quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Entrevista: DUDÉ VIANA

O GRITO DE UM RÉU INOCENTE



José Filho, José da Silva, José Ramalho Viana, Dudé ou Dedé? A história do cantor e compositor Dudé Viana é repleta de situações inusitadas. Natural de Caraúbas, ele desde cedo tomou gosto pela música. Depois de muitas idas e vindas, Dudé hoje parece estar consolidando sua carreira, alternando apresentações no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro. Um dos episódios que mais o marcaram foi o período em que esteve preso injustamente. O fato rendeu até um livro. Batalhador, agora ele está viabilizando sua segunda incursão na literatura. Mesmo sem editora, ele pretende lançar a história dos Benevides Carneiro. Dudé desmistifica a impressão de que esta é uma família de pistoleiros. Saiba tudo isso e um pouco mais lendo um resumo da conversa que eu, Costa Júnior e o jornalista Carlos Roberto Pereira mantivemos, no Veleiros, com Dudé Viana, em uma noite enluarada de julho. (Roberto Homem)



ZONA SUL - Como é o seu nome completo e onde você nasceu?
DUDÉ – Meu nome hoje é Dudé Ramalho Viana. Nasci em Caraúbas (RN). Era só José Filho, na certidão de nascimento. Quando fiz a retificação do nome, por orientação de um juiz, botei o Viana, da família da minha mãe, e o Ramalho, que é do meu avô paterno. Meu pai só tem o sobrenome da mãe, que é Carneiro, mas não tem o nome do pai, que é Ramalho. Quando comecei, assinava só Dudé, já que não tinha sobrenome.
ZONA SUL – Se essa retificação fosse muito tempo antes, você poderia ser conhecido hoje como Zé Ramalho... Aliás, vocês têm algum parentesco?
DUDÉ – A origem das nossas famílias é a mesma. Eu gosto muito do nome Ramalho, tem sete letras, como a música tem sete notas. Quando o juiz disse que eu podia botar o sobrenome do meu avô, Ramalho, apesar dele não constar no nome do meu pai, concordei na hora. Ele explicou que como tem o nome do meu avô na minha certidão de nascimento, eu poderia usar o seu sobrenome. Depois da retificação passei a usar o nome artístico de Dudé Viana. Até porque passei a encontrar outros Dudés, como o Dudé cearense, um sanfoneiro, e um outro Dudé, músico alagoano.

ZONA SUL – Você está com qual idade? Como foi sua infância em Caraúbas?
DUDÉ – Fiz 56 no dia 5 de julho. Caraúbas antigamente era chamada de Caraúbas de Apodi. A cidade fica a 311 km de Natal. Nasci e me criei na roça, em um lugar chamado Poço Redondo. Fui pra cidade com 14 anos. Meu avô, João Francisco Viana, gostava muito de cantoria. Quando eu tinha cinco anos, ele, pelo menos três vezes por ano, levava duplas de cantadores e promovia cantorias em sua casa. Eu ia pra lá e ficava até de madrugada, cheio de sono, mas ouvindo aqueles violeiros tocarem. Isso me influenciou muito. Uma vez fui para uma feira na cidade de Umarizal, cidade que fica pertinho. Um feirante que vendia aquelas gaitinhas deixou cair uma delas no chão. De tanto as pessoas pisarem, ela ficou tão arranhada que não servia mais para a venda. Eu fiquei olhando a gaitinha, eu queria comprar uma, mas estava sem dinheiro. O vendedor me deu aquela toda arranhada. Aprendi e passei a tocar as músicas de Luiz Gonzaga e de outros compositores da época, com aquela gaitinha de sete notas. Com dez anos eu já tocava legal. Além das duplas que eu via na casa do meu avô, eu também tinha um tio de minha mãe, Cezário Boágua, que era cancioneiro. Quando ele ia fazer cantoria nos sítios próximos, no sertão, pernoitava na casa do meu pai. Ele tinha mania de afinar a viola e ficar ensaiando as canções. E eu ouvindo. Aos 14 fui morar na cidade, em Caraúbas, perto de um violonista meio seresteiro. Ele bebia uma cachaça danada! Quando estava meio bêbado, me dava o violão, embora eu não soubesse tocar. Assim fui aprendendo.

