POR TRÁS DA CIDADE DOS REIS
Francisco Carlos de Souza nasceu
em Areia Branca, em 1959. Ficou na cidade até completar 15 anos. Foi quando
ganhou o mundo através da paixão pela leitura, se mudou para Natal e conquistou
uma cadeira cativa no jornalismo potiguar. Carlão é poeta, é boêmio, é escritor
e até já se arriscou como dramaturgo. Multimídia, atualmente trabalha na
redação da assessoria de comunicação social do Governo do Estado e mantém uma
coluna de literatura na Tribuna do Norte e outra no blog de Tácito Costa, o
Substantivo Plural. Além disso, alinhava - em parceria com o também jornalista
Éverton Dantas – a estrutura de um novo espaço na Internet para falar de livros
e de outros artefatos culturais. Foi com esse irrequieto Carlão de Souza que eu
e Roberto Fontes conversamos, no final da manhã de um sábado, na calçada do Bar
de Zé Reiera. Como não poderia deixar de ser, um dos assuntos principais da
entrevista foi a nova “cria” de Carlão: o livro “Cidade dos Reis”, que procura,
de forma romanceada, traçar um perfil da cidade de Natal através do personagem
Jonas Camarão. Mas vamos deixar Carlão contar a sua história. (robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL – Fale um
pouco sobre os seus pais.
CARLÃO – Sou filho
de seu Aldenor Cândido e de dona Josefa Moura. Meu pai foi marítimo, hoje está
aposentado. Minha mãe, que faleceu há pouco mais de sete meses, foi dona de
casa. Infelizmente ela partiu para outra. Papai mora aqui em Natal. Viemos para
cá em 1975. Nos estabelecemos em Neópolis.
ZONA SUL – Do que
você recorda, antes de trocar Areia Branca por Natal?
CARLÃO – Da vida de
estudante, jogando bola e lendo muito. Gibi, principalmente. Eu gostava muito
de “Tarzan” e de outros gibis antigos.
ZONA SUL – Antigo,
não: “Tarzan”, naquela época, era novo.
CARLÃO – É verdade.
Hoje é que é antigo.
ZONA SUL – Muitos
dos seus colegas compartilhavam esse gosto pela leitura?
CARLÃO – Rapaz, na
minha rua, ninguém. Os colegas gostavam era de jogar bola.
ZONA SUL – Como
surgiu, então, o seu interesse pela leitura?
CARLÃO – Acho que o
gosto pela leitura surgiu devido à minha total inabilidade para jogar futebol.
(risos). Os caras só me deixavam jogar porque eu era o dono da bola. Mesmo
assim, minha posição era a de goleiro. É a profissão mais triste do futebol.
Como eu não tinha muito talento para esse esporte, comecei a colecionar gibis,
e me apaixonei por isso. Quero acrescentar que, ainda na infância, eu gostava
daquelas brincadeiras de rua do nosso tempo: correr, fazer barquinho, pipa...
Adorava essas diversões de menino de interior: fura-chão, bola de gude (que pra
gente era biloca), garrafão...
ZONA SUL – E tô no
poço?
CARLÃO – Aquela
brincadeira de beijar as meninas?
ZONA SUL – Sim.
CARLÃO - Ah, rapaz,
isso era muito difícil. A gente não pegava nem na mão das meninas, era difícil
demais. Naquela época não tinha esse contato com as mulheres. Quando eu era
menino, não existia isso. Quando surgia a oportunidade de ver figurinhas de
mulheres de maiô já era uma coisa fora de série.
ZONA SUL – Nos anos
1970 tinha umas revistas suecas eróticas que circulavam na maior surdina.
CARLÃO – Um cara
que morava próximo à rua da gente foi quem me fez gostar de gibi. Ele já era um
adolescente, tinha uns 18 anos. Seu nome era Paulinho. Ele colecionava gibis,
mas também tinha essas revistas proibidas, e dava acesso para a gente ver. As
primeiras imagens de sexo que tivemos acesso foram através desse contato.
ZONA SUL – Em nome
da moral cristã, durante o auge do regime militar as revistas brasileiras só
podiam mostrar bundas de perfil. Exibir dois seios na mesma fotografia era
proibido: só podia um de cada vez.
CARLÃO – Era? O que
lembro com muita clareza é de umas revistinhas desenhadas por Carlos Zéfiro.
Eram guardadas a sete chaves. Quem tivesse uma revistinha daquelas tinha tudo
na turma, virava o rei.
ZONA SUL - Isso
tudo que você está contando ainda ocorreu nos tempos de Areia Branca?
