sábado, 19 de dezembro de 2009

Entrevista: Gildomar Marinho

O menino de Santa Inês, Imperatriz, Fortaleza, São Luís...
De Gildomar Marinho eu conhecia a música “Alegoria de saudade”. Glauco Porto havia me enviado a tal canção por email, e solicitado uma opinião. A mineira Ceumar interpretava essa música, na gravação, acompanhando o compositor, Gildomar. Na véspera dessa entrevista, o conheci pessoalmente. Estava acompanhado pelo poeta, cantor, compositor e jornalista Nélson Oliveira. Sábado à tarde, Glauco me telefona e pergunta o que ando fazendo. Pergunta se pode vir até a minha casa. Estava com Gildomar. Era a chance da entrevista. Comuniquei a meia dúzia de pessoas, convidando-as para participar através do www.myspace.com/robertohomem . E assim foi feito. Ronaldo Siqueira, meu irmão; o jornalista Costa Júnior; alguém utilizando o pseudônimo Just Me e o mestre da guitarra, Aloísio Pinto, ajudaram a construir o resultado final desse texto. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL - Como é o seu nome completo?
GILDOMAR - Meu nome de batismo é Gildomar Nepomuceno Marinho. Nasci em Santa Inês, no Maranhão, em 1967. Mas a minha formação de vida, de militância e de música foi em Imperatriz, no Maranhão, onde fiquei até os 25 anos.
ZONA SUL - Localize geograficamente o município de Santa Inês dentro do mapa do Maranhão. GILDOMAR - Fica a 230 quilômetros da capital, às margens do Rio Pindaré. A cultura lá é muito forte. O boi de Pindaré, por exemplo, que é muito forte no folclore maranhense, é daquela região. Muitos artistas de Santa Inês foram para São Luís e contribuíram decisivamente para o sotaque da arte maranhense que a conhecemos hoje.
ZONA SUL - São Luís tem mais ou menos quantos habitantes? E Santa Inês?
GILDOMAR - A região metropolitana de São Luís tem hoje pouco mais de um milhão de habitantes. Santa Inês é uma cidade pequena, tem entre 70 a 80 mil. Saí de lá para Imperatriz quando tinha cinco ou seis anos. Naquela época havia uma migração muito forte. Coincidiu com vários fenômenos, como a abertura de uma estrada que integrou um pouco mais o norte com o sul do estado e ampliou as oportunidades de exploração de madeira, agricultura e pecuária. Na década de 1980 houve ainda a explosão de Imperatriz, por conta de Serra Pelada. Aquela região que hoje é a Serra dos Carajás - que já tinha um grande potencial em mineração – transformou-se em um local para especulação, por causa do ouro. Depois da chegada das mineradoras é que as coisas foram se organizando um pouco mais.
ZONA SUL - Você acompanhou todo esse processo do desenvolvimento de Imperatriz?
GILDOMAR - Quando cheguei lá, a cidade tinha pouco mais de 20 mil habitantes. De repente a população cresceu para 250 mil.
ZONA SUL - Em que seus pais trabalhavam?
GILDOMAR - Minha mãe, Erundina (tinha o apelido de Teça), era dona-de-casa. Meu pai, João Batista, era motorista. Fomos para Imperatriz na expectativa de crescer. Tem até uma história interessante. Por força da profissão, meu pai foi motorista de madeireira. Transportou muita madeira que ajudou a devastar aquela região. Não é algo nobre, mas foi necessário naquela época. A expansão de Imperatriz ocorreu com muitos conflitos: grilagem, questão ambiental, questão social... Meu pai músico - foi ele quem transferiu pra mim essa sensibilidade musical - depois de algum tempo como motorista de madeireira, se tornou um defensor da natureza. A consciência terminou vencendo. Ele entendeu que o desmatamento era uma coisa inócua para o desenvolvimento em si.
ZONA SUL - Seu pai tocava qual instrumento?