ZONA SUL – Você também tinha acesso a emissoras de rádio ou outras fontes de música a não ser a dos violeiros e cantadores?
DUDÉ – Na época não tinha rádio lá. Existia em Mossoró. Mas lá em casa a gente nem possuía rádio. Só em Caraúbas que passei a ouvir as emissoras de Mossoró. Veio a onda da Jovem Guarda, e eu ficava ouvindo Roberto Carlos e aqueles outros também. Também escutava Luiz Gonzaga, que fazia muito sucesso. Então foi dessa forma que a rádio exerceu influência musical sobre mim. Aos 15 anos eu já tocava um pouco de violão. Depois passei pra cavaquinho, guitarra... Mas acabei ficando com o violão mesmo, porque é um instrumento bom pra gente tocar na noite. Mas eu gosto mais é de compor música, de criar, sou mais compositor. Estou sempre escrevendo música porque eu gosto, me sinto bem.

ZONA SUL – Por que você trocou Caraúbas por Natal?
DUDÉ – Quando eu tinha 14 anos meu pai separou da minha mãe, lá na roça. Fui pra Caraúbas levado por um tio porque lá era mais fácil de ganhar a vida. Mas eu tinha nove irmãos e era arrimo de família. Uma das minhas irmãs veio pra Natal e começou a trabalhar por aqui. Como em Caraúbas as coisas estavam ruins pra mim, resolvi vir, em 1969, quando eu já tinha 19 anos de idade. Meu primeiro emprego em Natal foi de cobrador de ônibus. Mas eu continuava doido por música. O meu objetivo ao vir pra Natal era tentar música. O tempo como cobrador de ônibus durou pouco. Em 1972 fui participar de um programa de auditório que tinha na então Rádio Trairi, que depois passou a ser Tropical, e hoje é CBN. Tinha muitos calouros cantando. Eu notei que o programa precisava mais de um animador. Eu queria ficar no programa porque tinha um supermercado patrocinando e, embora pouquinho, ele dava uma graninha a quem ficava. Se eu fosse como calouro, tinha muita gente boa, e eu tinha medo de não ficar. Eu fui assim meio como comediante, meio cantor. Fui fazendo paródia de música. Fiquei por lá oito meses. Virei meio que um animador do programa. Ele passava todo domingo, das nove da manhã ao meio-dia. O apresentador do programa era Doskagíbeo dos Santos.

ZONA SUL – Que nome complicado para apresentador de programa de rádio popular!
DUDÉ – É. Ele já estava meio coroa, na época, era apresentador antigo. Era da Rádio Nordeste e da Trairi. Era bem conhecido. Era até Doskagíbeo com K. Eu me lembro de tudo. Fiquei nesse programa um tempo, quando ele acabou eu já estava bem viciado em palco. Ficava difícil até parar.

ZONA SUL –Quando você começou a compor?
DUDÉ – Fiz minhas primeiras músicas aos 13 anos de idade. Eram musiquinhas que depois tive que melhorar. Como eu falei, gosto de escrever. Não escrevo bem, mas gosto de escrever. Quando o programa de rádio acabou em Natal, escrevi um musical infantil chamado Riso da infância. O padre da igreja de Lagoa Seca abriu as portas da casa paroquial e apresentei o musical muitas vezes ali. Depois comecei a circular na Grande Natal e no interior. Eu tinha um grupo de oito crianças comigo. O Riso da infância eram esquetes improvisados. As pessoas gostavam muito. Se naquela época houvesse mais oportunidade pro humorista, eu teria me dado bem. Gosto do texto engraçado. Não sou muito da imitação. Eu tinha dom para escrever textos engraçados. Mas era difícil, não dava pra viver. E eu tinha que ganhar dinheiro para sustentar meus irmãos. Aí comecei a viajar com circos. Passei cinco anos assim.

ZONA SUL – O que você fazia no circo?
DUDÉ – Cantava e fazia esquetes junto com os palhaços. Eu escrevia coisas pro palhaço falar que o povo morria de rir. Se eu tivesse tido oportunidade, acho que seria um bom redator de humor. Mas a vida no circo é muito sofrida, não era a minha. Às vezes tinha que dormir na lona do circo, aquelas coisas. Eu gosto muito da música, da tranqüilidade pra compor, de ensaiar. Em 1974 veio uma banda do Rio pra Natal, Os Labaredas. Me envolvi com eles. Me deram um cartão e falaram que quando eu quisesse ir pro Rio, me dariam apoio. Pra quem estava sonhando ir, foi demais. Dois meses depois eu estava no Rio. Gastei 28 dias na viagem de Natal pra lá. Ainda toquei em Garanhuns e Paulo Afonso, antes de chegar no Rio. Lá, procurei a turma de Os Labaredas. Moravam em Caxias. Os caras estavam ferrados iguais mim. Mas já que eu estava no Rio, comecei a me oferecer naquelas boates. Fazia voz e violão, mas estava difícil também. O samba estava muito forte, na época. Fui pra lá em março de 1974. Fiquei até outubro no Rio. Próximo ao Natal fui tentar em São Paulo. Foi um pouco melhor. Eu tinha um conterrâneo que trabalhava em uma firma. Fui bater na porta dele. Ele disse que, de início, para eu conseguir alguma coisa na área de música talvez não desse certo. Arrumou pra mim, na firma onde trabalhava, um emprego de ajudante de eletricista. Eletricidade tem a ver um pouco com música, porque aprendi rapidinho. Com três meses eu tava craque.

