quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Entrevista: ELVIRA ZANELLA

ELVIRA QUER PERDOAR SEUS PECADOS





Ela diz que é a Redentora Suprema da Criação, o Senhor, o Criador, o Cabeça e o Primeiro. Também se considera a Mãe do Céu e afirma que, como Nossa Senhora da Igreja Católica, seu reino é sempre. Quando a conheci, ela se apresentou como bastante procuradora da Organização das Nações Unidas. Acima de tudo, Elvira Mariza Zanella tem muito para contar. Seria ela uma Embaixatriz gaúcha? Confira e se surpreenda com os melhores momentos do bate papo travado em uma tarde morna, sob as árvores da Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre. (Roberto Homem)




ZONA SUL – Como é seu nome mesmo?
ELVIRA – Elvira Mariza Zanella, embora o hino do Brasil seja “Ouviram do Ipiranga”. Elvira, com L. Em hebraico, El significa Deus e senhor. Sou filha verdadeira do Pércio Morais Camargo. Fui criada pelo Azir Zanella e por Paulina da Silva Becker Zanella. Nasci em Porto Alegre, a nove de outubro de 1958. Quando pequena, quis ser santa. Quis ser freira, na adolescência, mas minha mãe não deixou. Tornei-me mórmon, fiz missão no Rio de Janeiro, voltei para Porto Alegre, me casei, tive filhos, trabalhei, fiz faculdade...

ZONA SUL – Vamos mais devagar. Você disse que desde pequena sentiu vontade de ser santa...
ELVIRA – Eu tinha esse sentimento dentro de mim. Queria fazer as obras que Cristo fez: queria curar as pessoas, levantar os mortos, expulsar os demônios, levantar o mar, acalmar a tempestade...

ZONA SUL – Com qual idade?
ELVIRA – Ah, desde que eu me dei por conta. Minha mãe ia me procurar, me achava ajoelhada, com um terço na mão, véu na cabeça - daqueles de renda de antigamente - numa área que tinha um caramanchão de rosas brancas. Eu entrava ali e ficava fazendo minhas orações. Quando ela chegava, perguntava o que eu estava fazendo. Eu respondia que estava orando, falando com Deus e Nossa Senhora.

ZONA SUL – Como sua mãe reagia?
ELVIRA – Ela estranhava, principalmente porque eu tirava o Jesus da cruz. Ela dizia: “você estragou o meu terço”. Eu respondia que Jesus não tinha morrido, explicava que ele estava vivo, e não na cruz. Eu tirava todas as imagens de Jesus da cruz. Eles eram pregadinhos, não eram como hoje, soldados, mas pregados com preguinhos. Eu tirava o Jesus da cruz e ela não gostava, não entendia que eu o via vivo, e não morto.

ZONA SUL – E as colegas de colégio sabiam disso?
ELVIRA – Eu lembro de ter falado pra uma amiga que nasceu no mesmo dia que eu. Contei a ela que queria ser santa. Mas essa colega disse umas coisas que eu não gostei. Mesmo assim, quando me batizei na igreja mórmon, a convidei para se batizar e assistir a uma palestra, mas ela não quis seguir o caminho.

ZONA SUL – Isso com qual idade?
ELVIRA – Me batizei na igreja mórmon com 18 anos. Ouvi a mensagem com 17. “Nasci católica, morri católica” era o lema lá de casa. Tentei converter o pai e a mãe e ele disse isso. A mãe disse que se o pai fosse ela iria. Ele não quis ir.

ZONA SUL – Como você descobriu a igreja mórmon?
ELVIRA – Como minha mãe não me deixou ser santa nem freira, comecei a me questionar, a buscar dentro de mim as respostas que eu não tinha. Queria saber quem eu era, por que estava ali, qual a minha missão divina... Eu não tinha essas respostas. Um dia, dois missionários mórmons bateram lá em casa. Acho que eu tinha entre 12 e 15 anos. Eles queriam passar uma mensagem, mas minha mãe não os deixou entrar. Lembro de eles terem dito assim: que a igreja de Jesus Cristo foi perdida na terra. Eu então quis saber: perdida como? Mas não tinha clima pra perguntar. Então busquei na Bíblia da minha tia, que morava ao lado, a resposta. Li toda a Bíblia, de capa a capa, e aprendi muitas coisas. Como foi a igreja de Cristo, qual a missão de Cristo, descobri que os santos seriam chamados para Sião, nos últimos dias. Então eu orava, pedindo a Deus que me chamasse para Sião. Pelo que eu tinha entendido, os israelitas é quem seriam chamados, e eu não sabia que eu era israelita. Eu orava: Senhor, mesmo eu não sendo israelita, o Senhor me chame para ir para Sião. Só que vim descobrir agora que eu sou de Israel, por conta de minha tataravó. Minha mãe não sabia.

ZONA SUL – Você falou que colocava o véu, falava com Jesus e Nossa Senhora... Você era ouvida ou só falava?
ELVIRA – Não tenho muita lembrança, porque houve épocas da minha vida que foram apagadas. Eu não sabia por que, mas de 2000 para cá, quando me preparei para a minha missão divina, fui remida pelo Senhor. Isto significa que passei por uma lembrança de tudo o que aconteceu na minha vida, perdoei às pessoas a quem tinha que perdoar e pedi perdão aos que tinha que pedir perdão. Isso foi necessário para que certas cenas da minha vida fossem apagadas, para que eu pudesse ser submissa na mão do Senhor. Nesse processo descobri coisas que eu não sabia, já que tinham sido apagadas da minha vida. Por exemplo: fui muito martirizada, fui espancada e fui jogada no rio Guaíba, quando nasci. Provavelmente pela minha mãe verdadeira. Fiquei três meses na guarda de alguém. Depois me entregaram para o Azir e a Paulina. Meu pai verdadeiro, o Pércio, quis me conhecer quando eu tinha 24 anos. Ele pediu que eu não culpasse minha mãe pelo que tinha acontecido. Fiquei sem saber completamente o que estava acontecendo. Depois disso o vi umas nove vezes. Em outras conversamos por telefone.

ZONA SUL – Qual a sua escolaridade?
ELVIRA – Fiz o primário na Escola Nossa Senhora do Brasil, no bairro Partenon, em Porto Alegre. Estudei um ano na Escola Estadual Oscar Tollens, por um motivo que desconheço. Estudei o ginásio na Escola São José do Murialdo. Fiz o científico no Colégio Champagnat Marista, da PUC (Pontifícia Universidade Católica). Depois fiz vestibular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na PUC. Passei nos dois. Na UFRGS, fui aprovada para Ciências, e na PUC, pra Matemática. Minha primeira opção era Engenharia Eletrônica, a segunda era Física e a terceira Matemática. Tinha uma quarta opção que era Processamento de Dados. Eu queria ser cientista, desenvolver o resto da teoria de Einstein, da Teoria do Tempo.

ZONA SUL – Você concluiu algum curso superior?
ELVIRA – Sim, me formei em 1993, com muita dificuldade, porque eu parei para ir pra missão. Fui missionária mórmon no Rio de Janeiro. Fiz missão no Rio e voltei. Trabalhei, fiz dez concursos públicos. Passei no Ministério da Agricultura, fui lotada no Ministério do Trabalho. Eu trabalhava de dia, só podia estudar à noite, só podia pagar uma cadeira. Isso me levou a deixar passar o tempo. Casei, morei em São Paulo quatro anos. Fiz prova para transferir o curso para a USP (Universidade de São Paulo). Mas como morava longe da faculdade - eu tinha que pegar um ônibus, um trem e mais um ônibus - resolvi desistir e ficar em casa. Quando voltei a Porto Alegre, em 1990, estava grávida, e não pude estudar. Consegui me formar em 1993, grávida de novo.

ZONA SUL – Como foi o tempo em que você esteve na missão mórmon, no Rio?
ELVIRA – As missionárias são divididas por área ou região, de duas em duas. Nossa missão é visitar as pessoas, levá-las à igreja, convidá-las para serem batizadas, ensiná-las que o objetivo é sua purificação. Uma pessoa chega, digamos, aos 50 anos, e constata que fez muita coisa errada na vida. Sente vontade de nascer de novo, de ter uma nova chance. O batismo é essa nova chance. Uma nova vida para a pessoa corrigir aquilo que ela viu que não estava certo. Era essa a chance que nós estávamos dando pras pessoas. Não queríamos tirar das religiões antigas, mas dar-lhes uma nova chance.

ZONA SUL – Quais as principais características da religião mórmon?
ELVIRA – Joseph Smith, nos Estados Unidos, não foi batizado em nenhuma igreja até os 14 anos. Ele orando, lendo a Bíblia, tinha questões, como eu falei que tinha também. Ele orou buscando a Deus, para saber qual igreja era a verdadeira. Havia no condado onde ele morava muita discussão religiosa, muita briga. Igual à que existe hoje entre partidos políticos. Cada religião dizia que tinha a verdade. Tinha briga de pegar em armas e lutarem uns contra os outros. Joseph Smith resolveu buscar a Deus e, depois de orar, ele recebeu a revelação de ver dois personagens dentro de uma coluna de luz.

ZONA SUL – E o que aconteceu depois?
ELVIRA – Aquela visão diz para ele que no momento nenhuma igreja da terra tinha a plenitude da verdade. “Mas através de ti vou restaurar à terra este conhecimento”. Então, Joseph Smith passou a se preparar. Depois de anos, ele recebeu a inspiração de ir a um determinado lugar. Lá ele encontrou um livro escrito em placas de ouro, escondido na terra. Ele traduziu o livro pelo nome e poder de Deus. Esse é o Livro de Mórmon. Contém a história do povo aqui na América. O livro abrange um período grande, mas ele só traduziu mil anos: de 600 anos antes de Cristo a 400 depois de Cristo. Conta histórias do povo, histórias que estão se realizando de novo comigo.

ZONA SUL – O livro fala em você?
ELVIRA - Ele fala que nessa terra só virá um rei, que é o Santo Messias, ou o Cristo-Rei, que eu lhe disse que sou eu: Elvira Mariza Zanella. Tenho a missão divina de restaurar todas as coisas que não foram restauradas na terra. Mas não nego as outras religiões, só digo que elas estavam sem um orientador espiritual que conhecesse a plenitude da verdade, que pudesse explicar toda a religião cientificamente, como eu posso. Me consagrei para redimir a humanidade, para estabelecer o reino de Deus na terra e no céu. Mas isso é mais adiante, você quer saber mais coisas do início da minha vida, não é?

ZONA SUL – Isso. Você deixou a missão e voltou para Porto Alegre...
ELVIRA – O costume atual é que os homens fiquem dois anos na missão e as mulheres um ano e meio. Mas eu mudei isso. Eu disse que a pessoa deve ir e ficar na missão até encontrar a alma gêmea, para casar com a pessoa certa. Mas o presidente da missão, sem saber, me deu as passagens para eu voltar para Porto Alegre, embora eu houvesse dito que queria ficar na missão. A minha benção patriarcal disse que eu teria uma grande obra para realizar, uma obra maravilhosa e um assombro. Disse que vou curar as pessoas, reunir as famílias separadas, e que serei lembrada até as gerações futuras como símbolo de retidão, capacidade e bondade. Também disse que eu teria o poder de manipular os poderes do céu e da terra, que através de mim muita coisa ia ser feita aqui na terra. Que se eu fosse leal, fiel e obediente, as manchas do mundo cairiam sobre mim, porque eu me consagrei para redimir a humanidade. Eu tenho que tomar os pecados do mundo pra compreender o mundo, para ajudar a acabar com a ignorância, as trevas, a pobreza, a doença, a miséria e a fome, até erradicar a morte do mundo.

ZONA SUL – E como foi sua volta pra Porto Alegre?
ELVIRA – A minha mãe disse pra eles: “se não mandarem ela de volta, eu chamo a polícia”. Então eles me mandaram de volta, embora eu não quisesse.

ZONA SUL – Você casou depois disso?
ELVIRA – Vim, em 1982, para Porto Alegre. Continuei estudando. Trabalhei em alguns órgãos públicos. Do Ministério do Trabalho, fui para a Central Sul, depois para a Fecotrigo (Federação das Cooperativas de Trigo e Soja do Rio Grande do Sul), e para a Pilar Corretora, que eram órgãos estaduais. Fiz um concurso pra prefeitura e fui para o Hospital de Pronto-Socorro (HPS), na Secretaria da Saúde, contratada como estatutária. A partir daí não voltei mais a trabalhar com carteira assinada. Antes eu trabalhava com carteira assinada, mesmo no Ministério do Trabalho, porque era CLT. Depois disso trabalhei como gerente de cosméticos da Pierre Alexander, tive loja de roupas e fiz outros trabalhos. Tive uma empresa de fotografia, trabalhei tirando fotos. Trabalhei no Mosqueteiro, a churrascaria do Grêmio, onde conheci todos os jogadores do time e outros que vinham de fora. Trabalhei no bar Sgt. Peppers tirando fotografia. Eu tinha sete filhos e tinha que sustentá-los e também ao meu marido, que não trabalhava. Fui mal interpretada, pensaram mal de mim só porque eu ia naquele lugar tirar fotografias. Às vezes meu marido ia comigo. Ele ficava no carro com meu nenê. Tive dois nenês trabalhando lá. Eu dava de mamar pra o nenê nos intervalos, porque ele era pequeninho. No Sgt. Peppers conheci os presidentes Bush e Clinton, o príncipe da Suécia, e o príncipe Andrews. Conheci embaixadores e cônsules de vários países, conheci pessoas muito importantes que hoje estão me ajudando nessa missão divina de poder entrar em contato com o mundo. (N.R. Um dia após a entrevista Elvira contatou o repórter e pediu para retificar: ela teria conhecido George Bush antes do Sgt. Peppers)

ZONA SUL - Como você conheceu o seu marido?
ELVIRA – Ele era da igreja. Mas não casei com a pessoa a quem eu amava, mas com a que me pediu em casamento. Ele era missionário mórmon e foi quem me levou pra São Paulo. Morei quatro anos lá. Quando voltei para Porto Alegre, me separei dele e casei de novo. Esse segundo eu já conhecia, era uma pessoa de quem eu gostava muito, era meu amigo pessoal, de confidência. Só que minha mãe se meteu, não queria que eu ficasse com ele. Ele não fazia a vontade dela. Um dia ela fez algo de mau pra mim e ele nocauteou minha mãe. Ela ficou mais brava ainda, colocou todo mundo contra ele. Meu marido chegou a fazer com meus filhos o que tinha feito com minha mãe. Isso fez com que eu me separasse dele. Para que não se tornasse agressivo com os filhos. A mim ele nunca agrediu, sempre me tratou muito bem. Tenho o poder de controlar as situações. Às vezes eu me torno um pouco agressiva no falar, porque certas pessoas merecem. Eu sou a justiça divina e tenho a missão de dar a cada um o que merece.

