segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Entrevista: Jonas Escurinho



O CINQUENTÃO ESCURINHO É 100 NO ZONA SUL!
O ano de 2012 tem sido especial para Jonas Epifânio dos Santos Neto. Além de completar seu quinquagésimo aniversário e de conquistar duas das principais premiações em um festival de música na terra onde nasceu – Serra Talhada – Jonas, o Escurinho, voltou a se apresentar na capital do país com a sua banda Labacé e iniciou um novo projeto que tende a render bons frutos: a ciranda de maluco. Para completar, esse paraibano nascido em Pernambuco foi o escolhido pelo Zona Sul para ser o centésimo entrevistado do jornal desde outubro de 2003. E ele se fez presente, junto com a Labacé (Alex Madureira, Igor Aires e Flávio Boy) e a sua esposa Ester Rolim. Para contrabalançar, também participaram da “festa” meus amigos Glauco Porto, sua companheira Maíra Pereira, a carioca papa-jerimum Inês Augusta e o repórter fotográfico Roque de Sá, que mostrou talento usando apenas um telefone celular Galaxy SIII, da Samsung (robertohomem@gmail.com).

ZONA SUL – Você nasceu em qual lugar de Pernambuco?
ESCURINHO – Em Serra Talhada, mas só nasci. Meus pais moravam em uma vila chamada Bom Nome, distante 20 minutos de viagem. Como lá não tinha maternidade, grande parte das grávidas tinha seus meninos em Serra Talhada e voltavam para Bom Nome.
ZONA SUL – A população de Bom Nome deve ser bem pequena...
ESCURINHO – Poucas pessoas nasceram lá, mas tem no mapa! Se botar no Google, também encontra. Meu pai era vaqueiro e agricultor. Quando a CHESF foi construir as subestações de eletricidade no interior, ele foi convidado para trabalhar desmatando terreno. Meu pai era esperto, fez amizade com todo mundo. Quando a subestação foi construída, ele ficou como eletricista. Trabalhou de 1962 a 1969 na subestação de Bom Nome, como funcionário da CHESF. Quando a companhia começou a construir subestações em municípios da Paraíba, meu pai foi para Piancó. A família deixou Pernambuco nessa ocasião, em 1969. Fui para o Vale do Piancó com sete anos de idade.
ZONA SUL – Como é o nome do seu pai?
ESCURINHO – Manoel Jonas dos Santos. Quando foi construída a subestação de Catolé do Rocha, a SAELPA (Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba) contratou alguns funcionários da Chesf, entre eles o meu pai. Mudamos para Catolé em 1973. Eu já tinha onze anos.
ZONA SUL – Você guarda alguma recordação de Serra Talhada?
ESCURINHO – É a terra de Lampião. Recentemente li que a Casa de Lampião conseguiu um projeto com a Petrobras e vai transformar a fazenda onde Lampião viveu em museu, restaurante. Minhas maiores recordações são de Bom Nome. Lembro daquelas coisas de criança, das brincadeiras, de algumas palavras... Por exemplo: tem uma palavra chamada monturo que eu não esqueço nunca. Até porque era onde a gente brincava, no monturo. No monturo era onde tinha os obstáculos e cresciam as frutas gogoia, maria preta, melão de são caetano... Recordando daquele tempo constato que, quando a gente é pequeno, as coisas parecem ser bem maiores. Por exemplo: depois de muitos anos voltei com Ester (Ester Rolim, mulher de Escurinho) e as meninas à casa onde morei em Bom Nome. Eu sempre dizia que era uma casa imensa. Quando chegamos lá, Malu viu aquela casa pequenininha e logo perguntou: “papai, cadê a casa?”. Lembro também que eram imensos os animais que eu via no Sítio Valença, que pertencia à minha família. As aranhas caranguejeiras eram enormes. No caminho de casa para a roça eu via uns bichos que, imagino hoje, deviam ser uns lagartos ou camaleões. Naquela época era como se fossem crocodilos!