ZONA SUL – Tem a ver com música como? Quando o cara leva um choque grita “ai!” em ré maior?
DUDÉ – (Risos). Porque não deixa de ser uma soma matemática pra entender fase A, fase B, fase C... Depois calcular ampéres pra combinar com voltagem. Entendi rápido aquilo. Era uma firma grande. Com três meses eu estava bom, mas não era o que eu queria. Comecei a me envolver com outros músicos. No final de semana a empresa precisava de mim, mas eu não podia, porque ia tocar. A fábrica funcionava de segunda a sexta, e eles queriam que sábado e domingo fossem para manutenção. Eram os dias que eu arranjava uns shows para ir tocar. E eu não podia fazer a manutenção. Acabei saindo da firma, depois de ter ficado nove meses lá. Pedi as contas, apesar de não terem querido me deixar sair porque diziam que eu era competente. Isso foi em 1975, quando assumi mesmo a música de vez. Nunca mais fiz outra coisa na vida.

ZONA SUL – Qual o nível de sucesso que você alcançou no Rio e São Paulo? Chegou a gravar ou se apresentar em programas de televisão?
DUDÉ – O que fiz de mais importante foram projetos do SESC, em São Paulo, e o Seis e Meia, no Rio. Pelo Sesc abri shows de Jackson do Pandeiro no Teatro Dulcina, no Rio, e no Teatro Anchieta, de São Paulo. Também fiz show de abertura pra dupla Tonico e Tinoco. Depois disso fiz meu próprio show no SESC. No Rio abri show de Moraes Moreira e Armandinho, no Circo Voador. Participei de um projeto que tinha no Rio, Nas águas do Pixinga. No Projeto Pixinguinha, o artista local fazia a abertura. No Nas águas do Pixinga eu era o artista principal mesmo. Fiz uns três shows com Jards Macalé, também no Rio. Recentemente, em 2001, fizeram uma coletânea musical lá no Rio, na festa dos 90 anos de Marechal Hermes. Juntaram vários artistas, entre eles Cristovam Bastos. Também fui convidado.

ZONA SUL – E seu lado de autor de textos humorísticos você também tentou explorar?
DUDÉ – Muito. Consegui que textos meus fossem divulgados, mas sempre saíram com nomes de outras pessoas. E me pagavam uma quantia equivalente a 50 reais de hoje. Tentei muito a produção de Chico Anysio. Foi a que mais batalhei. É muito redator e rola muita dificuldade. Mesmo o texto sendo bom, a oportunidade é difícil. Isso rola na música também. Hoje está menos. Está havendo uma lealdade maior no meio musical.

ZONA SUL – Havia amizade entre os artistas do Rio Grande do Norte que foram tentar a carreira musical no Rio e em São Paulo na década de 70? Um tentava dar força ao outro?
DUDÉ – Isso aí nunca existiu. O que falta no Rio Grande do Norte é essa unidade. Eu já batalhei muito por isso, mas é difícil. Acho que aqui em Natal está melhorando na parte do público. Eles estão valorizando mais o artista local. Nos anos 70 era pior. Só tinham valor os de fora. Mas a união dos artistas ainda está pouca. Espero que mude também.

ZONA SUL – Você chegou a fazer amizade com artistas famosos?
DUDÉ – Dos famosos, tenho um contato maior com Cátia de França e Geraldo Azevedo. Quando estou no Rio, às vezes vou ao escritório dele conversar. Somos da mesma geração. Em 1975, quando Alceu Valença começou no Festival Abertura, em São Paulo, eu estava em São Paulo também. O fato de terem conseguido ser grandes estrelas da MPB, e eu não, é conseqüência da vida. Além de Alceu e Geraldo Azevedo, chegaram à mesma época, no Rio, Fagner, Belchior, Zé Ramalho, Elba Ramalho... Com exceção de Geraldo Azevedo, todos os outros tinham pelo menos entrado na faculdade. Era moda o cara dizer que tinha largado a faculdade pela música. Eu tinha saído de Caraúbas, lá da caatinga, passado pouco tempo em Natal... O que eu tinha para oferecer à imprensa? Nada. Só meu trabalho. Não valia. Eles tiveram essa sorte de usar a faculdade para aparecer.