ZONA SUL – Os sete filhos são de um só marido?
ELVIRA – Tenho sete arcanjos: Rafael, Rachel, Daniel, Gabriel, Yoshabel, Ishmael e Michael, todos com nome de anjo. Quatro do primeiro casamento e três do segundo. O último perdi com sete meses, no dia 6 de março de 2000. Era a data prevista para o nascimento do Cristo-Rei. Como ele morreu na minha barriga, eu me consagrei. Ele tinha uma má formação cardíaca e os médicos disseram que ele iria passar por uma cirurgia daquelas com uma chance em mil para sobreviver, se nascesse vivo. Então eu disse: Senhor se é para o meu filho nascer, abrir o peito, fazer uma cirurgia naquele coraçãozinho e depois de cinco minutos morrer, prefiro que ele morra na minha barriga, onde ele não vai sofrer tanto. Eu sofro todas as dores por ele. Eu carrego todo o fardo dele, do Cristo. Então ele morreu na minha barriga e eu estou padecendo as dores e o sofrimento dele. Por isso eu tenho sofrido certas coisas, certas afrontas, porque eu me consagrei para sofrer por ele.

ZONA SUL - Que tipo de afronta você está recebendo?
ELVIRA – Eu fui perseguida de todas as formas. Fui caluniada, me tiraram tudo o que eu tinha... No tempo em que eu trabalhava, ganhava bem, uma média de cinco mil reais por mês, tirando fotografias. Eu tirava 400, 420 fotos por mês, e vendia em média a 10 reais. Eu ajudava às pessoas. Sempre ensinei isso para meus filhos. A partir de 2000 foi me dada a espada da justiça. Eu passei a ter que fazer justiça, a dar a cada um aquilo que a pessoa merece. Tenho memória fotográfica, o que leio, gravo. Escrevo há 30 anos o meu diário, e há um ano escrevo para as Nações Unidas, porque fui nomeada pela ONU. Pedi que a ONU publicasse como lei meus relatórios. Meu diário também será publicado. Escrevo desde 1977, desde que me batizei na igreja mórmon. Entendi que eu deveria registrar as coisas diárias e fazer metas para avaliar o meu progresso pessoal. Compreendi que deveria estudar tudo em todas as áreas para saber de todas as coisas. Não adianta eu só saber uma coisa e não saber o resto. Sei em todas as áreas todos os assuntos. Estudei português, matemática, inglês, um pouco de francês, um pouco de hebraico e um pouco de espanhol. Italiano meu pai falava de berço.

ZONA SUL – Por que você deixou a fotografia, já que estava dando tão certo?
ELVIRA – Antes de sair para trabalhar, eu orava com a minha família. Todos os dias nós líamos a Bíblia, um capítulo cada um. Em junho de 1999 fiz uma oração pedindo para estar preparada para a vinda de Cristo. Eu acreditava que ele viria para destruir os iníquos e salvar e resgatar os bons. Nessa minha oração fui ouvida. A partir dali fui perseguida no trabalho. Eu queria saber o porquê. Jejuei um ano para saber a resposta. Visualizei no meu trabalho um tipo de agressão, de jugo, de controle, de manipulação das pessoas. Comecei a observar e vi que eles queriam que eu fizesse algo, mas quando eu achava que era algo errado, eu resistia. Nesse ponto não cedi. Mas comecei a verificar as coisas. Então eu disse: e agora Senhor, o que é que eu faço? Eu já estou orando, me preparando para a vinda de Cristo, estou vendo agressão, estou vendo as pessoas sendo manipuladas. O que o senhor quer que eu faça? Como solto as ligaduras do jugo? Então recebi outra revelação. Êxodos 7-1 diz assim. “Mariza eu te ponho como Deus sobre este povo e te dou um porta-voz, um profeta, e tu vais lá e vais libertar esse povo da escravidão, com sinais e maravilhas, como libertei meu povo do Egito, te darei poder pra isso”. Então, fui chamada, como Moisés foi chamado. O Senhor queria que eu escrevesse uma carta e dissesse para o dono do estabelecimento: “eu, Deus, estou no meio de vós, vocês não podem ver no momento, mas no futuro Me vereis, se não deixarem vossos atos, vossas abominações, assassínios, adultérios, pilhagens, roubos e tal tal tal, uma lista enorme, eu estou com a minha espada desembainhada sobre vossas cabeças, e Eu vos destruirei”. Escrevi o que o Senhor mandou e fiquei sem sabe qual nome assinar. Coloquei Mariza Zanella, profetiza de Jesus Cristo.

ZONA SUL – Deve ter provocado a maior confusão...
ELVIRA – Dobrei o bilhete, chamei um dos garçons, o que achava mais afligido de todos, e disse assim: olha, vá lá e entrega pro fulano. E o fulano foi lá e entregou para o dono. Não sabia nem o que estava escrito. E o dono, disse que depois se entendia comigo. Cheguei no outro dia para trabalhar, sinceramente, morrendo de medo. O que ele vai fazer comigo aqui dentro? Não falaram nada. A única coisa que ouvi quando passei foi “olha, Jesus Cristo está aqui, está conosco”. Segundo dia, terceiro dia e nada. Chegou um dia em que as coisas pioraram. Começaram a me cercar, queriam ouvir mais, mas eu estava receosa. No início da minha carreira de profetisa não sabia o que dizer, não sabia como agir. Eu queria poderes para poder explicar praquela gente. Eu via que eles estavam de um jeito que eu não compreendia ainda. Fui católica 18 anos e 26 anos mórmon, crente, né? Como que eu ajo com essas pessoas? Eu ouvia falar dessas coisas de batuque, e pensava: essa gente deve estar embatucada. Eles devem estar com espíritos, como eu ajo? Então pedi poder, orei, supliquei por poder do alto. E a minha benção patriarcal mórmon dizia que poderia manipular os poderes do céu e os poderes da terra. Então eu orei e senti alguém colocar as mãos na minha cabeça e passar o poder como um raio. Eu tremi, eu estava dirigindo meu carro, indo para o trabalho. E comecei a tremer, sentindo aquele poder.

ZONA SUL – E como esse poder se manifestou?
ELVIRA - Eu dizia: eu expulso os demônios de fulano de tal. E fulano ficava bom, mudava o rosto, a fisionomia, mudava tudo. Comecei a expulsar os demônios de todo mundo. Foi o primeiro passo que dei. Então notei que as coisas mudaram. No trabalho não gostaram, porque eu estraguei o ponto deles. Eles conspurcavam as pessoas para fazer certas coisas e eu impedia e mandava fazer o que eu queria. Um dia o gerente chegou pra mim e disse que queria falar comigo. Eu pensei na hora: ele vai me mandar embora. O gerente disse que se eu não parasse de jejuar - porque eu estava de jejum e eles viam que eu tinha o poder de chegar e mudar tudo – me mandariam embora. Então pensei: antes que me mandem, eu vou embora. Perguntei quem estava me mandado embora. O gerente disse que era o dono. Que o motivo era eu estar passando bilhetinhos pros funcionários. Respondi que, como mórmon, eu estava transmitindo mensagens para eles. Mas na verdade eu ia além. Escrevia outras coisas, tipo “fica firme, confia que as coisas vão dar certo, eu estou resolvendo a situação”... Fazia-os confiarem em mim. Quando as coisas começaram a ser resolvidas, saí.

ZONA SUL – Qual teria sido o motivo verdadeiro para sua saída da empresa?
ELVIRA – É difícil definir. Eu trabalhava no Mosqueteiro e no Sgt.Peppers e morava em Santo Antonio. Eu tinha que passar por dois cemitérios para ir ao Mosqueteiro. No início, ia a pé, porque não tinha carro. Depois de três anos, já ganhava bem e tinha carro. Então resolvi passar pelo cemitério e parar lá. Parei o carro e fiz minha oração. Invoquei todos os poderes que podia invocar. Quando saí, os espíritos israelitas foram comigo. Aí foi que se deu a situação de eu receber todos esses poderes de Israel, de Moisés e tudo. Quando eu ainda trabalhava, invocava os poderes da Bíblia e acontecia de pegar fogo na cozinha, pegar fogo no palco, de baterem os carros na porta... Certo dia, depois que eu pedi demissão, voltei lá. Queria voltar a trabalhar. Como eu poderia ensinar os empregados estando fora? Eu tinha os endereços deles, mas não podia procurá-los sozinha. Eu estava afastada da igreja mórmon. Mas não me deixaram nem entrar. Tive que invocar poderes para poder entrar. Um dia consegui. Lá dentro, fui ao toalete e vi uma mulher chorando. Perguntei o que tinha acontecido. Ela respondeu que alguém de sua família tinha ido embora. Falei para ela não ligar, que tudo ia dar certo, e tal. E saí. Só que ela contou para alguém, e esse alguém me abordou: o que você disse pra fulana que ela está chorando? Expliquei que só queria consolá-la. O fulano disse que ela estava dizendo que eu tinha falado que o filho dela ia morrer. Neguei que tivesse dito isso. Contaram para o marido dela e o homem veio tirando todo mundo da frente e se grudou no meu pescoço.

ZONA SUL – Qual sua reação?
ELVIRA – Fiquei parada, em pé. Só fechei os olhos e disse: Pai. No mesmo instante, aquele homem grudou no meu pescoço e ficou paralisado por uns 3 ou 4 minutos. Foram necessários seis homens pra tirar ele de mim. Cada um que botava a mão nele, ficava paralisado e grudado também. Quando tiraram ele de cima de mim, abri os olhos. O cara me chamou de bruxa, de vadia. Olhei pra ele, só olhei, e levantei a minha mão. Ele baixou os olhos, não disse uma palavra e saiu. Quando chegou perto da porta, disseram pra ele vir me pegar de novo. Ele veio até metade do caminho e voltou. Perguntaram por que. Ele respondeu: “porque ela é o Pai. Não posso pegá-la, é o pai”. Pra encurtar a história, nunca mais me deixaram voltar lá dentro.

ZONA SUL – A partir daí, o que você fez?
ELVIRA - Fui embora, comecei a orar, a jejuar, a ler a Bíblia e recebi muitas revelações. Fui a pé até o mar. Tenho o poder de dizer pro mar: levanta. E ele levanta ondas de oito metros de altura. Digo pro mar: recua pra eu passar. Ele recua e eu ando dentro do seu leito. O mar faz um caminho limpo pra mim, como fez para Moisés. Fui filmada por um satélite russo e um da Nasa andando no leito do mar. Por causa disso me nomearam bastante procuradora da ONU. Constataram o poder que eu tinha e tudo o mais. Também consigo me comunicar telepaticamente. Aqui em Porto Alegre, o Senhor me mandou até o templo mórmon, no bairro Iguatemi. No meio do caminho, o carro parou. Caía uma chuva enorme e eu ouvi aquela voz: “sai do carro e põe as mãos pro céu”. Eu respondia que naquela chuva não sairia do carro. Então passou um carro da Brigada (a Polícia Militar no Rio Grande do Sul). “O que a senhora está fazendo no meio da rua?” Expliquei que o carro tinha parado e eles me ajudaram a estacionar o carro no acostamento. Daí criei coragem para sair do carro e colocar as mãos pra cima. Só que eu não olhava pra cima porque a chuva era muito forte. Meia hora depois, olhei pra cima. Quando olhei, caiu nos meus olhos muito pingo d’água. Então vi uma nave imensa, acho que tinha uns 5 quilômetros de comprimento, porque ela estava acima das nuvens. De vez em quando as nuvens abriam e apareciam os símbolos do zodíaco embaixo da nave. O Senhor então me disse que a gente vai pro céu de nave espacial. Não é como as pessoas pensam, que morre e vai o espírito. Temos que cuidar do nosso corpo para que um dia ele possa ser elevado ao céu como no filme Cocoon. O corpo sobe em um raio de luz. Mas para isso a pessoa não pode ter pecados. Se tem, ela não sobe. Por isso temos que ir ao mar. Ser provado, testado, limpo das trevas para poder flutuar nesse raio de luz e ser levado para povoar outros mundos.

ZONA SUL – Explique essa roupa que você usa.
ELVIRA – Está em Apocalipse assim: “aquele que vencer herdará todas as coisas, concederei que se vista de branco e se assente comigo no meu trono, e darei poder sobre as nações e as regerá com vara de ferro, e lhe darei um novo nome”. Então me vesti de branco e também tive que me vestir de ouro, porque eu sou também Nossa Senhora do Magnífico Esplendor, Onipotente Deus Senhor dos Exércitos, Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Este é o meu memorial de geração em geração. Amém. Significa que eu tive que me vestir de ouro porque em Brasília tem um palácio chamado Palácio Esplanada do Magnífico Esplendor, construído para mim. Juscelino Kubitschek construiu Brasília sob inspiração. Nasci em 1958, quando JK começou a receber as revelações para a construção de Brasília. Eu devo governar o Brasil dessa época em diante. Por isso eu sou o Cristo-Rei, o monarca. Por isso está na Constituição de 1988, nas disposições transitórias, no artigo 2º, que deverá haver um plebiscito em 7 de setembro de 93, para decidir se o Brasil continuará sendo uma república ou voltará a ser monarquia.

ZONA SUL – E essas luvas que você usa?
ELVIRA – Uso luvas brancas porque eu fui nomeada chefe das Nações Unidas. E também porque eu feri as minhas mãos no mar, por andar no sol, meu rosto também ficou muito envelhecido por causa do sol, da maresia, do vento. Minhas mãos ficaram manchadas. Também uso um símbolo nas mãos que é o símbolo que eu tenho que dar para as pessoas poderem ser elevadas ao céu. Também tenho um astigma, um sinal bem no centro da mão. Uma marca de Cristo. Tenho sete sinais no corpo. Triângulo, compasso, bússola, sinal da balança e sinal da cruz, que são sinais da maçonaria. Sou o grão-mestre da maçonaria, o arquiteto do universo. O frontal na testa é para lembrar de orar. O filactério enrolado na mão direita é o meu terço. Trago uma pequena bíblia aqui sobre o peito. Além disso, uso a faixa de Israel, porque eu sou o Onipotente Senhor Deus dos Exércitos, como te disse. E uso a estrela de Davi, porque sou herdeira de Davi e de Salomão.