CARLÃO – Sim. E foi
lá também que comecei a me interessar mais pela leitura. Por incrível que
pareça, comecei a ler pelos livros de Adelaide Carraro, que eram considerados
de sacanagem.
ZONA SUL – Hoje em
dia os escritos de Adelaide Carraro poderiam ser lidos até em conventos...
CARLÃO – É, mas na
época eram um escândalo. Ao intensificar o gosto pela leitura, descobri que
Areia Branca tinha uma boa biblioteca. Lá encontrei a coleção completa da
revista “Seleções”, da Reader's Digest. Hoje a gente sabe que é propaganda
imperialista, de direita, não sei o que. Mas, naquela época, para nós do
interior aquilo representava a abertura para um mundo desconhecido e
maravilhoso. À medida em que você vai lendo, vai querendo mais. Depois de ler a
tranqueira de Adelaide Carraro e esses livrinhos de bolso, descobri Jorge
Amado, que por coincidência também tinha um viés sexual. Mas ler Jorge Amado já
não era só buscar sexo nas palavras ou mera curiosidade infanto-juvenil: esse
escritor baiano abriu as portas para o mundo. De Jorge Amado para Graciliano
Ramos foi um pulo. E para José Lins do Rego, nem se fala. Trilhando esses
passos a pessoa vai alargando loucamente o seu horizonte intelectual. Foi
quando descobri a tia de um amigo meu que morava em Natal, mas passava as
férias em Areia Branca. Na casa da tia dele tinha uma coleção completa dos
livros da Academia Brasileira de Letras. Estava lá, enfeitando a estante da tia
dele. Passei pra dentro: li tudo. Assim virei leitor compulsivo, viciado... O
que não podia comprar, eu lia na biblioteca, emprestado.
ZONA SUL – Por que
você trocou Areia Branca por Natal?
CARLÃO – Por causa
do trabalho do meu pai. Mas, nesse intervalo, passei quatro anos em Macau
porque papai trabalhava em uma salineira, com transporte de sal. Quando
completei 15 anos, estava terminando o primeiro grau. Areia Branca não oferecia
em sua escolas o segundo grau. Como papai queria que a gente tivesse um destino
melhor do que o dele - segundo ele próprio dizia – mudamos todos pra Natal. Vim
para fazer teste na então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, a
ETFRN. Não passei. Na verdade, nunca gostei muito de matemática. Em
compensação, sempre fui louco pela área de humanas. Sem a opção da ETFRN, me
matriculei no Winston Churchill, na Avenida Rio Branco. Fiz lá um segundo grau
maravilhoso. Até essa época a escola pública funcionava. Assim que concluí o
segundo grau, passei no vestibular para Jornalismo da UFRN.
ZONA SUL – Por que
você escolheu o curso de Jornalismo?
CARLÃO – Foi uma
escolha natural de leitor. Tem um fato curioso que eu gostaria de contar.
Quando morava ainda em Areia Branca, eu lia uma revistinha chamada “Peteca”,
editada no Paraná por Alice Ruiz, que foi casada com o poeta Paulo Leminski. Eu
adorava essa revista porque ela trazia uns contozinhos interessantes bem
infanto-juvenis. Havia um concurso de contos, lá: se a pessoa ganhasse, eles
publicavam. Mandei um conto, mas sem nenhuma expectativa. Um ou dois meses
depois recebi uma cartinha com um cheque dentro. (risos)
ZONA SUL – Foi seu
primeiro dinheiro ganho escrevendo.
CARLÃO – Foi. Ao
receber esse cheque, achei que aquele negócio era bom. Pensei: “a pessoa
escreve e ainda ganha dinheiro!”. Com o prêmio, comprei um tênis e uma calça
jeans, que eram sonhos de todos os garotos. Isso ocorreu nos idos de 1974.
ZONA SUL – Você tem
muitos irmãos?
CARLÃO – Tenho um
irmão, que é adotivo, e uma irmã. Claudio é DJ, toca nesses bailes modernos. Eu
não entendo muito bem a profissão dele. (risos). A minha irmã, Sandra, é dona
de casa.
ZONA SUL – Mas você
estava falando que ingressou no curso de Jornalismo.
CARLÃO – Também
escolhi Jornalismo porque achava que escrever dava dinheiro. Doce ilusão.
(risos). Na época que fui fazer vestibular existia a possibilidade de tentar um
curso na área biomédica - eu gostava muito de Biologia - ou até mesmo
Geografia, que eu também gostava muito. Também pensei em cursar História, que
sempre foi uma paixão minha. Cogitei ser professor de História. Mas venceu o
Jornalismo. Na minha sala do Churchill só passamos eu e Dão, que hoje é
advogado em Natal.
