quinta-feira, 30 de junho de 2005

Entrevista: TICO DA COSTA

TICO DA COSTA: O ANJO VESTIDO DE HOMEM

No dia 29 de agosto de 2009 eu estava dentro de um ônibus ao lado de Florian Augusto Coutinho Madruga - o irmão de Woden Madruga que atualmente dirige a Gráfica do Senado. Estávamos em Curitiba, participando da primeira bienal do livro da cidade. Rumávamos do hotel para o trabalho, naquele começo de tarde. Foi quando o telefone tocou.

Era Ricardo Menezes, dono do Restaurante Veleiros. O ex-guitarrista das bandas Cabeças Errantes e Cantocalismo, que poucos dias antes estivera comigo em Brasília, deu a notícia. “Tico acabou de morrer”. Francisco das Chagas da Costa, Titico de Dijesu, Luiz Augusto, Titico, Tico da Costa ou apenas Tico, havia descansado depois de ter sido surpreendido pela notícia recente de que um câncer havia se instalado em seu pâncreas.

Conheci Tico no início de junho de 2005. Mais uma vez Ricardo Menezes fez parte da história. O encontro se deu no seu “Veleiros”, lá na Estrada de Ponta Negra. Eu e o amigo jornalista Costa Júnior fomos entrevistar Tico da Costa para este Zona Sul. Eu não sabia nada de sua vida. O filho de seu Dijesu, o carteiro lá de Areia Branca, nos deixou embasbacados quando falou com desenvoltura e intimidade em nomes como Philip Glass, Carybé, Lina Wertmuller, Jô Soares, Peter Seeger e Gerald Thomas.

Durante aquele jantar, percorremos lugares como Natal, Recife, Nova York, Roma, Milão, Costa Rica e Assunção, entre muitos outros. Tudo, lógico, tendo como ponto de partida o Beco da Galinha Morta, em Areia Branca. Mas as palavras de Tico, as histórias e suas músicas – que imediatamente em seguida passei a conhecer – apesar de tanta riqueza, graça e densidade, representam apenas um pouco da energia que ele transferia. Tico era um ser iluminado.

O título de uma matéria da jornalista Michelle Ferret, da Tribuna do Norte, tratando Tico da Costa como “o anjo vestido de homem”, me tocou profundamente. Sara Beatriz Fracchia, a mulher de Tico, é a responsável pela descrição. Nada melhor do que ela para saber. De longe, eu achava que ele era mesmo diferente. Nunca vi tanta generosidade reunida em uma só pessoa.

Tico tinha várias qualidades: talento, simplicidade, inteligência, simpatia, senso de humor, esperança, alegria... Ele tinha um mundo dentro de si, exalava criatividade. Era moldado para a música. O violão nem poderia ser chamado como extensão do seu corpo. Fazia mesmo parte dele. Mas a característica dele maior, pelo menos para mim, era a generosidade. Ele não economizava amizade, atenção e gentileza, que distribuía em doses fartas ao seu semelhante.

Titico não!

O artista plástico argentino e naturalizado baiano, Carybé, depois de ter feito uma viagem a Itália – ele e esposa – na companhia do casal “da Costa”, enviou uma carta ao amigo Titico dizendo que tinha um assunto muito delicado a tratar. “Olha, esse seu nome não dá certo”. Assinando como Titico, Tico da Costa já havia gravado alguns compactos e um long-play na Itália. Noivo de Sara, ele se comoveu quando Carybé esgrimiu o argumento definitivo: “quando vocês casarem corre o risco de alguém chamá-la de Titica”. Depois que leu essa frase, Tico disse ter se sentido um verdadeiro “Bosto”. Ele nunca permitiria que a grande paixão da sua vida corresse, embora que muito remotamente, esse risco.

Decidido a aceitar a argumentação do amigo, ele gastou noites pensando, até que resolveu adotar o nome artístico de Chico da Costa. Compôs até uma canção se apresentando: “Meu nome é Chico / E feito nordestino xique-xique me criei / O que por fora é seco / Por dentro haja água / Chico, Chico é cheio”. Uma sombra frondosa chamada Chico Buarque, o fez desistir da concorrência. “Outro motivo para eu desistir rapidamente desse novo nome foi que parecia que tinha um xique-xique dentro de mim: o nome espinhava”.

Talvez só tenha espinhado menos do que o curto período em que ele chamou-se Luís Augusto, por sugestão de Jota Belmont, da antiga Rádio Cabugi. Tico cantava iê-iê-iê, algumas canções do Roberto Carlos e outras de Jerry Adriani. Foi na Lagoa Manoel Felipe, em um programa transmitido para todo o Rio Grande do Norte pela emissora que hoje se chama Globo, que surgiu o Luis Augusto.