ZONA SUL – Você teve problemas com a censura na época da ditadura?
DUDÉ – Algumas músicas foram censuradas. Se eu não fosse músico, seria psicólogo. Eu sempre gostei de buscar o conhecimento, de entender o ser humano, e procurava falar essas coisas nas músicas e eles não deixavam passar. Não fui censurado por protestar contra a ditadura. Eu não era muito politizado. Hoje sou mais. Eu tinha um sentimento muito grande pelo ser humano. Talvez essa parte preocupasse a eles um pouco, porque eu defendia sempre o ser humano em todas as circunstâncias.

ZONA SUL – Por que você voltou pra Natal e em qual ano foi isso?
DUDÉ – Praticamente eu não voltei. Vivo dividido. Ano passado fiquei dez meses em Natal ajudando o grupo pé de serra Meirinhos do Forró na escolha do repertório e nos arranjos do CD que gravaram, que inclusive tem duas músicas minhas. Fui para o Rio em outubro. Voltei em janeiro desse ano. Adoro minha terra, se eu pudesse ficava direto. Mas é difícil viver de música em Natal. Talvez eu volte em setembro pro Rio. Mas em janeiro estarei de volta a Natal. Desde os anos 70 estou nesse vai e vem. Nunca abandonei o Rio. Também nunca abandonei o Rio Grande do Norte.

ZONA SUL – O que você faz nessas idas ao Rio?
DUDÉ – Faço shows. Ano passado, por exemplo, quando fui para o Rio, logo que cheguei fiz um show enquanto eram apuradas as notas do festival da Ilha do Fundão. Fui contratado pela Petrobras pra fazer esse show no intervalo. Foi o 3º Festival de Música do Cepe Fundão, do Clube da Petrobras. Eu estaria mentindo se dissesse que lá a coisa é maravilhosa, pois a concorrência é muito grande no Brasil todo. Mas eu faço um trabalho que pouca gente faz no Rio, que é de MPB nordestina. Tem as grandes estrelas como Elba Ramalho, ou os outros que falei. Mas dos artistas menores têm poucos. Ou têm aqueles trios de forró pé-de-serra, ou os grandes artistas. Mas não têm muito aqueles de porte menor, para uma casa de 100, 200 lugares. Nesse eixo é que me encaixo. Em meus shows, muitas vezes quando canto uma música minha as pessoas gostam já de início. Muitas delas acham que estão batendo palmas para uma música de um cantor já consagrado. No final vem perguntar de quem é aquela tal música e se surpreendem quando digo que é minha.

ZONA SUL – O que você já gravou?
DUDÉ – Em 1980 lancei um compacto duplo chamado Seca no Sertão. Em 1987 gravei um disco com Maria Zenaide chamado Embaixo das estrelas. Maria Zenaide é uma atriz pernambucana que mora no Rio e canta também. Em 1997 lancei Violas e cantigas, um CD de voz e violão. Fiz em homenagem aos violeiros. Foi o CD que mais deu resultado. Era voz e violão e um colega fazendo um solozinho, ficou bonito. Os radialistas disseram que só não davam nota dez porque não tinha sido gravado ao vivo. Era ótimo, mas não era ao vivo. Eu estou até pensando em fazer um no mesmo estilo, mas ao vivo. Em um teatro, com platéia e tudo. Em 2002 fiz o Acredite em você. É um CD já com bastantes instrumentos. Mas acho que nasci pra fazer voz e violão, porque lá no Sul e Sudeste, agrado mais quando toco sozinho do que com banda.

ZONA SUL – Onde as pessoas podem comprar trabalhos seus?
DUDÉ – O último que fiz, o Acredite em você, é o único que ainda está à venda. Mas as cópias que restam eu vendo nos shows que faço.

ZONA SUL – Você tem site, usa internet pra se comunicar?
DUDÉ – Site ainda não, mas tenho email para quem quiser trocar uma idéia. dudeviana@yahoo.com.br .