ZONA SUL – Então
talvez não proceda seu comentário de que o ensino público ainda funcionava...
CARLÃO – Procede
sim, mas estou me referindo ao resultado apenas da minha sala. (risos)
ZONA SUL – Era um
problema específico...
CARLÃO – Só tinha
fera, por isso só passamos eu e Dão.
ZONA SUL – Você foi
contemporâneo de quem no curso de Jornalismo?
CARLÃO – Quando
cheguei na universidade ainda tinha os velhos Osair Vasconcelos, Sávio
Hacradt... Desses dois me lembro de imediato. Antônio Melo estava saindo.
Albimar Furtado era professor. Minha turma é a de 1979. Estudei com Adriano de
Souza, Moura Neto... Marco Polo ainda estava por lá, mas já quase sendo
jubilado. Hoje ele é fotógrafo. No ano seguinte entraram Josimey Costa, João
Bezerra Júnior... São as pessoas de quem me lembro de imediato. Convivi com
muita gente boa.
ZONA SUL – O curso
de Jornalismo realmente foi útil na sua formação profissional?
CARLÃO – O curso
foi uma abertura de universo intelectual fantástica. Sem ele eu não teria
entrado nesse mundo pelo qual tenho tanto amor – o jornalismo - apesar de ter
sofrido muito em virtude da questão salarial e das muitas dificuldades que um
jornalista tem que enfrentar no exercício de sua profissão. Mas o mundo se
abriu totalmente. A palavra universidade é muito correta: a UFRN abriu o
universo para mim. Foi lá que comecei a ler coisas mais importantes e
profundas. Quando comecei a ouvir falar em Marcuse, Walter Benjamin e Adorno,
as coisas realmente clarearam. Posteriormente, a partir de uma amizade com
Andréa Guaraciaba (que foi professora em Natal) e Carlos Eduardo Lins, fui
fazer mestrado de Comunicação em São Paulo. Fiz dois anos de mestrado, mas não
consegui concluir. Voltei para Natal e fiquei um bom tempo fazendo só
jornalismo.
ZONA SUL – Como foi
esse período em São Paulo?
CARLÃO – Foi de
muita dificuldade e um pouco de fome. Fui com uma bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior). Meu projeto era sobre cooperativa de jornalistas. Essa ideia
vingou por um tempo no Brasil, mas depois morreu. Atrasei um trabalho: era para
entregá-lo em uma determinada data, mas vim passar férias em Natal. E Natal -
você lembra - em 1985 era uma festa. Peguei logo o Festival do Forte, quando
cheguei. Ao invés de eu fazer o trabalho para entregar, fui farrear. Foi uma
irresponsabilidade, não recomendo isso a ninguém. Não entreguei o trabalho e
perdi a oportunidade de continuar o mestrado. Em mestrado você não pode deixar
de entregar trabalho de jeito nenhum. Se você tirar “B”, já se complica. Então
vim embora para Natal e me dediquei de corpo e alma ao jornalismo. É bom
destacar que depois concluí mestrado de Letras na UFRN. Dessa vez não deixei de
entregar os trabalhos nos prazos combinados. (risos)
ZONA SUL – Você
começou no jornalismo antes ou depois desse período em São Paulo?
CARLÃO – Assim que
eu terminei o curso, fui para São Paulo. Durante o curso eu trabalhei como
repórter da falecida “A República” e na revista “RN Econômico”, que também já
encerrou suas atividades. Enquanto estudava tive essa praticazinha. Mas
jornalismo mesmo, de corpo e alma, foi quando voltei de São Paulo e entrei na
Tribuna do Norte pelas mãos de Adriano de Souza. Não saí mais. Fiquei na
Tribuna entrando e saindo. Essa relação de amor ainda existe até hoje: tenho
uma coluna de livros, publicada às quartas-feiras, que me dá muito prazer. Não
me dá dinheiro nenhum, mas muito prazer mesmo.
ZONA SUL –
Infelizmente, sobretudo no Rio Grande do Norte, o jornalismo é muito mais fonte
de prazer do que de dinheiro. Como é a sua relação com o jornalismo?
