amiga de ir à casa dele, mas a gente sempre se encontrava. Renato era muito gentil e receptivo. Aproximei-me mais dele do que o Niki, que se retraiu um pouco. Tenho até a foto de um aniversário de Niki na qual estou sentada no colo do Renato. Quase todos os músicos da cidade estão nessa foto.
ZONA SUL – Isso tudo deve ter acontecido antes de Renato Russo fazer sucesso com o “Legião Urbana”...
NOÉLIA – Sim, foi antes de ele estourar.
ZONA SUL – Dava pra notar que ele era diferente?
NOÉLIA – Sim. Quando ouvi aquele primeiro disco, fiquei completamente em êxtase.
ZONA SUL – Você ouviu o disco após ele estar sendo vendido nas lojas ou teve uma audição privilegiada?
NOÉLIA – Só depois que o disco saiu. Conhecia o trabalho do “Aborto Elétrico”, não do “Legião Urbana”. Eu já adorava o som mais pesado e agressivo do “Aborto Elétrico”. Conhecia alguma coisa que o “Legião” gravou e que o Renato cantava muito, como “Dado Viciado”. Mas aquela coisa de “Geração Coca-Cola” eu não conhecia. Certa vez recitei para Renato, em um concerto no Lago Norte, um poema que fiz pra ele. Era e ainda sou muito tímida. Eu disse assim: “Gente, vou falar um poema, mas como sou muito tímida, vou falar de costas”. Foi assim que fiz. Fui super aplaudida.
ZONA SUL – Por que você respondeu com tanta convicção que dava para notar que Renato Russo era uma pessoa diferenciada?
NOÉLIA – Não apenas seu som, mas como pessoa, ele também era muito especial. Era muito carismático, era uma pessoa divina.
ZONA SUL – Você também conviveu com Cássia Eller?
NOÉLIA – Pouco. Meu ex-marido tinha mais contato.
ZONA SUL – E Oswaldo Montenegro?
NOÉLIA – Entrou de penetra na minha festa de 18 anos. (risos). Não foi convidado, entrou porque era muito ligado a Léa, uma das minhas convidadas. Chamei esse meu aniversário de 18 anos de “Realce”, por causa daquela música do Gil. Eu colocava purpurina em todo mundo que entrava. Não tinha contato com Oswaldo, mas gostava daquelas primeiras músicas dele. Zélia Duncan morou perto. Namorei o irmão dela, Luiz Otávio. Eu tinha 13, ele estava com 12 anos. Mas, voltemos ao Renato Russo. Encontrei com ele no Conic após o lançamento do primeiro disco do “Legião”, antes de estourar. Eu tinha ficado fascinada. Disse a ele: “Renato, o que é aquilo? Que disco lindo!”. Comprei até uns óculos como os dele, para ficar parecida. Nesse dia, enquanto conversávamos, Renato me mostrou as marcas da tentativa de suicídio que ele praticou na banheira. Cortou os pulsos. Usava muito aquelas camisas de mangas compridas para as cicatrizes não aparecerem. Fiquei mais fascinada ainda. Achei tudo aquilo lindo, sou uma fã inveterada, não tem jeito. Já a gravação que ele fez de “Travessia do Eixão” ficou guardada na gravadora. Só saiu depois que Renato morreu. Quando o disco começou a ser vendido, me ligaram: “Pega o disco póstumo do Renato que saiu a sua música lá”.
ZONA SUL – Apenas para relembrar, “Travessia do Eixão” é a oração que Nicolas fazia para chegar “são e salvo na casa da Noélia”.
NOÉLIA – Sim. Na época em que eu tinha contato com os músicos, eu e o Duboc compusemos uma canção. Ele me deu uma melodia para eu colocar a letra. A música chama-se “Entressafra”. O nome foi aproveitado por Duboc para batizar um show que ele organizou. Depois virou o nome desse grupo dele. Paulão, que está aqui conosco, era o percussionista. ZONA SUL – Renato Russo continuou seu amigo mesmo depois do sucesso?