Mas Francisco, que tinha virado Titico, depois Luís Augusto e se transformado em Chico da Costa, voltou a ser Francisco da Costa. Porém, também não demorou muito, achou muito clássico. E os amigos acharam horrível. Ao pensar na nova alternativa, resolveu de antemão que preservaria o “da Costa”, pois era inscrito na Sociedade de Autores Italianos com esse sobrenome, que é o formato adotado por lá. Facilitaria a cobrança de direito autoral. Virou Tico da Costa.

Ele somente ficou convencido, satisfeito e orgulhoso com a nova opção depois que recebeu um cartão de Peter Seeger, artista folk americano mentor de Bob Dylan e Joan Baez e compositor de, entre outras, “Date me un martelo”. Era um desenho da Via Láctea com um pontinho minúsculo apontando a terra e a frase: we are here (nós estamos aqui). “Pensei imediatamente: a terra não é mais do que a metade de um tico!”.

Explicada a questão das diversas identidades do artista areia-branquense, é bom também esclarecer como Tico virou nômade e percorreu o mundo encantando pessoas com a sua música e também com a sua personalidade. Menino ainda, ele via Mirabô Dantas tocar pelas ruas da cidade natal de ambos. Procurava imitar o ídolo que posteriormente virou amigo e colega de luta em favor da música popular potiguar.

Aos 15 anos já morava em Natal. Foi aluno da então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte. Lá conheceu a professora de artes Lourdes Guilherme, que ao atestar seu talento, arrumou uma bolsa de estudos na Escola de Música da UFRN. O instrumento foi o contrabaixo, já que não tinha mais vaga pra violão. Quando se transferiu para Recife, trocou pelo violão clássico.

Eu não tenho dúvidas de que Tico da Costa, nesse instante, vela por todos nós de um lugar especialmente reservado a ele lá no céu. Não bastasse o exemplo, a prática, a vida, ele também era teórico. Era ovelha da igreja católica. Sem alardes ou recriminações a nós os pecadores. Por intermédio do Gen Cântico Novo, grupo que pertencia ao movimento Focolares, Tico, aos 21 anos, em 1972, foi a Roma participar de um congresso internacional de jovens.

Discografia

Seu violão, sua voz e seu “eu” conquistaram os italianos. Como um César equatorial, ele foi, viu e venceu no reino do próprio César. Gravou, somente em 1972, três compactos: “Cantico nuovo”, Cittá colorata” e “I complimenti”. Quatro anos depois, lançou seu primeiro elepê “Poesia e samba”. Gravou, ainda na Itália, “Brasil Jerimum”. Foi quando voltou a Natal e, pelo Projeto Memória, da UFRN, lançou América Latente.

Conquistada a Europa, tendo a Itália como base, havia chegado a hora de experimentar a América do Norte. Nos Estados Unidos lançou “Brazil encanto”, “Música de la tierra” e participou do “Contemporan Global Voices”, um trabalho de world music. Foi para o Paraguai, terra de Sara. Com Palito Miranda lançou “Con sabor a Brasil”. De volta aos Estados Unidos, gerou “Choro suíte”. Era hora de se aquietar um pouco. Voltou para Natal em 2003. Lançou “Anjos da selva” e “Ideal 1”, de forma independente. Este último é um disco de canções que ele fez expressando sua fé.

Mesmo tendo o território papa-jerimum como base, Tico não deixou a vida de andarilho. Gravou “Lagartixa”, nos Estados Unidos, e “Mar”, na Itália, seu último trabalho lançado em vida. Curioso é que, quando estava gravando “Lagartixa”, as torres gêmeas do World Trade Center desabaram após um atentado terrorista, em Nova York. Tico da Costa estava em um prédio do outro lado do rio Hudson. “Era como se eu estivesse na beira do Rio Potengi, e as torres desabassem na Redinha”. Meses antes ele havia tocado no 105º andar do WTC. Também já havia se apresentado entre as torres, com Philip Glass.

O músico minimalista é autor de trilhas importantes para o cinema tornou-se seu amigo quando esteve no Brasil fazendo anotações para o próximo filme que iria musicar: Pawaqatsi. Philip já era famoso. Tico, que na época, 1984, sequer falava “good night” foi seu cicerone durante uma viagem pela floresta amazônica. Eles não se comunicavam em tupi-guarani, mas em francês. Quando mostrou “Ana Bandolin”, o norte-americano se apaixonou à primeira vista.