ZONA SUL – Quais suas primeiras recordações musicais?
ESCURINHO – Vem das feiras de Conceição do Piancó. Na época de Bom Nome, meu avô Mané Jacinto era dono do que, na época, se chamava Clube Social Brotas. Eles faziam festas e bancavam jogo. Meu avô era uma espécie de produtor de eventos. Todo final de semana tinha a feira do Carmo, no interior, e tinha a Feira de Conceição. Sempre que ele ia, me levava. Eu achava massa porque, na volta, as moedas que ele trazia eram todas para mim. Na viagem eu via os cantadores na feira. Todos eram amigos de Mané Jacinto. Depois que os emboladores acabavam, iam tomar uma com ele. Meu avô faleceu há seis anos. As feiras do Piancó e do Carmo foram marcantes para mim.
ZONA SUL – E os estudos?
ESCURINHO – Minha família nunca vacilou nesse ponto. Naquele tempo não tinha esse negócio de ir para escola com três ou quatro anos. Entrei aos sete, mas já sabendo ler. Minha mãe, minhas tias e minha irmã mais velha ensinaram. Mas, quando entrei na escola, foi até engraçado. Ficavam me comparando com os outros: “o neguinho de Mané Jonas sabe ler e tu não sabe”. Paralelo a isso, havia minha paixão pelo circo. Antigamente todo circo tinha drama, teatro. Quando o circo saía de Piancó, ficava aquela febre de circo na cidade. Então minha mãe, uma tia que morava com a gente, minhas irmãs e algumas vizinhas montavam uns dramas, lá em casa, para arrecadar fósforo, açúcar e o que desse. Armavam uma tenda para encenar peças como “A Escrava Isaura”, “A Cabana do Pai Tomás”, “Sansão e Dalila”... Eu não tinha noção do que era teatro, mas era um momento massa.
ZONA SUL – Como foi a vida em Piancó?
ESCURINHO – Apesar das dificuldades, minha família vivia bem. Era a época dos militares, e eles não deixavam faltar nada para os funcionários da CHESF. Todo final de ano a empresa mandava um caminhão com uma super-feira. Vinha tanta coisa que dava para distribuir com os vizinhos. O almoço de domingo também era uma festa. A gente vestia a roupa de domingo, ia à missa e voltava para comer galinha, que só se comia aos finais de semana. A gente comia com salada de maionese.
ZONA SUL – Você é católico?
ESCURINHO – Minha mãe me levava para a igreja, mas não tenho vínculo com a religião. Depois dos 15 anos não voltei lá e passei a entender a igreja de outra forma. Nos tempos de Bom Nome, quando papai era vaqueiro e trabalhava na agricultura, ele gostava de cantar. Era boêmio e namorador, embora não bebesse nem fumasse. Lá em casa tinha cavaquinho e violão. Meu pai recebia em casa seus amigos, os malucos de Piancó. Muitos deles tinham retornado à cidade depois de ter passado pela universidade em João Pessoa. E tome farra! Lembro daqueles cabeludos lá em casa tocando violão. O término da hora da Ave Maria, no rádio, no final da tarde, coincidia com a hora em que ele chegava da subestação. Então tome forró. Tocava Esmeralda, Luiz Gonzaga... Mas quando a CHESF resolveu levar alguns funcionários para fazer um curso em Paulo Afonso, tudo mudou. Manoel Jonas foi um dos escolhidos. Dois meses depois, quando voltou, estava vestindo uma camisa “volta ao mundo”, que era a foda da época. Trazia também uma carteira de Hollywood no bolso. Voltou todo invocado, usando aquelas escovas de mão para pentear o cabelo, um par de óculos ray-ban e bigode... Era o satanás em gente! (risos).
ZONA SUL – O que sua mãe achou disso?