CARLÃO – Quando
voltei do mestrado, minha relação com o jornalismo passou a ser de
sobrevivência mesmo. Como não tinha outra coisa mais a fazer, fiquei
completamente imerso no jornalismo. Esse entra e sai que eu falei que tive na
Tribuna foi intercalado com períodos que passei nas redações de outras
empresas. Trabalhei na TV Cabugi, no
Diário de Natal e em alguns jornais pequenos... Até passei um tempo em
Brasília. Trabalhei em um jornal horrível de lá. Faz tanto tempo que eu não
lembro o nome. Era um jornal de quinta categoria. O dono fazia especulação
imobiliária, foi para Brasília e botou esse jornal.
ZONA SUL – Como
você foi para Brasília?
CARLÃO – Adriano de
Souza, que tinha ido para o Correio Braziliense, me avisou que havia surgido
uma vaga. Fiz o teste no Correio, mas não fui aprovado. Em seguida encontrei
Rogério Cadengue, que era professor de Jornalismo na UFRN, mas estava morando
em Brasília. Foi ele quem levou a mim e a Moura Neto para esse jornal que
esqueci o nome. Ficamos um ano. Entrei como repórter e depois fui promovido a
assistente de Rogério, que era o editor de economia. Rogério saía para namorar
e eu ficava tomando conta da página dele. (risos) Tive com Cadengue uma relação
de amizade muito boa. Depois de um ano, cansado daquilo e percebendo que as
portas para algo melhor estavam todas fechadas, voltei para Natal. Retornei
para a Tribuna, para a velha rotina daqui e não saí mais. Nem quero sair.
ZONA SUL – Você
recorda algum trabalho jornalístico que o fez sentir orgulho de exercer essa
profissão?
CARLÃO – Fui
repórter durante pouco tempo. Logo passei para a cozinha dos jornais. Na maior
parte da minha vida fui editor. Editei caderno de Cidades muitos anos. O editor
percebe que fez um bom trabalho quando consegue emplacar notícias que
repercutem. Quando a gente coloca na rua uma notícia que repercute é como se
tivesse feito um gol de placa. Nossa função é tratar aquele material bruto que
chegou do repórter e apresentar ao público de uma maneira honesta e correta.
Isso é o que dá um grande prazer nesse trabalho. Também fui editor de Cultura
durante muitos anos. No Diário de Natal fui basicamente editor de Cultura. Foi
uma época de muita felicidade, já que pude trabalhar com um assunto que eu
gosto. Também mantive contato com artistas e intelectuais, de Natal e de fora.
Tudo isso me deu alegria, ao mesmo tempo em que culturalmente me enriqueceu
muito. Mesmo ganhando pouco... Jornalista que ganha muito é uma raridade. É
preciso ter bastante talento e ter estômago para certas coisas. Eu nunca tive,
por isso sempre fiquei à margem. Assumo esse selo de underground. Várias vezes
portas se abriram, mas eu nunca quis participar de esquemas. Deixei a carruagem
ir embora e fiquei. Não me arrependo. Criei meus filhos e tenho uma vida
relativamente confortável. Não tenho conta bancária interessante, mas nunca
faltou nada pra mim. Nunca fui a Paris ou Nova York, mas vejo na televisão.
ZONA SUL – Você
teve uma vida amorosa bem eclética, foi casado mais de duas vezes...
CARLÃO – Fui casado
umas cinco vezes e tenho três filhos, cada um de uma mulher. Alex é jornalista.
Serginho, tentou ser fotógrafo, mas se decepcionou com a questão salarial. Hoje
trabalha no setor imobiliário. Tenho também Constância, a mais jovem jornalista
da cidade: está cursando jornalismo.
CARLÃO – Com
certeza, foram maravilhosos. Sou amigo de todas elas e todas são minhas amigas.
Eventuais mágoas ficaram para trás e hoje a gente vive numa amizade muito boa.
Ainda amo todas as minhas ex-mulheres, mas hoje sou casado com Sônia. Ela é a
minha companheira, é quem segura as minhas barras. Não tenho filhos com Sônia.
Ela é uma psicóloga de Ceará Mirim muito gente boa.
ZONA SUL – Como
você - que dedicou grande parte de sua carreira jornalística à cultura -
explica o fato de que, apesar de a cultura potiguar ser um celeiro de talentos,
poucos desses artistas conseguem projeção nacional?
CARLÃO – Acho um
grande mistério. Talvez ocorra pela beleza da cidade. Natal talvez funcione
como uma espécie de gaiola. As pessoas são muito interessantes, criativas e a
cidade é uma maravilha, apesar de mal tratadíssima. Nosso cenário cultural é
restrito, fica represado no território estadual. Não tem repercussão lá fora,
não é visto lá fora e não há interesse do Brasil em olhar para cá.
