quarta-feira, 26 de maio de 2010

Entrevista: Aécio Emerenciano

OS CAJUS, OS PEIXES E A VIDA DE AÉCIO DE MURIÚ

Em qual outro lugar, a não ser Muriú, o Zona Sul poderia agendar essa entrevista com o artista plástico Aécio Emerenciano? Do primeiro andar do seu bangalô localizado na beira da praia Aécio observa o movimento das ondas do mar todas as manhãs. É a fonte de onde ele tira sua juventude. Lá ele sonha com os cajueiros floridos e cheios de frutos que povoam sua obra. Também é lá que ele pesca os peixes exuberantes e fantásticos que habitam seus murais e telas. A conversa com Aécio se deu no alpendre da casa de Aderson Neto, na rua da igreja. Sérgio Almeida, irmão de Aderson e sobrinho de Yeda, a mulher de Aécio, dividiu comigo a tarefa de perguntar. Sérgio é participante ativo das transmissões do Zona Sul pela internet, através do site www.myspace.com/robertohomem/. Meu filho Gabriel Siqueira fez as fotos. Todas as entrevistas do Zona Sul, desde 2003, estão disponíveis no http://www.zonasulnatal.blogspot.com/ Feita a propaganda, vamos ver o que Aécio tem para nos contar... (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – Aécio Emerenciano...

AÉCIO – Aécio Augusto Emerenciano. Esse nome romano, Aécio Augusto, foi papai quem colocou. Mas nem em casa me chamavam por Aécio Augusto. Umas tias, irmãs de papai, me tratavam por Aécio Gu ou Aécio Gugu. A mãe de Maria Elisa, Dona Amália, que fazia parte do nosso grupo e tomava conta da gente, era a única pessoa que me chamava de Aécio Augusto. Ela tinha filhos chamados Carlos Aluizio e Artur Eduardo. Maria Elisa é casada com Kléber Bezerra. Fui mutilando e deixei mutilar esse nome com o passar do tempo, embora eu continue usando Aécio Augusto para assinar cheques. No livro-álbum que prepararam para mim, Nei Leandro de Castro colocou “A natureza viva de Aécio Emerenciano”. Mas Dorian Gray, que assinou a apresentação, me chamou de Aécio Augusto Emerenciano. Eu prefiro Aécio Emerenciano.

ZONA SUL – Onde você nasceu?

AÉCIOEm Ceará Mirim, mas sou mocho (desprovido de chifres, segundo o dicionário Houaiss). Tenho que responder dessa forma, porque o povo costuma falar que quem nasce em Ceará Mirim é corno. Dizem que Ceará Mirim é terra de corno, mas quem nasceu lá tem raiva dessa brincadeira.

ZONA SUL – Até quando você morou em Ceará Mirim?

AÉCIO – Até 1939. Eu tinha quatro anos, na época. Sou de 1935, mas as nativas aqui de Muriú acreditam que tenho 59. Eu fico muito entusiasmado e divulgo. Sou bisavô, mas não digo a ninguém, embora os bisnetos sejam uma doçura. A menina, então, é a renovação da minha vida. Mas eu não digo. O cabelo era branco, branco. Há um ano meu filho Kabeto chegou lá em casa e Yeda, minha mulher, pediu para eu pintar na tonalidade branca como a dele. Eu pintei e gostei. Mas, como eu dizia, tenho recordações de Ceará Mirim dos anos de 1938 e 39. Em 1940 papai foi dirigir os trabalhos do recenseamento na região Oeste. Então, fomos morar em Mossoró.

ZONA SUL – Que recordações são essas de Ceará Mirim?

AÉCIO – Lembro, por exemplo, da descoberta do cinema. O pai de Zé Doido tinha um cinema. Eu tinha uns três anos e, por isso - e também por ser filho de José Emerenciano, o promotor de justiça - não pagava. Quando vi cinema pela primeira vez, fiquei assombrado. Era um seriado, não recordo qual. O filme era projetado em uma parede. Tinha um local só pra isso.

ZONA SUL – As pessoas tinham medo dessa novidade?

AÉCIO – Nesse tempo já estava tudo civilizado, o povo já não tinha mais medo do cinema. Isso foi em 1938 ou 39.

ZONA SUL – Na primeira exibição em Natal, em um armazém lá na Ribeira, as pessoas se sentaram de frente para o projetor e de costas para a parede na qual o filme seria exibido. Mais tarde, quando surgiu a cena de um trem vindo em direção dos espectadores, todos eles saíram correndo, com medo daquela locomotiva desembestada.