ZONA SUL – Deixe uma mensagem para quem ler essa entrevista.
ELVIRA – Minha missão é em âmbito universal. Eu sou a Redentora Suprema da Criação, eu sou Deus, Senhor, Criador, Cabeça, o Primeiro. Como a Mãe do Céu, como Nossa Senhora da igreja católica, eu reino. Meu reino é sempre. Mandei meu filho Jesus Cristo, que é o filho que eu perdi, o Michael, nascer há dois mil anos atrás, porque ele não podia nascer nessa época. Queriam fazer com ele o que fizeram comigo. Minha missão é que todos se arrependam de seus caminhos errados da vida e se batizem no meu nome, Elvira Mariza Zanella, o Cristo. Se fizerem isso terão a remissão dos seus pecados. Mesmo que sejam vermelhos como escarlate, se tornarão brancos como a neve. Eu esquecerei dos seus pecados, os perdoarei. Para isso devem ser leais, fiéis e obedientes a mim, segundo juramento.

segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Entrevista: O DUENDE

O DUENDE DE CADA UM DE NÓS




Demorei mais tempo para decidir se publicava ou não essa entrevista do que para prepará-la. Há alguns meses, no primeiro semestre desse ano, o Zona Sul trouxe em suas páginas a inusitada história de Wadão do Jegue do Dente de Ouro. Na abertura da transcrição do bate-papo, coloquei em dúvida algumas das histórias contadas pelo baiano. Mas também revelei que era verdadeiro o que eu pude investigar. Agora é diferente. O entrevistado do mês é uma pessoa que não existe. Aliás, é alguém que existe em mim, e em várias outras pessoas. Cada um de nós acumula histórias que valem a pena ser contadas. Portanto, o que você vai ler a partir de agora é, e também não é, fruto de ficção. São casos que vivi, testemunhei ou ouvi contar. Todos encarnados na figura de um ser encantado que não existe. Quem sabe, um duende criado para protagonizar essa entrevista? (Roberto Homem)



ZONA SUL – Você nasceu em Natal?
O DUENDE – Nasci em Natal, em um dia de Carnaval. Minha mãe estava quase parindo quando apareceram uns papangus. Nasci no meio deles, naquela zoeira toda. Acho que por isso virei duende...

ZONA SUL – Um gnomo nasce após 12 meses de gestação. Uma criança, após nove meses. Mas, ao que consta, você nasceu com 11 meses. Essa informação procede?
O DUENDE – É verdade, sim. Minha mãe estava me esperando para fevereiro e eu só nasci em abril. Ou então ela errou. Talvez ela não fosse muito boa em matemática... Acho que ela errou a conta.

ZONA SUL – Conte para os leitores do jornal como foi sua infância...
O DUENDE – Eu não tive. Pelo menos eu não lembro de nada dessa época. A recordação mais antiga que me vem agora é a do meu primeiro emprego. Meu primo vendia chocolate, confeito, esses negócios... Chamou-me para ajudá-lo. Perguntei o que eu devia fazer. Ele explicou que quando aparecesse um menino acompanhado da mãe, eu devia beliscar a criança. Quando ela começasse a chorar, a mãe iria dizer “chore não, menino, tome um chocolate”. E assim foi meu primeiro emprego. Passava um menino, eu beliscava. Eu tinha uns 13 anos.

ZONA SUL – Você tem recordações antes dessa época?
O DUENDE – Não, lembro não. Lembro só desse emprego do chocolate. Hoje, esse meu primo tem uma loja de doces. Ao que eu saiba, ele não pratica mais nenhum método inusitado para vender seu produto. Ah, também quando era pequeno, uma vez pastorei carro em um velório. Mas não rendeu muito, não. A maioria me esculhambava quando eu pedia grana. Dizia que eu não respeitava a dor alheia... Mas eu acho que era apenas desculpa pra não dar um trocado.

ZONA SUL – Teve uma época em que você andou sofrendo uns acidentes domésticos, não foi?
O DUENDE – Sim. Quebrei os dois pés. Em uma das vezes, eu estava fazendo um strip-tease. Na outra, jogando futebol. Mas esse não foi o problema, o negócio é que era para eu passar um mês no gesso, quando quebrei o pé dançando, e fui obrigado a passar quase um semestre. Na data marcada para tirar a bota, voltei ao hospital com minha mãe e a pessoa responsável para autorizar a remoção do gesso tinha faltado. Estava viajando. Voltei depois várias vezes, mas sempre acontecia um imprevisto. Foram quase seis meses para eu tirar o gesso. Depois desse tempo todo foi que conseguiram achar o cara. Parece que tinha feito um estágio nos Estados Unidos. Por isso essa dificuldade grande. Mas consegui tirar. Quando tirei o gesso, fiquei leve... Parecia que ia flutuar. Eu, aperreado, querendo andar e não conseguia. Só fui andar amparado por duas pessoas. Bem leve.

ZONA SUL – A vida prosseguiu normalmente?
O DUENDE – Sim, pelo menos normalmente à minha maneira, né? Eu tinha uns 18 anos nessa época. Voltei a farrear e a freqüentar as festas nos clubes. Eu tinha certo complexo porque o gesso tinha me deixado um pouco traumatizado. Talvez pela demora em retirá-lo. Uma vez, na Assen (Associação dos Subtenentes e Sargentos do Exército em Natal), chamei uma menina pra dançar e ela respondeu que não ia porque não tinha ido com minha cara. Na mesma hora eu insisti: “não tem problema, eu danço de costas”. Mas nem assim ela quis.

ZONA SUL – Esse acontecimento na Assen foi um fato isolado nessas suas andanças pela noite potiguar?
O DUENDE – Que nada, acontecia direto! Uma vez fui para Caicó, para a festa de Sant’ana. Eu já fui pra lá com medo, porque tinham me contado que a cidade era muito violenta. Cheguei em um bar lotado, e quando estava me dirigindo ao balcão para pedir uma cerveja, um cara, sem ver, pisou no meu pé. Na mesma hora pedi desculpas a ele, apesar de a vítima ter sido eu. Ele respondeu: “eu desculpo, mas da próxima vez você tome cuidado!”.

ZONA SUL – Você tinha mais ou menos qual idade nessa época?
O DUENDE – Uns 23 anos. Faz muito tempo. Logo em seguida eu fui fazer faculdade. Fiz três faculdades, só não fiz a quarta porque faltou cimento... Tou brincando. Fiz Filosofia e Letras.

ZONA SUL – O que você aprendeu na faculdade de Filosofia?
O DUENDE – Não aprendi nada, não. Paguei Corredor 1 e 2... Eu só queria mesmo era aproveitar as companhias femininas da faculdade.

ZONA SUL – Soube de algumas histórias inusitadas protagonizadas por você. Por exemplo, o caso de um professor que dava aula toda segunda-feira, às 19 horas. Naquela época o assinante da revista Veja recebia seu exemplar na segunda à tarde. Esse professor, antes de ir dar aula, passava em casa pra pegar a revista. Na sala de aula, pedia pros alunos conversarem baixinho enquanto ele lia. Às vezes distribuía um papel ou outro. Formalmente ele tinha que fazer provas pra avaliar a turma. Geralmente eram chamadas orais. Em uma dessas vezes, aconteceu uma situação bem engraçada com você. Como foi?
O DUENDE – Ele chegou dizendo que ia fazer uma chamada oral. A turma ficou preocupada, já que ele não tinha nem avisado antes. Chamava um por um e, ao final das perguntas, dava a nota. Chegou minha vez. Ele perguntou se eu tinha assistido às aulas dele. Respondi que sim. Em seguida pediu que eu dissesse o que tinha aprendido nas aulas dele. Perguntei se eu podia falar a verdade. Ele disse que sim. Então revelei que não tinha aprendido nada. Como a disciplina era Ética, ele me deu um 9, pela minha sinceridade.

ZONA SUL – Tem outro episódio dessa mesma época sobre um trabalho para ser feito em casa, passado por outra professora da faculdade de Letras.
O DUENDE – Ela deu um tema e pediu para que cada aluno escrevesse qualquer coisa sobre aquele tema. Podia ser uma poesia, um conto, uma matéria, uma crônica... Eu fiz uma matéria. Uma amiga, que estava grávida, disse que não tinha condições de fazer o trabalho e que seria reprovada, repetiria a disciplina no ano seguinte. Eu fiz pra ela. No dia da entrega dos resultados, a professora classificou o trabalho que eu fiz para a minha amiga como o melhor da turma. Minha amiga olhava pro meu lado com uma vergonha... Mas a professora continuou. “Fulana mereceu um 10, porque seu trabalho foi excelente, mas, em compensação, o Duende fez um trabalho que foi o pior que eu já vi até hoje. Vou dar um 5 apenas para não prejudicá-lo”.

ZONA SUL – O que mais você lembra dessa época de faculdade?
O DUENDE – Não de muita coisa. Lembro mais das brincadeiras que a gente fazia mesmo. Várias que não podem ser contadas aqui. Uma vez saímos para um restaurante eu e mais dois amigos. Terminamos de jantar, ficamos bebendo mais um pouco. Nessa época eu não tinha automóvel, então, quando chegou perto de meia-noite, hora em que circulava o último ônibus, fui para a parada, do outro lado da rua. Meus dois amigos ficaram. Quando cheguei na parada, um cara disse que o último tinha acabado de passar. Resolvi voltar. Tinha um box da polícia militar perto do restaurante. O policial, ao me ver falando com meus dois amigos, veio até onde eu estava: “ei, não pode ficar pedindo comida aqui não”, disse ele pra mim. Queria me prender. Mas meus amigos intercederam, revoltados.

ZONA SUL – Essa é a história na qual você e seus amigos terminam presos?
O DUENDE – Sim. Quando começou o bate-boca, um dos meus parceiros deu um soco na boca do PM. Os garçons vieram e a confusão se estabeleceu. Todos brigávamos com todos quando chegaram três viaturas da polícia. Os guardas nos dominaram e trancaram dentro do PM box. De lá de dentro nós desferíamos socos em todos os policiais que tentavam entrar. Mas quando conseguiram nos tirar dali... Não gosto nem de pensar porque o corpo todo volta a doer... Dormimos na cadeia, moídos de tanta pancada.

ZONA SUL – Você concorda com a avaliação que várias pessoas fazem de que você não tem sorte?
O DUENDE – Não. Mas não posso negar que coisas estranhas acontecem. Uma vez estava voltando da praia de Pitangui, de carona com um amigo, em um fusquinha novinho. Já chegando no bairro das Quintas, perguntei a ele se aquele carro nunca tinha dado prego. Quando ele acabou de dizer que não, o carro quebrou. Acho que pelo meu jeito essas coisas acontecem. Uma vez estava passando uma moça bem bonita, eu resolvi tirar o chapéu, para cumprimentá-la. Quando fui colocar de novo o chapéu na cabeça, tinha uma ruma de moeda dentro.

ZONA SUL – Outro comentário que fazem a respeito desse seu azar é que na maioria das vezes ele vem com um atenuante. Por exemplo, no dia em que esse fusquinha quebrou, foi em frente a uma oficina...
O DUENDE – Eu também tive sorte, uma vez. Eu estava em João Pessoa, indo para a Ponta do Seixas, de carona com um amigo que mora na capital da Paraíba. Ele estava com a mulher e os filhos. Fomos parados por uma blitz, no bairro de Tambaú. Um guarda pediu os documentos do carro e os do motorista. Estava faltando pagar o seguro obrigatório. Meu amigo perguntou se tinha banco ali por perto, aquela coisa toda. E o guarda sem querer deixar a gente prosseguir. Foi uma dificuldade. Lá pras tantas, depois de uma meia hora, ele olhou pra mim e perguntou: “você é sobrinho de dona Coló, que mora em Natal?”. Eu confirmei. “Ah, então podem ir embora”. Foi nossa sorte.

ZONA SUL - Mas, nesse caso, parece que a sorte foi dessa tia sua, a dona Coló...
O DUENDE – Esse negócio de azar é coincidência. Uma vez fui ao supermercado com um amigo para comprar uma pizza que estava em promoção. Quando chegou a nossa vez, a balconista informou que tinha acabado naquele instante. Meu amigo, que já sabia desse meu histórico de azar, disse pra ela que já esperava aquilo acontecer.

ZONA SUL – É verdade que você teve problemas com a bebida?
O DUENDE – Problemas mesmo com a bebida quem teve foi um amigo meu. Ele é bem reservado. Pelo menos era, na época em que aconteceu essa história. Tomou umas cachaças grandes e saiu agarrando todas as mulheres que passaram pela frente. Eu nunca tinha visto um negócio daqueles. Tenho a impressão de que ele não gosta nem de lembrar desse episódio. Mas eu também cheguei a beber um pouquinho além da conta, sim, em determinada época da minha vida. Lembro de uma ocasião, um domingo à noite, tudo fechado perto de casa. Só tinha uma venda aberta. Fui lá. Não tinha cerveja, não tinha cachaça, nem vinho... Pedi uma garrafa de álcool. Também estava faltando. Tive que me contentar com um tablete de dropes de uísque...

ZONA SUL – Você falou que pediu uma garrafa de álcool... Teria coragem de tomar álcool puro? O DUENDE – Não!!! Claro que não. Eu estava pensando em tomar o álcool misturado com água e suco de uva, como eu bebi em determinada ocasião com um amigo. O negócio é que pega rápido. A gente termina enlouquecendo ligeiro. Não recomendo. Aliás, desde o dia em que cheguei em casa rebocado, carregado por amigos dentro de um carrinho de mão, que praticamente deixei de beber. Aquela cena foi o fundo do poço.

ZONA SUL – Sério? Aconteceu isso mesmo?
O DUENDE – Sim. Para você ter uma idéia, nessa época eu morava sozinho e basicamente só tinha duas opções de jantar: ou vinho Capelinha com pipoca, ou cerveja com meia dúzia de ovos cozidos. Mas, em determinada ocasião, meus amigos resolveram apostar em mim numa disputa com um professor de educação física que bebia todas. O negócio era ver quem agüentava mais cachaça. Naquela época a Caranguejo era vendida também em meia garrafa, que a gente chamava de “burrinho”. No bar, pedimos dois burrinhos. Um pra mim, outro pra ele. Quando eu estava no quarto burrinho, já estava louco. Meu adversário estava bêbado, mas eu já tinha ficado maluco. De lá fomos para outro bar. Mas eu já não tinha condições mais nem de descer do carro. Eles foram beber. Quando voltaram, viram a cena: eu tinha vomitado em cima das cadernetas de chamada do professor. Ele ficou tão revoltado que me expulsou do carro. Então, meus amigos arrumaram um carrinho de mão emprestado para me levar em casa. Essa foi a história.

ZONA SUL – É verdade que você foi morar no interior para facilitar seu processo de deixar de beber?
O DUENDE – Sim. Fui trabalhar como assistente social em uma comunidade carente. No dia em que eu cheguei lá, Ulysses Guimarães tinha desaparecido naquele acidente de helicóptero. Aquele assunto me atraiu. Pena que pouco tempo depois que eu comecei a assistir o noticiário, a televisão pifou...