ZONA SUL – Parece
que nem o próprio potiguar valoriza a sua arte.
CARLÃO – O potiguar
é muito volúvel e Natal, desde a sua fundação, não tem identidade. É uma cidade
aberta ao mundo. É por isso que Natal, de vez em quando, tem um acesso de
megalomania e se diz a Londres Nordestina, a Nova Amsterdã. Natal tem muita
vontade de ser Nova York, que também é uma cidade sem identidade, cosmopolita,
a capital do mundo. Natal tem essa vontade, mas, coitada...
ZONA SUL – Você
poderia recomendar alguns artistas potiguares que merecem ter seu trabalho
divulgado lá fora?
CARLÃO – Temos uma
cantora extraordinária, Khrystal, e compositores como Antônio Ronaldo, por
exemplo. Temos pintores como Dorian Gray Caldas. Outro dia vi uma matéria na
Globonews na qual um pintor famoso dizia que Dorian é um dos grandes nomes
nacionais. Mas pouca gente conhece. Temos João Marcelino, no teatro, um homem
do palco. Temos também Sebastião Vicente, que escreve peças de teatro. Pouca
gente sabe, mas ele é um dramaturgo premiado nacionalmente. Temos Nei Leandro
de Castro, que é sensacional... Ele não gosta que eu diga isso, mas vou
repetir: Nei Leandro é um escritor genuinamente potiguar. Entendo que ele
gostaria que eu dissesse: “Nei é um escritor internacional”. Prefiro afirmar
que, como potiguar genuíno, ele canta muito bem a sua aldeia. Dessa forma, ele
é universal. O livro “As Pelejas de Ojuara” pode ser lido em qualquer lugar do
mundo! Esses são alguns dos nomes que me vem a memória imediatamente. Existe
uma cultura, mas há também uma má vontade local e brasileira. Como não olham
para nós, a gente vai vivendo assim, meio vagabundo. Cachorro magro pegando
migalhas pelos cantos.
ZONA SUL – Por
falar em cachorro magro, como surgiu a oportunidade de ingressar na literatura?
CARLÃO – O primeiro
livro que lancei foi “Crônica da Banalidade”, escrito no período do auge do meu
envolvimento com o jornalismo e com a boemia. Isso foi em 1982, 1983. A boemia,
que nunca se afastou da minha vida, é uma faceta da minha personalidade que eu
não tenho vergonha de explicitar. Na minha vida adulta, sempre fui boêmio. E o
livro nasceu dessa vida boêmia, dessa vida de jornalista, da leitura dos
beatnicks, aqueles caras americanos doidões. Por incrível que pareça, o estalo
de que eu poderia escrever surgiu quando li Alex Nascimento. “Eu também sei
fazer isso”, foi o que pensei. Então fiz essa novelinha, que na época teve uma
aceitação muito boa em Natal. Ainda hoje tem gente que pega o livro e se
encanta. A pessoa que mais gostou do meu livro foi o falecido poeta Miguel
Cirilo. Ele era um entusiasta dessa publicação. Foi o potiguar que mais
compreendeu esse livro que escrevi na juventude. É um livro fininho, sem
grandes pretensões, mas tá lá. Tá feito.
ZONA SUL – “Crônica
da Banalidade” trata do que?
CARLÃO – É uma
história de boemia, de vida fracassada. É a história de um músico. O livro não
é localizado em lugar nenhum: os personagens não têm nome e o lugar também não.
Mas, pelas dicas que eu dou, dá para perceber que é Natal. É um cara que toca
em orquestra, mas, para ganhar a vida, vai se apresentar em churrascaria.
Imagine o sofrimento desse ser humano. O livro conta essa história de miséria,
de fracasso, que é um pouco a história de muitos dos nossos artistas.
ZONA SUL – Qual
livro veio em seguida?
CARLÃO - Uns dez anos depois, me deu um frenesi, um
comichão: eu precisava dizer alguma coisa. Como não sei pintar, nem sei fazer
outra coisa, o único jeito foi usar a palavra. Cometi a asneira de me comunicar
através da poesia. A poesia não é para todos. O acesso a ela é só para
gigantes. Não é todo mundo que consegue se expressar por poesia. As pessoas
acham que basta enfileirar versos, uns em cima de outros, para se tornar um
poeta. Poeta é Dante, são os grandes. Mas inventei de me expressar através
desse gênero literário e fiz um livro que é mais prosa do que poesia. Hoje em
dia a gente já consegue enquadrá-lo como prosa poética. O livro é chamado
“Cachorro Magro”. É como se eu quisesse retratar a alma miserável da nossa
cidade, do povo potiguar. Esse povo que quer ser grande e acaba sendo pequeno
demais, cachorro demais.