AÉCIO – Deve ter muito folclore nessa história.

ZONA SUL – Esse episódio está contado no livro “Dos bondes ao Hippie Drive-in”, de Carlos e Fred Sizenando.

AÉCIO – Esse título é muito bom. Eu comprei o livro, mas ainda não tive tempo de ler.

ZONA SUL – Além do cinema, o que mais os tempos em Ceará Mirim deixaram gravados na sua memória?

AÉCIO – Lembro que eu achava o máximo chupar cana-de-açúcar. Mandavam a cana lá pra casa. A gente também não comprava açúcar, pois todo o pessoal que produzia era amigo de papai. Aqui e acolá aparecia um saco do açúcar do bom, que era o branco. O outro vinha também, em pedras. Comecei a me incentivar e a querer descascar cana, mas não permitiram, pois eu tinha apenas quatro anos. Também me lembro da beleza do Vale. O trem foi outra surpresa. Tinha uma automotriz que ligava Ceará Mirim à Natal quatro ou cinco vezes por dia. Ia todo mundo a Natal e voltava.

ZONA SUL – Quais suas recordações mais antigas de Muriú?

AÉCIO – Tenho até fotos de mamãe com um irmão meu, Montaninho, no braço e eu segurando na saia dela. O nome dele era Montano Emerenciano Neto. Ele morreu aos dois anos, de pielite (Aurélio: inflamação de pelve renal em cujo quadro clínico figuram febre, dor e sensibilidade lombares, eliminação de sangue ou pus pela urina, alterações digestivas, dor causada pela flexão de coxa), ou coisa parecida. Mas em Ceará Mirim frequentei, vamos dizer assim, o maternal e depois fiz um primeiro ano não sei o que. Não era nada ainda de aprender muita coisa: apenas conhecer as letras e os números. Eu tinha um pedaço de lápis pra riscar. Desenhar me fascinava. Mamãe foi estudar também lá, à tarde, para aprender a pintar, a fazer monogromas de pássaros em lençóis e toalhas. Eu ficava olhando. Minha grande influência em pintura foi aí. Eu queria pintar e não deixavam, pois eu ia melar tudo.

ZONA SUL – E em Mossoró?

AÉCIO – No Ceará Mirim estudei no Santa Águeda, em Mossoró tive uma professora particular em um colégio que não lembro direito. Eu não me entusiasmava muito com essas aulas. Eu me fascinava com o cinema. Em frente à nossa casa tinha a praça e um hotel onde funcionava o cinema. A gente não ia muito à noite porque os filmes eram mais censurados e também porque não deixavam a gente sair. Às vezes íamos escondido. Eu tinha cinco anos. Guardo alguma coisa ainda. Filme colorido nem se ouvia falar ainda. A gente pedia um pedacinho de celulóide pra guardar como recordação. Passamos um ano em Mossoró. Fomos a Martins, nas férias. Era a terra de mamãe. No fim do ano fomos a Tibau, pra casa de Mário Negócio, que era amigo de papai. Lembro que a surpresa foi papai comprar uma bola e trazer pra gente levar. A bola era maior do que eu!

ZONA SUL – Quer dizer que sua experiência em Mossoró foi de apenas um ano...

AÉCIO – Sim, em 1941 voltamos para Ceará Mirim. Ficamos esse ano lá até papai ser nomeado diretor do Departamento Estadual de Estatística. Foi quando mudamos para Natal. Ele alugou uma casa na Rua Vigário Bartolomeu. Ficamos ali perto de Severino Bezerra, de Jairo Procópio e de uma porção de gente conhecida. Tinha um homem que cortava cabelo e mamãe ia sempre lá para botar o cabelo embrulhadinho. Tinha uma ótica e uma relojoaria também.

ZONA SUL – Você se empolgou com Natal ou sentiu saudade de Ceará Mirim e Mossoró?

AÉCIO – Me empolguei. Papai alugou uma casa pra gente passar o verão na Redinha. Atravessamos o Rio Potengi de bote. A casa não era na costa, mas era bem perto. Depois de muitos anos, papai comprou uma casa boa, de cimento, no Maruim. Era bem ajeitadinha, tinha cacimba. As outras casas só tinham cacimba para o gasto, essa tinha para armazenar água de beber também. O burro que trazia a água de beber era um, e a de gasto era outro. Lembro do Redinha Clube, que foi onde aprendi a dançar bolero. Quem me ensinou foi Geíza, que foi casada com André Gato. André Gato morreu agora, André Cavalcanti. Ela era mais velha do que eu um ano, mas eu achava Geíza a coisa mais linda do mundo.

