quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Entrevista: Cortez

O sertanejo que ganhou o mundo com as letras


É comum ouvir dizer que a história de alguém daria um livro. A de José Xavier Cortez rendeu muito mais: uma biografia, um documentário em vídeo e um livro infantil. Sua vida não foi fácil. Ainda menino no sítio dos pais, em Currais Novos, ele ajudou a família a tirar da agricultura o sustento. Estudou nas horas de descanso. Maior de idade, deixou a terra natal para buscar um futuro melhor para si e para os seus. Entrou na Marinha, foi expulso de lá após o golpe de 64. Morou em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Em São Paulo, foi lavador de carros em um estacionamento. Nessa condição passou no vestibular de economia, da PUC. Vendeu livros na faculdade. Editou teses de mestrado e pós-graduação. Hoje Cortez é reverenciado no meio intelectual brasileiro. Sua editora completou 30 anos no primeiro semestre. A efeméride serviu como mote para relembrar a história desse potiguar que, apesar de ter ganho o mundo, nunca deixou de ter seus pés fincados no sertão do Rio Grande do Norte. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL: Vamos conversar um pouco sobre o seu período em Currais Novos...
CORTEZ - Divido minha trajetória em três momentos. O primeiro foi vivido lá no sertão, onde nasci, me criei, trabalhei e aprendi a ler. O segundo foi a fase militar, onde permaneci na Marinha. Aos 17 anos saí do sítio Santa Rita e fui para Natal. Em seguida entrei para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Recife, onde fiquei uns dez meses. Em janeiro de 1956, depois de fazer o curso de habilitação para a Marinha de Guerra, fui para o Rio, onde fiquei até dezembro de 1964. Toda essa etapa foi importante para eu deixar a vida de sertanejo e me adaptar à cidade. Fui punido com o golpe militar de 1964...
ZONA SUL - Vamos deixar os detalhes para depois...
CORTEZ - Certo. Então, continuando, o terceiro e último momento da minha trajetória começou logo após o golpe militar, quando fui desligado da Marinha e troquei o Rio por São Paulo. Essa fase segue até hoje. Nesse ano em que a Cortez Editora completou 30 anos, foram lançados um DVD, um livro e uma publicação infantil contando minha trajetória mais ou menos dividida nessas três fases.
ZONA SUL - Vamos falar um pouco sobre essa primeira etapa. Como foi a vida no sítio?
CORTEZ - Essa fase está muito bem detalhada no livro “Cortez - A saga de um sonhador”. A socióloga e biógrafa Teresa Sales fez uma pesquisa muito séria do meu nascimento até os 17 anos. O final dos anos 1950 e anos 60 do século passado foi um período de rudeza, de trabalho árduo. Não havia tecnologia, energia, água... Enfim, passei, uma fase dura lá no sertão do Rio Grande do Norte, trabalhando com os meus pais e a minha família naquela agricultura de subsistência.
ZONA SUL - Você começou a trabalhar muito cedo?
CORTEZ - Estou na faina diária, no trabalho diário, desde os cinco ou seis anos. Nessa idade eu já puxava boi pro meu pai arar a terra com a capinadeira. É uma das lembranças que eu tenho do tempo de criança.
ZONA SUL - Paralelo a isso você também estudava?
CORTEZ - Meus pais sempre tiveram essa preocupação. Somos dez irmãos, dos 17 que a minha mãe teve. A cada dois anos nos reunimos, em um encontro que apelidamos de Bienal da Família. Mas eu dizia que estudei em escola rural a partir de seis ou sete anos. Lá aprendi as primeiras letras.
ZONA SUL - Ajudando a família na roça e estudando, sobrava tempo para brincar?
CORTEZ - Eu e meus irmãos estudamos sempre no horário, digamos, do almoço: das 11 horas até por volta das duas horas da tarde. Algumas escolas eram distantes. Tínhamos que andar quatro ou cinco quilômetros para ir e a mesma distância pra voltar. Tínhamos que trabalhar de manhã até às dez horas. Tomávamos banho, almoçávamos e saíamos para a escola. Na volta, trocávamos de roupa e retornávamos o trabalho no roçado até o sol se por.