ZONA SUL – Como o
livro foi recebido pelas pessoas?
CARLÃO – Uma parte
acha que o livro é muito importante, mas a maioria considera que ele é execrável,
não tem valor nenhum. Como Natal sofre da maldição de não consagrar nem
desconsagrar ninguém, eu nem ligo! Os que gostam, que tirem bom proveito; e os
que não gostam, que joguem fora. Outro dia uma amiga estava andando na rua e
encontrou um exemplar de “Cachorro Magro” na lata do lixo. Ela pegou e guardou.
O livro serviu pra ela, mas não para a pessoa que jogou fora.
ZONA SUL – O que
veio depois do “Cachorro Magro?
CARLÃO – Tentei
escrever uma peça teatral. Sempre fui apaixonado por teatro, mas não entendo da
carpintaria de palco. Não sou um homem de teatro, sou um leitor de teatro.
Tenho na minha estante muitas obras de teatro. Quando quero me divertir, leio
teatro. A minha vivência de teatro é literária, não é como espectador. Como
sempre gosto de enfrentar desafios, escrevi uma pecinha de teatro chamada “É
Tudo Fogo de Palha”. A peça conta os primórdios do teatro em Natal. Eles eram
feitos de palha. Todos terminaram queimados. No centro da cidade, aqui na
Gonçalves Ledo, tinha um. O livro não teve repercussão nenhuma, a peça sequer
foi montada. Mas estou pouco me lixando. O importante é que o livro é um
registro da história do nosso teatro. É mais um presente que eu dou para essa
cidade que eu amo demais. Natal é a cidade que me adotou e que me deu nome,
filhos e os netos Helena, Vinicius e Ulisses. Escolhi Natal para viver e vou
morrer aqui. Quando a cidade completou 400 anos, resolvi escrever a biografia
de Natal. Assim saiu esse livro que lancei agora, “Cidade dos Reis”. É a
história de Natal, mas eu empurrei a historinha de um natalense dentro dela:
Jonas Camarão. É uma história romanceada. Está aí para análise dos leitores.
CARLÃO – Em março.
Houve uma sessão de autógrafos no Palácio da Cultura e outra no “Sebo
Vermelho”, em Abimael. A governadora Rosalba Ciarlini escreveu a apresentação
do livro. O lançamento foi em um dia atípico: choveu muito em Natal. E, quando
chove, o natalense prefere não sair de casa. Foi editado pela Fundação José
Augusto. É o segundo livro meu editado pela Fundação. O primeiro foi “Crônica
da Banalidade”, editado pela Fundação José Augusto em parceria com a Clima, do saudoso Carlos Lima. Os
outros dois: “É Tudo Fogo de Palha” e “Cachorro Magro” foram editados por
Abimael Silva, do Sebo Vermelho.
ZONA SUL – “Cidade
dos Reis” demorou para ser escrito?
CARLÃO – Esse livro
rodou um pouco por aí... Ele já tem mais de dez anos de feitura e de refeitura.
Não saiu antes porque eu nunca tinha encontrado patrocinadores. Ele foi
aprovado na Lei Câmara Cascudo. Botei o último ponto em 2003. Reescrevi várias
vezes. Eu dava para ler e as pessoas encontravam defeitos e eu ia mudando.
Inclusive, agora, depois de publicado, encontraram um defeito nele. Um dia, se
eu puder reeditar, eu tiro esse erro. (risos).
ZONA SUL – Na
orelha do livro consta que “Jonas Camarão é o antípoda do seu ancestral Filipe
Camarão. Sempre pronto a sacrificar os mais básicos valores morais pelo seu bem
estar financeiro”. Você estava com uma bola de cristal? Hoje vivemos uma época
de grandes escândalos onde são comuns esses “antípodas morais” que fazem
qualquer negócio para ganhar dinheiro.
CARLÃO – É verdade.
O ponto de partida do romance, como falei, é a história da cidade. É uma
tentativa de traçar um perfil mais ou menos psicológico do povo potiguar e como
ele reage. Um povo heroico, mas governado por algumas pessoas desprovidas de
princípios morais. Não são todos, mas alguns homens com poder de decisão - da
classe política e econômica – têm alguns desvios. Repito: não são todos, mas há
uma parcela podre. Jonas Camarão é um retrato disso, um cara que descende de um
herói potiguar. Filipe Camarão também não foi um cara corretíssimo, ele teve lá
seus interesses econômicos. Mas lutou na época das invasões holandesas, e por isso
não deixa de ser considerado um herói. O personagem do livro é um anti-herói,
que busca o caminho da corrupção e do mal.