ZONA SUL – Você era muito namorador?

AÉCIO – Eu tinha muitas fantasias de namoro, mas não tinha namoro. Eu namorava com umas duas ou três, mas elas não sabiam. (risos). Durante a II Guerra, papai foi indicado por Juvenal Lamartine - com o apoio do secretário de Segurança, o general Fernandes Dantas - para ser diretor de Ordem Política e Social. Papai era bacharel em Direito e valorizava a ordem. Ele não era muito avançado para a época.

ZONA SUL – A guerra interferiu de alguma maneira na sua vida?

AÉCIO – Sim, principalmente por causa do blecaute. Nós tínhamos mudado para a Floriano Peixoto. De lá a gente saía para a Rio Branco e via tudo pintado de branco. À noite tocava aquela sirene ôôônnnnnnn... Na pracinha tinha um abrigo anti-aéreo. Tinham outros na cidade, para proteção contra possíveis bombardeios. Depois da Floriano Peixoto mudamos para a Coronel Cascudo. Ainda não existia o cinema Rio Grande. A casa era perto do Marista. Estudei lá e também no Sete de Setembro e no Colégio Pedro II.

ZONA SUL – A guerra provocava mais medo ou curiosidade?

AÉCIO – O sentimento era de aventura. Medo não tinha nenhum. A gente costumava andar de bonde elétrico. Sábato Barbosa morava na Ribeira. Ele gostava de pegar o bonde perto de sua casa, para descer na parada seguinte. Seus pais ficavam danados. Eles vendiam perfumes e essências na Rua Frei Miguelinho. Pra Sábato não fugir mais, tiravam sua roupa. Mas não adiantava: quando o bonde passava de novo, ele embarcava nu. Só deixou de fazer isso quando passaram a amarrá-lo. (risos).

ZONA SUL – Nessa época já estavam deixando você mexer com tinta, com lápis? Você já estava começando a pintar?

AÉCIO – No Marista o aluno tinha aquele material escolar, aqueles lápis, tintas... Eu mexia naquelas coisas. Também em casa, quando faziam uma reforma, que preparavam o cimento, eu botava uma tinta, coisa assim. Papai dizia: “deixa Aécio pintar a bicicleta, deixa ele pintar esse negócio”. Eu tinha gosto por pintar, mas não tinha nenhuma vocação ainda para criar. O Sete de Setembro ficava a três quarteirões lá de casa. Eu ia de bicicleta. A gente arrodeava o quarteirão com as irmãs pequenas. Uma vez bati com Regina e ela cortou a cabeça. Ela tinha uma franja. Coloquei a franja por cima do ferimento, para disfarçar. No outro dia a casca estava colada no cabelo. Levei uma pisa. No Sete de Setembro tinha um professor de desenho bom. Comecei a tirar notas boas em desenho e a fazer as provas de alguns amigos, para ajudá-los. Eles me ajudavam em outras disciplinas. Em 1950 terminei o ginásio. Lá não tinha científico, fui para o Atheneu. Lá fui aluno do professor Chianca. Esse sabia das coisas. Comecei a pintar por causa dele. Continuei fazendo as provas de desenho dos outros. Eu só tirava dez ou nove. Nas outras matérias a turma me ajudava. Terminamos o Atheneu em 1953. Foi a última turma a se formar no prédio da Ribeira.

ZONA SULNei Leandro de Castro também foi aluno do Atheneu.

AÉCIO – Ele é bem mais novo. Quando Nei lançou “Zona erógena”, pediu para eu entregar o livro a Sanderson Negreiros. Sanderson não queria ver porque achava uma imoralidade. Newton Navarro não dizia nada. Apesar de bem mais novo, Nei Leandro deu uma educação sexual da maior categoria à nossa geração. Mas o pessoal era atravessado com ele. “Zona erógena” foi pra lascar.

ZONA SUL – De qual forma o professor Chianca motivou você em direção à pintura?

AÉCIO – Ele tinha gosto pelo desenho, pelas cores e as formas. Outro professor que me influenciou foi o doutor Monte, que ensinava botânica. Era o médico otorrino que tratava da gente. Papai era amigo dele. Quando fui para Maceió...

ZONA SUL – Como se deu essa mudança pra Maceió?