ZONA SUL – Como foi o episódio em que você foi confundido com um integrante da quadrilha que assaltou um banco no Rio Grande do Norte? Você passou quanto tempo preso por conta desse crime que não cometeu?
DUDÉ – Em 1982 ocorreu o chamado “roubo dos 94 milhões”. Três primos meus foram acusados diretamente de participar. Tinha um Dedé que fez o assalto com eles. O assalto teve um fundo político, foi feito para eleger um prefeito. Mas esse Dedé que estava com meus primos matou um policial federal, e a PF matou ele no Piauí. Eu fiquei preso no lugar do Dedé. Só provei a inocência porque dei sorte. Os fatos ocorreram em 1982, e passei todo esse ano no Rio, não andei pelo Rio Grande do Norte. Se eu tivesse vindo ao Rio Grande do Norte acho que não teria conseguido provar minha inocência, já que sem vir já foi difícil... Fiquei um ano, 10 meses e 13 dias preso. Os fatos ocorreram em maio de 1982. As mortes aconteceram em novembro do mesmo ano. Fui preso em 10 de janeiro de 1983. E solto em 22 de novembro de 1984. Passei 20 dias preso na Polícia Federal do Rio de Janeiro. A PF me prendeu lá, sem mandado de prisão nem nada, e me mandou pra Natal. O juiz, sabendo que eu era parente dos assaltantes, decretou minha prisão em nome de José da Silva. Eu era José Filho. Foi muito difícil. Cerca de dez advogados me procuraram. Eu dizia que não tinha dinheiro, eles perguntavam se eu não era parente dos Carneiro. Não acreditavam que eu não tinha dinheiro. E eu não tinha. Logo no começo o juiz me deu um prazo de cinco dias pra eu me defender. O prazo venceu. Tive que aguardar o julgamento preso.

ZONA SUL – Em Natal você ficou preso onde? Houve uma mobilização dos músicos para lhe ajudar?
DUDÉ – Na Colônia Penal João Chaves. Sim, houve. A Ordem dos Músicos me ajudou quando consegui advogado. A Ordem trouxe três testemunhas que eram músicos no Rio de Janeiro que estavam comigo tocando na época em que aconteceram os crimes. A Ordem pagou as passagens das três testemunhas. Na época do assalto a gente estava fazendo arranjos para uma música que iríamos inscrever no festival MPB Shell. Fui solto no dia 22 de novembro, que é o dia do músico. Fui julgado inocente, e solto. Eles arquivaram o processo. Os advogados de defesa usaram meu caso pra absolver outros. Isso deu direito ao promotor de recorrer. Recorreu sem tirar meu nome do processo. Em 1999 houve o segundo julgamento. Pra mim foi um pouco ruim de início porque saiu na imprensa que eu seria julgado de novo. As pessoas pensaram até que eu podia ter algum envolvimento. Mas foi melhor, porque, dessa vez, o próprio Ministério Público Federal reconheceu minha inocência e retirou meu nome do processo. Isso no segundo julgamento. Deu direito a eu entrar com um processo de indenização contra a União. Entrei na justiça com pedido de indenização por danos morais. A União foi condenada a me indenizar, só que eles querem me pagar uma quantia tão pequena, tão insignificante que a advogada recorreu.

ZONA SUL – Qual foi a proposta da União?
DUDÉ – É tão pequena que nem quero mencionar. Eles estão condenando só a Polícia Federal por ter me prendido sem mandado de prisão. A Justiça acha que não houve problema depois que o juiz decretou a preventiva. Alegam que o juiz me deu os prazos todos pra me defender, eu não me defendi. O defensor da União usa uns termos jurídicos lá para reduzir o valor da indenização.

ZONA SUL – Eles estão considerando isso como atenuante para lhe pagar uma mixaria.
DUDÉ – Eles querem pagar o referente ao que um violonista ganha numa noite, sem sequer considerar a parte do cantor. Querem pagar três dias de indenização, o tempo em que fiquei preso na PF sem mandado de prisão. Pra eles a Federal errou, a Justiça não.