GILDOMAR - Violão. Ele até fabricava instrumentos, era luthier. Um tio meu, conhecido como Marinho de Guerra, era repentista. Ajudou a construir Brasília. Meus pais, apesar de hoje estarem separados, construíram uma família bacana. Educaram bem a mim e aos cinco irmãos que tenho. Na verdade são quatro irmãos e um agregado. Os irmãos são Gilvam, Gilmar, Paulo (o mais novo) e Dorivan, a única irmã. Tem também Claudineide que nós criamos depois. É adotiva. Mas eu dizia que meu tio, Marinho, tornava mais leve e lúdica a lida do dia-a-dia. Ele participava daqueles desafios a luz de lampião, não tinha luz elétrica naquele tempo. Foi importante na construção de um núcleo cultural forte em Imperatriz. Meu pai, influenciado por esse meu irmão, passou a tocar. Mas ele não gravou CD, embora seja compositor. O estilo dele é mais romântico. Aprendeu no Ceará. É oriundo de lá. Sua música mistura um pouco da saudade e do romantismo. Algumas dessas canções eu pretendo resgatar um dia.
ZONA SUL - O que você costumava a ouvir quando era menino em Imperatriz?
GILDOMAR – Naquele início de Imperatriz, a cidade não contava com os meios de comunicação que têm hoje. Eu ficava limitado ao que ouvia na Rádio Nacional, que chegava através de uma retransmissora. Na década de 1980 chegaram outras rádios. Então, na década de 1970 eu ouvia muito Teixeirinha, Sérgio Reis e Luiz Gonzaga. Ouvia também os sucessos de Roberto Carlos.
ZONA SUL - O artista de Imperatriz ou de outras cidades maranhenses conseguia espaço para divulgar o seu trabalho?
GILDOMAR - Não. Uma das poucas formas era a imitação dos shows de calouros. A partir dos anos 1980 é que esse quadro mudou. Imperatriz fica a 660 quilômetros de São Luís. De lá saíram diversos artistas importantes, como Carlinhos Veloz, Erasmo Dibell, Zeca Tocantins e Chiquinho França. A música de lá mistura poesia e a musicalidade daquela região do Bico do Papagaio. Recebe influência do Pará e daquele pedaço de Goiás que hoje é Tocantins. Lógico também que do Maranhão. Foi esse ambiente que me influenciou. Adolescente, eu via a música que ia sendo criada, reunindo elementos tradicionais como o romantismo. Mas não apenas o romantismo do homem e da mulher, mas também o sentimento pela terra, o sonho de um mundo melhor. Havia ainda a luta política, a luta social e também a luta ambiental. Esses ingredientes forneceram um tempero bacana para a música tocantina, que é como se chama a música maranhense daquela região. Entre 1985 e 1989, os artistas maranhenses do sul começaram a ser vistos pelos do norte, que engloba a capital. Houve uma importante troca na criação musical.
ZONA SUL - Como surgiu o desejo e como você aprendeu a tocar violão?
GILDOMAR – Aprendi cedo. Um dia meu pai comprou um cavaquinho, e, como viajava muito, quando voltou de uma dessas idas, se surpreendeu ao me ver tocando dois ou três acordes de uma sequência de músicas de Teixeirinha. Logo em seguida comprou um violão pra mim. De tanto experimentar notas e acordes, de repente me vi tocando algumas canções. Com oito anos eu já estava me enturmando com a música, de um modo autodidata.
ZONA SUL - Depois de aprender a tocar sozinho você procurou uma escola ou algum curso para se aperfeiçoar no violão? Nesse início você já compunha?
GILDOMAR – Não compunha nada com letra, mas achava bonitas algumas sequências de acordes e ficava trabalhando aquilo. Quando entrei no Banco do Nordeste, na década de 1980, me envolvi com a política e o meio sindical. Depois de algum tempo aproveitei um pouco dessa experiência e joguei dentro da música. Porém, minha consolidação musical veio quando fui morar em Fortaleza, já na década de 1990. Me licenciei em música na Universidade Estadual do Ceará. Na faculdade aprendi a misturar o lúdico, a diversão, com um trabalho mais estudado e elaborado. Foi importante para o processo de criação. Fiz muitos exercícios de composição. Daí surgiram canções que hoje estão consolidadas, uma parte nesse meu primeiro CD, “Olho de boi”. Tenho mais 24 canções que entrarão nos dois próximos discos que gravarei.
ZONA SUL - Voltemos um pouco no tempo. Você, ao sair de Imperatriz, chegou a fazer uma escala em São Luís ou embarcou direto para morar em Fortaleza?