AÉCIO – Eu queria fazer medicina, em Recife, mas papai insistiu para eu fazer direito. Ele trouxe Amaro Marinho, que era mais velho do que eu e já estudava em Maceió. Amaro contou maravilhas da cidade. Fomos 15 de Natal, que não tinha faculdade de direito, estudar em Maceió. Eu levei uma carta de apresentação para Mário Hélio, que já era pintor. Seu ateliê era em casa. Eu perguntava as coisas e ele mostrava. Um dia ele disse que queria me pintar. Esse trabalho está no livro “A natureza viva de Aécio Emerenciano”. Mário Hélio disse que eu comprasse o material e levasse pra lá. Também sugeriu que eu comprasse telas, pincéis e pasta para eu começar a riscar e a pintar. Posei para Mário Hélio me pintar, mas fiz uma interferência grande no trabalho. Eu reclamei que minha boca não era daquele jeito. Ele tinha pintando uma linha picassiana, desenhado minha boca meio torta. Mário Hélio ajeitou com uma raiva maior do mundo!

ZONA SUL – Dessa época saíram seus primeiros quadros?

AÉCIO – Quando fiz as primeiras telas, entreguei uma pra ele ver. Mário Hélio disse: “isso aqui é Miró”. Quem diabo era Miró? Eu pensei que era irmão de Biró, das Rocas. (risos) Fui pesquisar e descobri que Joan Miró era um escultor e pintor surrealista catalão. Quatro anos depois, já influenciado por Chianca e por Mário Hélio, comecei a pintar umas coisas já com certa ordem. Veríssimo de Melo soube e pediu pra olhar. Quando ele viu, disse: “rapaz, isso é Mondrian”. Eu fiquei assim: Mondrian... Fui ver Mondrian, o pintor holandês modernista. Newton Navarro também ia muito lá em casa dar umas dicas.

ZONA SUL – Quando comparavam seu trabalho com o de artistas consagrados você não sentia necessidade de estudar formalmente as artes plásticas?

AÉCIO – Senti demais, mas não tinha como, faltava tempo. Antes de ir para Maceió, casei com Yêda. Quando concluí o curso de direito, fui nomeado promotor na comarca de Ceará Mirim, devido a influência do meu pai. Ele ganhava 12 mil e o meu salário era 11 mil. Antes a minha mesada era de 50 por semana. O ordenado equivalia a um pouco menos do que eu recebo hoje. Era dinheiro muito. O problema desse emprego eram as audiências. Eu achava um inferno. Júri era fogo. Mesmo como promotor de justiça, em duas ocasiões eu pedi a absolvição de acusados. Pouca gente acredita nisso. Mas o fato é que eu não encontrei nada contra eles.

ZONA SUL – Esse trabalho o impediu de pintar?

AÉCIO – Não. Mas a pintura ganhou maior força na minha vida quando retornei à Muriú. Em cada veraneio eu pintava um mural. Desenhava um polvo, colocava um peixe e não sei mais o que. Na casa que era do meu sogro, Aderson Eloy de Almeida (ex-prefeito de Ceará Mirim) e que hoje é minha, fiz um grande mural que está lá definitivamente desde 1969.

ZONA SUL – Como surgiu a temática do caju e do peixe na sua obra?

AÉCIO – Caju é uma coisa que até hoje não consegui descobrir. Odilon Ribeiro Coutinho diz que o caju é uma figura obsessiva na minha pintura. Eu não consigo entender direito. Talvez ele tenha aparecido por ser um traço mais fácil. Não lembro qual foi o primeiro caju que apareceu em algum trabalho meu. Já fiz tudo pra lembrar. Talvez se eu lembrasse aquele primeiro, poderia descobrir tudo. Em Muriú tinha muito caju, principalmente no verão. Talvez tenha sido isso também. Caju é um ótimo acompanhamento para a cachaça. Mas eu não bebia cana. O povo bebia muito. Pra tomar uma lapada, eu tinha que misturar com açúcar, com mel... Eu não achava graça. Gostava de whisky e mais ainda de cerveja. O peixe eu sei que entrou na minha obra pela figura do mundo submarino. Na minha primeira exposição o peixe já fez parte de muita coisa.

ZONA SUL – Quando foi essa primeira exposição?

AÉCIO – Minha primeira exposição individual ocorreu em 1964. Antes, eu havia sido convidado para uma coletiva. A partir dela organizei essa mostra individual. Vinte novos pintores participaram da coletiva. O tema era a igreja de Santo Antonio, a igreja do Galo. Iaperi Araújo e Mancha foram alguns dos artistas que fizeram parte. O ângulo que eu encontrei para pintar a igreja recebeu elogios gerais. Disseram que só a ousadia da escolha já mostrava que eu era um bom pintor. Tive um trabalho danado para encontrar esse ângulo que depois foi tão elogiado. Eu não conseguia pegar a igreja toda. De um lado estava a casa do bispo, ficava enviesado. Fui lá para a esquina onde ficava a casa de Amaro Marinho. Da igreja pra lá. Tomei um fôlego danado por conta disso. Foi então que resolvi montar a exposição individual.