ZONA SUL - Então não sobrava mesmo tempo para as brincadeiras...
CORTEZ - Às vezes brincávamos à noite. Naquela época morava muita gente nas proximidades do sítio. Hoje não existe sequer 10% daquela população da época. Depois do jantar, quando comíamos coalhada ou sopa, vinham os vizinhos. Brincávamos de tica ou de outras brincadeiras no terreiro. No final de semana também tínhamos muita ocupação, como dar comida pro gado e levar os animais pra beber água. Geralmente, nas tardes de sábado ou domingo, sobrava um tempo maior pra brincar.
ZONA SUL - Por volta dos 17 anos você mudou-se pra Natal. Por que?
CORTEZ - Nós percebíamos, e meu pai também falava, que seria muito difícil sustentar toda a família naquele sítio que até hoje preservamos. Mal dava para os dez filhos. Pior ainda ficaria na medida em que fôssemos casando. Sabíamos que tínhamos que procurar alguma coisa. A pergunta era: onde encontrar trabalho com parcos estudos? Antes de ir pra Natal fiz outras coisas, como garimpar. Nos anos de seca íamos trabalhar nos garimpos. Eu, o mais velho dos irmãos, nunca tinha ido a lugares mais distantes até resolver mudar pra Natal. Eu sabia que possivelmente teria que servir ao Exército. Mudei para a capital com a expectativa de servir à Aeronáutica. Eu não tinha noção de militarismo, de nada. Em Natal fiquei durante sete ou oito meses na casa de um tio, o tio Alfredo, já falecido. Não consegui entrar na Aeronáutica, mas entrei na Marinha. Dessa forma fui para Recife e iniciei essa minha viagem. Não era o que eu esperava. Ganhávamos mal e o regulamento era muito rígido. Mas eu tinha como objetivo e projeto de vida fazer alguma coisa pra ajudar minha família. Fui e sou uma pessoa muito ligada às questões familiares. Meu pensamento era o de ajudar os meus pais. Dar algo melhor para eles. Eu via na Marinha o canal para isso. Fiquei lá nove anos.
ZONA SUL - Antes da Marinha você fez outras coisas em Natal?
CORTEZ - Quando mudei pra Natal eu sabia que ali era o ponto de partida da minha caminhada. Não pensava mais em voltar para o sertão. Em determinada época apareceu um conhecido do meu pai, que morava em Campo Redondo. Ele tinha um alambique e me arrumou um trabalho temporário pra encher garrafas nos tonéis de cachaça. Depois me envolvi com os exames da Aeronáutica. Como não deu certo, tentei a Marinha. Fiquei hospedado na chácara do meu tio, no Alecrim. Como lá tinha muitas árvores frutíferas, pedi permissão a ele e passei a vender umas frutas pela cidade. Com o apurado eu comprava uma pasta, comia um pão doce com caldo de cana, ou coisas do gênero. Foi assim até a Marinha me chamar, em março de 1955.
ZONA SUL - Quais suas atividades na Marinha?
CORTEZ - Depois de jurar bandeira em Recife, embarcamos em um navio chamado Barroso Pereira. Eu e mais 200 ou 300 colegas fomos para o Rio. Lá nos dividiram entre vários navios. Servi inicialmente um ano e pouco no contratorpedeiro Marcílio Dias. Nossa função era serviços gerais: faxina e tudo o que havia de pior. Depois que desembarquei fui para um quartel de marinheiros. Contraí esquistossomose e fiquei três ou quatro meses em um hospital naval. Depois fiz curso de especialização em máquinas. O maquinista, claro, trabalha na praça de máquinas. Sua função é fazer o navio navegar. Ao terminar o curso, fui servir no Cruzador Barroso. Fiquei cinco anos nesse navio. Em março de 1964 trabalhei na organização da festa de segundo aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil.
ZONA SUL - Ao descrever suas atividades na Marinha, você falou: “o que tinha de pior sobrava pra gente”. Como você recebia essa diferença de tratamento?