Assim era Tico da Costa. Um ser apaixonante. Sua morte foi lamentada em larga escala. Não apenas em Natal, mas por todas as localidades onde ele tinha um amigo que o queria. No dia 16 de agosto a música potiguar prestou uma homenagem a ele, no Teatro Alberto Maranhão. Conhecidos e anônimos foram agradecê-lo por tudo e prestar-lhe mais uma homenagem. É isso que o Zona Sul também tenta fazer nesse instante. (Roberto Homem)


MY NAME IS TICO





Como misturar em um só texto nomes como Philip Glass, Caribé, Lina Wertmuller, Jô Soares, Peter Seeger e Gerald Thomas? Como falar de música nordestina, cinema, atentado ao World Trade Center e viajar por Natal, Recife, Nova York, Roma, Milão, Costa Rica e Paraguai em tão pouco tempo? As respostas para essas perguntas podem ser encontradas na entrevista que fizemos com o potiguar de Areia Branca, Tico da Costa.

No começo de junho, eu e o jornalista Costa Júnior recebemos o cantor, compositor, showman e excelente figura Tico da Costa para um jantar no restaurante Veleiros, na Praia de Ponta Negra. Durante quase uma hora e meia, Tico da Costa contou suas peripécias mundo afora. Queda das torres gêmeas, shows em Nova York, Itália, Alemanha... Amizades com personalidades das artes. Tudo isso você vai conferir a partir de agora. (Roberto Homem)



ZONA SUL – Como é seu nome verdadeiro? Como surgiu o Tico da Costa?
TICO – Meu nome é Francisco das Chagas da Costa. Lá em casa todos sempre me chamaram de Titico. Colegas de Areia Branca me chamavam Titico de Dijesu. Dijesu era meu pai: carteiro, violonista, contador de causos... Titico, aqui no Nordeste, é um diminutivo de Francisco. Resolvi assumir esse nome artístico. Na Itália, onde fui estudar violão clássico, gravei três compactos e um long play assinando como Titico. De volta ao Brasil, conheci uma figura muito interessante: o artista plástico baiano-argentino Caribé. Pouco tempo depois, fizemos uma viagem pela Itália. Eu e minha atual, única e contínua esposa, Sara, que naquela época era namorada, Caribé e Nancy. Visitamos aqueles museus italianos, conhecemos tudo. Ele também me chamava Titico. Até que um dia, Caribé me encaminhou uma carta que dizia, logo no começo, que ele tinha um assunto muito delicado para tratar comigo. Que ele falaria porque era meu amigo e o verdadeiro amigo era aquele que encostava o outro num canto de parede antes que algum inimigo o fizesse. Caribé disse: “olha, esse seu nome não dá certo”. Mas o argumento definitivo, aquele que me fez decidir trocar o nome, foi quando ele profetizou que quando eu casasse com Sara correria o risco de alguém chamá-la de Titica (risos). Senti-me o verdadeiro “Bosto” naquele momento. Foi uma pena, porque eu tinha até inventado uma assinaturazinha tão bonitinha... Escrevia um traço assim e botava dois pingos em cima. Perfeito. Mas não foi fácil. Eu tinha vários discos gravados, um certo nome na Itália, e estava sendo obrigado a mudar.

ZONA SUL – Foi aí que você resolveu assumir o Tico da Costa?
TICO – Não! Depois de noites e noites pensando, resolvi adotar o Chico da Costa como nome artístico. Até compus uma música, gravada em um long play na Itália, me apresentando: “Meu nome é Chico / E feito nordestino xique-xique me criei / O que por fora é seco / Por dentro haja água / Chico, Chico é cheio”. Mas lembrei que já tinha o Chico Buarque. A concorrência seria dura. Outro motivo para eu desistir rapidamente desse novo nome foi que parecia que tinha um xique-xique dentro de mim. O nome espinhava. Troquei para Francisco da Costa, mas não demorou muito, porque ficou muito clássico. Meus amigos me chamaram de doido, acharam horrível. Enfim, como eu era inscrito na Sociedade de Autores Italianos com o nome Da Costa (lá eles adotam o sobrenome), resolvi conservar esse pedaço para facilitar na hora de cobrar direito autoral. Foi quando optei pelo Tico da Costa. Um dia conheci Peter Seeger - importante artista folk americano, responsável por ter levado a música Guantanamera para aquele país e compositor de sucessos internacionais como Date me un martelo, que Rita Pavone gravou. Ele ficou fã de uma música minha: Ana Bandolim. Peter Seeger é o Luiz Gonzaga norte-americano, ele foi mentor de nomes como Bob Dylan e Joan Baez. Toca banjo. Fizemos vários shows juntos. Um dia ele me mandou um cartão com os dizeres “We are here” (Nós estamos aqui), com um desenho da Via Láctea e um pontinho apontando a localização da terra. Logo que olhei, pensei: a terra não é mais do que a metade de um tico! Eu tenho é que ficar orgulhoso com esse nome, pois eu vivo num tico. Situação parecida ocorreu quando fui a Costa Rica. Os costa-riquenhos são chamados de ticos. Todo mundo é tico por lá. É como brasileiro aqui.