GILDOMAR - De Imperatriz fui direto para Fortaleza. Depois foi que voltei para São Luís, em um outro momento. Em Imperatriz aconteceram importantes festivais de música. Participei de alguns deles, embora não tenha vencido. O festival tem muito de interagir, de conhecer pessoas. Participaram desses eventos artistas como Nilson Chaves (Pará), Edmar Gonçalves (Ceará) e Chico Affa (Goiás). Amelinha, Alceu Valença, Zé Ramalho, Gilberto Gil, Tetê Espíndola e um monte de gente fizeram shows de encerramento nesses festivais. Esse clima de interação fez com que eu me aproximasse de artistas do Maranhão. Fiquei em Imperatriz até 1992, quando me mudei para o Ceará. Saí com uma bagagem musical incipiente, do ponto da criação, mas muito forte do ponto de vista da influência.
ZONA SUL - O motivo dessa mudança foi a aprovação no concurso para o Banco do Nordeste?
GILDOMAR - O concurso foi antes, passei em 1985. O fato é que minha trajetória pessoal é mesmo feita de ciclos. Não me apego a nenhum lugar físico, embora goste de todos os lugares onde tenha ido. O lance é que, naquele momento, Imperatriz tinha dado o que tinha que dar. Fui buscar novos horizontes. Eu tinha visitado Fortaleza antes, e tinha conhecido pessoas bacanas, do ponto de vista da criação musical. Dentro dessas influências musicais, o Ednardo foi fundamental. Eu já gostava do jeito dele compor, de escrever e expressar sua arte. No Ceará conheci um grupo de pessoas, inclusive o Pedro Rogério, que terminou sendo meu colega de faculdade.
ZONA SUL - Ele é parente de Rodger Rogério?
GILDOMAR - Filho. Resolvi levar para o Ceará o que tinha aprendido no Maranhão. Aí surgiu a ideia do “Olho de boi”, já naquela época, na década de 1990. Fortaleza foi importante porque é uma cidade mais dinâmica. Conheci pessoas que tocavam jazz, blues, música espanhola e flamenca... É uma cidade muito mais cosmopolita do que Imperatriz. Foi quando resolvi me aperfeiçoar na música. Passei no teste e entrei na faculdade de música. Quando se faz licenciatura em música, as possibilidades são infinitas. Uns querem ser maestros, outros querem ser produtores musicais... Apesar disso, o processo é muito seletivo. De trinta que entram, apenas dois ou três se formam. Um dos motivos é a questão financeira. No meu caso particular, a música é muito importante, mas do ponto de vista de levar o mingau dos meninos pra casa, ela é insuficiente. E isso é um pouco frustrante.
ZONA SUL – Como está sendo sua história musical em Fortaleza?
GILDOMAR - Muito bacana. No curso de música, participei do coral. O canto coral me ensinou muito da técnica vocal. Eu tocava violão, mas não cantava. Então o coral me pegou cru e me lapidou. Com esse aprendizado, me senti preparado para tocar em barzinho, trajetória comum de todo mundo que vai pra música. Hoje em Fortaleza não existem mais os barzinhos, aquela coisa romântica, intimista. A cidade está repleta de “barzões”. Antes o artista cantava olhando para as pessoas. Agora a música é secundária. Toquei em diversos bares e ajudei a construir dois deles, que estão consolidados. Um é o Kukukaya, hoje voltado mais para o forró. Foi inspirado naquela música do Xangai...
ZONA SUL - A música “Kukukaya”, apesar de também ter sido gravada por Xangai, é da compositora e cantora paraibana Cátia de França.
GILDOMAR - É verdade, mas ela tornou-se definitiva e fulminante na interpretação do Xangai. Mas tanto Cátia quanto Xangai tocaram nesse barzinho. O outro que ajudei a criar foi o Maria Bonita. Tinha uma temática, como o próprio nome sugere, voltada para o cangaço, para Lampião. Trabalhávamos lá com música do Cariri, uma região típica do cangaço. Havia uma mistura da culinária com a boa música. Toquei para plateias com personalidades ilustres, como Fagner, Ciro Gomes, Patrícia Gomes, Manassés, Evaldo Gouveia e um monte de gente que já fez ou está fazendo história do ponto de vista cultural, político e social. Depois de ter participado da criação desses dois bares, montei o meu próprio bar. O nome era Pertinho do Céu. Céu era um centro universitário que tinha lá perto. Virou um barzinho acadêmico, com todo tipo de manifestação cultural: cinema, música, arte, pintura, escultura, poesia... Era bastante movimentado na cena cultural da época. Conheci muitos produtores culturais de Fortaleza. Teve até um bloco de carnaval que nasceu nesse barzinho.