CORTEZ - Toda pessoa merece ser tratada com dignidade, independente de sua raça, condição social ou grau de instrução. Ao entrar na Marinha passei a conviver com pessoas de outros níveis. Comecei a ler jornais, ver televisão, a me informar. No sertão eu não tinha nada disso. Nunca tinha aberto um jornal ou lido um livro todo. Assim começou o meu contato com esse mundo mais civilizado. Passei a me conscientizar de algumas coisas. Por outro lado, quando eu vivi no sertão - em um lugar muito pobre - nunca fui humilhado. Ninguém deve ser humilhado por condição nenhuma. A Marinha tinha um regime arcaico. Seu regulamento já não condizia com a década de 1960. Nós, marinheiros, começamos a reivindicar algumas coisas. Foi assim que fundamos, em 1962 - quando eu já tinha sete anos de Marinha - uma associação de marinheiros. Nós estávamos sendo muito sacrificados e humilhados. As associações não eram permitidas nas Forças Armadas, como não é ainda hoje.
ZONA SUL - Esse movimento culminou com uma revolta dos marinheiros...
CORTEZ - A Marinha do Brasil teve muita importância na minha trajetória. No entanto, apesar de a Marinha ser considerada uma força armada de elite, somente a oficialidade recebia bom tratamento. Os praças e os oficiais subalternos, não. A história da Marinha é manchada por alguns episódios como a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910. Os marinheiros se rebelaram contra a aplicação de castigos físicos a eles impostos como punição. Em 1888 a escravidão havia acabado no Brasil, mas os marinheiros apanharam de chibata até 1910. Foi necessário haver um levante sob o comando do almirante negro João Cândido para acabar com essa selvageria. Em 1964 fazia apenas 50 anos daquela rebelião. Era um período muito curto. Ainda existiam pessoas daquela época. Em 1960 os marinheiros começaram a estudar e a participar da vida civil. Isso fez com que o pessoal subalterno, entre aspas, se conscientizasse. Foi aí que tudo começou. Resolvemos fazer uma festa para comemorar o segundo aniversário da associação. Era simplesmente uma festa, mas a Marinha proibiu. Dessa forma começou o grande duelo. Nos rebelamos contra as ordens, coisa que a hierarquia não permitia. Acredito que esse nosso movimento, ocorrido de 25 a 27 de março, foi o estopim para deflagrar o 31 de março.
ZONA SUL - Esse foi o motivo do seu afastamento da Marinha?
CORTEZ - Do meu e do afastamento de muitos outros. Estávamos lá no sindicato uns 2 ou 3 mil, não lembro mais. A nossa luta, que era a mesma de muita gente naquela época, era a favor do presidente João Goulart. Não era contra. Defendíamos as reformas de base, por exemplo. Mas o nosso movimento era interno, por mudanças como a permissão para o marinheiro casar, pelo direito a um tratamento mais humano e por uma melhor comida, entre outras reivindicações. Acabamos o movimento após fechar um acordo com o ministro da Marinha, o Leonel Brizola e outras pessoas que intermediaram essas conversações. Nunca esqueço do dia em que os fuzileiros navais - que são a força terrestre da Marinha - foram nos prender. Eram nossos colegas, a associação também era deles. Chegaram em frente ao sindicato e receberam a ordem de nos levar presos. Os fuzileiros desfizeram dos seus fuzis e ficaram ao nosso lado. Você nem pode imaginar a emoção de ver aderir à sua causa um grupamento convocado pra lhe prender. Depois de acertos e conversações, passamos pelo quartel do Exército e depois fomos liberados. Lá deixamos nossos nomes, essa coisa toda. Três ou quatro dias depois aconteceu o golpe militar. Foi facílimo pegar o nome de todos nós que estávamos lá no Exército. Aí começou a caça às bruxas.
ZONA SUL - O afastamento da Marinha foi a única represália que você sofreu ou houve outro tipo de perseguição?