ESCURINHO - Ficou puta da vida! A partir daí, ele começou a beber e a farrear de verdade. No domingo não era mais só galinha, era cerveja também! Foi por essa loucura dele, no bom sentido, que em 1973 a gente foi embora para Catolé. Na época eu era pequeno, apenas via aquele movimento todo. Só vim entender o sofrimento da minha mãe muito tempo depois. Minha mãe, mulher de família, segurou a onda. Meu pai foi primeiro, para Catolé. Um mês depois passou um caminhão e levou a gente. A partir daí ele sossegou, mas continuou boêmio: aquela figura simpática e querida por todo mundo.
ZONA SUL – Nessa época você já era Escurinho?
ESCURINHO – Não. Quando cheguei a Catolé havia um jogador de futebol do Internacional chamado Escurinho. Ele faleceu no ano passado. Eu jogava na mesma posição do bicho, e corria pra caramba. Os colegas passaram a me chamar de Escurinho. Assim ganhei o apelido. Um ano depois, no meu envolvimento com música, o povo de Catolé já sabia que Escurinho era o neguinho da subestação, o maconheiro da subestação. Catolé foi uma cidade muito louca. Cheguei lá no momento em que estava saindo da confusão do movimento estudantil de 1968. Catolé tinha aura de revolucionária. A influência da música boa da época, a gente tinha tudo lá. Por exemplo: o disco de Elomar, “Das barrancas do Rio Gavião”, ouvi pela primeira vez em 1979, em uma feira na praça de Catolé. Eu também tinha acesso à loja onde Chico César trabalhava como balconista. Onildo trazia tudo que era novidade da Tropicália e botava lá. Foi daí que veio a ideia de fazer música e participar de festivais. Assim surgiu o “Grupo Ferradura”.
ZONA SUL – Fale sobre o “Ferradura”.
ESCURINHO – O grupo nasceu de tanto a gente ir ao Rio Agon. Quando chovia, formava umas cacimbas. A gente comprava umas garrafas de cana, uns tira-gostos, pegava o violão e ia para o rio na sexta-feira de tarde. Se os pais não fossem atrás, a gente ficava até a segunda-feira, escrevendo e fazendo música. (risos). A partir daí passamos a frequentar os festivais nas cidades próximas.
ZONA SUL – Você já começou como compositor?
ESCURINHO – Nessa época todo mundo do grupo compunha.
ZONA SUL – Você chegou a estudar música?
ESCURINHO – Depois. Na época eu tocava percussão, de maneira intuitiva. Nosso trabalho era autoral. Eu compunha, Chico César também. Branco, Adonias... Todo mundo tinha aquela veia. Mas, no final das contas, eu e o Chico - até por a gente se encontrar mais e ficar mais tempo juntos – a gente compunha mais. Adonias tocava flauta doce; Branco, violão. Mais na frente veio Zé Galinha. Chico César tocava uma viola com uma afinação diferente e uma sonoridade foda. Nem ele consegue repetir essa afinação, hoje. Depois, ele ganhou um violão de presente. Eu tocava percussão e cantava. Mas eu não gostava de cantar, tinha medo. Nos festivais todo mundo tocava e cantava. De tanto a gente ganhar festival, quando surgia um os outros concorrentes já começavam a se perguntar: “os neguinhos de Catolé vêm?” (risos). Chico César – apesar de bem magrinho, desse tamanhinho e com aquela cabeçona - quando abria o bico pra falar, todo mundo já ficava de orelha em pé. Ele sempre foi muito seguro, e não tinha boquinha, não. Ele, pra quebrar o violão na cabeça de um, bastava essa pessoa pedir pra ele tocar Roberto Carlos várias vezes, depois de a resposta ser NÃO.
ZONA SUL – A bebida em excesso não atrapalhava?