ZONA SUL – Também ajudou no seu aperfeiçoamento como músico?
GILDOMAR - Foi importante na minha formação musical também. Minha esposa, Reginalda, tomava conta do bar, da parte administrativa. Eu ficava responsável pela área social e cultural. Fazia agenda, montava palco, fazia abertura de show... Passaram por lá bons nomes da cena cultural como Eugênio Leandro, Edmar Gonçalves, o forrozeiro Messias Holanda (da época de Luiz Gonzaga e Marinês), Lucia Menezes (que hoje está fazendo um trabalho bacana no âmbito nacional)... Havia também frequentadores “vips” como Luizianne Lins, que hoje é prefeita de Fortaleza, e o atual senador Inácio Arruda. O barzinho misturava um pouco da academia, por ficar próximo dos cursos de economia e da área de humanidades. Era bem próximo da Casa Amarela Eusélio Oliveira, que oferece cursos nas áreas de cinema, fotografia e animação. A mistura era grande, mas o bar era pequeno. Sua localização era estratégica. No tempo que sobreviveu, foi muito importante para aquele momento cultural.
ZONA SUL - Além dessa convivência em palco, bar, show e apresentação, você estabeleceu parcerias com músicos cearenses?
GILDOMAR – Confesso que sou meio solitário pra criar. Gosto de ter o meu momento. Tanto é assim que no meu primeiro CD só há uma parceria. E ela foi feita virtualmente, embora eu compartilhe com Zema Ribeiro uma amizade muito próxima. Ele tem um blog (http://www.zemaribeiro.blogspot.com). Trabalhou como bolsista no Banco do Nordeste. Tivemos um momento importante de criação quando eu estava em São Luís. Mesmo em Imperatriz, quando eu privava de muitos momentos com músicos locais e participava de saraus maravilhosos, não fiz parcerias. Comi muito peixe com tucunaré, regado a cerveja e vinho. Fiquei trêbado várias vezes com esses artistas. Vivi momentos ótimos para a criação, mas não tive a audácia de estabelecer nenhum tipo de parceria com esse pessoal. O mesmo ocorreu em Fortaleza. Fiquei várias vezes até quatro, cinco, seis horas da manhã, tomando cerveja e batendo papo. Porém ficou pouca coisa anotada para fazer parceria musical. A meu ver o momento de criação é algo sublime. Claro que o resultado você depois compartilha. Acho uma responsabilidade muito grande pegar um poema para colocar uma música. Mesmo assim, meu segundo CD já é mais aberto a parcerias.
ZONA SUL – Nem falamos com detalhes ainda sobre o primeiro disco e você já avançou para o segundo... Mas, aproveitando esse papo de composição: ela é mais inspiração ou transpiração?
GILDOMAR - As duas coisas. Quando vejo um fato inusitado ou algo que me chame atenção, pode até ser uma coisa simples e óbvia, aquilo lá me puxa e faz acender uma luz. Surge uma ideia. Tomo nota e depois, aí sim, vem o momento de transpiração. Vou lapidar. Raramente a música nasce de forma simples. Algumas vezes, apenas, melodia e letra saem instantaneamente. Foi o que aconteceu com “Olho de boi”. Escrevi e já veio a melodia. O show estava pronto e eu precisava de um nome para ele. Quando surgiu o nome, a música veio. Acho que a pressão fez surgir a inspiração. Mas a música por mais inspirada que seja, só vai se tornar pública, só vai ser ouvida de novo se houver transpiração.
ZONA SUL - O CD “Olho de boi” começou a ser gestado no Maranhão, quando você se enturmou com os artistas de Imperatriz. Foi criando forma no Ceará, quando você mudou-se para aquele estado. Mas onde esse disco veio ao mundo? Ele nasceu em Fortaleza ou em São Luís?