CORTEZ - Sempre tive bom comportamento na Marinha. Nunca havia sido preso, apesar da rigidez do regulamento. Se o sapato não estava bem engraxado, o oficial não deixava sair, quando o navio estava em terra. Se o chapéu não estava branquinho como ele achava que deveria estar, a saída também era proibida. Só que não dispúnhamos de armário para guardar nossas coisas. Ficava tudo em um saco. Dessa maneira era praticamente impossível manter tudo impecável. Havia uma incompreensão grande. Com a associação, passamos a contar com assistência médica, dentária, assistência social e outras conquistas como o próprio direito de estudar. Se a saída era proibida, o marinheiro perdia sua aula. Quando saí da Marinha respondi a um IPM (Inquérito Policial Militar) simplesmente porque participei dos protestos. Eu não tinha ligação com partido nenhum, era praticamente apolítico. Sentíamos na pele a revolta de, por exemplo, ver um oficial ao seu lado ter direito a uma refeição com pratos especiais enquanto você só dispunha de uma comida de péssima qualidade. Servíamos na mesma embarcação, tínhamos o mesmo objetivo de servir à pátria, nosso estômago era semelhante e éramos pagos pelo governo para desempenhar funções militares. Nossa luta era também para que todos pudessem comer de forma decente. Essa foi a situação. Quando saí da Marinha vim embora pra São Paulo.
ZONA SUL – Por que São Paulo?
CORTEZ – No Rio de Janeiro o desemprego era maior. Além disso, onde arranjar um emprego de maquinista? Até então minha experiência era na agricultura de subsistência e na Marinha. Eu até podia trabalhar na Petrobras ou na Fronape (Frota Naconal de Petroleiros), mas todos nós, os que fomos punidos, entramos em uma lista negra elaborada por órgãos oficiais do governo. Fomos considerados maus elementos, comunistas e coisas desse tipo. Nem adiantava ir a um navio qualquer e dizer que era maquinista. Como o nome constava na lista, a resposta era que não havia emprego. Outro motivo para a escolha é que eu tinha parentes em São Paulo. Inicialmente fui trabalhar em um estacionamento, lavando carros. Não sabia dirigir, depois aprendi. Na Marinha aproveitei muito bem o tempo para estudar. Fiz um curso de técnico em contabilidade em um colégio particular graças a uma bolsa de estudos que ganhei. Quando não estava embarcado, ficava na casa de um parente que morava no Rio. Essa família foi muito importate para mim, pois eu tinha onde ir quando saía do navio. Muitos colegas, por não ter onde ir, ficavam a bordo ou iam morar a 40 ou 50 quilômetros de distância. Graças a essa família pude concluir o curso de contabilidade, embora eu tenha adquirido apenas um pouco de teoria. Meus cursos todos, inclusive o de economia, que fiz na PUC, foram mal feitos. Não por culpa das instituições ou dos professores, mas porque eu não tinha base. Reconheço que eu não tinha onhecimento nem método de estudo. Estudei em escola rural. Até hoje sinto falta de conhecimentos gerais e de uma porão de coisa.
ZONA SUL – Você estudou mais por força de vontade...
CORTEZ – A idade boa para eu ter aprendido era 8, 10, 12 ou 15 anos. Minhas filhas tiveram essa oportunidade. Eu não tive. Essa lacuna existe na minha vida ainda hoje.
ZONA SUL – Em São Paulo você começou lavando carros...
CORTEZ – Sim, e eu morava no próprio estacionamento, em uma casinha de madeira. Não gastava nada. Andava de tamanco, chinelo e calção. Fiquei dois anos nesse trabalho. Em frente ao estacionamento tinha um cursinho de alunos da USP. Ganhei uma bolsa para estudar à noite. Com isso passei no vestibular da PUC de São Paulo. Cursei economia a partir do ano de 1966. A partir daí a minha vida começou de fato. Mas deixe eu completar uma informação sobre o período da Marinha. Lá fiz algumas viagens e li bastante. Devo à leitura o que sou hoje.
ZONA SUL – Para ajudar a se manter na universidade, você vendeu livros. Como foi?