ZONA SUL – Mas você dizia que os peixes ocuparam posição importante nessa estréia em mostras individuais...

AÉCIO – Sim. Eu havia pintado uns peixes, inspirado em umas coisas que eu tinha visto de Illen Keer. Fiz também outras coisas e marquei a exposição. Diógenes da Cunha Lima tomava conta da casa de cultura, que era o local onde se fazia exposição, lá na praça, perto do Palácio. A minha individual foi uma das primeiras, isso em 1964. Expus vinte trabalhos. Todo mundo adquiriu um quadro na abertura da exposição. Nessa mesma noite fiz um discurso dizendo que os quadros eram presente, não precisavam pagar. Yêda quase me mata. (risos). Eu não sabia passar troco nem dizer quanto era.

ZONA SUL – Quer dizer que o seu primeiro quadro vendido, foi dado...

AÉCIO – Foi dado. Eu já tinha presenteado muitos amigos. Nessa exposição, o mais fraco que fez discurso foi Odilon Ribeiro Coutinho. Eu, com medo, não queria falar. Me dava horror ser obrigado a dizer alguma coisa. Pedi a Rossini, responsável pelo buffet, que mandasse os garçons começarem a servir o coquetel, os bolinhos e o champanhe logo que Odilon terminasse de falar. Quando os garçons entraram, não deu pra eu dizer nada. Escapei fedendo! Depois, Franca Giordanetti fez um jantar em sua casa para metade do povo que estava na exposição. Novamente queriam que eu falasse alguma coisa. Tinham deixado pra mim um poema de Celso da Silveira. Resolvi intimamente que ia ler aquele texto. Mas na hora “H” eu pedi a Alvamar que interpretasse pra mim aquele poema. Ele atendeu e não se falou mais em discurso meu. Mas o primeiro trabalho que vendi, que peguei no dinheiro mesmo, foi para Álvaro Alberto Barreto, quando ele estava inaugurando a Apern (Associação de Poupança e Empréstimos do Rio Grande do Norte). Ele encomendou um mural para a casa que estava construindo em Natal. Foi um trabalho grande. Pela primeira vez eu coloquei poemas junto com os desenhos. Aqueles balõezinhos, como se os peixes estivessem falando. Esse mural está no livro. Uma das frases é de um poema de Cecília Meireles: “Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada”. Odilon dizia que o certo era “se reiventada”. Eu estava tão empolgado que coloquei assim. Depois foi que, na casa do presidente da Assembleia Legislativa de Pernambuco, lá em Recife, eu soube que eu tinha escrito errado. Naquele tempo eu pintava sozinho. Levei uns quinze dias pra concluir o trabalho. Hoje eu risco, traço os desenhos, escolho as cores e um funcionário termina as folhas e preenche com as tintas. Pintei sozinho aquele mural grande de Orlando Gadelha, na fábrica da SAM’s, na Salgado Filho. Mas, quando recebi o cheque de Álvaro Barreto, ele sugeriu que eu aplicasse na poupança. Ao contrário, eu saquei o dinheiro e dei pra Yêda gastar. Depois disso apareceram outros compradores.

ZONA SUL – Quais seus trabalhos mais expressivos?

AÉCIO – Gosto muito de um trabalho triplo que está no Parque das Dunas, em homenagem a Natal e seus cantadores: Câmara Cascudo, Newton Navarro e Diógenes da Cunha Lima. O da SAM’s, devido à sua localização (na Avenida Salgado Filho, em frente ao prédio da FIERN), deve ter sido um dos mais vistos. Ele foi pintado em 1970. O dinheiro que ganhei ali, gastei em duas noites. Numa delas foi uma festa com Odilon. Inventei de pagar a despesa de todo mundo que estava na mesa. O mural do Aeroporto Augusto Severo, que tem 50 metros quadrados e foi instalado em 1999, também é um dos mais importantes.

ZONA SUL – Foi o seu trabalho que custou mais caro?