GILDOMAR - Fisicamente em São Luís. Mas sua história vem de antes. Eu tinha um parceiro musical chamado Paulo Renato. Ele era meu contato com os artistas de Fortaleza, quando cheguei na cidade. O conheci meio ao acaso. Uma colega nossa, a ex-prefeita de Fortaleza Maria Luiza Fontenele, estava aniversariando. Ela tinha um monte de amigos músicos, mas quase nenhum deles foi para a festa. Apesar dos desmandos de sua gestão, eu a respeitava pelo fato de ter sido a primeira prefeita do PT, a primeira mulher. E ela era uma militante importante. Sem músico ou cantor na festinha, fiquei tocando. Foi na Praia de Iracema. Conversamos sobre um monte de coisa, inclusive sobre a experiência da sua gestão. Muitas horas depois, apareceu Ednardo, que era meu ídolo. Foi um momento fantástico. Ele talvez nem lembre desse fato, já tinha tomado algumas. Eu lembro até pela questão da tietagem. Mas por intermédio de Paulo Renato entrei no cenário musical de Fortaleza. Envolvido com música e com política também, tive que priorizar. Escolhi a música. Senti que tinha que me lapidar. Estava percebendo que as outras pessoas tinham um nível de qualidade muito bom.
ZONA SUL – Mas nós estávamos falando sobre o seu disco de estreia, o “Olho de Boi”...
GILDOMAR – Pois é. O comentário anterior foi para fazer uma ligação com o disco. Resolvi fazer um show no Teatro São José. O espetáculo foi muito legal, o teatro lotou. Foi uma apresentação autoral. Só foram feitas duas concessões: uma música do Lenine e uma outra do João do Vale. Foi aí que entendi que show tem que ser em teatro. Show em barzinho, ou em outro lugar, não tem o mesmo valor. No teatro você se expõe, as pessoas vão para lá ver você. ノ definitivo. Há uma interação mais próxima com o público. Ao mesmo tempo entendi também que o show tinha que gerar um CD. Fazer uma produção é uma novela. Fiz quase tudo sozinho. Mas foi importante, foi um processo de criação necessário. Pra ter show, precisa ter música. Pra ter música, precisa compor. Então peguei as músicas e fui montando um repertório de um possível show. Com as músicas prontas, fui me preocupar com o dinheiro pro CD. Não tinha. Para o “Olho de boi” ser finalizado, entrei no estúdio três vezes. Por fim consegui aprovar um projetinho e o disco saiu.
ZONA SUL - Projeto de prefeitura, de governo?
GILDOMAR - Do Banco do Nordeste. Saiu o edital, montei o projeto e concorri. Foi aprovado. O melhor de tudo é que com o projeto aprovado, logo que montei a matriz do CD para o Banco, consegui aprovar o segundo e agora também o terceiro projeto. Então, tenho que correr para fazer mais dois CDs para completar a trilogia que envolve o “Olho de Boi”, já gravado, o “Pedra de Cantaria”, que é uma parceria minha com Zema Ribeiro que surgiu na cidade histórica de Alcântara, e o terceiro, que é o “Tocantes”. É uma brincadeira que fiz com Tocantins, com tocar antes ou tocar depois e com músicas tocantes.
ZONA SUL - “Olho de boi” tem a participação de uma das melhores cantoras da música brasileira, que está se revelando também uma excelente compositora: a mineira Ceumar. Como surgiu a oportunidade de ela participar e qual o seu sentimento em tê-la no seu disco de estreia?
GILDOMAR - Fiquei todo arrepiado quando ela respondeu meu email dizendo que participaria do disco. Foi um presente. A culpa disso foi um pouco do Glauco Porto, que já foi entrevistado pelo Zona Sul. Ele alcovitou. Eu mandei uma guia bamba, pra Ceumar, só com violão. Ela comentou faixa por faixa. Ouviu só a harmonia e o solfejo do samba que cantou comigo. A música tinha sido recém construída. Ela topou mesmo assim. Tal fato cresceu minha responsabilidade de fazer um trabalho com bastante qualidade. Foi uma experiência emocionante. Ceumar foi generosa. O CD não tem fins comerciais. A finalidade é registrar algumas canções. Ter nesse trabalho despretensioso a moldura da voz de Ceumar, é um brinde. Na música que ela cantou, “Alegoria de saudade”, coloquei músicos bastante tarimbados na cena maranhense. Combinou com a voz brejeira, mineira dela. O Choro Pungado, grupo que fez a base musical da canção, aceitou participar desde a primeira hora. Foi um presente que não tem mensuração. A participação de Ceumar também foi importante porque o CD ganhou cancha. Quando fiz o seu lançamento, no Teatro de São Luís, teve muita mídia. Em Imperatriz o teatro também esteve lotado. Agora vou fazer em Fortaleza, em alto estilo, no BnB Clube de lá.