ZONA SUL – Você passou quanto tempo como assistente social?
O DUENDE – Não muito. Um dia fui visitar uma família que estava passando sérias necessidades. Levaram-me para um bairro bem pobre. A orientação que eu tinha era preparar um relatório que emocionasse quem lesse. Entrei naquela casa bem humilde. Só tinha um caldo de feijão na panela. Era a única refeição do dia daquela família. Fiquei tão sensibilizado com tamanha pobreza que passei mal e quase desmaiei. Quando eu caí no sofá, passando mal, a mulher correu pra panela e me ofereceu: “tome um caldinho pra melhorar”. Um colega que me acompanhava rebateu na hora: “não dê o caldo a ele não, pois vai acabar o caldo da senhora”. Mas ela insistiu: “deixe ele tomar senão é capaz de não sair daqui vivo”. Ela teve pena de mim. Outra vez fui fazer um trabalho social com uns índios. Quando eu tava me aproximando, eles começaram a atirar pedras. Uma delas pegou na minha testa. Esses índios eram favelados. Eles não gostavam muito de conversa. Depois dessa experiência resolvi experimentar outra profissão.

ZONA SUL – Que profissão escolheu?
O DUENDE – Fotógrafo de uma revista. Certa vez me pediram para fotografar meninos com piolho num bairro de periferia. O repórter já tinha escrito a matéria, mas não tinha levado fotógrafo. Como não conhecia muito bem a cidade, pedi ao motorista que me indicasse um local bem pobre, para eu tirar as fotos. Vi uns galeguinhos brincando e achei legal para ilustrar a matéria. Bati as chapas, voltei pro jornal, entreguei o filme para o laboratorista. Depois que ele me entregou as fotos já reveladas e copiadas, levei para a redação. Deixei na mesa do editor. Enquanto eu conversava com o jornalista, dizia a ele que as fotos já estavam prontas, só ouvi um grito do repórter policial: “o que a foto dos meus meninos está fazendo aqui?”. Por infeliz coincidência, os galeguinhos da peste de piolho eram filhos dele.

ZONA SUL – Você experimentou o ramo da publicidade também?
O DUENDE – Não, mas eu gosto muito. Prefiro aquelas produções meio trashs. Que são baratas, mas criativas. Lembro de duas bem legais. As duas, por coincidência, eu assisti nas minhas viagens pelos quatro cantos do país. Estava havendo muito suicídio no maior prédio de uma cidade. O edifício tinha quatro andares. Então, um publicitário bolou um anúncio e armou tudo para gravar um filme para ser veiculado na televisão. Mas ele queria realismo. No dia da gravação, avisou à imprensa que um cara estava tentando se matar no prédio citado. Esse cara aparentava estar desesperado, e ameaçava pular. Depois de muita confusão, a imprensa toda lá, uma mulher gritou, perguntando ao cara por que ele estava querendo se matar. Ele explicou que a vida não prestava, que estava desempregado e coisa e tal. Ele deu como exemplo da vida não valer a pena o fato de querer pintar sua casa e ter apenas 5 reais no bolso. “Eu vou é pular, não quero entrar o novo ano com a casa suja”, ameaçou. Quando ele ia pulando, a mesma moça que perguntou, que na verdade era uma atriz, disse: pera aí! lá na Sótintas tem uma promoção e o galão de tinta está custando apenas R$ 3,99”. O cara desistiu de se matar e saiu correndo pra garantir o seu galão de tinta.

ZONA SUL – E a outra propaganda?
O DUENDE – A outra era o dono da Só-colchões, que tinha sido preso por estar vendendo barato demais. A concorrência tinha denunciado. A propaganda era dentro de uma cela, na delegacia. Aparecia um repórter imitando Gil Gomes, e perguntava ao empresário por que ele tinha sido preso. Ele respondia que a concorrência estava furiosa e o tinha denunciado por estar vendendo colchão barato demais, a preço de custo. “Pois agora ela vai ficar com mais raiva ainda porque eu dei uma ordem pra baixar mais os preços”. Aí, o imitador de Gil Gomes encerrava com aquela sua voz peculiar: “é louco, esse homem é louco!”.

ZONA SUL – O que mais aconteceu nas suas andanças pelo Brasil?
O DUENDE – Uma vez, ainda na revista que estagiei, faltou um repórter e me mandaram fazer uma enquete quando uma figura importante da cidade foi assassinada. No decorrer da cobertura, certo dia o editor nos chamou para distribuir as tarefas. Ele me pediu que além das fotos eu fizesse também uma enquete. Eu tinha que ouvir as pessoas para saber o que elas achavam: se o crime tinha sido encomendado ou era um latrocínio. Cheguei em uma rua bem movimentada do centro da cidade e fui ouvir a primeira pessoa, uma velha que vinha caminhando na minha direção. Depois que eu me identifiquei, falei que estava fazendo a enquete sobre o assassinato e queria ouvir a opinião dela: se o crime tinha sido encomendado ou se tinha sido latrocínio. “Posso dizer a verdade?”. Eu respondi que podia, claro. “Foi latrocínio, esse cara nunca me enganou”, acusou a mulher. A maioria das pessoas que entrevistei para a enquete acusou latrocínio de ter cometido o crime. Deviam pensar que latrocínio era o nome de um barbudo que estava sendo apontado como suspeito. A enquete deu 7 para latrocínio e 3 para crime encomendado.

ZONA SUL – Você teve outras experiências de emprego?
O DUENDE – Sim. Fui trabalhar numa loja de venda de discos de vinil, ainda não existia CD. Mas não me dei muito bem porque eu não conhecia muitos cantores do Brasil. Um certo dia uma mulher chegou na loja e pediu à outra vendedora um disco de Adilson Ramos, para dar de presente ao seu namorado. A colega, um pouco distante de mim, gritou: "traz Adilson Ramos pra cá'. Eu respondi: "ele já foi embora para o almoço e acho que não volta mais hoje". Eu pensei que Adilson Ramos era um funcionário, jamais imaginava que se tratava do cantor romântico intérprete de grandes sucessos, como por exemplo "Por que não paras relógio".

ZONA SUL – E durou quanto tempo essa experiência?
O DUENDE – Um dia.

ZONA SUL – E sua vida amorosa? Você está apaixonado por alguém?
O DUENDE – Estive, por uma garota. Só que o marido dela vive na colônia penal, o filho está preso no interior e a filha hospedada na delegacia de menores. Só tem ela solta, mas por enquanto. Por isso ta difícil. Foi engraçado quando eu descobri. Um dia perguntei. “Seu ex-marido mora onde?”. “Lá na zona norte”. Eu insisti. “Eu tive até uma namorada lá, ele mora onde?”. “Mora em Santarém”. Eu perguntei de novo. “É perto da colônia penal?”. “É lá”.

ZONA SUL – Lembra de alguma decepção amorosa?
O DUENDE – Antigamente existia um negócio chamado Disque-Amizade. Você ligava para um determinado número e várias linhas se cruzavam. Nem sei se ainda funciona isso. Vez por outra eu usava esse serviço. Uma vez conheci uma moça e terminei gostando dela. Antes de nos encontrarmos, passamos uns cinco dias conversando só por telefone. Eu a conhecia como Tiazinha. Por causa desse nome, desde o começo eu a imaginei comparando com aquela Tiazinha da tv. Deixa que o apelido dela era Tiazinha porque tinha levado porrada e estava com os olhos roxos, parecidos com a máscara que a Tiazinha verdadeira usava. Quando finalmente a conheci, não me controlei “você é quem é Tiazinha?”. “É, você me quer ou não?”. Como fazia algum tempo que eu não namorava, encarei. Acho que até se fosse Feiticeira - não a do seriado, nem a dançarina da TV Bandeirantes, mas uma feiticeira de capa preta e vassoura - eu teria encarado também.

ZONA SUL – Parece que você não tem sorte com as mulheres...
O DUENDE – Pois é, outra vez eu estava em um shopping de Natal, mandando um e-mail em uma lan house, pois a Internet de casa estava com problema. Apareceu uma conhecida. Começamos a conversar e ela me chamou pra tomar uma cerveja. Eu disse que não queria. Então ela propôs que fôssemos na minha casa, pois precisava escrever um trabalho no meu computador. Concordei. Fomos a pé. Ao chegar, ela perguntou: “não tem cerveja pra gente relaxar?”. Eu perguntei se ela não relaxava com café, que era a única coisa que tinha. Ela disse que servia e pediu bolacha também. Só tinha um pacote de bolacha da minha irmã. A moça comeu quase tudo. Sei que eu tava com ela no computador, crente de que ia sair alguma coisa, quando tou me aproximando dela, ela começa a gritar. Ai aiii aiiiii. Por azar, meu sobrinho ia chegando em casa naquele instante. Fechei a porta rapidamente e tampei a boca dela para abafar o grito e ninguém escutar. Ela: “arhhhg”. As pernas subindo. Teve uma hora que não agüentei mais e soltei. Ela gritou e disse que tinha incorporado um espírito. Ameacei chamar os Bombeiros. Nisso ela correu para o meio da rua e caiu. Cheguei e nada do espírito sair. Ele só foi embora quando eu disse à moça que a levaria em casa. Ela entrou no carro, boazinha. No meio do caminho, descobri que estava sem documento nenhum. Disse a ela que teria que deixá-la ali, que ela fosse o resto do percurso de ônibus. Ela perguntou: “e o espírito”. “Espírito coisa nenhuma, se a polícia nos pegar vamos presos eu, você, espírito e quem mais aparecer, ora”. Deixei ela na parada de ônibus. Nunca mais a vi.

ZONA SUL – Qual sua participação no “apagão” ocorrido no governo Fernando Henrique Cardoso?
O DUENDE – Eu estava em Natal, quando um amigo me telefonou dizendo que tinha conhecido uma pessoa que se dizia tão azarada quanto eu. Como eu e a moça éramos solteiros, esse meu amigo queria nos apresentar, mesmo que fosse por telefone. Quando ele passou o telefone pra ela, que eu disse alô e ela respondeu, metade do Brasil apagou imediatamente. Eu lembro bem porque nessa mesma hora o ABC estava vencendo o Grêmio, em Porto Alegre. Quando a partida foi reiniciada, após os refletores terem sido acesos novamente, o Grêmio virou pra cima do ABC.

ZONA SUL – Essa pessoa que falou com você por telefone, em seus dois últimos aniversários fraturou pedaços da perna. Mande um recado de sorte para ela...
O DUENDE – Espero que no seu próximo aniversário você quebre o dedo mindinho... E que apareça aqui em Natal.

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Entrevista: DUDÉ VIANA

O GRITO DE UM RÉU INOCENTE



José Filho, José da Silva, José Ramalho Viana, Dudé ou Dedé? A história do cantor e compositor Dudé Viana é repleta de situações inusitadas. Natural de Caraúbas, ele desde cedo tomou gosto pela música. Depois de muitas idas e vindas, Dudé hoje parece estar consolidando sua carreira, alternando apresentações no Rio Grande do Norte e no Rio de Janeiro. Um dos episódios que mais o marcaram foi o período em que esteve preso injustamente. O fato rendeu até um livro. Batalhador, agora ele está viabilizando sua segunda incursão na literatura. Mesmo sem editora, ele pretende lançar a história dos Benevides Carneiro. Dudé desmistifica a impressão de que esta é uma família de pistoleiros. Saiba tudo isso e um pouco mais lendo um resumo da conversa que eu, Costa Júnior e o jornalista Carlos Roberto Pereira mantivemos, no Veleiros, com Dudé Viana, em uma noite enluarada de julho. (Roberto Homem)



ZONA SUL - Como é o seu nome completo e onde você nasceu?
DUDÉ – Meu nome hoje é Dudé Ramalho Viana. Nasci em Caraúbas (RN). Era só José Filho, na certidão de nascimento. Quando fiz a retificação do nome, por orientação de um juiz, botei o Viana, da família da minha mãe, e o Ramalho, que é do meu avô paterno. Meu pai só tem o sobrenome da mãe, que é Carneiro, mas não tem o nome do pai, que é Ramalho. Quando comecei, assinava só Dudé, já que não tinha sobrenome.
ZONA SUL – Se essa retificação fosse muito tempo antes, você poderia ser conhecido hoje como Zé Ramalho... Aliás, vocês têm algum parentesco?
DUDÉ – A origem das nossas famílias é a mesma. Eu gosto muito do nome Ramalho, tem sete letras, como a música tem sete notas. Quando o juiz disse que eu podia botar o sobrenome do meu avô, Ramalho, apesar dele não constar no nome do meu pai, concordei na hora. Ele explicou que como tem o nome do meu avô na minha certidão de nascimento, eu poderia usar o seu sobrenome. Depois da retificação passei a usar o nome artístico de Dudé Viana. Até porque passei a encontrar outros Dudés, como o Dudé cearense, um sanfoneiro, e um outro Dudé, músico alagoano.

ZONA SUL – Você está com qual idade? Como foi sua infância em Caraúbas?
DUDÉ – Fiz 56 no dia 5 de julho. Caraúbas antigamente era chamada de Caraúbas de Apodi. A cidade fica a 311 km de Natal. Nasci e me criei na roça, em um lugar chamado Poço Redondo. Fui pra cidade com 14 anos. Meu avô, João Francisco Viana, gostava muito de cantoria. Quando eu tinha cinco anos, ele, pelo menos três vezes por ano, levava duplas de cantadores e promovia cantorias em sua casa. Eu ia pra lá e ficava até de madrugada, cheio de sono, mas ouvindo aqueles violeiros tocarem. Isso me influenciou muito. Uma vez fui para uma feira na cidade de Umarizal, cidade que fica pertinho. Um feirante que vendia aquelas gaitinhas deixou cair uma delas no chão. De tanto as pessoas pisarem, ela ficou tão arranhada que não servia mais para a venda. Eu fiquei olhando a gaitinha, eu queria comprar uma, mas estava sem dinheiro. O vendedor me deu aquela toda arranhada. Aprendi e passei a tocar as músicas de Luiz Gonzaga e de outros compositores da época, com aquela gaitinha de sete notas. Com dez anos eu já tocava legal. Além das duplas que eu via na casa do meu avô, eu também tinha um tio de minha mãe, Cezário Boágua, que era cancioneiro. Quando ele ia fazer cantoria nos sítios próximos, no sertão, pernoitava na casa do meu pai. Ele tinha mania de afinar a viola e ficar ensaiando as canções. E eu ouvindo. Aos 14 fui morar na cidade, em Caraúbas, perto de um violonista meio seresteiro. Ele bebia uma cachaça danada! Quando estava meio bêbado, me dava o violão, embora eu não soubesse tocar. Assim fui aprendendo.

ZONA SUL – Você também tinha acesso a emissoras de rádio ou outras fontes de música a não ser a dos violeiros e cantadores?
DUDÉ – Na época não tinha rádio lá. Existia em Mossoró. Mas lá em casa a gente nem possuía rádio. Só em Caraúbas que passei a ouvir as emissoras de Mossoró. Veio a onda da Jovem Guarda, e eu ficava ouvindo Roberto Carlos e aqueles outros também. Também escutava Luiz Gonzaga, que fazia muito sucesso. Então foi dessa forma que a rádio exerceu influência musical sobre mim. Aos 15 anos eu já tocava um pouco de violão. Depois passei pra cavaquinho, guitarra... Mas acabei ficando com o violão mesmo, porque é um instrumento bom pra gente tocar na noite. Mas eu gosto mais é de compor música, de criar, sou mais compositor. Estou sempre escrevendo música porque eu gosto, me sinto bem.