ZONA SUL – Como era sua vida em Areia Branca e como se deu a descoberta musical?
TICO – Uma irmã minha ganhou de presente um violão. Ao todo, tenho 15 irmãos. Somos oito homens e oito mulheres. Meu pai, Dijesu Paula, era um carteiro conhecidíssimo e queridíssimo em Areia Branca. Ele entregava uma carta e contava uma piada. Morreu em 1992. Toda a família dele, de ambos os lados, tinha músico. Meu pai tocava violão. Foi olhando pra ele que vi os “lás” menores, o mi... Minha irmã ganhou o violão, mas nem triscou. Mas eu e meus irmãos caímos em cima do instrumento. Meu pai - que estava sem violão há muito tempo porque minha mãe tinha vendido para ver se ele deixava de farrear, e ele deixou mesmo de beber – voltou a tocar de novo. A gente fazia fila pra tocar. Literalmente. Meu irmão mais velho começou a aprender violão com um professor que estudava violão clássico por correspondência. (risos). Meus primeiros acordes aprendi com meu pai e com Mirabô Dantas, que vivia tocando pelas ruas de Areia Branca. Eu olhando, perguntando, enchendo o saco. E Mirabô fazendo aqueles acordes de dissonância. Eu e meus outros irmãos, só olhando, já aprendíamos. Era a maior briga, mas a gente trocava figurinha. Um ensinava ao outro. Mas aconteceu uma coisa interessante, da natureza mesmo. Desde que aprendi os primeiros quatro acordes, comecei a compor. Eu tinha 13 anos. Eu fazia letra e música, tudo junto.

ZONA SUL – Então, depois disso, você mudou-se para Natal...
TICO – Minha intenção era estudar. Naquela época eu cantava músicas de Roberto Carlos, Jerry Adriani, muito iê-iê-iê... Eu chegava aos clubes e me oferecia para cantar. Além do repertório conhecido, eu incluía uma, duas músicas minhas também. Lembro de uma ocasião em que me apresentei, na Lagoa Manoel Felipe, em um programa produzido por Jota Belmont para a Rádio Cabugi, que era transmitido para todo o Rio Grande do Norte. Eu ia cantar duas músicas de minha autoria. Quando me fui acertar minha participação, Jota Belmont disse logo: “Titico? De jeito nenhum. Seu nome vai ser Luís Augusto!”. Eu até tinha esquecido que tinha usado esse nome também, durante algum tempo na vida. Mas cantei nesse programa e foi um barato. Naquela época era considerado original um cara cantar composições próprias.

ZONA SUL – E os estudos?
TICO – Fui estudar na Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, que já funcionava lá no cruzamento das avenidas 15 e Salgado Filho. Era muito longe. Comecei a participar de festivais, a me envolver mais ainda com a música. Eu tinha até algumas composições com algum teor estético. Eu ouvia Edu Lobo cantando naqueles festivais e tentava fazer parecido, mas muitas das letras que escrevia, nem eu mesmo entendia o significado. Uma delas era assim: “Eu não sei o que devo fazer / Como posso explicar / Se eu devo dizer, se eu devo calar / Eu vou cantar, eu vou cantar sem protestar / A vida pra uns foi feita pra sofrer / É difícil às vezes conseguir viver / Mas pra outros a sala se clareia (eu via a sala assim, o sol entrar e botava na letra) / Sacudir o pano tirando a areia / Depois acabou canseira, acabou canseira / Olá, olé, olá, olé, olá, olé / Porém Deus sabe o que faz, sabe o que diz / Sabe que eu fiz sem maldade / Não querendo falar de igualdade / Não querendo dizer nem calar / Sabe da necessidade que eu tive para cantar”.