ESCURINHO – Ela foi boa pra caramba naquele momento, mas começou a ficar ruim porque passamos a exagerar. Na escola, por exemplo, na hora do recreio já ficava combinado que a gente ia se encontrar para tomar a última “meiota” pra voltar e fazer prova. E continuava a beber depois da última aula. Mas, fomos crescendo. Chico César fez vestibular em 1979 e, no ano seguinte, foi para João Pessoa, estudar. Eu fui para Recife, fazer um negócio que não tinha nada a ver comigo: o curso de técnico em Contabilidade, no Colégio Porto Carreiro. Eu queria ter ido para o Instituto da Teologia da Libertação que estava abrindo na Conde da Boa Vista. Dom Hélder Câmara estava instalando esse curso em todo canto. Minha família não deixou. Se tivesse ido, teria sido melhor pra mim: era mais profundo, mais exigente. Eu era muito louco, não tinha disciplina pra contabilidade. No caminho da escola tinha uma casa de vinho quente. Eu guardava o dinheiro da passagem, ia a pé, para tomar vinho. Ainda estava no vício de Catolé. Mas foi um ano massa porque eu saía da escola e ia direto para o Teatro do Parque, pegar o final dos shows: Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Bubuska, Vivencial, Ave Sangria... Vivi esse momento. Foi um ano inteiro assim: só ouvindo esse pessoal. Lá eu não toquei. De Recife fui para João Pessoa. Saí da capital pernambucana em fevereiro, depois do carnaval. Fui direto para a casa de Pedro Osmar, a quem eu só conhecia através da imprensa. Chico César já estava na cidade, mas fui logo procurar Pedro Osmar. Ele foi muito receptivo, ficou bem alegre. Com ele passei a conhecer um pouco do maracatu, da cultura negra. Mas a minha relação com Pedro Osmar, nesse primeiro momento, foi curta. Até porque eu tive que retornar à Catolé. Mas lá percebi que não tinha condições de ficar. Não tinha mais a música, nem os amigos: era só a família pressionando para eu dar um rumo na vida. Resolvi voltar para João Pessoa. Fui morar na Casa do Estudante. Foi quando conheci Odair Salgueiro.
ZONA SUL – Quem é essa pessoa?
ESCURINHO – O professor que formou os principais músicos que mexem com percussão na Paraíba. Comecei a estudar com ele, mas eu era muito irresponsável e louco. Ele apoiou muita gente, nessa época. Inclusive a mim. Quando eu chegava para uma de suas aulas sem ter estudado em casa, sem ter feito a lição que ele havia passado na aula anterior, Odair me dava uma bronca. Ele percebia que eu não tinha estudado logo que eu pegava nas baquetas. Então, Odair dizia: “pode parar, não vou ficar perdendo o meu tempo com quem não quer estudar”. Eu tentava enganá-lo, dizendo que tinha estudado, mas ele sabia que era mentira. Depois criei um pouco de juízo e, nos três anos que passei com Odair Salgueiro, aprendi pra caralho. Muitos aprenderam com ele, inclusive Flávio Teles (Boy), que está aqui conosco. A partir daí fui conhecendo uma turma que tocava na noite. Como eu era muito louco, nunca aceitei muito esse tipo de trabalho. Tocar na noite de João Pessoa, nessa época, era tocar por birita, para beber. Não vou negar que isso era o que eu queria, mas eu também queria pagar minhas contas. E não tinha como. Ainda toquei no Gambrinus, que pagava direitinho, e com Soraia Bandeira e João Linhares. Mas vi que aquilo não servia para mim. Eu achava que não era certo o dono do bar ganhar mais do que a gente e defendia que o “couvert” todo tinha que ser nosso. Eu era bocão. Saí da noite pensando em criar coisas, fazer músicas. Foi quando veio a história do teatro, do “Vau do Sarapalha”.
ZONA SUL – Estamos ansiosos para ouvir essa história...