ZONA SUL – Por que você trocou Caraúbas por Natal?
DUDÉ – Quando eu tinha 14 anos meu pai separou da minha mãe, lá na roça. Fui pra Caraúbas levado por um tio porque lá era mais fácil de ganhar a vida. Mas eu tinha nove irmãos e era arrimo de família. Uma das minhas irmãs veio pra Natal e começou a trabalhar por aqui. Como em Caraúbas as coisas estavam ruins pra mim, resolvi vir, em 1969, quando eu já tinha 19 anos de idade. Meu primeiro emprego em Natal foi de cobrador de ônibus. Mas eu continuava doido por música. O meu objetivo ao vir pra Natal era tentar música. O tempo como cobrador de ônibus durou pouco. Em 1972 fui participar de um programa de auditório que tinha na então Rádio Trairi, que depois passou a ser Tropical, e hoje é CBN. Tinha muitos calouros cantando. Eu notei que o programa precisava mais de um animador. Eu queria ficar no programa porque tinha um supermercado patrocinando e, embora pouquinho, ele dava uma graninha a quem ficava. Se eu fosse como calouro, tinha muita gente boa, e eu tinha medo de não ficar. Eu fui assim meio como comediante, meio cantor. Fui fazendo paródia de música. Fiquei por lá oito meses. Virei meio que um animador do programa. Ele passava todo domingo, das nove da manhã ao meio-dia. O apresentador do programa era Doskagíbeo dos Santos.

ZONA SUL – Que nome complicado para apresentador de programa de rádio popular!
DUDÉ – É. Ele já estava meio coroa, na época, era apresentador antigo. Era da Rádio Nordeste e da Trairi. Era bem conhecido. Era até Doskagíbeo com K. Eu me lembro de tudo. Fiquei nesse programa um tempo, quando ele acabou eu já estava bem viciado em palco. Ficava difícil até parar.

ZONA SUL –Quando você começou a compor?
DUDÉ – Fiz minhas primeiras músicas aos 13 anos de idade. Eram musiquinhas que depois tive que melhorar. Como eu falei, gosto de escrever. Não escrevo bem, mas gosto de escrever. Quando o programa de rádio acabou em Natal, escrevi um musical infantil chamado Riso da infância. O padre da igreja de Lagoa Seca abriu as portas da casa paroquial e apresentei o musical muitas vezes ali. Depois comecei a circular na Grande Natal e no interior. Eu tinha um grupo de oito crianças comigo. O Riso da infância eram esquetes improvisados. As pessoas gostavam muito. Se naquela época houvesse mais oportunidade pro humorista, eu teria me dado bem. Gosto do texto engraçado. Não sou muito da imitação. Eu tinha dom para escrever textos engraçados. Mas era difícil, não dava pra viver. E eu tinha que ganhar dinheiro para sustentar meus irmãos. Aí comecei a viajar com circos. Passei cinco anos assim.

ZONA SUL – O que você fazia no circo?
DUDÉ – Cantava e fazia esquetes junto com os palhaços. Eu escrevia coisas pro palhaço falar que o povo morria de rir. Se eu tivesse tido oportunidade, acho que seria um bom redator de humor. Mas a vida no circo é muito sofrida, não era a minha. Às vezes tinha que dormir na lona do circo, aquelas coisas. Eu gosto muito da música, da tranqüilidade pra compor, de ensaiar. Em 1974 veio uma banda do Rio pra Natal, Os Labaredas. Me envolvi com eles. Me deram um cartão e falaram que quando eu quisesse ir pro Rio, me dariam apoio. Pra quem estava sonhando ir, foi demais. Dois meses depois eu estava no Rio. Gastei 28 dias na viagem de Natal pra lá. Ainda toquei em Garanhuns e Paulo Afonso, antes de chegar no Rio. Lá, procurei a turma de Os Labaredas. Moravam em Caxias. Os caras estavam ferrados iguais mim. Mas já que eu estava no Rio, comecei a me oferecer naquelas boates. Fazia voz e violão, mas estava difícil também. O samba estava muito forte, na época. Fui pra lá em março de 1974. Fiquei até outubro no Rio. Próximo ao Natal fui tentar em São Paulo. Foi um pouco melhor. Eu tinha um conterrâneo que trabalhava em uma firma. Fui bater na porta dele. Ele disse que, de início, para eu conseguir alguma coisa na área de música talvez não desse certo. Arrumou pra mim, na firma onde trabalhava, um emprego de ajudante de eletricista. Eletricidade tem a ver um pouco com música, porque aprendi rapidinho. Com três meses eu tava craque.

ZONA SUL – Tem a ver com música como? Quando o cara leva um choque grita “ai!” em ré maior?
DUDÉ – (Risos). Porque não deixa de ser uma soma matemática pra entender fase A, fase B, fase C... Depois calcular ampéres pra combinar com voltagem. Entendi rápido aquilo. Era uma firma grande. Com três meses eu estava bom, mas não era o que eu queria. Comecei a me envolver com outros músicos. No final de semana a empresa precisava de mim, mas eu não podia, porque ia tocar. A fábrica funcionava de segunda a sexta, e eles queriam que sábado e domingo fossem para manutenção. Eram os dias que eu arranjava uns shows para ir tocar. E eu não podia fazer a manutenção. Acabei saindo da firma, depois de ter ficado nove meses lá. Pedi as contas, apesar de não terem querido me deixar sair porque diziam que eu era competente. Isso foi em 1975, quando assumi mesmo a música de vez. Nunca mais fiz outra coisa na vida.

ZONA SUL – Qual o nível de sucesso que você alcançou no Rio e São Paulo? Chegou a gravar ou se apresentar em programas de televisão?
DUDÉ – O que fiz de mais importante foram projetos do SESC, em São Paulo, e o Seis e Meia, no Rio. Pelo Sesc abri shows de Jackson do Pandeiro no Teatro Dulcina, no Rio, e no Teatro Anchieta, de São Paulo. Também fiz show de abertura pra dupla Tonico e Tinoco. Depois disso fiz meu próprio show no SESC. No Rio abri show de Moraes Moreira e Armandinho, no Circo Voador. Participei de um projeto que tinha no Rio, Nas águas do Pixinga. No Projeto Pixinguinha, o artista local fazia a abertura. No Nas águas do Pixinga eu era o artista principal mesmo. Fiz uns três shows com Jards Macalé, também no Rio. Recentemente, em 2001, fizeram uma coletânea musical lá no Rio, na festa dos 90 anos de Marechal Hermes. Juntaram vários artistas, entre eles Cristovam Bastos. Também fui convidado.

ZONA SUL – E seu lado de autor de textos humorísticos você também tentou explorar?
DUDÉ – Muito. Consegui que textos meus fossem divulgados, mas sempre saíram com nomes de outras pessoas. E me pagavam uma quantia equivalente a 50 reais de hoje. Tentei muito a produção de Chico Anysio. Foi a que mais batalhei. É muito redator e rola muita dificuldade. Mesmo o texto sendo bom, a oportunidade é difícil. Isso rola na música também. Hoje está menos. Está havendo uma lealdade maior no meio musical.

ZONA SUL – Havia amizade entre os artistas do Rio Grande do Norte que foram tentar a carreira musical no Rio e em São Paulo na década de 70? Um tentava dar força ao outro?
DUDÉ – Isso aí nunca existiu. O que falta no Rio Grande do Norte é essa unidade. Eu já batalhei muito por isso, mas é difícil. Acho que aqui em Natal está melhorando na parte do público. Eles estão valorizando mais o artista local. Nos anos 70 era pior. Só tinham valor os de fora. Mas a união dos artistas ainda está pouca. Espero que mude também.

ZONA SUL – Você chegou a fazer amizade com artistas famosos?
DUDÉ – Dos famosos, tenho um contato maior com Cátia de França e Geraldo Azevedo. Quando estou no Rio, às vezes vou ao escritório dele conversar. Somos da mesma geração. Em 1975, quando Alceu Valença começou no Festival Abertura, em São Paulo, eu estava em São Paulo também. O fato de terem conseguido ser grandes estrelas da MPB, e eu não, é conseqüência da vida. Além de Alceu e Geraldo Azevedo, chegaram à mesma época, no Rio, Fagner, Belchior, Zé Ramalho, Elba Ramalho... Com exceção de Geraldo Azevedo, todos os outros tinham pelo menos entrado na faculdade. Era moda o cara dizer que tinha largado a faculdade pela música. Eu tinha saído de Caraúbas, lá da caatinga, passado pouco tempo em Natal... O que eu tinha para oferecer à imprensa? Nada. Só meu trabalho. Não valia. Eles tiveram essa sorte de usar a faculdade para aparecer.

ZONA SUL – Você teve problemas com a censura na época da ditadura?
DUDÉ – Algumas músicas foram censuradas. Se eu não fosse músico, seria psicólogo. Eu sempre gostei de buscar o conhecimento, de entender o ser humano, e procurava falar essas coisas nas músicas e eles não deixavam passar. Não fui censurado por protestar contra a ditadura. Eu não era muito politizado. Hoje sou mais. Eu tinha um sentimento muito grande pelo ser humano. Talvez essa parte preocupasse a eles um pouco, porque eu defendia sempre o ser humano em todas as circunstâncias.

ZONA SUL – Por que você voltou pra Natal e em qual ano foi isso?
DUDÉ – Praticamente eu não voltei. Vivo dividido. Ano passado fiquei dez meses em Natal ajudando o grupo pé de serra Meirinhos do Forró na escolha do repertório e nos arranjos do CD que gravaram, que inclusive tem duas músicas minhas. Fui para o Rio em outubro. Voltei em janeiro desse ano. Adoro minha terra, se eu pudesse ficava direto. Mas é difícil viver de música em Natal. Talvez eu volte em setembro pro Rio. Mas em janeiro estarei de volta a Natal. Desde os anos 70 estou nesse vai e vem. Nunca abandonei o Rio. Também nunca abandonei o Rio Grande do Norte.

ZONA SUL – O que você faz nessas idas ao Rio?
DUDÉ – Faço shows. Ano passado, por exemplo, quando fui para o Rio, logo que cheguei fiz um show enquanto eram apuradas as notas do festival da Ilha do Fundão. Fui contratado pela Petrobras pra fazer esse show no intervalo. Foi o 3º Festival de Música do Cepe Fundão, do Clube da Petrobras. Eu estaria mentindo se dissesse que lá a coisa é maravilhosa, pois a concorrência é muito grande no Brasil todo. Mas eu faço um trabalho que pouca gente faz no Rio, que é de MPB nordestina. Tem as grandes estrelas como Elba Ramalho, ou os outros que falei. Mas dos artistas menores têm poucos. Ou têm aqueles trios de forró pé-de-serra, ou os grandes artistas. Mas não têm muito aqueles de porte menor, para uma casa de 100, 200 lugares. Nesse eixo é que me encaixo. Em meus shows, muitas vezes quando canto uma música minha as pessoas gostam já de início. Muitas delas acham que estão batendo palmas para uma música de um cantor já consagrado. No final vem perguntar de quem é aquela tal música e se surpreendem quando digo que é minha.

ZONA SUL – O que você já gravou?
DUDÉ – Em 1980 lancei um compacto duplo chamado Seca no Sertão. Em 1987 gravei um disco com Maria Zenaide chamado Embaixo das estrelas. Maria Zenaide é uma atriz pernambucana que mora no Rio e canta também. Em 1997 lancei Violas e cantigas, um CD de voz e violão. Fiz em homenagem aos violeiros. Foi o CD que mais deu resultado. Era voz e violão e um colega fazendo um solozinho, ficou bonito. Os radialistas disseram que só não davam nota dez porque não tinha sido gravado ao vivo. Era ótimo, mas não era ao vivo. Eu estou até pensando em fazer um no mesmo estilo, mas ao vivo. Em um teatro, com platéia e tudo. Em 2002 fiz o Acredite em você. É um CD já com bastantes instrumentos. Mas acho que nasci pra fazer voz e violão, porque lá no Sul e Sudeste, agrado mais quando toco sozinho do que com banda.

ZONA SUL – Onde as pessoas podem comprar trabalhos seus?
DUDÉ – O último que fiz, o Acredite em você, é o único que ainda está à venda. Mas as cópias que restam eu vendo nos shows que faço.

ZONA SUL – Você tem site, usa internet pra se comunicar?
DUDÉ – Site ainda não, mas tenho email para quem quiser trocar uma idéia. dudeviana@yahoo.com.br .

ZONA SUL – Como foi o episódio em que você foi confundido com um integrante da quadrilha que assaltou um banco no Rio Grande do Norte? Você passou quanto tempo preso por conta desse crime que não cometeu?
DUDÉ – Em 1982 ocorreu o chamado “roubo dos 94 milhões”. Três primos meus foram acusados diretamente de participar. Tinha um Dedé que fez o assalto com eles. O assalto teve um fundo político, foi feito para eleger um prefeito. Mas esse Dedé que estava com meus primos matou um policial federal, e a PF matou ele no Piauí. Eu fiquei preso no lugar do Dedé. Só provei a inocência porque dei sorte. Os fatos ocorreram em 1982, e passei todo esse ano no Rio, não andei pelo Rio Grande do Norte. Se eu tivesse vindo ao Rio Grande do Norte acho que não teria conseguido provar minha inocência, já que sem vir já foi difícil... Fiquei um ano, 10 meses e 13 dias preso. Os fatos ocorreram em maio de 1982. As mortes aconteceram em novembro do mesmo ano. Fui preso em 10 de janeiro de 1983. E solto em 22 de novembro de 1984. Passei 20 dias preso na Polícia Federal do Rio de Janeiro. A PF me prendeu lá, sem mandado de prisão nem nada, e me mandou pra Natal. O juiz, sabendo que eu era parente dos assaltantes, decretou minha prisão em nome de José da Silva. Eu era José Filho. Foi muito difícil. Cerca de dez advogados me procuraram. Eu dizia que não tinha dinheiro, eles perguntavam se eu não era parente dos Carneiro. Não acreditavam que eu não tinha dinheiro. E eu não tinha. Logo no começo o juiz me deu um prazo de cinco dias pra eu me defender. O prazo venceu. Tive que aguardar o julgamento preso.