ZONA SUL – Talvez, de alguma forma, ela tenha retribuído ao Maranhão o que o Maranhão fez por ela, já que Ceumar despontou cantando “Dindinha”, de Zeca Baleiro. Como foi seu retorno ao Maranhão?
GILDOMAR - Ela comentou isso. Achei até bacana. Mas meu retorno ao Maranhão, depois de uma temporada em Fortaleza, foi importante. Embora eu tenha nascido perto de São Luís, fui criado e influenciado pela música tocantina, que foi importante para o meu progresso. Na estrutura musical e do ponto de vista da vivência artística, fui lapidado em Fortaleza. Retornei ao Maranhão em busca do meu “eu” definitivo: o Gildomar músico e compositor. Meu trabalho no Maranhão, embora fosse no Banco, era externo. Dessa forma, conheci praticamente todos os municípios do Maranhão e manifestações culturais que até então desconhecia. Meu conhecimento de arte maranhense se limitava ao bumba-meu-boi e a duas ou três outras manifestações do interior. O Maranhão, por exemplo, tem o maior número de quilombolas do país. E cada quilombola tem manifestações incríveis, herdadas dos antepassados, que não passam nem chegam perto da nossa cultura branca. Estava dentro do meu estado, e eu não conhecia. Fiz umas cadeiras de sociologia. Antropologia também me interessa demais. A parte antropológica foi definitiva para eu conhecer o Maranhão que não conhecia. Isso foi do ano 2000 pra cá. Convivi com pescadores, agricultores, quilombolas e um monte de gente; com culturas muito próprias, algumas delas muito fechadas. Foi como se eu colocasse uma lente nos meus olhos para ver o que eu não tinha conseguido enxergar quando saí do Maranhão.
ZONA SUL - A distância amplifica até o amor e o sentimento, não?
GILDOMAR - João do Vale foi outro que eu aprendi tardiamente a reconhecer. Só entendi depois a sua grandeza em pegar o simples e transformar em uma coisa grande.
ZONA SUL - Como as pessoas podem ter acesso a esse seu primeiro trabalho?
GILDOMAR - No meu site armazenado no Myspace (www.myspace.com/gildomarmarinho) cinco músicas do disco estão disponíveis. As pessoas também podem manter contato pelo email pedradecantaria@gmail.com Fiz esse email já pensando no próximo CD. A Ceumar não só autorizou como solicitou que eu disponibilizasse, no Myspace, “Alegoria de saudade”. Eu não tinha colocado ainda por uma questão autoral. Agora vou liberá-la. Ceumar é uma cantora que merece muito mais do que o espaço que tem hoje.
ZONA SUL - E o disco? O que você destacaria do repertório?
GILDOMAR - Um primeiro destaque vai para essa canção “Alegoria da saudade”, que conta com Ceumar cantando comigo. O repertório foi difícil selecionar. Tinha muitas músicas. Por desafio, reservei espaço para duas músicas que eu queria incluir no estúdio. Consegui com "Coco do Zé Miúdo", que na verdade é mais uma embolada do que um coco. A participação do Robertinho, que por sinal foi o diretor musical da maior parte das faixas, foi sensacional. Ele pediu para eu cantar o coco, mas eu respondi que não conseguia falar tão rápido. Ele mandou eu treinar com uma pedra na língua. Fiz isso para conseguir falar rapidamente, para ficar com uma dicção rápida e clara. Foi importante e bem legal. Outra música que destacaria é “Tocantins”, por falar da minha região. Também gosto muito de “Ladainha da remissão”, que embora não tenha a força que eu gostaria que tivesse, compila bem a visão que tenho do Nordeste, da religiosidade e da música recursiva. Ela contém interessantes elementos modais. É difícil hoje fazer uma música modal. Só os cantadores de viola exploram isso, porém de uma forma muito incipiente. Claro que também tem Almir Sater e Renato Teixeira, que conseguem, por causa da viola, trazer elementos modais. Tem também o Elomar, que tem um trabalho nessa linha, mas usando a viola como pano de fundo. Meu desafio foi tentar fazer o novo, mas colocando o elemento modal sem a viola de 12 cordas. Também excluí a temática religiosa. Já fui bastante religioso, mas me afastei um pouco, pra poder olhar de longe. Eu não estava me sentindo identificado e, para não ser leviano, me afastei. Mas não falo mal. Estou buscando a minha forma, a minha religiosidade. Esse é um momento que estou passando agora. Tenho certeza que é apenas um estado, não é uma coisa permanente. Outra canção que eu citaria é “Cidadanóia”, que também tem um elemento modal. Sua temática é meio futurística, mas contendo também o velho modal. De repente o novo não é tão novo assim. É só olhar para o rap, que parece tentar repetir o repente. Muitas vezes o novo não é tão novo assim e traz um elemento antigo.