ZONA SUL – Você passou quanto tempo em Natal?
TICO – Fiquei dos 15 aos 19 anos. Nesse período conheci Lourdes Guilherme, professora de artes da ETFRN. Depois que ouviu algumas de minhas composições, se ofereceu para tentar conseguir uma bolsa na Escola de Música. E conseguiu. Como não tinha lugar para violão, passei a estudar contrabaixo. Que coisa horrível! Mas depois consegui transferência para Recife. Lá, fui estudar violão clássico. Fiz parte de um grupo ligado à Igreja católica quando fiz shows pelo Nordeste todo, tanto nas capitais como em alguns municípios do interior. Chamava-se conjunto Gen Cântico Novo. Pertencia ao chamado movimento Focolares. Eu tinha inventado uma história de um monstro, no violão. Imitações que faço no violão que me renderam muitos concertos pelo mundo afora. Eu induzo as pessoas a imaginarem. Vou contando a história e o público vai se envolvendo. Um cara vai à lua, volta num foguete. Tem Frankenstein atrás dele. Tem banda de música, tem escola de samba, tem soldado marchando.

ZONA SUL – Como foi o salto de Recife para a Itália?
TICO – Certo dia um pintor italiano foi expor em Recife. A exposição tinha 21 quadros. Olhei todos eles e propus ao artista para a gente fazer uma mistura de show com exposição. Falei que comporia uma música para cada quadro. Ele fotografaria cada uma das telas e projetaria na parede através de slides, enquanto eu cantava. Sugeri a ele que seria mais fácil para vender as obras. O italiano gostou da idéia e topou. Na mesma hora, um amigo meu que estava lá, me chamou, me trancou em um quartinho e disse que eu só sairia depois que compusesse todas as músicas. Isso foi por volta das 7 da noite. As 11 e pouco, eu tinha terminado todas as músicas. Poucos dias depois eu estava cantando na exposição. Foi um sucesso. O pintor disse que quando eu fosse à Itália o avisasse para fazermos o mesmo em Milão, Gênova e Turim. E assim aconteceu. Fui a Roma com 21 anos participar de um Congresso Internacional de Jovens. O programado era passar um mês. Comecei a tocar e a cantar e insistiram para eu permanecer mais tempo. Fiquei cinco meses. Gravei três compactos. Isso foi em 1972.

ZONA SUL – Esses discos foram gravados de forma independente?
TICO - Gravei por uma editora chamada Cittá Nuova. Eles até publicaram na revista que mantinham uma reportagem de várias páginas comigo, com direito a foto na capa e tudo o mais. O texto contava minha trajetória, desde o primeiro show em Grossos e o segundo, que foi um desastre: não tinha ninguém! Mas o primeiro compacto surgiu quando apareceu um produtor na minha casa dizendo que tinha ouvido falar que eu tinha umas músicas bonitas e que ele gostaria de escutá-las. Quando comecei a cantar, ele gostou logo de cara e passou a traduzir para o italiano. Foi assim que surgiu a oportunidade de gravar o primeiro compacto. Ainda nessa viagem fui ao encontro do pintor que tinha conhecido em Recife e fizemos vários concertos misturados com exposição. Depois voltei para Recife, estudei pra caramba, prestei vestibular para Letras, passei e entrei na universidade. Mas não terminei o curso. Tive uma grande decepção. O currículo era horrível, não tinha nada do que eu queria fazer. Minha intenção era estudar literatura para enriquecer o meu dom, o meu talento. Minha vontade de prosseguir no curso foi definhando, mas mesmo assim ainda agüentei dois anos. Foi quando surgiu a oportunidade de voltar para Roma. Voltei em agosto de 1974. Tranquei a matrícula na faculdade imaginando que passaria seis meses fora. Fiquei quase dez anos.

ZONA SUL – O que de mais expressivo aconteceu nesse período na Itália?
TICO – O principal foi conhecer Sara, minha esposa. Ela é paraguaia. Seus pais estavam trabalhando na Itália. Ela foi minha aluna de violão na Embaixada do Brasil, em Roma. Hoje é consultora da ONU. Foi a melhor aluna que tive. Até hoje lembra das harmonias que eu ensinava. Sara poderia ser qualquer coisa no meio artístico: dançarina, violonista, cantora... Ela tem um talento impressionante. Outra coisa importante foi eu ter me descoberto - sem querer, sem saber e sem pretender – como um showman. Não é fácil chegar, como cheguei, diante de 700 pessoas, por exemplo, só com o violão. O violão e um microfonezinho, na Alemanha, na Áustria, cantando a minha música em português. Naquela época quem era famoso era Vinicius de Moraes, Baden Powell, Tom Jobim e Dorival Caymmi, além de Chico, que estava começando. Pensei: desconhecido por desconhecido, vai Titico. Eu cantava minhas músicas e botava o pessoal pra cantar comigo. Era abusado. Essas experiências me deram muita cancha. Você deve encarar o público como uma pessoa. Recentemente cantei em um festival no Ibirapuera, em São Paulo, para 9 mil pessoas. Pra mim é como se estivesse cantando para apenas uma. Botei todo mundo pra cantar uma música que eu tinha feito uma semana antes. Há profissões em que você tem um abismo, sabe que está num abismo, mas tem que correr o risco. Quando você encara uma platéia, sabe que tem um abismo ali e que você pode se lascar, se dar mal, mas também pode se dar muito bem, porque você está no alto, você é líder, você tem carisma, você tem o momento, a graça. Não tenho muito medo desses abismos.