ZONA SUL – Em Natal você ficou preso onde? Houve uma mobilização dos músicos para lhe ajudar?
DUDÉ – Na Colônia Penal João Chaves. Sim, houve. A Ordem dos Músicos me ajudou quando consegui advogado. A Ordem trouxe três testemunhas que eram músicos no Rio de Janeiro que estavam comigo tocando na época em que aconteceram os crimes. A Ordem pagou as passagens das três testemunhas. Na época do assalto a gente estava fazendo arranjos para uma música que iríamos inscrever no festival MPB Shell. Fui solto no dia 22 de novembro, que é o dia do músico. Fui julgado inocente, e solto. Eles arquivaram o processo. Os advogados de defesa usaram meu caso pra absolver outros. Isso deu direito ao promotor de recorrer. Recorreu sem tirar meu nome do processo. Em 1999 houve o segundo julgamento. Pra mim foi um pouco ruim de início porque saiu na imprensa que eu seria julgado de novo. As pessoas pensaram até que eu podia ter algum envolvimento. Mas foi melhor, porque, dessa vez, o próprio Ministério Público Federal reconheceu minha inocência e retirou meu nome do processo. Isso no segundo julgamento. Deu direito a eu entrar com um processo de indenização contra a União. Entrei na justiça com pedido de indenização por danos morais. A União foi condenada a me indenizar, só que eles querem me pagar uma quantia tão pequena, tão insignificante que a advogada recorreu.

ZONA SUL – Qual foi a proposta da União?
DUDÉ – É tão pequena que nem quero mencionar. Eles estão condenando só a Polícia Federal por ter me prendido sem mandado de prisão. A Justiça acha que não houve problema depois que o juiz decretou a preventiva. Alegam que o juiz me deu os prazos todos pra me defender, eu não me defendi. O defensor da União usa uns termos jurídicos lá para reduzir o valor da indenização.

ZONA SUL – Eles estão considerando isso como atenuante para lhe pagar uma mixaria.
DUDÉ – Eles querem pagar o referente ao que um violonista ganha numa noite, sem sequer considerar a parte do cantor. Querem pagar três dias de indenização, o tempo em que fiquei preso na PF sem mandado de prisão. Pra eles a Federal errou, a Justiça não.

ZONA SUL – Como foi a vida na prisão? Você comportou-se de forma resignada ou revoltada?
DUDÉ – Eu cheguei à conclusão de que a revolta não leva a nada. Procurei não aprender nada do que vi lá dentro que me prejudicasse. Assim que saí da prisão fiz um show chamado Diga sim à paz, não à guerra. O Meira Pires me abriu as portas do Teatro Alberto Maranhão. Deu muita gente. Compus uma música, depois de tudo isso, chamada Os dois lados da Justiça. Ela foi baseada no fato de que dez advogados me procuraram e quando souberam que eu não tinha dinheiro, apenas um se interessou pelo caso e buscou fazer justiça. Então, o refrão diz assim: “Agora eu sei dos dois lados da justiça / Um é humano, o outro é animal / Um quer a lei, o outro capital / São dez humanos pra 90 animais”. Ainda não gravei essa música, mas pretendo. Às vezes comparo entrevistas que dei no início da carreira, principalmente as fotos, e vejo que minha fisionomia mudou muito. Apanhei demais da vida. Sofri muita tortura psicológica para assumir um crime que não cometi. Eu que nunca usei uma arma na minha vida!

ZONA SUL – Sofreu tortura física também?
DUDÉ – Muita ameaça, que eu pensava que era verdade. Depois que passou, vi que eram ameaças. A polícia do Rio me torturou no primeiro dia. Eles me levaram às dez da manhã dizendo que eu prestaria um esclarecimento. Ficaram se comunicando com o Rio Grande do Norte pra saber se eu era mesmo José Filho ou se era José da Silva. Aqui em Natal, nem a Secretaria de Segurança confirmou que eu era José Filho. Apesar do nome constar na minha carteira de identidade. Cheguei às 10 da manhã, às cinco da tarde o delegado da PF estava nervoso, ninguém da Secretaria confirmou que eu era José Filho. Ele dizendo que eu era um fugitivo do Ceará, que eu era José da Silva, que eu estava mentindo, que ia quebrar minha cara, que eu era cínico. Por sorte, lembrei da minha carteira de músico. Mostrei ao delegado. Eu tinha tirado a carteira de músico no Rio, já que quando cheguei na cidade eu ainda era amador. A Federal, em poucos minutos, contactou a Ordem dos Músicos, que confirmou que meu nome na carteira era José Filho. O delegado disse que pelo menos uma coisa eu tinha provado que tava falando a verdade. Meu nome era José Filho.

ZONA SUL – Quer dizer que pra Polícia Federal do Rio valeu mais a carteira de músico do que a cédula de identidade...
DUDÉ – Eu tinha identidade e CPF! A carteira de músico foi a que valeu. O delegado rasgou o depoimento que eu estava prestando e disse que meu problema seria resolvido quando eu chegasse em Natal. Botou os papéis na lixeira e mandou me trancar, para esperar o dia que mandariam me buscar. Sofri chutes nas pernas, empurrões e aquela humilhação toda. O pior foi a tortura psicológica. Quem foi me buscar no Rio foi Maurílio Pinto e um agente.

ZONA SUL – Eles diziam do que você estava sendo acusado?
DUDÉ – Eles perguntavam que envolvimento eu tinha com meus primos no roubo dos 94 milhões. Eu negava qualquer participação. A pressão toda era que eles queriam que eu assumisse que era José da Silva. O problema maior nem era o roubo, eles queriam saber se eu era José da Silva. Quando cheguei em Natal, eu tinha esperança que a situação fosse esclarecida logo. Mas foi a mesma coisa. Só que o juiz, na hora de decretar a prisão, escreveu: José da Silva, vulgo Dudé. Trocou o Dedé por Dudé. Residência ignorada. Um absurdo, já que a PF tinha ido me buscar em casa, no Rio. Eles misturaram os meus dados com os de Dedé, que eles não sabiam mesmo onde morava. Quando viram que eu era primo dos Carneiro, procuraram me prejudicar mesmo.

ZONA SUL – Você ficou preso sozinho em uma cela?
DUDÉ – Não. Fiquei preso com meus primos, os Carneiro. Eles não deixavam juntar presos da Federal com os presos comuns. O que fez o procurador retirar meu nome do processo foi o fato de que em todos os depoimentos eu nunca ter entrado em contradição. Pra minha maior surpresa, no Rio, quando a PF me prendeu, queria saber se eu tinha envolvimento no assalto. No Rio Grande do Norte me tiraram do assalto e me jogaram em uma chacina. Eu achei pior do que o assalto. Lá tava como se eu tivesse ajudado matar Sidney Negão, que era um assaltante. Não entendi. Se eu não me conhecesse muito eu ia dizer: ou estou doido ou tem muita gente doida.

ZONA SUL – Esse episódio virou tema de livro que você lançou em parceria com um jornalista...
DUDÉ – O livro era um diário que fiz na prisão. Comecei a fazer lá na PF do Rio. Só que no dia da minha saída pegaram minhas coisas e revistaram. O que eu tinha escrito lá dentro eles rasgaram um pouco, não deixaram sair, me deram só uma parte. A parte que falava no nome do delegado eles cortaram. A gente estava saindo da ditadura, naquela época, em 83. Deixaram só a parte que lembrei o nome de alguns presos. Terminei o diário na Colônia Penal João Chaves. Dei o nome de O grito silencioso de um réu inocente. Quando fui solto, mostrei o texto na Editora Vozes, da Igreja Católica. Eles gostaram, mas me pediram para fazer uma revisão. Realmente tinha erros ortográficos e gramaticais. Alguns eu tinha até botado propositadamente. Junto com um jornalista amigo meu, Vagner Soeiro dos Santos, revisamos o texto e devolvemos para a editora. A editora pediu que eu cedesse ao jornalista para ele reescrever. Como eu tinha interesse em publicar, permiti. Ele reescreveu e mudou o título para Dudé ou Dedé? Era assim, vinha uma pergunta: Quem assaltou, quem matou... Dudé ou Dedé? Achei interessante de início, mas depois não achei tanto porque as pessoas que não compravam o livro, mas que viam na banca, às vezes ficavam na dúvida sobre quem tinha assaltado ou matado. Muita gente não compra livro, mas olha. Alguns chegavam pra mim e diziam: Dudé, mas afinal de contas, se você provou a sua inocência, como é que está no livro a dúvida sobre quem matou e assaltou? Mas vendeu bem, três milheiros, rapidinho. O jornalista que escreveu comigo é um cara muito meu amigo, mas ele não gosta de ir à noite de autógrafos. A editora quis renovar o contrato comigo mas desde que eu pedisse ao jornalista pra ele me colocar no livro como co-autor. Tinha uns programas de televisão que queriam me convidar, como foi o caso de Homens e livros, da TV Manchete, na época. Quando cheguei ao programa, me perguntaram se eu era o autor. Eu respondi que era o personagem. Não fui pro ar. Se eu fosse colocado como co-autor, teria autoridade para autografar, fazer tudo. Mas o jornalista não aceitou.

ZONA SUL – Agora você está com o projeto de um novo livro...
DUDÉ – Alguns familiares me pediram para eu escrever a história dos Benevides Carneiro. Tem outras pessoas escrevendo e a família tinha o receio desses autores não zelarem pelo nome dos que não se envolveram com crimes. Antes de começar a escrever, fui pesquisar a origem da família. Peguei a origem desde a Espanha, passando por Portugal. Depois a família juntou-se com os Fernandes. Acabei pesquisando várias famílias para fazer o livro, que em sua metade é tipo uma genealogia. Dos anos 50 para cá foi que começaram a surgir problemas na família Carneiro.

ZONA SUL – Você desmistifica a fama de violência da família?
DUDÉ – Eu não estou inocentando aqueles que cometeram crimes. Mas conto histórias. Por exemplo, o Valdetário. Até os 25 anos ele era um grande artesão. Ele tinha o sonho de ser ator. Mas Valdetário era muito político. No tempo em que eu estava preso, ele foi na prisão me visitar. Na época ele era mecânico em Caraúbas. No colégio ele chegou a representar Tiradentes, em uma peça. Gostava muito de artes. Queria que eu escrevesse um texto sobre Che Guevara, para ele poder representar no teatro. Eu disse: rapaz, como é que eu vou escrever esse texto se estou ferrado aqui... Mas Valdetário sofreu uma injustiça...

ZONA SUL – Qual foi essa injustiça?
DUDÉ – Ele foi acusado de roubar um automóvel Pampa junto com dois outros primos meus. Mas eles não fizeram esse roubo. Um deles tinha participado dos 94 milhões, mas era inocente nesse caso. O outro primo era muito novo, nunca tinha se envolvido com nada. Foram condenados a sete anos e seis meses. Valdetário e um primo conseguiram fugir depois de um ano e sete meses. Valdetário foi pego no dia seguinte e levado de volta à cadeia. Cumpriu quatro anos e seis meses de pena na Paraíba. Quando ele saiu dessa prisão, ainda tentou refazer a vida. Mas foi difícil. Foi acusado de outro crime. Aí não perdoou mais, virou bandido mesmo. Mas a família tem em torno de 2500 pessoas. Se você somar, uns sete são os perigosos. Alguns não foram nem bandidos, foram criminosos. Bandido é aquele que forma um bando e vai matar. Uns mataram por vingança. Meu primo Antonino foi o primeiro que matou gente na família. Mas foi por uma questão política. Um cara chegou, deu cinco tiros nas costas dele. Ele se virou e matou o cara. Ele com cinco tiros nas costas. Isso em 1950. Ele se revoltou porque matou para não morrer. Achava que não devia ser preso por isso. Passou 18 anos encrencado com a polícia, mas nunca foi preso. Acabou um delegado matando ele.

ZONA SUL – O livro já tem editora?
DUDÉ – Já foi revisado, está na gráfica. A primeira tiragem vou fazer independente. No livro eu também tento derrubar um pouco o mito e o preconceito. Já tive shows cancelados no Rio Grande do Norte quando descobriram que sou primo de A ou B, de Valdetário ou de Doutor Benevides. O cara me chama, pede desculpas e pergunta se eu entendo. Eu digo que sim, mas entendo sem concordar. Acho que cada pessoa é uma pessoa. Ninguém pode pagar pelos outros. Tenho um irmão e uma irmã no Walfredo Gurgel que só não perderam o emprego porque são concursados. Pessoas que nunca fizeram o mal a ninguém. O mesmo acontece com muitos primos. Até os que se enveredaram no mundo do crime sofreram injustiça no início. Sou do tipo de pessoa que quanto mais desconfiarem de mim, vou tentar provar o contrário. Mas nem todos são assim. Valdetário, não era. Depois que ele começou a praticar crimes, não falei mais com ele. Mas ainda cheguei a mandar recado. Ele respondeu que admirava muito minha atitude de perdoar todo mundo, mas no caso dele era diferente. Ele não perdoaria.

ZONA SUL – Na prisão você fez muitas músicas?
DUDÉ – Fiz. Mas algumas delas nem botei arranjo ainda porque eu no fundo sou muito brasileiro. Tenho amor pelo meu país. Quando fui preso eu estava com oito músicas selecionadas para um elepê na maior gravadora do país, na época, que era a Polygran, e também estava tentando o festival da Globo. Eu levei uma fita cassete com 15 músicas, eles escolheram oito. E fiquei de levar mais músicas para eles escolherem outras quatro. Quando saí da prisão, voltei lá. Me chamaram de irresponsável, que eu tinha abandonado o projeto. E eu não tive coragem de dizer o motivo, que eu tinha passado todo aquele tempo preso. Pra você ter uma idéia, vários empresários que me conheciam no Rio cortaram a amizade comigo depois que souberam. Imagine a gravadora. Voltei à lama, à estaca zero. Alguns amigos me chamavam pra tocar com eles, do cachê que recebiam, me davam um pouquinho. E fui me levantando aos poucos. Em 1999, quando estava bem me levantando, segundo julgamento. Saí de novo nas páginas dos jornais. Voltei à estaca zero de novo. Acho que com esse livro ou eu vou pra lama de vez ou a sociedade fica do meu lado. Sofri tanto que em 1993 eu estava tão derrotado que tive uma anemia profunda. Procurei um psicólogo, ele disse que estava tudo normal, mas a queda que eu tinha sofrido tinha sido grande. Lá na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, abriu um projeto chamado Universidade Aberta, tinha um curso de relacionamento interpessoal. Fiz esse curso, que é ligado à psicologia. Me ajudou muito. A psicologia é tudo na vida da gente. A gente começa a conhecer fatos e ver pessoas que passaram por situações difíceis também. A psicologia nos ensina uma maneira de sair desses problemas com a cabeça erguida.