AÉCIO – O meu mural e o de Dorian Gray Caldas saíram pela metade do preço que pedimos. Tivemos que fazer esse abatimento para poder receber. Nessa negociação ficou acertado que eu e Dorian vamos pintar também os murais do Aeroporto de São Gonçalo. Mas eu só acredito mesmo se até lá Dorian estiver vivo. Eu não sou bom de negócio. Apesar disso, o mural do aeroporto de Parnamirim só saiu por minha causa. Quando a reforma estava sendo feita, fui falar com a Infraero. Colocaram todas as dificuldades e formalidades do mundo. Tivemos umas 100 conversas, incluindo as travadas depois, já com Dorian. Nosso interlocutor era Jerdi Paiva, um coronel da reserva, da Aeronáutica.

ZONA SUL – Dorian Gray não estava com você desde o início das negociações?

AÉCIO – Não. A obra do aeroporto era federal, mas o governo do estado entrava com uma

contrapartida. Certo dia eu contei do meu interesse em pintar o mural do aeroporto a Cláudio Emerenciano, que é cunhado de Garibaldi Alves Filho, o governador daquela época. Ele achou a ideia ótima. Cláudio era o presidente do conselho de cultura do estado e levou o assunto para aquele colegiado. Ele defendeu a tese de artistas potiguares terem seu espaço no aeroporto que estava sendo reformado. Como Cláudio quer muito bem a Dorian, propôs seu nome em primeiro lugar. Eu achei ótimo e justo, até porque Dorian tem muito mais nome do que eu. A ideia de Cláudio era que Dorian pintasse um mural que retratasse o folclore do Rio Grande do Norte, com destaque para Câmara Cascudo. Em seguida ele sugeriu meu nome para retratar a fruteira potiguar. A exportação de frutas é um dos principais itens que rendem divisas aos cofres do estado. A aprovação foi unânime. Quando o assunto chegou ao governador Garibaldi, ele ficou empolgado também.

ZONA SUL – Como se deu a escolha para você ficar com o espaço do desembarque para instalar o seu painel e Dorian ficar com o embarque?

AÉCIO – Depois que ficou tudo decidido, agendaram um dia para visitarmos o local. Na mesma data em que estava vindo uma comitiva do Infraero. Quando chegamos lá, de longe mesmo eu vi que o lado do desembarque estava com as obras mais adiantadas do que o embarque. Não tive dúvidas: escolhi aquele, que já estava mais ou menos terminado. O outro lado, o do check-in, que é o melhor, ficou para Dorian. Quando a solenidade terminou, eu, de terno e gravata, pedi autorização para subir do meu lado e dar uns traços. Eu queria ver como ficava. Falaram que eu tinha que me submeter a um curso de segurança, et cetera e tal. Mas lá havia um engenheiro que gostava do meu trabalho. Quando as autoridades saíram, ele permitiu que eu encostasse uns andaimes para subir. Foram não sei quantos homens puxando. Com um traço, marquei o local onde eu desenharia o sol. Tracei algumas outras linhas. Defini o local ficaria a linha do horizonte. Pouca gente sabe o que vou contar agora. Comecei a pintar baseado naquelas medidas que tirei no primeiro dia. Só que elas representam a metade do mural como ele é hoje. Levei uns dez dias para concluir o trabalho. Eu e meu ajudante, Chico, almoçávamos com os engenheiros, na obra. Quando eu estava naquela agonia, dando os retoques finais, veio uma equipe de engenheiros e arquitetos da Infraero. Quando viram, ficaram assombrados com as dimensões do trabalho. Porém, apesar de enorme, o mural estava desproporcional: só ocupava a metade do espaço. Eles queriam maior ainda. Mas não me disseram na hora. No dia seguinte, quando eu prosseguia com os acabamentos, fui chamado por Dorian. Já tinham dito a ele que o nosso trabalho tinha que ser o dobro.

ZONA SUL – E o que você fez com esse trabalho já praticamente concluído?

AÉCIO – Essa minha pintura ainda está lá no aeroporto. O mural que se vê hoje está por cima

do anterior. É o dobro do original. Fiz a metade ampliada e coloquei lá em cima uns cajus segurando. Dá a ideia de que eles estão conversando. Outro negócio difícil foi transportar as telas para o aeroporto. A técnica utilizada tanto no meu painel quanto no de Dorian é óleo sobre painéis de MDF, revestidos com tecido. MDF é uma chapa de fibra de madeira de densidade média. Dorian foi quem sugeriu esse modelo. Até então eu estava pintando com Eucatex. A vantagem do MDF é que ele é impermeabilizado e não dá bicho. Eu estava no Pantanal quando me ligaram avisando que a inauguração do aeroporto seria no dia seguinte. Peguei um avião e corri pra Natal. As peças do meu painel e do de Dorian estavam cada qual na casa de cada um. Eu nunca tinha visto o meu painel inteiro, montado, pois lá em casa não havia espaço de colocá-las todas juntas.