NOÉLIA – Após ele ir para o Rio de Janeiro, depois daquele sucesso estrondoso, perdemos um pouco o contato. Passei a receber apenas cartões de Natal. Ele vinha sempre a Brasília ver a família. Em uma dessas vezes, ligou pra mim. Eu morava com uma amiga. Renato deixou um recado na secretária eletrônica que até hoje tenho gravado em uma fita k7. Ele disse: “queria falar com a Noélia, mas já que não está, queria desejar Feliz Natal para ela e para a secretária eletrônica também”. Outra vez me telefonou convidando para assistir a duas apresentações que faria aqui em Brasília: no Teatro Nacional e no Ginásio de Esportes. Respondi que iria e que até já tinha comprado ingresso para o show no teatro. Fui apanhar com ele convites para o ginásio também. O show me deixou impressionada. Vi como ele estava fazendo sucesso. Tinha gente se jogando lá de cima para poder chegar perto do palco. A polícia teve que fazer milhões de manobras pra segurar os fãs. Eu não acreditava que era convidada para aquele show. Depois vi o mesmo show na Sala Villa-Lobos, do teatro. No dia seguinte, Renato me ligou chamando pra eu ir ao hotel onde estava hospedado. Estava promovendo uma recepção para poucos amigos. Respondi que estava dura. Ele disse: “venha que eu pago o táxi”. Fui e ele pagou meu táxi. A festa era muito louca. Todos completamente enlouquecidos. Eu não fazia parte daquilo, me senti meio perdida. Diverti-me o que pude, falei com ele e fui embora. Depois o encontrei no Gate's Pub. Fui falar com ele. Foi engraçado. Ele estava enlouquecido: se ajoelhou aos meus pés e beijou minha mão. Eu disse: “Renato, pelo amor de Deus, levanta, meu filho. Você está me matando de vergonha”. Ele nem aí. Aquele ídolo para quem muita gente se ajoelharia, estava ali ajoelhado diante de mim. Ele dizia sempre que não esquecia os amigos de Brasília. “São os únicos sinceros, o resto veio por interesse. Vocês são as pessoas que realmente conquistei. Gostam de mim apesar de qualquer coisa”. Ele sempre frisava isso.
ZONA SUL – Quando terminou o curso de Letras você foi fazer o que da vida?
NOÉLIA – Terminei o curso de licenciatura e fui ensinar Português. Fui professora do Colégio Santa Dorotéia durante um ano e meio. Depois disso resolvi voltar à UnB. Fui fazer bacharelado em Inglês. Foi na época em que entrei para o Ministério da Fazenda, como agente administrativo. De manhã era professora e de tarde trabalhava no Ministério. Larguei a sala de aula porque estava muito cansada. Optei por estudar.
ZONA SUL – E a poesia?
NOÉLIA – Continuei escrevendo uma coisa ou outra e guardando.
ZONA SUL – Quando você resolveu desengavetar esse material?
NOÉLIA – Somente no ano passado. Parei um pouco de escrever quando casei. Em 1989 comecei a namorar o meu ex-marido, Adauto Soares. Casamos em 1992. O conheci na noite. Virou amigo. Eu desabafava com ele. Sempre fui uma mulher apaixonada. Toda semana eu estava apaixonada por uma pessoa diferente. Acho que a paixão era sempre a mesma, só mudava o destinatário. Queria estar sempre apaixonada para poder usar esse sentimento escrevendo muita poesia.
ZONA SUL – Alguns dizem que a poesia flui mais fácil quando a pessoa está sofrendo...
NOÉLIA – Ou sofrendo ou muito apaixonada. É um sofrimento ficar muito apaixonada. Tudo é muito intenso. Quando a vida está morninha, não. Quando casei com Adauto, a vida ficou morninha, a produção caiu a zero. Cinco anos depois veio o primeiro filho, o Nino Soares, que tem 15 anos hoje. Como sou meio intensa, só consigo fazer uma coisa de cada vez. Fui ser mãe, só pensava nele. Depois, pra quebrar um pouco essa ligação muito forte que tive com ele, resolvi engravidar de novo. O nascimento da minha filha, Alice, foi minha libertação. Pensei que seria minha prisão, mas foi minha libertação. Ela tem nove anos hoje.