ZONA SUL – E com relação aos contatos importantes que manteve na Europa?
TICO – Um contato importantíssimo foi com a Lina Wertmuller. Ela é a Fellini feminina. É muito estimada nos Estados Unidos, chega a ser idolatrada. O fato de eu ter composto músicas com ela, de ter trabalhado com ela, me rendeu muita credibilidade nos Estados Unidos. Em determinada ocasião, surgiu a oportunidade de eu fazer, na Itália, a trilha sonora para um filme que ela dirigiria: Tieta do Agreste, com Sophia Loren e grande elenco. Eu também estava escalado para fazer uma cena, como ator, tocando uma música. O problema é que quem estava financiando era Roberto Calvi, do Banco Ambrosiano. Só que, antes dos contratos serem assinados, ele apareceu enforcado. E o filme foi para o espaço. Na mesma época, Sara, então minha noiva, tinha decidido fazer faculdade no Rio de Janeiro. Com o fracasso do filme, antecipei minha volta para o Brasil. Com residência fixa no Rio, passei a viajar pela Europa e pelos Estados Unidos, para fazer meus shows. Gravei um CD nos Estados Unidos, chamado Brasil Encanto. Mais ou menos nessa época foi que conheci uma figura que representou muito para minha carreira: Philip Glass.

ZONA SUL – O músico minimalista Philip Glass é considerado um pop star e autor de trilhas sonoras importantes na história do cinema. Como você o conheceu?
TICO - O conheci quando morava no Rio. Eu já tinha casado com Sara e já tínhamos nosso primeiro filho. Um dia, tocou o telefone: era um amigo meu chamado Bernardo Palombo, um argentino que eu tinha conhecido nessas minhas incursões pela Itália e Estados Unidos. Ele contou que estava com Philip Glass. Confesso que eu nem o conhecia. Bernardo falou que Philip gostaria de ir ao Brasil fazer anotações para o próximo filme que iria musicar: Pawaqatsi. Ele já tinha escrito Koyaanisqatsi. Apesar de eu não conhecê-lo, Philip já era muito famoso, conhecidíssimo. Bernardo disse que me indicou como cicerone deles, para viajar pelo Brasil e mostrar as músicas do país. Aceitei. Fomos ao Amazonas, viajamos pela floresta. Philip sempre fazendo anotações, bem calado. Nesta época, em 1984, eu tinha ojeriza ao inglês. Não falava nem good night, não gostava. Então eu me comunicava com Philip através do meu escasso francês. Na volta, no Rio, Philip Glass falou que Bernardo tinha lhe contado que eu tinha umas músicas muito bonitas. Ele pediu para escutá-las. Organizei um jantar na minha casa. Ele ouviu várias canções. Eu toquei Ana Bandolim. Philip escutou e ficou louco. “Você roubou essa canção de Rossini, seguramente”, disse ele brincando. “Não é possível que você tenha feito essa música”, insistiu. No meio da conversa perguntei a ele como um artista brasileiro poderia ficar famoso nos Estados Unidos. Ele disse: “tem que semear um ano e, no segundo ou no terceiro é que você começa a ver o resultado”. Eu pensei: “estou lascado, não tenho chance”. Philip insistiu: “você tem que ir no mínimo uma ou duas vezes por ano lá”. Terminou me convidando para ir aos Estados Unidos e ficar hospedado na sua casa. Pediu que eu telefonasse duas semanas depois. Nesse meio tempo, ele contataria uma amiga dele que conhecia todos os pubs. Ela iria me apresentar. Quinze dias depois, liguei. Philip disse que eu podia ir, mas que a amiga dele não poderia me atender porque tinha estourado no hit parade. Era Suzane Veja, que tinha estourado com a canção My name is Luka. Fui mesmo assim. Fiquei hospedado na casa de Philip. Faz 20 anos que eu vou aos Estados Unidos e sempre fico hospedado na casa dele.