ZONA SUL – Como foi a vida na prisão? Você comportou-se de forma resignada ou revoltada?
DUDÉ – Eu cheguei à conclusão de que a revolta não leva a nada. Procurei não aprender nada do que vi lá dentro que me prejudicasse. Assim que saí da prisão fiz um show chamado Diga sim à paz, não à guerra. O Meira Pires me abriu as portas do Teatro Alberto Maranhão. Deu muita gente. Compus uma música, depois de tudo isso, chamada Os dois lados da Justiça. Ela foi baseada no fato de que dez advogados me procuraram e quando souberam que eu não tinha dinheiro, apenas um se interessou pelo caso e buscou fazer justiça. Então, o refrão diz assim: “Agora eu sei dos dois lados da justiça / Um é humano, o outro é animal / Um quer a lei, o outro capital / São dez humanos pra 90 animais”. Ainda não gravei essa música, mas pretendo. Às vezes comparo entrevistas que dei no início da carreira, principalmente as fotos, e vejo que minha fisionomia mudou muito. Apanhei demais da vida. Sofri muita tortura psicológica para assumir um crime que não cometi. Eu que nunca usei uma arma na minha vida!

ZONA SUL – Sofreu tortura física também?
DUDÉ – Muita ameaça, que eu pensava que era verdade. Depois que passou, vi que eram ameaças. A polícia do Rio me torturou no primeiro dia. Eles me levaram às dez da manhã dizendo que eu prestaria um esclarecimento. Ficaram se comunicando com o Rio Grande do Norte pra saber se eu era mesmo José Filho ou se era José da Silva. Aqui em Natal, nem a Secretaria de Segurança confirmou que eu era José Filho. Apesar do nome constar na minha carteira de identidade. Cheguei às 10 da manhã, às cinco da tarde o delegado da PF estava nervoso, ninguém da Secretaria confirmou que eu era José Filho. Ele dizendo que eu era um fugitivo do Ceará, que eu era José da Silva, que eu estava mentindo, que ia quebrar minha cara, que eu era cínico. Por sorte, lembrei da minha carteira de músico. Mostrei ao delegado. Eu tinha tirado a carteira de músico no Rio, já que quando cheguei na cidade eu ainda era amador. A Federal, em poucos minutos, contactou a Ordem dos Músicos, que confirmou que meu nome na carteira era José Filho. O delegado disse que pelo menos uma coisa eu tinha provado que tava falando a verdade. Meu nome era José Filho.

ZONA SUL – Quer dizer que pra Polícia Federal do Rio valeu mais a carteira de músico do que a cédula de identidade...
DUDÉ – Eu tinha identidade e CPF! A carteira de músico foi a que valeu. O delegado rasgou o depoimento que eu estava prestando e disse que meu problema seria resolvido quando eu chegasse em Natal. Botou os papéis na lixeira e mandou me trancar, para esperar o dia que mandariam me buscar. Sofri chutes nas pernas, empurrões e aquela humilhação toda. O pior foi a tortura psicológica. Quem foi me buscar no Rio foi Maurílio Pinto e um agente.

ZONA SUL – Eles diziam do que você estava sendo acusado?
DUDÉ – Eles perguntavam que envolvimento eu tinha com meus primos no roubo dos 94 milhões. Eu negava qualquer participação. A pressão toda era que eles queriam que eu assumisse que era José da Silva. O problema maior nem era o roubo, eles queriam saber se eu era José da Silva. Quando cheguei em Natal, eu tinha esperança que a situação fosse esclarecida logo. Mas foi a mesma coisa. Só que o juiz, na hora de decretar a prisão, escreveu: José da Silva, vulgo Dudé. Trocou o Dedé por Dudé. Residência ignorada. Um absurdo, já que a PF tinha ido me buscar em casa, no Rio. Eles misturaram os meus dados com os de Dedé, que eles não sabiam mesmo onde morava. Quando viram que eu era primo dos Carneiro, procuraram me prejudicar mesmo.

ZONA SUL – Você ficou preso sozinho em uma cela?
DUDÉ – Não. Fiquei preso com meus primos, os Carneiro. Eles não deixavam juntar presos da Federal com os presos comuns. O que fez o procurador retirar meu nome do processo foi o fato de que em todos os depoimentos eu nunca ter entrado em contradição. Pra minha maior surpresa, no Rio, quando a PF me prendeu, queria saber se eu tinha envolvimento no assalto. No Rio Grande do Norte me tiraram do assalto e me jogaram em uma chacina. Eu achei pior do que o assalto. Lá tava como se eu tivesse ajudado matar Sidney Negão, que era um assaltante. Não entendi. Se eu não me conhecesse muito eu ia dizer: ou estou doido ou tem muita gente doida.