CORTEZ – Quando entrei na universidade, eu trabalhava no estacionamento. Um dia apareci com a cabeça raspada, devido ao trote, usando um boné. Os colegas pensaram que eu havia sido preso. Quando expliquei que tinha passado no vestibular, ficaram espantados. Um dos clientes do estacionamento disse que um universitário não podia continuar lavando carros. Conseguiu pra mim um emprego no Ceasa, que hoje é Ceagesp, como escriturário. Aluguei uma quitinete e passei a andar de gravata. Só que, o salário desse emprego não era suficiente para pagar as novas despesas. No estacionamento eu praticamente não tinha gastos. Fui morar ao lado de uma editora. Um funcionário de lá vendia livros na PUC. No intervalo das aulas eu sempre ia ao quiosque e ficava lendo aqueles livros. Ele sabia que eu não tinha dinheiro e me emprestava algumas publicações durante o final de semana. Eram livros de econometria e economia internacional, por exemplo. Ele só pedia para eu não amarrotar os livros. Eu devolvia na segunda-feira. Fizemos amizade. Eu dizia a ele os livros que tinham sido indicados na minha sala e nas salas vizinhas. Enfim, eu dava as dicas para ele levar os livros certos para vender. Após cinco ou seis meses, quando precisou ir embora, ele perguntou se eu não queria ficar com aquele ponto. Aceitei. Por aí começou a minha inserção no mercado livreiro. Depois de algum tempo os livros começaram a dar mais dinheiro do que o trabalho de escriturário. Saí do emprego e me dediquei integralmente à venda de livros. A PUC me cedeu um espaçozinho, abri um balcão com quatro ou cinco prateleiras. Comecei a vender pra psicologia, serviço social e educação. Em dois anos, quando já estava bastante conhecido, mandei chamar um primo, um irmão e assim foram vindo pessoas para me ajudar.
ZONA SUL – Naquela época de censura você conseguia alguns livros considerados proibidos.
CORTEZ – Alguns compradores sabiam que eu tinha sido marinheiro e do problema político. Eu não comentava porque poderia ser ouvido por algum órgão de segurança. Tinha medo que dissessem que eu estava fazendo pregações comunistas. A PUC era a universidade mais importante do país com relação às questões políticas. Quando abri esse espaço, as pessoas começaram a me conhecer e aprenderam a confiar em mim. Dessa forma conheci Florestan Fernandes, Paulo Freire, Otaviani e outros intelectuais que combateram a ditadura. Era a época que nasciam os cursos de pós-graduação na PUC. Foi nesse ambiente que consegui alguns livros que não eram vendidos nas livrarias comuns, por causa da censura. Eu trazia sob encomenda pra algumas pessoas.
ZONA SUL – Como você conseguiu dar o passo de livreiro para editor?
CORTEZ – Fui convencido por alguns professores a começar a publicar também. Comecei de uma forma muito artesanal a publicar teses de mestrado e doutorado. A procura por esse tipo de livro começou na PUC, mas depois se espalhou. Como esses alunos-autores eram bem relacionados pelo Brasil afora, a coisa se espalhou. Publiquei trabalhos de vários estados, inclusive do Rio Grande do Norte, como José Willington Germano e Safira Bezerra Ammann. A Cortez passou a publicar teses que traziam um contexto atual. A Cortez é considerada uma editora histórica porque teve a coragem de começar a publicar esses textos que não estavam de acordo com a política educacional da época, a da ditadura. Outras editoras tinham receio. Foi por aí que começou minha inserção no mercado editorial.
ZONA SUL – De lá pra cá são 30 anos...
CORTEZ – Nessa época a empresa se chamava Cortez & Moraes. Durou nove anos. Depois, por questões societárias, nos separaramos. Foi quando comecei sozinho a Cortez. Na época o nome Cortez & Moraes já estava constituído. Meu sócio, Moraes, era colega de classe. Hoje é professor da PUC, se dedicou ao trabalho acadêmico. Quando nos separamos ele ficou com a Moraes e eu comecei a Cortez, do zero, em janeiro de 1980. Por isso estamos comemorando os 30 anos. A Cortez se espalhou pelo Brasil e até para o exterior.
ZONA SUL – A editora teria um best-seller, um livro que se destacaria diante dos demais?
CORTEZ – O primeiro best-seller da Cortez foi “Metodologia do Trabalho Científico”, de Antonio Joaquim Severino. Foi um dos primeiros livros a ser publicado, no final da década de 1960, quando ainda era Cortez & Moraes. Esse livro sofreu várias reformulações no correr desses anos todos e continua sendo o mais vendido da editora. Temos outros livros que já venderam 500 mil ou 800 mil. Temos Paulo Freire, Boaventura de Sousa Santos e muitos outros intelectuais. Começamos há cinco ou seis anos a trabalhar com literatura infanto-juvenil, que tem dado muito prestígio. Já temos quase 200 títulos. Somos uma empresa familiar pequena. Temos condições de publicar entre 70 a 80 títulos por ano. Nosso pessoal é muito bem preparado.