ZONA SUL – Você chegou a morar nos Estados Unidos ou ficou sempre indo e vindo?
TICO – Teve ocasião de eu passar nove meses lá. Em outras vezes, passei cinco, seis, sete meses. Quando me perguntam se morei nos Estados Unidos, não é mentira eu dizer que morei, porque morei mesmo. Continuo indo constantemente lá.
ZONA SUL – E nos Estados Unidos o que teve de maior expressão na sua carreira?
TICO – Consegui uns trunfos únicos. Eu tenho um currículo muito estranho, que poucos artistas têm aqui. Fiz vários concertos por toda a Europa e outros tantos nos Estados Unidos. Recebi críticas favoráveis no New York Times (duas vezes) e em outros jornais norte-americanos. Cantei no Town Hall, abri show para João Bosco, me apresentei junto com Paquito d’Rivera (saxofone), Toninho Horta, John Patitucci (o maior baixista do mundo) e Peter Seeger, que nos Estados Unidos é muito famoso e muito apreciado. Peter Seeger não é só uma figura de banjo, do folclore; ele é o folk music lá. Foi ele quem lançou Guantanamera nos Estados Unidos. Também tem vários hits parades como Date me un Martelo, que Rita Pavone gravou. Mas Peter Seeger também é estimado por sua importância política, por ser uma figura contestatória. Quando os Estados Unidos estavam guerreando contra o Japão, por exemplo, ele casou com uma japonesa. Foi preso político, sempre foi comunista. Foi o precursor da ecologia. Peter Seeger começou a limpar o Rio Hudson, em Nova York, há mais de 40 anos, com um barco. Ele e Bob Dylan pedindo para ninguém jogar coisas no rio. Hoje você pode tomar banho no Rio Hudson, de limpo que é. Até hoje tem festivais de música no Rio Hudson, quando barcos ancoram com os artistas tocando e a cidade acompanhando, ouvindo música e as mensagens sobre a importância da preservação da natureza. Participei de vários deles.

ZONA SUL – Peter Seeger também foi importante para a sua carreira?
TICO – Imagine se Luiz Gonzaga, no auge de sua carreira, chamasse um africano, o colocasse no palco para cantar com ele. Se Luiz Gonzaga apresentasse esse desconhecido como um grande artista. Se cada um cantasse duas músicas de cada vez, se revezassem durante o show. Pois foi o que Peter Seeger fez comigo. Ele tocando banjo, cantando minhas músicas. Foi demais. Não existe isso! Mas aconteceu. Teve um show no Arizona, em Tucson, inesquecível. Fazia 25 anos que Peter Seeger não tocava lá. Os jornais passaram 15 dias noticiando o evento. Os mil ingressos oferecidos para o espetáculo no teatro esgotaram rapidamente. No palco Peter Seeger, eu e outro americano, um daqueles caras que participou do The Platters. Esqueci seu nome. Nós três em cima do palco. Eu lado a lado com aqueles dois monstros sagrados.

ZONA SUL – O que você está fazendo em Natal? Veio para morar?
TICO – Estou morando há dois anos na cidade. Depois de quatro anos em Recife, quase dez anos em Roma, sete anos no Rio e 12 anos no Paraguai. Depois que casei, quando morava no Rio, por causa da violência da cidade resolvemos ir para o Paraguai, onde os pais de Sara tinham voltado. Em 2001 fizemos uma viagem para procurar apartamento em Nova York, em julho. Depois voltei lá para gravar dois CDs que serão lançados ainda este ano: Lagartixa e Choro Suíte. Este último inclui somente chorinhos, é um disco instrumental. Quando estava gravando Lagartixa, no momento da gravação, as torres gêmeas caíram em Nova York. Eu estava num prédio em frente. Vou fazer uma comparação para você ter uma idéia: era como se eu estivesse na beira do Rio Potengi e as torres desabassem na Redinha. Eu estava no 22º andar. Tinha um rio no meio. Mas eu vi tudo. Engraçado é que eu tinha tocado meses antes no 105º andar do World Trade Center, tinha feito um show lá. Também já tinha me apresentado entre as torres, junto com Philip Glass. Dez dias antes das torres caírem, passei entre elas, bati em uma e disse “meu Deus do céu, isso jamais vai cair”.