ZONA SUL – Nessa época você já trabalhava na Câmara dos Deputados?
NOÉLIA – Quando estava de licença-gestante devido a meu primeiro filho, passei no concurso para a Câmara. Estudei taquigrafia alguns anos e passei. Trabalho lá até hoje.
ZONA SUL – Os taquígrafos devem encontrar muita dificuldade para anotar o discurso de determinados políticos.
NOÉLIA – Um bem difícil era o Enéas. A gente perdia trechos do que ele falava, mas depois recuperava ouvindo a gravação. Ele falava 140 palavras por minuto, nosso treinamento é para pegar 120 por minuto.
ZONA SUL – Você lembra ter taquigrafado algum fato histórico ou situação engraçada?
NOÉLIA – Várias. Teve um deputado que levou uma galinha viva, farinha e outros tipos de comida para a tribuna. Eu estava presente no dia em que certa deputada fez aquela “dança da pizza”, comemorando a absolvição de um colega de partido. Ainda apareci na beirinha da foto. Outro dia entrei toda de verde no Plenário. Saia verde, blusa verde e colete verde. Clodovil me olhou de cima abaixo e fez uma cara de reprovação. Olhou como quem diz: “que abacate é esse, que árvore é essa chegando?”. Percebi claramente que não agradei. Como eu trabalho mais pela manhã, pego sessões mais tranquilas.
ZONA SUL – Agora, depois de muito tempo você tirou a poesia das gavetas.
NOÉLIA – Apesar de não publicar, eu vinha escrevendo no meu caderninho. No começo do namoro com Adauto, escrevi algumas coisas pra ele. Depois se tornou aquela coisa morninha e não tinha poesia que segurasse. Quando o casamento começou a entrar em crise, voltei a escrever. E a sofrer. No fim eu já estava meio engatada no livro. Quando estava prestes a me mudar - o casamento já terminando - as caixas do livro chegaram para eu fazer a revisão.
ZONA SUL – A crise no casamento influenciou o título do livro: “Atarantada”?
NOÉLIA – Não. Esse é o título de um poema feito muito antes. Ele estava guardadinho. Peguei poemas novos e juntei com uns antigos, nos quais dei uma recauchutada, uma melhorada. “Atarantada” já existia há muito tempo. Na verdade o nome do livro seria “Sorriso do desconhecido”
ZONA SUL – Por que a troca?
NOÉLIA – Fui à casa de uma amiga que gosta muito de mim e é muito ativa. Ela foi me ajudar a mexer na capa. Ela achou a capa horrível e o título também. O editor também já havia opinado que aquela capa anterior não vendia. Juntou uma coisa com outra.
ZONA SUL – Como foi o lançamento do livro?
NOÉLIA – Foi lançado no Café da Rua 8, no dia 3 de dezembro. Convidei vários músicos pra tocar. O “Liga Tripa” se apresentou maravilhosamente. O astral estava muito bom. Só não foi melhor porque choveu. Nonato cantou Nonô (“Travessia do Eixão”). Gadelha cantou também. Foi uma grande festa. Falei alguns dos meus poemas e convidei alguns amigos pra falarem outros. Minha irmã falou um, Duboc e Nicolas falaram também. A tiragem foi de 750 exemplares.
ZONA SUL – Você tem algum site para divulgar o seu trabalho?
NOÉLIA – Tenho Orkut. Uma amiga entrou no Orkut, no “Recanto das Letras” e vendeu livro pra caramba. Eu entrei no Orkut pra divulgar um pouco a minha poesia, mas não mudou muita coisa. Muita gente ligada a Literatura me escreveu através do “Recanto das Letras”, mas, com relação às vendas, não teve esse impulso todo. Também lancei o “Atarantada” no “Café com Letras”, junto com o lançamento do livro do Joãozinho da Vila. A intenção agora é lançar no Rio de Janeiro. Tenho feito contato com alguns músicos. Mandei o livro pro Celso Fonseca e pro Antonio Adolfo. Como gosto de música, espero que repercuta de alguma forma. Fui convidada a lançar o livro também em uma semana de literatura do Ceub. Coincidentemente fui colocada no mesmo dia de uma palestra do Nicolas. Acabou que fizemos a palestra os dois. Foi interessante porque contamos milhões de histórias e os estudantes ficaram animados. Histórias do tempo em que a gente namorava. Ao final ele vendeu os livros dele e eu vendi os meus. Foi muito legal.