ZONA SUL – Esse episódio virou tema de livro que você lançou em parceria com um jornalista...
DUDÉ – O livro era um diário que fiz na prisão. Comecei a fazer lá na PF do Rio. Só que no dia da minha saída pegaram minhas coisas e revistaram. O que eu tinha escrito lá dentro eles rasgaram um pouco, não deixaram sair, me deram só uma parte. A parte que falava no nome do delegado eles cortaram. A gente estava saindo da ditadura, naquela época, em 83. Deixaram só a parte que lembrei o nome de alguns presos. Terminei o diário na Colônia Penal João Chaves. Dei o nome de O grito silencioso de um réu inocente. Quando fui solto, mostrei o texto na Editora Vozes, da Igreja Católica. Eles gostaram, mas me pediram para fazer uma revisão. Realmente tinha erros ortográficos e gramaticais. Alguns eu tinha até botado propositadamente. Junto com um jornalista amigo meu, Vagner Soeiro dos Santos, revisamos o texto e devolvemos para a editora. A editora pediu que eu cedesse ao jornalista para ele reescrever. Como eu tinha interesse em publicar, permiti. Ele reescreveu e mudou o título para Dudé ou Dedé? Era assim, vinha uma pergunta: Quem assaltou, quem matou... Dudé ou Dedé? Achei interessante de início, mas depois não achei tanto porque as pessoas que não compravam o livro, mas que viam na banca, às vezes ficavam na dúvida sobre quem tinha assaltado ou matado. Muita gente não compra livro, mas olha. Alguns chegavam pra mim e diziam: Dudé, mas afinal de contas, se você provou a sua inocência, como é que está no livro a dúvida sobre quem matou e assaltou? Mas vendeu bem, três milheiros, rapidinho. O jornalista que escreveu comigo é um cara muito meu amigo, mas ele não gosta de ir à noite de autógrafos. A editora quis renovar o contrato comigo mas desde que eu pedisse ao jornalista pra ele me colocar no livro como co-autor. Tinha uns programas de televisão que queriam me convidar, como foi o caso de Homens e livros, da TV Manchete, na época. Quando cheguei ao programa, me perguntaram se eu era o autor. Eu respondi que era o personagem. Não fui pro ar. Se eu fosse colocado como co-autor, teria autoridade para autografar, fazer tudo. Mas o jornalista não aceitou.

ZONA SUL – Agora você está com o projeto de um novo livro...
DUDÉ – Alguns familiares me pediram para eu escrever a história dos Benevides Carneiro. Tem outras pessoas escrevendo e a família tinha o receio desses autores não zelarem pelo nome dos que não se envolveram com crimes. Antes de começar a escrever, fui pesquisar a origem da família. Peguei a origem desde a Espanha, passando por Portugal. Depois a família juntou-se com os Fernandes. Acabei pesquisando várias famílias para fazer o livro, que em sua metade é tipo uma genealogia. Dos anos 50 para cá foi que começaram a surgir problemas na família Carneiro.

ZONA SUL – Você desmistifica a fama de violência da família?
DUDÉ – Eu não estou inocentando aqueles que cometeram crimes. Mas conto histórias. Por exemplo, o Valdetário. Até os 25 anos ele era um grande artesão. Ele tinha o sonho de ser ator. Mas Valdetário era muito político. No tempo em que eu estava preso, ele foi na prisão me visitar. Na época ele era mecânico em Caraúbas. No colégio ele chegou a representar Tiradentes, em uma peça. Gostava muito de artes. Queria que eu escrevesse um texto sobre Che Guevara, para ele poder representar no teatro. Eu disse: rapaz, como é que eu vou escrever esse texto se estou ferrado aqui... Mas Valdetário sofreu uma injustiça...

ZONA SUL – Qual foi essa injustiça?
DUDÉ – Ele foi acusado de roubar um automóvel Pampa junto com dois outros primos meus. Mas eles não fizeram esse roubo. Um deles tinha participado dos 94 milhões, mas era inocente nesse caso. O outro primo era muito novo, nunca tinha se envolvido com nada. Foram condenados a sete anos e seis meses. Valdetário e um primo conseguiram fugir depois de um ano e sete meses. Valdetário foi pego no dia seguinte e levado de volta à cadeia. Cumpriu quatro anos e seis meses de pena na Paraíba. Quando ele saiu dessa prisão, ainda tentou refazer a vida. Mas foi difícil. Foi acusado de outro crime. Aí não perdoou mais, virou bandido mesmo. Mas a família tem em torno de 2500 pessoas. Se você somar, uns sete são os perigosos. Alguns não foram nem bandidos, foram criminosos. Bandido é aquele que forma um bando e vai matar. Uns mataram por vingança. Meu primo Antonino foi o primeiro que matou gente na família. Mas foi por uma questão política. Um cara chegou, deu cinco tiros nas costas dele. Ele se virou e matou o cara. Ele com cinco tiros nas costas. Isso em 1950. Ele se revoltou porque matou para não morrer. Achava que não devia ser preso por isso. Passou 18 anos encrencado com a polícia, mas nunca foi preso. Acabou um delegado matando ele.