ZONA SUL – Por
falar na família Camarão, Diógenes da Cunha Lima está trabalhando para que
durante a Copa do Mundo no Brasil seja apresentado um balé de sua autoria
contando a história de Clara Camarão.
CARLÃO – Eu acho
legal. No meu livro, Clara Camarão é uma heroína. Ela combate os holandeses.
ZONA SUL – Você
ficou rico com os livros que lançou?
CARLÃO – (risos)
Nossa! Em Natal quando você vende 100 exemplares já é um best-seller. A cidade
tem quase um milhão de habitantes, por aí você tira. Então, ou o autor se
diverte com isso ou enlouquece, vira um sujeito amargo e não vive mais. A
pessoa também tem que aprender a rir de si mesma.
ZONA SUL – Partindo
da premissa de que seu livro é um best-seller, ou seja, vendeu 100 exemplares,
como o seu futuro 101º leitor deve proceder para adquirir “Cidade dos Reis”?
CARLÃO – Ou ele vai
na banca do Nordestão, na Avenida Engenheiro Roberto Freire, ou arrisca ir no
Sebo Vermelho. Se ele encontrar aberto... (risos). É mais aconselhável ir no
começo da semana.
ZONA SUL – Não é
possível encontrar o livro à venda na Internet? Você não o comercializa no seu
blog?
CARLÃO – Ainda não
aprendi essa ferramenta de vender pela Internet. Vou consultar meus gênios da
computação, meus amigos que entendem desse negócio, para agilizar isso. A ideia
é muito boa, obrigado. Não tinha pensado nessa alternativa.
ZONA SUL – Fale um
pouco sobre o seu blog.
CARLÃO – Para não enferrujar,
criei um blog chamado “Feriasnoinferno's Blog”. O endereço é http://feriasnoinferno.wordpress.com/
Se pesquisar “Férias no Inferno” no tio Google, ele vai apresentar meu blog
logo na cabeça, entre os resultados. Comecei esse blog para exorcizar meus
demônios, por isso o nome é esse. No início eu estava bastante zangado, por
isso as notas estão bem agressivas. As primeiras são bem violentas. A minha
base é Rimbaud. Comecei imitando o rancor dele pela humanidade, aquela falta de
paciência com os seres humanos. Mas depois tive a ideia de escrever romances,
lá. Já que estava com preguiça de botar as notinhas, passei a escrever um
romance que não tem título ainda, é provisório. Está lá, é um folhetim. Não sei
ainda o que diabo vou fazer com esse romance. É um cangaço tecnológico. Conto a
história de um cangaceiro moderno no sertão potiguar. Só que o local não é
fixado. É um sertão imaginário.
ZONA SUL – Você
também é colunista do Substantivo Plural, de Tácito Costa. (www.substantivoplural.com.br)
CARLÃO – Eu já
participei mais, mas me cansei daquelas discussões. Tácito é um sujeito muito
bom, mas, sinceramente, eu não tenho muita paciência para aquelas discussões.
Aqui e acolá eu boto um artigo que acho interessante, algumas coisas que estou
lendo ou um filme que vi. Mas sem grandes compromissos.
ZONA SUL – E a sua
coluna na Tribuna do Norte?
CARLÃO – Ela se
chama “Toque - Livros e Cultura”. Essa coluna é uma coisa que eu levo à sério.
Há três anos escrevo para essa coluna toda semana. Recebo livros das editoras,
seleciono o que acho que vale a pena e comento. Não faço crítica literária na
acepção da palavra, mas escrevo pequenas resenhas. Comento se o livro oferece
algum prazer, se vale a pena ler...
ZONA SUL – De cada
dez livros que você recebe, quantos viram uma resenha?
CARLÃO – Três. Os
outros não passam no filtro. Estou até pensando em dar um caminho a esses
livros que não passam na peneira. Estou criando um novo blog, em parceria com
Everton Dantas, que vai ser a extensão da minha coluna. O que não passar lá,
vai tudo pro blog. Aí vou botar lá best-seller, livro de autoajuda... A
tranqueira que as editoras mandarem eu solto lá. Lê quem quiser.
ZONA SUL – Everton
Dantas é um dos melhores profissionais dessa nova geração da imprensa potiguar.
Muito competente.
CARLÃO – É um cara
bom, novo, inteligente e escreve bem pra caramba. Pergunte mais.