ZONA SUL - Fale sobre os músicos que participaram das gravações com você.
GILDOMAR – Excelentes músicos participaram. Luiz Cláudio, que fez a percussão da música “Dindinha”, no disco de Ceumar, foi um dos três percussionistas do “Olho de boi”. Um outro foi Gileno, ótimo percussionista do Maranhão. Recomendo a qualquer um. Teve também o Carlos Pial, que é percussionista de Papete. Na gravação do CD, descobri que Pial é meu conterrâneo: também nasceu em Santa Inês. O mundo é pequeno. Eu não o conhecia pessoalmente, só de fichas técnicas de alguns shows que ele fez com Papete. É uma figura muito bacana e um percussionista muito competente. Tem umas sacadas muito boas que podem, inclusive, ser conferidas na própria “Alegoria da saudade”. Ele foi definitivo pra dar o molho nessa música. Outro que tem uma sensibilidade muito forte, em termos de percussão, é o Júnior Batera. Ele faz um pouco de percussão e bateria. Trabalha com ritmos desde os 12 anos. É consagradíssimo e já gravou vários CDs. Outro que participou foi Luiz Júnior, um violonista definitivo que já tocou inclusive com Yamandu Costa. É novo, mas é estudioso, curioso e criador. Tem também o Robertinho Chinês, que é um menino, uma criança de 15 anos. Ele fez o cavaquinho na música “Alegoria de Saudade”, com enorme competência. Outros músicos participaram, como João Neto, da flauta, que trabalha em oito grupos de choro. É um chorão nato. Ele é sobrinho do Josias Sobrinho, que é compositor. É uma pessoa muito leve e bastante competente. Temos o Rui Mário, que tocou sanfona, ou acordeón. Acordeon é mais moderno, mas eu chamo de sanfona. Rabeca hoje é violino. A gente brinca, mas é diferente. Ele tem 25 anos, mas é muito competente no que faz. Foi um CD bastante feliz na sua estrutura. Os músicos foram importantes porque lapidaram algumas músicas que eu estava fazendo. Dentro das limitações naturais, eu gostei muito de ter feito e do resultado.
ZONA SUL – Fale do disco que vem por aí.
GILDOMAR – O próximo CD será um desafio. “Pedra de Cantaria” será outro disco conceitual, envolvendo também essa dubiedade de ser um pouco maranhense e um pouco cearense. Mas dessa vez a faca mudará de ponta. Vai ser feito no Ceará, mas com uma linguagem do Maranhão. Só que um Maranhão redescoberto, como falei há pouco, depois da minha passagem por São Luís. A responsabilidade cresceu um pouco mais, por força de outros elementos terem sido incluídos. No “Olho de boi”, nas suas 12 músicas, eu explorei 21 ritmos. O novo CD não terá essa diversidade. Por outro lado, nele estou explorando mais parcerias. Recebi algumas propostas de parceiros, como o Ricarte Almeida, que é poeta, radialista e agitador cultural no Maranhão. Tem o próprio Zema Ribeiro, que já é parceiro. Conversei com Carlinhos Veloz, que disse fazer questão de participar desse trabalho. Depois do primeiro disco, me reaproximei desse povo. A gente se encontra em ponte aérea, mas sempre fica um pouco da amizade do passado, com as projeções do que podemos fazer no futuro. Estamos mais maduros e os projetos são sonhos factíveis que podem se tornar concretos. O próprio Dibell também quer participar. Sei que vai ser difícil estabelecer uma parceria com Dibell, já que ele é definitivo e completo. Quando faz uma música, ela nasce pronta, com tudo. É fantástico no processo de criação. Parece que ele enxerga a música em cima de um prisma que nós mortais não conseguimos. Por isso acredito que participação dele será mais como cantor.
ZONA SUL – Incluirá também parceiros do Ceará?