ZONA SUL – Para quem saiu do Rio fugindo da violência encontrar uma coisa dessas deve ser assustador.
TICO – Já em julho, eu e Sara tínhamos farejado perigo ali. Durante a procura por apartamento chegamos à conclusão de que aquele não era um bom lugar para a nossa família. Não ia dar certo.
ZONA SUL – Quando as torres caíram, qual sua reação vendo aquilo tudo lá?
TICO – Claro que não vi quando o primeiro avião bateu. Mas todo mundo ficou perplexo, como eu. Até então não havia suspeita de atentado. Achávamos que era um incêndio, por causa daquele fogaréu e da fumaça preta. Imaginamos logo que os bombeiros não alcançariam os andares mais altos. Lembrei logo que dias antes eu tinha subido naqueles elevadores enormes. Meu produtor começou a ficar desesperado: “oh, my God!”, ele gritava. Peguei o telefone, liguei pra Sara, a gente morava então no Paraguai. Estava assombrada, pois tinha visto na TV. Disse que estava tudo bem comigo. Liguei para minha mãe, em Natal, também para tranqüilizá-la. Nisso, um amigo meu aqui de Natal, Leonardo Barata, deu meu telefone para a rádio e TV Cabugi e a TV Ponta Negra. Fui bombardeado por telefonemas da imprensa me pedindo para contar o que eu estava vendo. Quando eu estava falando com a minha mãe, a primeira torre caiu. Ficaram aquelas cinzas. Dez dias antes eu tinha batido na torre e, olhando entre elas, vi um beco. Imediatamente pensei no Beco da Galinha Morta, lá em Areia Branca. Um era igual ao outro, só era diferente a altura. Mas os dois eram becos. Além do desespero de ver aqueles prédios caindo, indescritível foi a tristeza que ficou pairando no ar por vários dias através daquela fumaça. Vários projetos de vida se transformaram em cinzas. A fumaça também tinha cinzas de pessoas. Eu só não sabia que até os meus CDs também estavam naquela fumaça. Philip Glass tinha escrito várias cartas, de próprio punho, para produtores. A Sony de Paris já tinha dado o OK para distribuir. Estávamos preparando os contratos. Mas o dono da Sony em Paris era um mulçumano. Logo que viu o que tinha acontecido, ele vendeu imediatamente sua parte na empresa. E nós ficamos vendo navios. Roberto Menescal, que também tinha recebido carta de Philip Glass e respondido com elogios ao meu CD, também não topou a parada sob a alegação de que depois do 11 de Setembro todos os negócios estavam parados.

ZONA SUL – Como foi sua participação no programa de entrevistas de Jô Soares?
TICO – Fui eu quem apresentou Philip Glass ao diretor de teatro Gerald Thomas, quando morava no Rio. Eles ficaram amigos. Philip até fez músicas para algumas peças de Thomas. Gerald foi quem sugeriu meu nome à equipe de Jô Soares. Eu morava no Paraguai. Pagaram passagens, e tudo, foi um barato. Cantei quatro músicas no Jô. Isso foi em 1996. Jô Soares embasbacou de rir com as canções. Minha carreira é mais internacional. Mas agora mesmo estou em estúdio gravando um CD em parceria com Diógenes da Cunha Lima, que contém canções minhas e letras dele. Tem um outro CD nosso também com canções sobre a festa de Natal. Também musiquei 70 poemas de um livro do jurista Ives Gandra Martins. O livro fala sobre o Rosário e as ladainhas, Nos tempos do Senhor. São sonetos lindíssimos. Já musiquei todos os sonetos, teve dia em que compus 14 músicas.

ZONA SUL – E a sua discografia? O que ela inclui?
TICO – Minha discografia enriqueceu muito depois que gravei nos Estados Unidos o meu primeiro CD: Brasil Encanto. Tenho certeza que vou dar um salto maior ainda a partir de setembro quando eu lançar nos Estados Unidos e na Europa os discos Lagartixa e Choro Suíte. Pretendo fazer muitos shows para divulgar os dois trabalhos. Mas até agora, ao todo são 16 discos gravados, incluindo elepês, compactos e CDs. Mais relevante do que gravar, é conseguir uma boa distribuição para seu trabalho. Não adianta gravar um CD como gravei esse aqui, Anjo da Selva, que ficou muito bonitinho e tudo, mas não tem força. Gravei em Natal, está super-bem feito, super-bem gravado, mas falta maior divulgação, uma melhor distribuição. Vou levá-lo para a Alemanha agora em agosto, mas ele chegará naquele país apenas através dos shows que farei por lá.