ZONA SUL – Você tem
consciência de que seu blog têm condições de ser muito mais lido do que a sua
coluna no jornal? Como você encara esse jornalismo do futuro que estamos
vivendo com a difusão da internet?
CARLÃO – A web é um
campo aberto, disponível para ser explorado. Hoje estamos nos acostumando a
ver, de época em época, alguns fenômenos midiáticos ocupando os comentários.
Com o meu blog seria mais difícil acontecer, já que nele trato de coisas sérias
e o povão não gosta disso. Eu dou importância à Internet, mas tenho os pés no
chão. Porém, não deixo de reconhecer que as possibilidades são muitas.
Recentemente, nesse blog, comentei aquele filme sobre as chacretes (Alô, Alô
Terezinha). No dia seguinte recebi um e-mail do cineasta agradecendo. Como em
outras épocas você, morando em Natal, teria um feedback desses? Essas
ferramentas modernas dão um retorno interessante para o nosso trabalho.
ZONA SUL – Vamos
transformar essa entrevista em um serviço de utilidade pública. Sugira uns
livros, filmes e peças para o leitor.
CARLÃO – Eu tenho
que pensar... Livro: todo mundo tem que ler, mas tem que ler mesmo, “Grande
Sertão, Veredas”...
ZONA SUL – A gente
podia fazer assim: você sugere um potiguar e os outros dois seguindo qualquer
critério.
CARLÃO – Combinado.
“Grande Sertão, Veredas” e “Vidas Secas”. O potiguar seria “As Pelejas de
Ojuara”, que é tão universal quanto esses dois que citei anteriormente. O que
mais você quer?
ZONA SUL – Filmes.
CARLÃO – O potiguar
é “Boi de Prata”, do diretor Augusto Ribeiro Júnior. Esse é o primeiro filme
considerado genuinamente potiguar. A trilha sonora é de Mirabô Dantas. Os
outros que eu sugiro assistir são “Cidadão Kane” e “Deus e o Diabo na Terra do
Sol”. Quanto à música, eu citaria Mozart, Paulinho da Viola e Mirabô Dantas.
ZONA SUL – Artes
plásticas.
CARLÃO – Aí é mais
difícil, porque eu não entendo bem. Mas vamos escolher Picasso, Di Cavalcanti e
Marcelus Bob.
ZONA SUL – Teatro.
CARLÃO –
Shakespeare, Antunes Filho e João Marcelino.
ZONA SUL – Você
concorda que o maior intelectual potiguar é mesmo Câmara Cascudo?
CARLÃO – O grande
nome potiguar, o homem que extrapolou as nossas fronteiras foi Câmara Cascudo,
apesar de se considerar um provinciano incurável. Ele foi o nosso único grande
nome universal. Cascudo era de outra época, era um iluminista, um homem do
século XVIII. Realmente ele é universal, não há o que questionar. Apesar de
tudo isso, ele era um cara simples, mesmo ressaltando que, naquela época, Natal
era uma província do tamanho de Areia Branca.
ZONA SUL – Para
encerrar, deixe um recado para o leitor do Zona Sul e responda o que porventura
não lhe foi perguntado.
CARLÃO – O papo foi
muito legal. Para quem chegar até aqui nessa entrevista, a minha recomendação é
muito simples: leia muito, leia tudo o que chegar às mãos. Não importa se é uma
bula de remédio ou esse jornal. Leia tudo, leia na internet, onde for. O
caminho é ler. Ler é conhecimento. Se você tem conhecimento, tem tudo. A
Internet facilitou o acesso à informação. Pena que muita gente use essa
ferramenta para conversar besteira o dia todinho. Se quiser usar para obter
conhecimento, é a melhor ferramenta que existe.
Mais uma vez, o "Zona Sul" dá um show de entrevista. Para o "Carlão", um recado, da turma de 1979, da Faculdade de Jornalismo, uma boa parte continua no meio... Só para dar uma lembrada, da turma dele: Madson Fernandes, Carlos Meireles, Valdir Julião, esse amigo ai que escreve, Luiz Antonio Felipe...
ResponderExcluirValeu Muito boa entrevista.
ResponderExcluirEu sou fã incondicional da obra de Carlao
Thiago Gonzaga
Carlão é meu herói.
ResponderExcluirFiquei até imaginando Carlão falando essas coisas todas. Mto boa a entrevista, parece que estamos em uma mesa de bar. Boas reflexões sobre o jornalismo atual. E ainda aprendi facetas da vida dele q eu não sabia.
ResponderExcluirAbs,Rejane Medeiros