ZONA SUL – A editora foi palco de uma história pitoresca: um assalto.
CORTEZ – Moro ao lado da editora. Em 2004, fui tomar café em casa, às sete horas da noite. Ficaram cinco ou seis pessoas trabalhando. A editora ainda não era separada da livraria. Logo que saí, chegaram três assaltantes perguntando pela minha filha. Disseram que ela não estava. Realmente Mara tinha saído uns dez minutos antes. Só ela sabia abrir o cofre. Eu não sabia, nem vou aprender nunca. Não ligo para essas coisas. Os ladrões tinham informação de tudo. Um subiu e colocou sentadas no corredor todas as pessoas que estavam lá em cima. Dois ficaram embaixo, tentando descobrir como abrir o cofre. Quando chegaram à conclusão de que não tinha ninguém que soubesse abrir o cofre, tentaram abri-lo com um pé de cabra. Não conseguiram. Nesse ínterim, eu cheguei. Quando entrei, me disseram que era um assalto. Os dois assaltantes estavam sentados, armados com revólveres. Eles deixaram a recepcionista continuar atendendo os telefonemas, mas sem dizer nada.
ZONA SUL – Qual sua reação inicial?
CORTEZ - Fiquei espantado, mas sentei ao lado de um dos assaltantes. Ele perguntou se eu sabia abrir o cofre. Respondi que não, que só a minha filha sabia. Tirei o relógio, a carteira e o celular. Ele disse que não queria nada daquilo. Então o rapaz telefonou para o comparsa que estava fora: “Olha, chegou o homem. Ele também não sabe abrir. Acho que não vai dar nada, melhor darmos de pinote.”. Pinote, nunca esqueci essa palavra. Marcaram de se falar novamente em cinco minutos. Perguntei ao assaltante de onde ele era. Respondeu que era da Paraíba. Eu disse que éramos vizinhos. Expliquei a ele que quem trabalha no ramo de livro não tem dinheiro. A gente compra, vende, paga, compra, vende... Não tem grana. Contei que tinha sido lavador de carros, que ralei muito para melhorar minha situação. Ele falou que procurava emprego e não conseguia. O cúmplice ligou de novo e marcaram de se encontrar em cinco minutos. Eu já estava mais sossegado desde que ele tinha falado que não queria nada daquilo. Ele mandou o colega que estava lá em cima se aprontar. Perguntei se ele tinha filhos. Tinha três ou quatro, acho que de 10, 13 e 14 anos. “Se eu der uns livros você leva para os seus filhos?”. Ele disse que sim. Tinham saído os primeiros 19 livros de nossa coleção de literatura infanto-juvenil. O assaltante levou uma sacola cheia de livros. O comparsa lá de cima desceu com os que estavam reféns e nos colocou a todos em uma sala no fundo da livravia. Disse pra só sairmos depois de 10 minutos. Eu disse ao assaltante: “vou dar esses livros a você porque espero que seus filhos não tenham essa desdita, essa sorte horrível que você tem”. Ele agradeceu, pegou a sacola e foi embora.
ZONA SUL – Uma situação incrível.
CORTEZ - Depois de tudo isso, minha interrogação é se ele realmente levou esses livros, se entregou aos filhos... O que aconteceu com esse filho de 14 anos, por exemplo? Será que hoje ele está na universidade? Não sei. Depois que eles foram embora, morremos de dar risada porque não tinha acontecido nada com a gente.
ZONA SUL - Você é uma pessoa que gosta de preservar as raízes, toda semana frequenta um forró.