ZONA SUL – Deixe um recado pros seus conterrâneos potiguares.
DUDÉ – Eu tou na luta e quero dar uma viravolta na minha vida. Acredito que com esse livro e com o projeto que tenho de fazer um outro CD darei a volta por cima. Acredito que vão enxergar esse lado, vai entender a mensagem do meu livro e eu vou ter um retorno positivo. É o que eu falo.

domingo, 30 de julho de 2006

Entrevista: VALÉRIA OLIVEIRA

VALÉRIA TIPO EXPORTAÇÃO




A natalense Valéria Silva de Oliveira é uma das principais artistas da música potiguar. Depois de fazer sucesso em Natal e no Japão, ela agora está ensaiando conquistar o país. Para isso lançou recentemente um CD com distribuição nacional. Foi justamente no lançamento desse disco em Brasília que pude encontrá-la para essa conversa. O papo foi regado a chopp e churrasco de alguns cortes de carneiro e gado. Depois que o gravador foi desligado, chegaram para o final da festa os jornalistas potiguares Sebastião Vicente, sua esposa Rejane Medeiros e Gustavo Porpino, além do mineiro Nélson Oliveira. Confira agora o que Valéria anda aprontando por aí... (Roberto Homem)


ZONA SUL – Você nasceu há muitos anos?
VALÉRIA – Vamos mudar de assunto(risos)... Nasci em 1969.

ZONA SUL – Sua família tinha alguma ligação com música ou você foi a desbravadora nessa área?
VALÉRIA – Eu não conheci um tio que se chamava José. Quando nasci, ele já tinha falecido. Mas sei que ele foi seresteiro em Natal. Acho que minha mãe herdou dele o gosto por ouvir música e cantar. Mas ela nunca foi uma cantora oficial. Cresci ouvindo música através de minha mãe.

ZONA SUL – Que tipo de música ela costumava ouvir?
VALÉRIA – Ouvia muito samba. Por isso, até hoje, o trabalho de Clara Nunes para mim é inesquecível. Ouvia também Beth Carvalho, Alcione, Agepê... Ouvia todos os sambistas e muita música antiga também. Gostava de Nélson Gonçalves, Orlando Silva, Agnaldo Timóteo, Ângela Maria...

ZONA SUL – E você apenas ouvia ou gostava?
VALÉRIA – Gostava do que ouvia e cantava junto. Curti muito os discos de Alcione. Já entrando na adolescência passei a ouvir também muita MPB através do meu irmão, Aldemário. Era um outro tipo: Elis Regina, Gonzaguinha, Edu Lobo, Chico Buarque... Influenciou bastante às primeiras vezes que cantei, que foi na rádio Cabugi AM. Comecei com esse tipo de repertório: música antiga, samba e bossa nova.

ZONA SUL – Quando você começou a ouvir música por conta própria, sem a influência da mãe ou do irmão?
VALÉRIA – Na adolescência passei a ouvir uma série de coisas, como Rita Lee, Kid Abelha e muitas bandas. Eu era de fases. Ouvi também um pouco Legião Urbana e aquele som da época. Ah, lembrei agora que tive uma coleção de discos de Simone. Foi outra que passei a ouvir por causa do meu irmão. Lembro até hoje de um disco ao vivo, gravado no Canecão. É maravilhoso, foi bem marcante. A partir dele passei a colecionar os discos de Simone. Mas foi uma fase. Hoje em dia não ouço mais.

ZONA SUL – Seu trabalho sofre influência dessa salada toda que você ouviu?
VALÉRIA – Sem dúvida nenhuma. Gosto muito das cantoras que têm personalidade forte. É bem marcante a presença de uma Elis Regina na minha vida, por exemplo, pela força do canto dela. Admiro muito nos artistas da música não só uma boa afinação, não só a escolha de um repertório bem feito, mas também a apresentação. Gosto de ver um cantor vivo no palco, transmitindo sua força para quem está assistindo. Uma das cantoras que mais me marcou foi Clara Nunes. Eu via muito isso no canto dela: essa fortaleza, essa luminosidade, essa transcendência. Isso tudo é bem importante para nós que trabalhamos com música. Pelo menos para mim é fundamental.

ZONA SUL – Como você descobriu que cantava?
VALÉRIA – Começando a me interessar em aprender violão, nas rodas familiares. Como minha mãe gostava muito de música, atraia pessoas que gostavam também, como uns primos, especialmente um chamado Walce Araújo Dantas, já falecido. Ele ia muito lá em casa, no final de semana, e ficava tocando junto com meus irmãos mais velhos. Somos seis irmãos, só dois não tocaram. Os outros quatro pelo menos começaram. Meu irmão mais velho tocava muito com Walce e eu ficava ali, ligada sempre na música, curtindo. Comecei com as famosas revistinhas de violão a pegar as músicas, sozinha. Aí fui desenvolvendo, dessa forma até autodidata. Essa roda familiar se tornou uma roda de amigos da minha mãe, de pessoas que moravam no bairro, seresteiros também...

ZONA SUL – Qual era o bairro?
VALÉRIA – Candelária. Eu nasci nas Rocas, mas fui para Candelária com sete, oito anos. Nessa roda de amigos da minha mãe encontrei um cara que se chama Martins Filho. Na época, era radialista. Tinha um programa chamado Show da Cidade, na Cabugi AM. Ele começou a se interessar pelo que estava ouvindo, por aquelas pessoas amadoras que se reuniam com freqüência e gostavam muito de música. Meu irmão, Marcos, e minha prima, Romeika, participavam. Ele nos convidou junto com esses seresteiros mais velhos para participar de um dos seus programas. O programa acontecia às 11 da noite, e a gente simulava uma mesa de bar. Ficávamos lá brincando, conversando com os ouvintes. Ligavam com perguntas. A gente cantava descontraidamente. Tenho até algumas fotos dessa época. Foi Martins Filho quem começou a me direcionar para shows. Eu ainda muito nova...

ZONA SUL – Qual a idade?
VALÉRIA – Eu tinha uns 14 anos. Minha mãe começou a se preocupar quando viu que a coisa estava partindo para um lado mais sério. Me acompanhava nos shows, cheguei a ir para cidades do interior, a abrir shows na Casa da Música Popular Brasileira, ali na Praia do Meio, naquela época. Passei um período com Martins, ele fazendo esse trabalho comigo, que deve ter durado um ano, mais ou menos. Depois, não sei por que cargas d’água, deu na minha cabeça que não era aquilo que eu queria fazer.

ZONA SUL – E o que você queria fazer na época?
VALÉRIA – Eu desconfio que era o estilo que me incomodava. Na época eu não tinha nem entrado na ETFRN. Mas aquele processo todo passou a não me atrair. Não era por eu não gostar de música, mas eu estava meio infeliz, até precocemente, com o tipo de música que ele me sugeria cantar, que eram músicas mais comerciais. Eu tive que dar uma parada estratégica, que durou um ano.

ZONA SUL – Que músicas comerciais eram essas?
VALÉRIA – Cheguei a cantar Rosana, algumas coisas de Sandra de Sá... Cantava Simone, que eu gostava. A tendência era partir para um lado mais comercial até pela casa que eu estava trabalhando, na época, que era a Casa da MPB, que apresentava cantores mais populares. Como eu era muito jovem, não consigo nem lembrar ao certo os motivos que me fizeram parar. Mas algumas pessoas que já me conheciam de Candelária começaram a me convidar para participar de festivais. Participei do Festival do Sesc, do Festival de Candelária e comecei a cantar em bares. Nesse período meus pais ainda estavam querendo me acompanhar, porque me achavam muito jovem.

ZONA SUL – Qual foi o resultado dessa sua participação nesses festivais?
VALÉRIA – Não passei da primeira fase (risos). Ainda teve uma passagem minha, lembrei agora, que um amigo me ouviu cantar e me apresentou para a Banda dos Anos 60. Fiz um teste, na época, mas não passei. Comecei a me frustrar. Aí fui para o Tropicália Night Bar com esse mesmo amigo, lembro que Carlinhos Moreno, Wigder e uma galera tocavam lá. Era uma turma da pesada, e eu morrendo de medo até de olhar para as pessoas. Tímida que mais era impossível. Acho que a timidez me atrapalhava muito nesse período. Eu também não fui selecionada para cantar no Tropicália. Foi uma série de “nãos” iniciais. Mas passei a cantar em bares com mais regularidade. O primeiro bar onde cantei foi o Bora Bora, na estrada de Ponta Negra.

ZONA SUL – Onde você aperfeiçoou o violão aprendido nas revistinhas?
VALÉRIA – Tenho uma tendência legal para tocar violão e também sou muito observadora com quem toca. Uma das grandes referências para mim no violão é João Bosco. Sou completamente apaixonada, fissurada por aquele violão dele que só falta falar. Só vim começar a estudar depois de mais velha. Entrei na Escola de Música já depois de formada. Formei-me em 1991. Foi de 1993, 1994 pra cá que fui estudar música.

ZONA SUL – Você se formou em que?
VALÉRIA – Em engenharia civil. Fiz Edificações na Escola Técnica. Meus irmãos fizeram também. Quatro deles fizeram ETFRN. Na época da ETFRN comecei a trabalhar em escritórios de amigos de meus irmãos que eram engenheiros. O primeiro onde trabalhei foi a Plantae. Passei uns oito anos trabalhando lá. Era mais na área de desenho. Meu interesse de entrar no curso de edificações é porque eu achava interessante os desenhos e projetos que meus irmãos faziam. Comecei a brincar com isso e terminei entrando no curso e me dei super-bem como desenhista. Nesse período saí da ETFRN e fui cursar engenharia civil.

ZONA SUL – Quando resolveu se dedicar integralmente à música?
VALÉRIA – Por volta de 1998. Antes, trabalhei em outro escritório, projetando e abri um escritoriozinho com uma amiga de faculdade, mas durou pouco. Meu tempo ficava apertado, pois eu já estava envolvida com a música e era uma loucura trabalhar de manhã, de tarde e de noite, nos finais de semana. De quinta-feira em diante tinha show. No outro dia eu estava morrendo de sono, não conseguia dar conta de tudo. No decorrer do tempo vi que não tinha mais condições de levar as duas carreiras adiante.

ZONA SUL – Foi fácil optar pela música?
VALÉRIA – Foi inevitável. Eu tinha um pouco de receio pela questão do mercado mesmo, que é complicado. Mas não tinha mais jeito. Eu já estava envolvida até o pescoço, completamente apaixonada.

ZONA SUL – Seu único instrumento é o violão?
VALÉRIA – Eu até tentei estudar violoncelo, mas o período não ajudou. Eu estava muito ocupada, parei. Mas entrei duas vezes para estudar violoncelo. Esse é um instrumento que, se der, eu ainda quero aprender. O outro é o clarinete.

ZONA SUL – Quando você começou a compor?
VALÉRIA – Comecei a compor há dois anos, mais ou menos. Esse estímulo inicial para composição veio do meu produtor no Japão, Kazuo Yoshida, inicialmente em trabalhos de músicos japoneses. Ele me apresentou uma saxofonista japonesa, que é da banda dele, Tchieko Tsumi. Ela me mandou duas melodias, eu coloquei letra. Antes de fazer essas parcerias com ela, Yoshida já tinha me mandado uma melodia dele, que eu tinha colocado letra. Essa música, Flor da Felicidade, foi gravada agora no CD Imbalança. Depois dessa parceria com Kazuo fiz as duas com Tchieko. Em seguida gravei também músicas em parceria com o baixista japonês Tetsuo Sakurai. Nesse projeto do Tetsuo, entraram também Rosa Passos, Ivan Lins, Djavan e uma cantora japonesa que não recordo o nome. O CD se chama Cartas do Brasil. Depois desses dois discos finalmente chegou o momento de fazer o Imbalança. Além de Flor da Felicidade, o disco contém uma música só minha, Fogo do Inverno. De certa forma foi Yoshida que me botou nesse imprensado. Eu tinha sempre um receio grande de me expor. Na seqüência encontrei duas pessoas muito queridas, dois compositores de Natal muito jovens, Luiz Gadelha e Simona Talma. Devido nossos encontros constantes para farras, à nossa identificação musical e tudo o mais, começamos a fazer algumas coisas juntas. Foram grandes estimuladores. Hoje em dia estou em um momento muito feliz com relação a isso porque compor já faz parte do meu cotidiano. Venho trabalhando isso junto com eles e outros artistas da cidade como Cristal, Romildo Soares, Ângela Castro, Carlos Gurgel e Iracema Macedo. É uma honra poder estar trocando com esses outros artistas e poetas.

ZONA SUL – Voltando um pouco no tempo, você falou que teve certa decepção com o repertório que estava cantando, deu uma parada e retornou. Esse retorno foi com qual repertório?
VALÉRIA – Voltei cantando uma MPB mais sofisticada, que era o que eu gostava. Por exemplo, O bêbado e o equilibrista que era sucesso na época. Era o auge. Hoje é uma música bastante batida. Voltei cantando Caetano Veloso, Elis Regina, João Bosco e uma série de artistas que eu já adorava e curtia à muito tempo. Na época eu não tocava. Só cantava.

ZONA SUL – Quando você começou a olhar para os compositores da terra?
VALÉRIA – A partir do primeiro CD, o Impressões, projeto iniciado em 1996 e finalizado, com o lançamento do disco, no ano seguinte. Depois de várias passagens por bares fui conhecendo pessoas que faziam música de boa qualidade. fui apresentada a vários compositores da cidade. Apesar de não ter sido o motivo decisivo, também pesou para eu gravar artistas locais a questão dos direitos autorais. Mas eu queria mesmo era divulgar a música potiguar, que é o que venho fazendo, à medida do possível. Neste primeiro CD gravei duas músicas editadas, Pano pra manga (Rosa Passos e Paulo César Pinheiro) e Faca (Fátima Guedes).

ZONA SUL – Qual a repercussão desse seu primeiro trabalho?
VALÉRIA – Na cidade, ainda era novidade a gravação de CD. Gravei através da primeira lei de incentivo à cultura que pintou, o Profinc. Saíram algumas críticas, na cidade, favoráveis. Mas eu estava num processo de aprendizado. Também estavam nessa mesma fase os músicos enquanto músicos, o arranjador enquanto arranjador. Vale destacar que os técnicos nos pequenos estúdios faziam milagres. Todo mundo, de certa forma, estava aprendendo a fazer um CD. Acho que o disco reflete muito isso. Hoje ele está remixado e remasterizado numa segunda prensagem. Mas ainda com a mentalidade da época da música complicada, de que o bom é o complicado. A gente ainda estava com aquela sede de muitas notas, de arranjos complexos. Foi nesse clima que o disco foi feito, mas acho que pra um primeiro CD e pras condições que nós fizemos na nossa pequena cidade, foi um trabalho bem interessante.

ZONA SUL – Esse primeiro CD abriu muitas portas? Teve alguma influência na sua carreira?
VALÉRIA – Não vou dizer que ele abriu muitas portas, até porque acho que até hoje as portas para Natal ainda estão bem fechadas. Temos dificuldade de saber com quem tratar fora da cidade, como atingir os contatos interessantes fora de Natal para fazer com que nosso trabalho ganhe o Brasil. Não temos aqui quem faça o trabalho de nos colocar em contato com produtores, produtoras e gravadoras. A cidade ainda está muito fechada em relação a isso. Ainda está engatinhando. Hoje a coisa está começando a acontecer por conta da Internet. São grandes as dificuldades de fazer com que um registro fonográfico chegue a outros estados.