GILDOMAR - Tem outras parcerias de amigos meus cearenses. São poetas desconhecidos, mas que escrevem coisas belíssimas que eu espero ter competência de musicar. São duas parcerias que estão precisando fechar. Uma é definitiva, vou ter que fazer. De qualquer forma, esse será um CD diferenciado, com outras ideias, músicas, letras e formas de fazer. O desafio será gravá-lo no Ceará levando a pegada do Maranhão. Vamos ver se a gente consegue. A propósito do “Olho de Boi”, quero fazer uma reverência especial a Léo Costa. Ele havia mixado muitos CDs de Papete. Foi muito importante do ponto de vista de criar uma estética diferenciada para o meu CD. Imagine um disco complexo, com muitos músicos. Se errar na mão, na mixagem, o tempero termina sem aquele elemento bacana que é a harmonia. Mixar é tirar os excessos. E ele fez isso muito bem: valorizou o que tinha que ser valorizado e suprimiu o que devia. Achei bacana a forma como ele enxergou o CD.
ZONA SUL – Hoje em dia todo artista fala em registrar seu trabalho em DVD. Você também pensa nisso?
GILDOMAR – Tenho, sim, esse desejo. Por sinal, os dois shows do “Olho de boi” foram filmados. Mas eu não gostei do resultado visual. De qualquer forma foi importante porque vai servir como parâmetro para eu aprimorar as próximas apresentações. Minha preocupação maior naquele espetáculo era com o áudio e a proposta do disco. Tanto foi assim que, como eu quis que as apresentações fossem fiéis ao CD, levei todos os músicos. Um show com tanto músico só fica legal da oitava apresentação pra frente, quando os sons vão se encaixando. Mas o DVD é uma questão de tempo, de amadurecer. A prioridade hoje é tirar do forno os dois CDs já engatilhados. Quem sabe deles não nasce um show? O problema do DVD é que é um projeto caro para os padrões de um artista que, como eu, tem um público restrito. O artista que fica preso a um ofício, no meu caso o trabalho no Banco, tem uma limitação espacial. Não posso sair por aí voando, porque tenho que bater o ponto, vamos dizer assim. Mas há sim o desejo e o projeto de fazer o DVD.
ZONA SUL – Você falou em tantos lugares que será de bom tom esclarecer: você hoje está morando em Fortaleza, São Luís, Imperatriz, São Luís, Rio de Janeiro, Brasília ou qual outra parte do mundo?
GILDOMAR – Estou morando em Fortaleza. Meu projeto é ficar por lá mais uns dois ou três anos, pelo menos. O projeto pessoal é esse dos dois CDs. Também estou me estruturando ara fazer um mestrado na área de desenvolvimento. Esse seria o plano acadêmico. Um aprofundamento maior no violão eu vou deixar para os virtuoses. Vou me dedicar ao exercício da criação e completar essa trilogia de CDs. Será como um legado. Também pretendo me aperfeiçoar no sentido de poder oferecer uma boa apresentação quando estiver mostrando meu trabalho. Essas são metas musicais. Quero ainda conversar com pessoas, discutir como a música está hoje e como ela será no futuro. A Internet promoveu um baque forte na música. Hoje todo mundo tem um MP3 ou outra mídia. Cada qual está produzindo e reproduzindo. A música nacional, imagino, não vai existir da forma como a gente pensa hoje. Deverá se pulverizar e vai ser difícil haver uma linguagem una.
ZONA SUL – Um artista que admiro muito é o Chico Maranhão. Ele influenciou no seu trabalho? E a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, lhe diz algo?
GILDOMAR - A música “Alegoria de saudade” nasceu no Rio Grande do Norte, quando estive em Natal. É uma cidade linda. Fiz umas andanças por lá. Visitei o Forte dos Reis Magos, achei muito legal. As praias são maravilhosas. Quanto ao Chico Maranhão, ainda tivemos uma aproximação maior. Mas as estradas se encarregarão de corrigir isso. Um parente meu, o Lourival Tavares, outro músico fundamental, que foi importante na minha formação musical, promoveu recentemente um grande show em benefício dos desabrigados da última enchente que atingiu o Maranhão. Muita gente bacana da cena musical participou, como Carlinhos Veloz. Foi em junho. Chico Maranhão também esteve lá. Tocamos no mesmo palco, foi quando o conheci pessoalmente. Penso que é uma questão de tempo de a gente ter uma história bacana. Mas quero deixar um convite ao leitor do Zona Sul para que ele visite o Maranhão e conheça pelo menos um pouco de tudo o que eu falei.