ZONA SUL – Qual a repercussão do livro?
NOÉLIA – Os homens, principalmente, fizeram comentários como se a minha poesia fosse meio sexual e pornô, o que não tem nada a ver. Uns perguntaram se as pernas da capa do livro são as minhas. Eu gostava da poesia de Bruna Lombardi porque ela é meio erótica. Sempre tive essa queda para a sensualidade, para o erotismo. Mas alguns confundem um pouco o “eu” poético com o próprio poeta. Tem gente que pensa que tudo o que escrevi eu fiz. Quando escrevo “no meu colchão lilás deitariam homens”, já imaginam que tenho um colchão lilás dentro de casa e que encho de gente. Tem homens que reagem assim: “nossa, seu livro, hein... uma sacanagem pura”. Mas na verdade é um livro muito feminino. Em um poema falo de mãe, num outro o tema é Paulinho Moska. Já a reação das mulheres é de identificação com o que escrevo.
ZONA SUL – Como alguém, por exemplo, em Natal, pode adquirir seu livro?
NOÉLIA – É só escrever para o meu e-mail: nocamaria@gmail.com/. O prefácio é da compositora Ana Terra que faz músicas com Joyce. Elis Regina gravou várias canções com a letra dela. Não a conheço pessoalmente. Mandei o livro por e-mail, depois de encontrá-la na Rede de Escritoras Brasileiras (Rebra). A internet funcionou nessa hora! Participei de uma antologia da Rebra. No email que enviei para ela eu escrevi mais ou menos assim: “Ana Terra, sou sua fã desde os 20 anos, você é tudo pra mim. Suas letras me inspiram, são maravilhosas. Você não quer fazer o prefácio do meu livro?”. Mandei junto com o livro. Ela foi super gentil. Fez um prefácio muito gracinha e até me comparou a Florbela Espanca. Achei tudo lindinho. Engraçado que devido a essa minha ligação com música acabei chamando uma compositora, e não um poeta, pra fazer o prefácio. Nicolas fez a orelha e Aluisio Brandão, que compõe muito com Climério, fez a contracapa. O livro tem 71 poemas e duas gravuras de Gustavo Maron, um amigo que desenha acessórios em Paris para a Chanel. Foi editado pela Verbis. Foi o primeiro livro da editora. Ainda tem alguns exemplares a venda no Café com Letras, na quadra 203 Sul, ou por e-mail, comigo. Meu editor vai tentar comercializar também através da Saraiva e da Cultura.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do Zona Sul. Mas, antes, diga qual o seu poeta preferido
NOÉLIA – O poeta é Drummond. Aos amigos de Natal eu posso dizer que já estive nessa linda cidade, quando tinha 18 anos. Não lembro muitos detalhes, mas guardo a sensação de que gostei muito. Também quero complementar que “Atarantada” é um livro muito acessível. A linguagem não é difícil. As mulheres adoram e os homens também gostam muito. É gostoso de ler. A minha manicure adorou. Minha professora de Literatura adorou. Na verdade, quem lê, gosta.

4 comentários:

  1. Que entrevista fantástica, meu caro Roberto! Essa mulher tem história. Congratulations.

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  2. Cada dia, cada ano que passa, sinto um orgulho danado dessa minha prima. Desejo-te sucesso e mais sucesso!

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  3. Os amigos de cá (do Rio) também aprovam livro e entrevista! beijossss

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  4. Que bom que o resultado da conversa com Noélia agradou... É fruto da participação de Glauco, Paulão e Fátima.

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