ESCURINHO – O “Vau da Sarapalha” é um conto de Guimarães Rosa. O “Grupo Piolim”, de Luiz Carlos Vasconcelos, estava trabalhando na adaptação dessa obra para o teatro. Fui o responsável pela parte musical do espetáculo. Viajamos muito pelo Brasil, América do Sul e alguns países da Europa. O ponto de partida foi a visita do então ministro da Cultura, Sérgio Rouanet, a João Pessoa. Quando Luiz Carlos, doido para cavar recursos para o Piolim, soube da visita, convidou o ministro para assistir a um ensaio de “Vau da Sarapalha”. Era a forma de Sérgio Rouanet ir até o Piolim. A gente achava que esse ministro era um cara velho, grandão, importante. Mas ele era novo e já entrou na sala conversando com todo mundo. O ensaio demorou a começar, mas ele permaneceu tranquilo, aguardando. Era noite de lua, e o cenário ficou todo natural, sem aquela luz toda que veio depois. Tinha no máximo uns candeeiros. O ministro pirou. Terminou a peça, ele perguntou onde a gente ia se apresentar. Não tinha nada agendado, mas Luiz Carlos sabia que vinte dias depois seria realizado um festival em São José de Rio Preto. De tão confiante, ele mentiu para o ministro dizendo que nós participaríamos. Rouanet pediu que telefonássemos para ele quando estivéssemos em São Paulo e prometeu que apresentaríamos “Vau da Sarapalha” também em Brasília. Conseguimos participar do festival em São José do Rio Preto. Já chegamos lá com as passagens compradas para Brasília, hospedagem reservada na cidade e uma apresentação agendada no Teatro Garagem, do SESC.
ZONA SUL – Como foi o espetáculo em Brasília?
ESCURIHO – A apresentação era na segunda-feira, pois não tinha vaga na pauta de teatro da cidade. Começava às oito da noite. Duas horas antes, tinha uma fila arrodeando o SESC. Eu, matuto, nunca tinha visto aquilo. Os caras do teatro viram e cancelaram as apresentações dos grupos que se apresentariam no final de semana seguinte, para abrir espaço para o “Vau de Sarapalha”. O fato é que ficamos um mês em Brasília.
ZONA SUL – Qual a explicação para o teatro lotar em Brasília logo na primeira apresentação?
ESCURINHO – A gente tinha vencido os principais prêmios do festival de São José do Rio Preto. Houve também muito trabalho de boca a boca. Além disso, Barbara Heliodora – que tinha nos assistido em São José do Rio Preto - botou uma matéria na “Veja” exaltando a peça. O sucesso em Brasília nos garantiu uma proposta para temporada em São Paulo. Mas antes de ir para lá, voltamos a João Pessoa. Já tinha integrante do grupo reclamando: “vamos pra casa, não aguento mais, quero ir pra casa”. Fomos para São Paulo e fizemos dois dias no Teatro Vergueiro. Tinha mais gente que em Brasília! Saímos de lá para o Teatro Gláucio Gil, no Rio de Janeiro. Era uma quarta-feira e o problema se repetiu: não coube todo mundo que queria assistir. O grupo que apresentaria no final de semana nos cedeu o lugar. Depois disso, passamos mais um mês. Tudo lotado. Na sequência, fomos para Bogotá, na Colômbia. De lá para a Venezuela, onde tivemos prejuízo. O empresário não soube negociar ou roubou. O fato é que ficou de depositar o dinheiro na nossa conta, quando a gente voltasse para o Brasil, e nada...
ZONA SUL – A questão da língua, como ficou?
ESCURINHO – Nunca foi problema. Apesar do texto, a peça é muito plástica e sonora. A estética é muito forte. Nas vezes em que foi tentado botar tradução simultânea, legenda, neguinho reclamou. Na Alemanha, em Hamburgo, aconteceu isso. Colocamos legenda, mas no outro dia pediram para tirar. Enquanto estavam lendo, não assistiam ao espetáculo. Já em Portugal, amargamos um fracasso na primeira temporada. E a gente pensava que ia fazer o maior sucesso. Na primeira viagem a Europa, fizemos Bélgica, Alemanha e Portugal.
ZONA SUL – Até então você estava mais voltado para o teatro do que para a música?