ZONA SUL – Depois desse primeiro disco veio o Japão ou o segundo disco?
VALÉRIA – As coisas vieram juntas. Lancei Impressões em 1997. Em 2000 veio o convite pro Japão, feito por uma produtora cultural chamada Ivete Farias. Ela é potiguar e estava residindo há cinco anos no Japão. É casada com um alemão. Ela estava fazendo produção cultural lá e tentando viabilizar a ida de brasileiros, dando ênfase a potiguares. Era o sonho dela poder levar alguém de Natal pra lá. Chegou a me falar que tinha até convidado Cida Lobo pra ir, mas não tinha dado certo por algum motivo. A gente se encontrou no Veleiros Restaurante, em Ponta Negra. Eu estava fazendo um show, ela assistindo. Quando acabei, ela me veio com essa proposta mais do que indecente (risos). Achei até graça, porque pra mim era quase uma piada. Japão? Que coisa louca! Eu nunca tinha saído do Rio Grande do Norte! Era uma aventura muito maluca. Mas a gente trocou algumas idéias e, como ela era conhecida de amigos por quem tenho a maior confiança do mundo, sabia que não seria nenhuma ilusão, que podia dar certo. Ivete me deixou as coordenadas do que eu precisava fazer se eu quisesse ir, enquanto ela fazia alguns contatos antecipados. Foi uma luta pra gente conseguir viabilizar essa minha viagem, ver passagem e toda a condição financeira pra me manter lá. Ela não me prometia nem uma casa maravilhosa com cachê maravilhoso, nem nada. Tudo seria no peito e na raça. Mas topei. Na época deu a louca. Eu nem sou de fazer muita aventura... Quer dizer, não era, né, hoje já sou.

ZONA SUL – Viajou sozinha?
VALÉRIA – Sim, viajei só, morrendo de medo, mas fui. Consegui os recursos básicos fazendo shows, contatando amigos, pessoas que acreditam no meu trabalho. Pra minha surpresa, foi uma turnê de dois meses bem legal. Fui com uns 15, 20 dias de shows confirmados. Umas quatro ou cinco casas fechadas e o resto do mês e o segundo mês todo em aberto. E a gente conseguiu fazer show praticamente os dois meses inteiros.

ZONA SUL – Como foi o primeiro show no Japão? Qual a recepção do público japonês? O repertório que você levou era mais nacionalizado?
VALÉRIA – Tenho dúvida se foi no Corcovado ou no Saci Pererê... O meu repertório era 80% nacionalizado, com muita coisa do Nordeste. Quando você chega num país desses, com uma cultura tão diferente, deixa de ser apenas uma cantora potiguar e passa a ser uma cantora brasileira. Mas eu cheguei com algumas novidades que eles não estavam muito acostumados a ouvir. As casas onde fui me apresentar, no geral, tocavam bossa nova e samba. Eu cheguei com ritmos diferentes, cantei xotes, baiões, e eles gostaram. Muito da paixão do japonês pela música brasileira vem da alegria. Também me desenrolei muito com o repertório de bossa nova e de samba, que eu já estava acostumada desde a adolescência. Ajudou muito eu tocar violão.

ZONA SUL – Você se apresentava acompanhada por alguém?
VALÉRIA – Sim. Conheci alguns músicos brasileiros que moram no Japão. Fui acompanhada em muitos shows por Robson Amaral, que é um percussionista que mora lá até hoje, e pelo pianista Paulo Gomes. Robson é do Rio e, Paulo, de Minas Gerais. Também conheci alguns japoneses, fizemos algumas coisas por lá também. A receptividade sempre foi surpreendente. As primeiras casas onde toquei nessa minha primeira ida eram muito pequenas, com capacidade entre 30 a 50 pessoas. O palco ficava muito perto do público. Às vezes gerava uma dúvida: eles estão gostando ou não. Eram tão calados e atentos... Mas depois do show é que via o quanto eles estavam gostando. Foi uma experiência muito boa.

ZONA SUL – Depois dessa primeira ida, você voltou mais quantas vezes ao Japão?
VALÉRIA – Mais duas vezes. Nessa primeira ida eu já conheci Kazuo Yoshida. Tem uma coisa interessante nesse esquema de bares no Japão: o dono da casa às vezes contrata músicos fixos para a casa e o cantor tem que chegar e se adaptar. Muitas vezes você não tem nem tempo de ensaiar com esses músicos. Você chega lá já no final da tarde pra passar o som e têm dois músicos lhe esperando. Você diz: oi, tudo bem? Tá aqui o repertório. Quando os músicos eram brasileiros ou japoneses que falavam português, era uma maravilha. Mas passei por uns apertos, sem falar a língua, com dois japoneses olhando pra mim. Mas a gente botava as cifras na frente e encarava. Numa dessas encontrei com Kazuo Yoshida. Foi ótimo primeiro porque ele fala português e depois porque a gente se deu muito bem, entrou numa sintonia musical muito boa. Yoshida é muito apaixonado por ritmos e ficou encantado com minha forma de tocar. Nesse primeiro dia ele já perguntou se podia ir em outra apresentação minha gravar uma mostra do meu trabalho. Ele começou a me acompanhar. Foi em outra apresentação, gravou. Depois, entrou em contato comigo e perguntou se a gente podia ir num estúdio gravar uma demo. Essa demo virou o primeiro disco lançado no Japão.

ZONA SUL – Isso já na sua primeira ida.
VALÉRIA – Sim. Depois que ele gravou a demo, apresentou o trabalho a várias gravadoras, até que a Vídeoarts Music se interessou. No segundo ano voltei pra fazer a minha turnê normal, com Ivete. Como já havia o link com a Vídeoarts, fizemos uma pequena turnê pelo Japão apresentando esse trabalho em mini lives, que são apresentações de 20 a 30 minutos em lojas. A loja preparava um palco, microfone e uma estrutura bem legal. Tocávamos no meio da loja. Depois tinha uma sessão de autógrafos. A fila que se formava era incrível. Tenho registro disso. As pessoas compravam o CD e iam pra sessão de autógrafos. Foi uma coisa pela qual fiquei fissurada, tentei, depois, fazer o mesmo em Natal, mas ninguém se interessou. Consegui fazer uma vez só, na Sparta. No decorrer dessa segunda temporada fomos pra estúdio e gravamos umas coisas. Inclusive, como o cantor e compositor Filó Machado estava em turnê pelo Japão, tocando com uma japonesa, terminei fazendo uma parceria com ele e gravamos, juntos, Adeus América. Depois gravei também com Hugo Fattoruso, um pianista uruguaio. Gravamos Flor da Felicidade, que acabou não entrando no segundo disco, que se chama Canto Livre. No terceiro ano voltei para fazer o lançamento do Canto Livre. Dessa vez com uma estrutura maior. A gravadora fez um link com uma empresária de uma das casas do Japão, Keiko, uma japonesa. Era gerente de uma casa chamada Sabá. Ela viabilizou essa turnê pelo Japão junto com Wanda Sá e banda, que também estava lançando o CD dela pela Vídeoarts. Eu fazia meia hora de show antes de Wanda Sá, depois a gente se encontrava no palco, cantava uma música, ela fazia o show dela e no final eu voltava para o encerramento. Foi maravilhoso, porque eu cantei em casas maravilhosas no Japão.

ZONA SUL – Você chegou a gravar quantos CDs no Japão?
VALÉRIA – Gravei três, contando com Imbalança.

ZONA SUL – Como surgiu a possibilidade de Edu Lobo participar de Imbalança?
VALÉRIA – Em 2002 lancei o Canto Livre. Aí não viajei mais para o Japão. Em 2003 não pintou nada e em 2004 resolveram fazer uma nova produção. Só que Kazuo veio para o Brasil. A gente se encontrou no Rio de Janeiro e fizemos 80% da gravação lá, no estúdio Fibra. Kazuo Yoshida pediu à produtora executiva do disco no Rio, que era Tatiana Horácio, para apresentar os discos anteriores pra Edu Lobo, pra saber se ele topava ou não fazer essa participação. Pra nossa surpresa ele topou. A gente só se encontrou, praticamente, no estúdio. Antes não tivemos contato, só pra decidir a música, a coisa do tom e tal. Confesso que fiquei numa tensão, numa expectativa muito louca. Jamais imaginaria que fosse ter um encontro desses tão especial. E tão cedo. Mas foi um encontro muito bom, tranqüilo, relaxado. Desde a chegada dele senti que a coisa ia fluir com muita tranqüilidade. Ele foi muito generoso, ensaiamos a música duas ou três vezes, conversamos. A esposa dele também é muito simpática. Gravamos a música ao vivo em estúdio, como a gente chama. Tocando e cantando juntos. Sem ser aquela coisa de gravar violão, voz dele, minha voz... Não. Foi tudo valendo. Ouvimos juntos, depois ele aprovou.

ZONA SUL – Essa divulgação nacional foi contato da gravadora? Até então ela só distribuía seus discos no Japão...
VALÉRIA – Isso. O esquema foi Kazuo, mais uma vez. Durante a gravação de Imbalança a gente encontrou com os donos da gravadora Deck Disk, João Augusto e Mônica. Saímos pra jantar, demos uma conversada, mas não ficou nada certo. Foi um primeiro contato mesmo. É tanto que eu nem estava com tanta expectativa com relação a isso. A Deck distribui discos de várias pessoas que gravam no Japão. Eles já tinham contato com outros artistas da Vídeoarts. Eu não tinha mas nem esperança que esse trabalho fosse lançado aqui, até que, dois anos depois, surgiu a possibilidade.

ZONA SUL – Deu para faturar uma boa grana nessas suas idas ao Japão?
VALÉRIA – Os ganhos que tive com minhas idas ao Japão foram as viagens, foram ganhos culturais. O pouco que consegui ganhar foi através dos shows, das apresentações. A questão do CD a gente não tem contrato exclusivo, meu contrato é de gravação. Então o ganho é mínimo. O bom disso tudo é porque você tem um produto lançado no mercado e a partir desse produto você pode fazer shows.

ZONA SUL – Você já tem algum plano para os próximos passos? O que você pretende fazer a partir de agora?
VALÉRIA – Eu já vinha desenvolvendo um trabalho de composição, como eu já falei. No final do ano passado fiz um show no qual mostrei minha cara pra Natal, enquanto compositora. Foi o show Anúncio de antiquário. Foi muito bem recebido pela cidade. Até hoje pessoas que não viram o show perguntam quando vou fazer de novo, porque ele foi muito bem comentado. Pretendo repeti-lo ainda esse ano, se Deus quiser.

ZONA SUL – O que esse show teve de tão especial?
VALÉRIA – Ele teve Valéria nua e crua. Me mostrei como musicista, como compositora, como cantora, e apresentei uma sonoridade que é minha, particular. Acho que a grande novidade do que venho fazendo atualmente é que estou envolvida muito com a parte de produção do meu trabalho. Desde a produção musical, os arranjos, as sonoridades... Já tenho muita coisa encaminhada para um próximo trabalho em CD. Joguei tudo isso no palco como uma grande novidade e o público ficou meio surpreso. De novembro pra cá todos os meus shows estão pontuados por composições próprias. Mesmo quando faço show do Imbalança, aqui e acolá eu já jogo alguma coisa nova.

ZONA SUL – Como a informática e a Internet interferiram no seu trabalho?
VALÉRIA – Em termos de Internet ainda uso menos do que poderia. Mas já tento colocar um blog no ar (http://www.valeriacanta.zip.net/). Pretendo lançar meu site até o final do ano. Por enquanto estou usando o blog. Através dele divulgo não apenas meus shows, como eventos de artistas da cidade, CDs e textos que acho interessantes. Uso também o Orkut, que é um meio rápido de fazer circular as notícias. A Internet pra gente que não tem uma divulgação oficial através de uma gravadora é fundamental hoje em dia. Recebo e-mails de diversas partes do país. A Internet, de certa forma até força os outros meios de comunicação a se abrirem também um pouco mais. Em relação à informática de uma maneira geral, tenho buscado alguns programas de música e feito umas produções em casa. Um dos programas que uso é o Cool Edit. Uso também o Encore pra escrever partituras

ZONA SUL – Quem merece ser divulgado em Natal hoje?
VALÉRIA – São tantos... Mas eu cito logo os que estão perto de mim, que além de serem parceiros são grandes cantores e jovens pra caramba: Simona Talma, Luiz Gadelha, Ângela Castro, Crystal... Dos antigos, tenho verdadeira admiração e confio no taco de várias, entre eles Cleudo Freire, Romildo, Babal, Galvão e Pedro Mendes. Muita coisa boa tem acontecido em Natal ultimamente. Acho que um novo fôlego está pintando, e não só com a música. Tenho me envolvido bastante com pessoas do teatro e tou começando a conhecer pessoas que trabalham com cinema. Tem um grupo se formando e sinto que tá querendo alguma coisa.

ZONA SUL – O que faltou eu perguntar a você?
VALÉRIA – Só tem uma coisa que eu acrescentaria, é sobre minha expectativa de focalizar meu trabalho em um trabalho único. O objetivo agora é lançar um disco autoral, pela primeira vez na minha carreira, depois de cinco discos. Talvez se forme aí um perfil mais definido da minha música. Eu gostaria de poder trazer esses parceiros que conquistei no Japão, como Kazuo, e os grandes músicos com os quais gravei. Absorver esse pessoal pro meu trabalho autoral e fazer um trabalho único. Para não me dividir tanto em relação aos trabalhos independentes e com gravadoras. Focalizar, canalizar todas as minhas energias pra um único trabalho.

ZONA SUL – Ah, faltou eu perguntar sobre a experiência desses shows que você fez em Brasília...
VALÉRIA – Cheguei em Brasília no dia 2 de junho e só tive grandes momentos. Encontrei muita gente de Natal, me senti praticamente em casa com a receptividade. Passeei praticamente todo o dia que cheguei, andei pela cidade. Já sabia como Brasília funcionava, apesar de não conhecer nada. Mas tinha uma idéia. Tenho um poder de adaptação muito bom, graças a Deus. No dia seguinte já fiz um show para uma platéia maravilhosa, inesperada até. Achei que podia ser um público menor, até por ninguém me conhecer na cidade. Mas fui assistida por mais de cem pessoas, entre amigos, novos amigos que fiz, amigos de amigos, e uma platéia completamente desconhecida. Foi uma noite bem agradável, bem musical, toquei com Erick, percussionista que mora em Brasília, mas que nasceu em Natal. Aproveitei bastante esse tempo pra fazer contatos em rádios e emissoras de TV. Foi uma semana intensa e bem proveitosa.