CORTEZ - Cultivo muito do Nordeste. Ainda carrego coisas da minha vida de menino sertanejo. A publicação do livro com minha história avivou muita coisa. Teresa fez uma pesquisa muito boa, inclusive do ponto de vista social. Nunca deixei de ir ao Nordeste, à minha casa. Nosso sítio está preservado. Na primeira parte do livro “Cortez – A saga de um sonhador”, a socióloga Teresa Sales conta minha história desde o começo até a minha saída da Marinha. Todo o ambiente do sertão está muito bem retratado lá. Sobre o forró, fiquei muito tempo sem ir a um por falta de condições ou por uma série de circunstâncias. Depois que a vida melhorou, passei a frequentar e não tenho mais como abandonar.
ZONA SUL - Fale um pouco mais sobre o livro.
CORTEZ – Ele foi lançado em comemoração aos 30 anos da Cortez Editora. No começo eu não estava muito confortável com a ideia de ter a minha vida publicada nas páginas de um livro e no som e nas imagens de um vídeo, o documentário “O semeador de Livros”, que saiu em março. Esse DVD foi dirigido por Wagner Bezerra e contou com o apoio da Cosern, Petrobras e da PUC. Uma equipe da TV PUC foi até o sertão gravar tudo sobre o meu passado. Está muito bem feito. A TV Cultura e a TV Câmara transmitiram em rede nacional. Voltando ao livro, a Teresa Sales conversou com muitas pessoas lá no sítio e com meus ex-colegas marinheiros. A segunda parte foi escrita pela jornalista Goimar Dantas, que nasceu na maternidade de Santa Cruz, mas morou em Japi. Ela escreveu do dia 4 de janeiro de 1965 até 31 de março de 2010. Toda essa trajetória desde lavador de carros até o editor que sou hoje. O livro está em todas as livrarias, inclusive na nossa.
ZONA SUL – Teve também um livro infantil.
CORTEZ – O título é “Como um rio - A trajetória do menino Cortez”, de Silmara Casadei. A capa retrata o Rio dos Apertados, em Currais Novos. Os 30 anos da Cortez foram comemorados com uma festa belíssima no Tuca (Teatro da Universidade Católica), de São Paulo. Minha única tristeza em tudo isso é que a Potira, minha esposa, faleceu ano passado. Foi ela quem construiu comigo tudo o que nós temos hoje. Felizmente tenho as minhas três filhas: Mara, Márcia e Miriam, que hoje são minhas sócias e estão tocando o barco.
ZONA SUL – Algum projeto para o futuro?
CORTEZ - Sou muito feliz porque vejo o mundo editorial, livreiro e os intelectuais apoiando meus projetos. Até o final do ano pretendo começar um trabalho novo. Pretendo visitar algumas faculdades, escolas e secretarias de educação de prefeituras. Minha intenção é conversar com professores e alunos a respeito da minha trajetória. Quero dividir com as pessoas tudo o que aprendi: contar como saí do cabo da enxada e me transformei em um editor vitorioso.
ZONA SUL - O que lhe faltou ser perguntado que você gostaria de ter respondido?
CORTEZ - Em linhas gerais, é isso. Mais detalhes estão no livro. Procuro ser uma pessoa ética, compreensiva e cônscia dos meus deveres de cidadão, de brasileiro e de nordestino. Quero ser útil pras pessoas, assim como as pessoas têm sido para mim.

2 comentários:

  1. Almir Ribeiro (almir.rib@gmail.com)21 de novembro de 2010 às 11:19

    Meu irmão, li a entrevista com Cortez, realmente sensacional. O ser humano é realmente magnífico, e as suas possibilidades são infinitas, e ele é uma prova disso. Quantos caminhos devem ter cruzado a vida dele. Eu sempre falo para os meus que o caminho para o lado ruim é sempre o mais fácil, muitas vezes mais gostoso e prazeiroso, mas, fazer o certo, agir corretamente, isso sim, é dificílimo, e exige sacrifícios enormes e muita perseverança...
    Acredito que ele tenha cruzado em sua trajetória na Marinha, com meu pai ou pelo menos um tio meu, que faleceu a quase dois anos, que também era maquinista e serviu no mesmo navio.
    É gratificante conhecer uma história como a dele, gostei muito, obrigado por esse momento.

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  2. Fico feliz por você ter gostado dessa entrevista. A história de Cortez é inspiradora e certamente merece ser lida pelo maior número de pessoas que for possível. Um abraço, meu camarada Almir.

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