ESCURINHO – Estava dividido. Mas eu sempre gostei de música, e não de teatro. Eu estava envolvido, era um momento massa, estava ganhando um dinheirinho, mas sabia que tinha que me arrumar na música. Depois de uma dessas viagens, comprei um gravador Aiwa para registrar minhas ideias, as composições que eu fazia. Eu já vinha fazendo isso quando houve uma parada do Sarapalha em João Pessoa e eu fui morar com o pessoal do “Carroça de Mamulengo”. Comecei a montar minhas coisas, a tocar em vários instrumentos e a cantar o que eu havia registrado nas viagens. Foram surgindo umas músicas e passei a mostrar esse trabalho. Depois convidei um baixista e um violonista. Rolou um show no Teatro Santa Rosa. No final da apresentação, Alex Madureira, que estava voltando do Rio, chegou gritando, cheio de cachaça: “meu irmão, esse som é muito bom, mas esse violonista não toca nada”. Eu já tinha ouvido falar muito sobre ele. Saímos de lá para a praia, onde bebemos todas. Nem lembro como cheguei em casa, mas na segunda-feira eu estava na casa de Alex, ao meio-dia. Começamos a trabalhar. Em um mês a gente já tinha várias músicas. Depois veio a banda e João Pessoa começou a conhecer o trabalho de Escurinho e Alex Madureira. Primeiro foram os bares da periferia, o Bar da Tapa e os barzinhos do centro. Gravamos o primeiro disco em um período curto.
ZONA SUL – Como é o nome?
ESCURINHO – “Labacé”, gravado em 1995. Fizemos shows em várias cidades. Uma galera de Recife, entre eles Lula Queiroga, estava nos assistindo em um bar em João Pessoa. Rolou um buchicho e logo depois fizemos um show em Recife, no “Rei do Cangaço”. De lá, a gente tocou no “Abril Pro Rock”. Assim começamos a formar um nome naquela região. Depois dessa fase de Recife, percebi que a gente tinha um produto, mas não tivemos a mesma estrutura, por exemplo, que o pessoal do Manguebeat teve. Pernambuco era um estado melhor estruturado e com uma maior visibilidade. A televisão estava se organizando, a mídia de Recife apostava na cultura local. O pernambucano tem orgulho das coisas do seu estado, se valoriza. É assim que tem que ser. Em João Pessoa ainda não tivemos isso. O Labacé fazia um som diferente do que o pessoal do Mangue estava fazendo. Na nossa mistura não entrava só o maracatu, rock, funk, música eletrônica... Nossa influência era muito mais a música da caatinga do que a do mangue. Alex tinha uma proximidade com o cariri, com a cultura indígena.
ZONA SUL – Como a Paraíba recebeu essa novidade que foi o trabalho de vocês?
ESCURINHO – Nem sei se recebeu até hoje, pois a gente ainda está no processo de fazer público, apesar de 16 anos na estrada. Teve recentemente, na Paraíba, um festival nacional de arte. Não fomos convidados para tocar. Alex tocou no circuito do frio de Pernambuco, mas não no da Paraíba. Eu toco em Garanhuns um ano sim, outro não. Mas não toco no circuito da Paraíba. A gente abriu um show para Daniela Mercury, lá no Busto de Tamandaré, em João Pessoa. Tinha gente pra caramba, mas depois nenhum empresário telefonou para negociar a contratação do nosso show. A gente tem que sempre estar correndo atrás, apesar de ter um público fiel. O ideal seria não precisar pedir passagem a um e a outro para viajar, como ocorreu agora nessa vinda a Brasília.
ZONA SUL – O segundo CD foi “Malocage”, lançado em 2003. Em 2004 saiu o DVD patrocinado pelo Itaú Cultural. Fale sobre esses trabalhos.