ZONA SUL – Qual a impressão que você teve ao ver a tela inteira pela primeira vez?

AÉCIO – Quando eu voava do Pantanal para Natal eu estava assombrado. Mas foi espetacular no momento em que eu estava acompanhando os painéis subirem, no aeroporto, para montar o mural. A partir do momento em que cada peça era fixada, ia diminuindo o medo de não dar certo.

ZONA SUL – Fale um pouco sobre o livro “A natureza viva de Aécio Emerenciano”, lançado em 2009.

AÉCIO – Eu tinha a ideia de fazer uma obra analisando o mural do aeroporto. Várias pessoas comentariam o trabalho. A mulher do meu filho Carlos Alberto, Fátima Arruda, tem amigo na Fundação José Augusto. Ela sugeriu e eles toparam. Só que quando o trabalho estava sendo feito, eu vi que não ficaria do jeito que eu queria. Conversando com Woden Madruga ele sugeriu que eu entregasse o comando de tudo a Nei Leandro de Castro. Nei topou e preparou o livro com a equipe dele. Ficou espetacular, ele botou pra lascar.

ZONA SUL – Qual a tiragem?

AÉCIO – Foi de 450 exemplares. Eu fiquei com 300. Desses 300, tive que tirar também os livros dos patrocinadores e não sei mais de quem. No final das contas eu fiquei com 127 para vender. Estamos nos preparando para lançar uma segunda edição.

ZONA SUL – Qual seu ídolo na pintura?

AÉCIO – Newton Navarro. Iaponi Araújo também é um dos grandes. Ele valorizou esse negócio sobre o qual eu não entendia nada: o folclore do Rio Grande do Norte. Iaponi tem, por exemplo, livros só sobre as frentes de casas populares. Eu achava isso uma besteira. Ele gostava desses detalhes. Iaponi registrava os costumes. Acho que era influência de Cascudo.

ZONA SUL – E a sua experiência política em Ceará Mirim?

AÉCIO – No meu círculo de amizades, ninguém entendia de campanha política. Nem o meu sogro Aderson Eloy, que foi prefeito de Ceará Mirim, nem Odilon Ribeiro Coutinho, que foi senador. Em determinada eleição Murilo Barros, que era casado com a minha irmã, foi indicado como candidato a prefeito de Ceará Mirim. A cidade tinha 33 seções eleitorais. A previsão era a de que ele só perderia em dois colégios da sede do município e no distrito de Capelas. Dividimos Ceará Mirim por setores, para fazer a campanha. Fiquei responsável por Muriú. Toda tarde eu pagava uma grade de cana para os moradores. Mas não pedia voto, nem nada. Quando participava das reuniões de avaliação da campanha, eu dizia que estava tudo bem. Veio a eleição, tudo tranqüilo. Quando as urnas foram abertas, Murilo Barros só tinha perdido em Muriú. Até onde sua derrota era prevista, ele ganhou. Essa foi minha experiência na política.

ZONA SUL – Você agora está morando de vez em Muriú...

AÉCIO – Estou morando aqui direto, desde 2005. Antes eu já vinha sempre. Só vou a Natal esporadicamente, quando tenho algo para resolver na cidade. Muriú é o meu lugar.


8 comentários:

  1. Olha Homem, estas fotos estão belíssimas. Desperta sensibilidade.

    Fiz dois posts no blog: PROJETO LITERÁRIO SENADO E SEnado FEDEral

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  2. Marta, Aécio Emerenciano é um ícone das artes plásticas do Rio Grande do Norte. O livro cuja capa está reproduzida logo acima, inclui fotografias dos principais trabalhos de Aécio. Vale a pena adquirir.