ZONA SUL – O livro já tem editora?
DUDÉ – Já foi revisado, está na gráfica. A primeira tiragem vou fazer independente. No livro eu também tento derrubar um pouco o mito e o preconceito. Já tive shows cancelados no Rio Grande do Norte quando descobriram que sou primo de A ou B, de Valdetário ou de Doutor Benevides. O cara me chama, pede desculpas e pergunta se eu entendo. Eu digo que sim, mas entendo sem concordar. Acho que cada pessoa é uma pessoa. Ninguém pode pagar pelos outros. Tenho um irmão e uma irmã no Walfredo Gurgel que só não perderam o emprego porque são concursados. Pessoas que nunca fizeram o mal a ninguém. O mesmo acontece com muitos primos. Até os que se enveredaram no mundo do crime sofreram injustiça no início. Sou do tipo de pessoa que quanto mais desconfiarem de mim, vou tentar provar o contrário. Mas nem todos são assim. Valdetário, não era. Depois que ele começou a praticar crimes, não falei mais com ele. Mas ainda cheguei a mandar recado. Ele respondeu que admirava muito minha atitude de perdoar todo mundo, mas no caso dele era diferente. Ele não perdoaria.

ZONA SUL – Na prisão você fez muitas músicas?
DUDÉ – Fiz. Mas algumas delas nem botei arranjo ainda porque eu no fundo sou muito brasileiro. Tenho amor pelo meu país. Quando fui preso eu estava com oito músicas selecionadas para um elepê na maior gravadora do país, na época, que era a Polygran, e também estava tentando o festival da Globo. Eu levei uma fita cassete com 15 músicas, eles escolheram oito. E fiquei de levar mais músicas para eles escolherem outras quatro. Quando saí da prisão, voltei lá. Me chamaram de irresponsável, que eu tinha abandonado o projeto. E eu não tive coragem de dizer o motivo, que eu tinha passado todo aquele tempo preso. Pra você ter uma idéia, vários empresários que me conheciam no Rio cortaram a amizade comigo depois que souberam. Imagine a gravadora. Voltei à lama, à estaca zero. Alguns amigos me chamavam pra tocar com eles, do cachê que recebiam, me davam um pouquinho. E fui me levantando aos poucos. Em 1999, quando estava bem me levantando, segundo julgamento. Saí de novo nas páginas dos jornais. Voltei à estaca zero de novo. Acho que com esse livro ou eu vou pra lama de vez ou a sociedade fica do meu lado. Sofri tanto que em 1993 eu estava tão derrotado que tive uma anemia profunda. Procurei um psicólogo, ele disse que estava tudo normal, mas a queda que eu tinha sofrido tinha sido grande. Lá na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, abriu um projeto chamado Universidade Aberta, tinha um curso de relacionamento interpessoal. Fiz esse curso, que é ligado à psicologia. Me ajudou muito. A psicologia é tudo na vida da gente. A gente começa a conhecer fatos e ver pessoas que passaram por situações difíceis também. A psicologia nos ensina uma maneira de sair desses problemas com a cabeça erguida.

ZONA SUL – Deixe um recado pros seus conterrâneos potiguares.
DUDÉ – Eu tou na luta e quero dar uma viravolta na minha vida. Acredito que com esse livro e com o projeto que tenho de fazer um outro CD darei a volta por cima. Acredito que vão enxergar esse lado, vai entender a mensagem do meu livro e eu vou ter um retorno positivo. É o que eu falo.

4 comentários:

  1. Dudé! orgulho potiguar

    Aff esse blog é fantastico, parabéns Roberto! vindo de vc não poderia ser diferente!

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  2. Obrigado, Vanusa, pelo elogio ao site do jornal de Júnior e Edson, o Zona Sul. Quanto a Dudé, só posso assinar embaixo: ele é mesmo um orgulho para o nosso estado.

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  3. É uma grande história!
    Fiquei interessado porque a família do meu pai é do Rio Grande do Norte,É a muitos anos perdermos contatos. Nosso sobrenome é o Viana também

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