ESCURINHO – A gente estava interando dez anos de grupo Labacé sem nem se tocar desse aniversário. Foi quando o disco “Malocage” saiu. Um belo dia a gente estava em Recife, quando um amigo, Gil Sabino, disse que uma pessoa da gravadora Atração iria assistir a nosso show na Rua da Moeda. Ela viu o show em Recife e depois em Campina Grande. Na segunda-feira recebemos um telefonema da gravadora. Eles queriam assinar um contrato para distribuir o “Malocage”. Três meses depois do contrato assinado, surgiu a oportunidade do Itaú Cultural. Se não tivéssemos assinado, não teria dado certo, porque eles exigiram vínculo com alguma empresa ligada à música. A Atração entrou na ponte com eles e viabilizou o DVD que selou os dez anos de Labacé.
ZONA SUL – A banda Labacé são vocês quatro há quanto tempo?
ESCURINHO – Podemos dizer que, com esse núcleo aqui, já são 15 anos. Só que vai entrando e saindo gente. Hoje é outro processo, mas, mesmo assim, a gente nunca parou, nunca deixou de compor, de tocar, de viajar. Cada um, lógico, cuidando da sua própria vida. Igor Ayres, carioca, toca baixo. Ele tem a banda Unidade Móvel, que já está no segundo disco. Flávio “Boy” Teles toca guitarra. Já esteve em bandas de rock, como Gargalo, Cobaio... Todo mundo criando suas coisas. Apesar de eu não encontrar mais Alex Madureira com a mesma frequência de antes, a gente continua criando, fazendo música juntos. Se for sentar para organizar, já tem material para outro disco.
ZONA SUL – O DVD abriu portas para você?
ESCURINHO – Não abriu um portão imenso, que tenha proporcionado visibilidade internacional, mas, por exemplo, depois dele comecei a achar meu disco nas “Lojas Americanas”, na Internet, a ouvir em rádios do Japão, da Áustria... Esse processo foi feito pela Atração e, depois, pelo Itaú. Um belo dia o Itaú ligou dizendo que iriam montar um estande na Feira da Música, em Fortaleza. Mandaram as passagens, pagaram cachê, tudo. A gente sempre tocava de graça no Dragão do Mar. Então, o DVD valeu por essas coisas.
ZONA SUL – E a turnê que você fez com Chico César pela Europa?
ESCURINHO – Quando Chico César estava para lançar seu primeiro disco, me telefonou. Ele não tinha gostado do resultado de umas gravações que tinha feito com Paulo Ró. Passamos um mês produzindo, trabalhando e gravando. Quando estava perto de entrar no estúdio, eu estava em João Pessoa, preparado para voltar para gravar. Mas o negócio esfriou. Depois eu soube que Ivan Lins - que era o dono da gravadora “Velas” - tinha dito que o material era muito bom e não deveria ser produzido daquela forma. Ivan Lins desaprovou a produção que a gente tinha feito. Então Chico resolveu fazer o trabalho só. Gravou “Aos Vivos” no teatro, com Lenine e Lanny Gordon. Tudo o que Ivan Lins queria. Mas Chico me chamou para o show de lançamento, no SESC Pompeia, junto com Lanny Gordon, Lenine e Simone Soul. A platéia estava cheia de compositores e cantores, como Leila Pinheiro, Ivan Lins... O bicho detonou ali, com aquele show. Um mês depois fui com ele lançar o disco em Natal. Não tinha ninguém. Passou mais um mês e voltamos para participar do projeto Seis e Meia, no Teatro Alberto Maranhão. Casa lotada. Parecia que não cabia mais. Ainda o acompanhei em Fortaleza. Depois passei um tempo sem tocar com Chico César.
ZONA SUL – Mas você não falou ainda sobre a turnê pela Europa.
ESCURINHO – Simone Soul era quem o acompanhava. Mas quando Chico César foi fazer a turnê na Europa, ela estava comprometida em tocar bateria para os Mutantes, no projeto de retorno do grupo para se apresentar em Londres. Chico me ligou dizendo que tinha uns shows na Europa, mas não queria ir só. Eram doze shows. A maior sorte dele foi que eu estava em uma fase sem beber. E ele estava bebendo muito. Imagina dois loucos, lá do outro lado do mundo, enchendo a cara. Mas a turnê foi ótima.
ZONA SUL – Quais suas influências? Que tipo de música você faz?