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  3. BOM DIA, CARO ROBERTO!
    FAZENDO PESQUISA SOBRE O AÉCIO NO GOOGLE, POIS ELE SERÁ EMPOSSADO HOJE(16/NOV/2011), SÓCIO EFETIVO DA ACLA-ACADEMIA CEARAMIRINENSE DE LETRAS E ARTES, JUNTAMENTE COM OUTROS FILHOS DE CEARÁ-MIRIM E ENCONTREI ESTE SEU BLOGUE, QUE JÁ ESTOU SEGUINDO! AINDA BEM QUE ENCONTREI! CONHECI VERDADEIRAMENTE ESTE GRANDE ARTISTA PLÁSTICO! EU TAMBÉM SOU CEARAMIRINENSE, MAS VIVO AQUI EM PORTUGAL JÁ A QUASE 9 ANOS, SOU MEMBRO-CORRESPONDE DA ACLA AQUI EM TERRAS LUSAS, TENHO O MEU BLOGUE: NOTÍCIAS DA LUSOFONIA, ONDE DIVULGO TUDO RELACIONADO À CULTURA DO MUNDO LUSÓFONO, PRINCIPALMENTE DO MEU VERDE VALE (CEARÁ-MIRIM). EM CEARÁ-MIRIM, TRABALHEI COM DR. MURILO BARROS EM SUA CLÍNICA E PUDE VIVENCIAR UM POUCO DA POLÍTICA... BEM, É MUITO ASSUNTO, MEU CARO! RISOS... CONHEÇA-ME UM POUCO MAIS, VISITANDO O MEU BLOGUE. SERÁ UM GOSTO TÊ-LO COMO SEGUIDOR! UM ABRAÇO, AINDA DO ALÉM-MAR... (DIGO AINDA, PORQUE NO FINAL DESTE MÊS ESTOU CHEGANDO NO MEU VALE PARA REALIZARMOS O GRANDE EVENTO: "SARAU DO REENCONTRO LUSÓFONO-3ª EDIÇÃO", COM A PARTICIPAÇÃO DE POETAS E ARTISTAS DO VALE, DO RN E DE PORTUGAL.

    CEICINHA CÂMARA
    -De Ceará-Mirim/RN
    -Radicada atualmente em Vila do Bispo/Algarve/Portugal.
    -Mediadora do Bogue Cultural: NOTÍCIAS DA LUSOFONIA (http://nlusofonia.blogspot.com).
    -Membro da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte-Brasil
    -Membro correspondente em Portugal da ACLA-Academia Cearamirinense de Letras e Artes.
    -Membro da Associação Internacional Poetas del Mundo
    http://www.poetasdelmundo.com/verInfo_europa.asp?ID=6981

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  4. Sr Roberto
    Boa Noite!!!
    A tempos atrás me encontrei com este Sr. Aécio Emerenciano em meu estabelecimento, uma pessoa agradabilíssima onde troucamos algumas conversas. Hoje tive a oportunidade de conhecê-lo melhor através desta entrevista, a qual foi muito bem feita, parabéns.
    Temos na cidade de Natal uma casa muito aconchegante que homenageia os artistas Potiguares e Gaúchos, pois as sócias são eu do RS e Izabella Cabral Bezerra do RN, fica localizada na Rua Mipibú, 684 e se chama "Sobradinho Creperia e Café".
    Nesta oportunidade quero dizer que a Abrasel (Associação de Bares e Restaurantes de Natal e do Brasil) está promovento o evento "BRASIL SABOR- 2012" onde participam 26 Restaurantes com um prato novo em seu cardápio e este ano 2012 (de 03/05 a 03/06) o Sobradinho Creperia estará homenageando o Artista Plástico Sr. Aécio Emerenciano dando o nome do novo prato que estará sendo homenageado através de um banner na porta, como também em um quadro na parede e o nome no Cardápio. Ficamos muito felizes com esta escolha.
    O prato será uma "Massa com Molho Pesto de Castanha de Cajú, Brócolis e Alho Poró".
    Convidamos V.Sa. para conhecer este espaço que prima e valoriza pela cultura Gaucha e Potiguar.
    Um grande abraço e parabéns novamente pelo seu trabalho.

    Namir Strejevitch
    Sócia Proprietária

    Sobradinho Creperia e Café
    Rua: Mipibú, 684 - Petrópolis - Natal/RN
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  5. Namir, obrigado pelo comentário e parabéns pela iniciativa de homenagear os principais nomes da cultura potiguar e gaúcha.

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  6. Meu caro Roberto,
    Cada vez que repito a leitura dessa bela entrevista comprovo a sensibilidade do artista.
    As perguntas, muito bem elaboradas, permitem ao leitor uma viagem no tempo e na intimidade de Aécio.
    Parabens!
    Marco Emerenciano (filho)

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  7. que surpresa saber de Aécio depois de tantos anos. Não o vejo desde 1959. Convivemos em Muriú e em Natal, em torno de seu Aderson, dona Deda, Adersinho, Xuxa e Yedinha. Kabeto e Tina eram crianças de 3 ou 4 anos. Quanta saudade daqueles tempo.

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  8. A professora vereadora Eleika Bezerra poderia ser uma excelente entrevistada ja pensaram?

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