ESCURINHO – Minhas influências são a música regional, o violeiro, o embolador de coco, o repentista, o forrozeiro, a literatura de cordel... Quanto ao tipo de música que faço, o normal seria eu dizer: MPB. Mas, se for entrar em detalhe, o que faço é uma mistura. Entra rock, coco, baião... Entra tanta coisa que o melhor mesmo é simplificar e dizer que a gente faz é música popular brasileira mesmo.
ZONA SUL – Você comemorou 50 anos com uma festa, um grande show rodeado de amigos, em João Pessoa.
ESCURINHO – Quando você fala em 50 anos, eu penso logo em meio século. É muita coisa, mas o importante é que a comemoração do meu aniversário foi massa demais. Apareceu até gente que eu não sabia que tocava a minha música. Teve, por exemplo, “As Calungas e Uirá Garcia” tocando um lado B do nosso disco que a gente nunca toca. O bom é que além dos amigos normais, apareceram outras bandas.
ZONA SUL – Escurinho modelo 50 anos abandonou a bebida e hoje é um homem regenerado?
ESCURINHO – Continuo degenerado, mas não bebo mais. Bebida me fez muito mal. Quem quiser beber, que beba, não tenho nada contra. Mas eu não bebo porque sinto que não tenho mais condição de beber.
ZONA SUL – Como foi ganhar o festival de Serra Talhada, sua terra natal, um mês antes de comemorar seus 50 anos?

ESCURINHO – Eu estava em casa quando Ester falou que ia ter um festival em Serra Talhada sobre o cangaço. Como eu não tinha música naquela linha, compus uma: “Nas estradas de Bom Nome”. Fala sobre o cangaço sob a ótica da história da Revolução de Princesa e do coronel José Pereira. Inscrevi-me sem esperar muito. Classificado, quando fui disputar o festival ficaram sabendo que eu tinha nascido lá. Dei entrevista para vários veículos de comunicação da cidade. Depois da apresentação - a minha era a penúltima música - achei que tinha vencido, pela reação do público. Na descida do palco, a TV Asa Branca me entrevistou também como se eu tivesse sido o vencedor. Mas ainda faltava o último se apresentar. No fundo eu pensava que ganharia o terceiro lugar. O prêmio era dois mil e pouco. Eu já estava achando massa demais. Porém, o apresentador começou a anunciar o quarto, o terceiro, o segundo lugar... E nada de chamar meu nome. Eu pensei logo: “fodeu”. Foi quando me chamaram para receber o prêmio de melhor intérprete. Imaginei que era uma premiação de consolação: R$ 2 mil. Depois que recebi, quando estava descendo, me seguraram no palco enquanto fui anunciado como o vencedor do festival. Voltei de Serra Talhada com seis mil reais em dinheiro, porque era domingo e as agências bancárias estavam fechadas.
ZONA SUL – Quais os planos para o futuro.
ESCURINHO – Com essa dificuldade toda de produzir show em João Pessoa, no ano passado me veio a idéia de desenvolver um projeto chamado “Ciranda de Maluco”. A princípio a gente quer tirar momentos dos shows para improvisar. Vamos aproveitar essas improvisações para gravar um disco. Só que está ficando meio diluído. Tem show que é gravado, mas outros não. Mas antes desse CD de cirandas, vamos lançar um disco que já está pronto, chamado “Princípio Básico”. Depois desse lançamento é que trabalharemos o disco de ciranda improvisada.
ZONA SUL – Se despeça do leitor do jornal. 
ESCURINHO – Foi ótimo dar essa entrevista aqui em Brasília na casa do meu amigo Roberto, junto com meus amigos da Paraíba Alex Madureira, Ígor e Boy, da minha mulher Ester, do maranhense Roque, da potiguar Inês e de mais tanta gente que está aqui se divertindo, comendo churrasco e fazendo planos pro futuro. E vamos embora pra frente, que a palavra do poeta é a bala e toda bala atingida tem a meta. 

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