quinta-feira, 28 de agosto de 2008

ENTREVISTA: JOSÉ DUMONT

O HOMEM QUE NÃO VIROU SUCO



Em O homem que virou suco, José Dumont interpreta o poeta popular Deraldo, recém-chegado do Nordeste a São Paulo. Sobrevivendo de seus folhetos, ele é confundido com empregado de multinacional, também vivido por Dumont, que mata o patrão na solenidade em que foi premiado como operário-símbolo. Caçado pela polícia, Deraldo experimenta sina tão comum aos nordestinos que tentam a sorte na cidade grande: trabalhar na construção civil ou fazendo serviços domésticos e sofrer todo tipo de humilhação e violência. “É a história de todo nordestino: o cara que chega em São Paulo, trabalha, luta e acaba passando fome, virando suco de laranja”, explica Deraldo, no filme.

José Dumont tinha tudo para virar suco de laranja, desde antes de trocar o Nordeste pelo Centro-Sul do país. Mas ele não aceitou esse destino antecipadamente traçado para os que nascem no sertão. Mesmo sem estudar, aprendeu a ler. Trocou o interior paraibano pela capital do estado sonhando com dias melhores. Mas, ao contrário, viu sua situação piorar. Não desistiu. Seguiu em frente até agarrar talvez a única oportunidade que surgiu para escapar do grande liquidificador que mistura os homens, tritura-os, até transformá-los em suco.
O jornalista potiguar Klecius Henrique, autor do livro José Dumont - Do Cordel às Telas foi quem agendou essa entrevista. Em uma manhã de julho, José Dumont me recebeu no lobby do hotel St. Paul. Ao contrário do frio que fazia lá fora, ele me tratou de forma calorosa e simpática. Durante quase uma hora de entrevista, o ator (que atualmente faz o papel de Teófilo na novela transmitida pela Rede Record Os mutantes – Caminhos do coração), contou detalhes sobre sua vida, falou sobre cinema, teatro e televisão e não se esquivou de tocar em um temas polêmicos como política, lei da maioridade penal e aborto. Com vocês, José Dumont! (Roberto Homem)

ZONA SUL – Você é quase potiguar...
DUMONT – Eu nasci em Belém, perto de Caiçara. É quase fronteira com o Rio Grande do Norte. Acho que dá uns vinte minutos. Depois de Belém, passa Caiçara e logo em seguida vem Nova Cruz, já em território potiguar.

ZONA SUL – Como você, nascido no sertão paraibano, adquiriu o sobrenome afrancesado “Dumont”?
DUMONT – Essa história é muito louca. Meu avô chamava-se Joaquim do Monte. Seria Joaquim Batista de Oliveira não sei das quantas, mas como morava num pé de serra, ficou conhecido como Joaquim do Monte. Como ele não tinha registro, virou Joaquim do Monte. Naturalmente, os filhos começaram a ter esse nome. Naquela época o pessoal do interior da Paraíba servia muito no Quartel de Recife. Meu pai foi servir em Jaboatão. Meu pai não sabia ler, quando chegou lá, perguntaram seu nome. “Severino do Monte”, ele respondeu. Um oficial que estava por perto, falou: “deve ser porque ele não sabe falar, esse sobrenome deve ser francês”. E tacou um Dumont, com “t” mudo. Meu nome ficou francês por isso. Era para ser “do Monte”, do pé da serra.

ZONA SUL – Sua infância foi no interior da Paraíba?
DUMONT – Passei a infância perto de Belém, naquela região do Brejo paraibano. Minha mãe, inclusive, está enterrada em Bananeiras. Eu nasci perto de Belém, onde hoje tem uma fábrica de biscoito. Minha vida, até uns dez anos, foi em torno de Belém. Foi lá que aprendi a ler, freqüentando as feiras de Belém.

ZONA SUL – Você aprendeu a ler de uma maneira bastante inusitada, não foi?
DUMONT – Eu acompanhava meu avô quando ele ia à feira e também levava minha avó ou minha tia à missa, em Belém. Meu avô gostava muito de ouvir cordel. Embora não soubesse ler, ele comprava. Quando tinha alguém da família que sabia ler e ia lá, de ano em ano, ele pedia pra ler pra ele. Aprendi a ler meio num passe de mágica. Não foi milagre porque eu era criança e estava na época de aprender mesmo. Aprendi a ler assim mesmo, comparando. Eu ouvia os cantadores e acompanhava o que eles diziam nos cordéis. Ele falava e eu comparava com o que estava escrito. Os cantadores de feira são geniais. Aquilo é uma forma de dramatização, de teatro popular. As missas, os eventos religiosos, também trazem de alguma forma esse universo do teatro, da representação.

ZONA SUL – Você lembra qual foi o primeiro cordel que leu?
DUMONT – Lembro de vários. A maioria dos cordéis trata de grandes amores, grandes tragédias ou então de coisas engraçadas, de grandes chifres, grandes eventos de amor que acabam em tragédia. Um dos cordéis que mais gostei foi A história do Pavão Misterioso. É uma das histórias mais bonitas que vi. Considero uma espécie de Blade Runner – O caçador de andróides. Quando vi esse filme, só lembrei daquilo. Caramba, eu vi isso no interior da Paraíba, um cordel de um realismo fantástico belíssimo.

ZONA SUL – Você enfrentou muitas dificuldades?
DUMONT – Todas. Ninguém deixa de enfrentar dificuldades nascendo em uma região daquelas. A não ser se vier de uma família com alguma condição. Mesmo nesse caso, ainda pode enfrentar alguma dificuldade. Meu avô era agricultor, não tinha terra, não tinha nada. Morava na terra dos outros. Foi muito difícil. Passei muita fome na Paraíba. Mas, por outro lado, de qualquer maneira, bem ou mal, foi aquela terra que me deu de comer. Eu agradeço a Deus, agradeço à vida. Aquela é uma região muito rica. O Nordeste é muito rico culturalmente, o povo é muito criativo.

ZONA SUL – E quando chove a realidade muda também...
DUMONT – Como dizia Euclides da Cunha, quando chove o sertão é um paraíso.

ZONA SUL – De Belém você foi para João Pessoa...
DUMONT – De lá fui para João Pessoa, seguindo aquela tendência normal da curta migração. É comum sair do interior para a capital e depois adquirir coragem para ir para São Paulo ou Rio. Eu sempre fui imigrante, rodando de ponta a ponta. Fui para João Pessoa aos dez anos porque era difícil, né?

ZONA SUL – Em João Pessoa você estudou?
DUMONT – Eu fiz assim uma segunda série, mas eu já sabia ler. Quando meu avô descobriu que eu já sabia ler, ele me botou pra ler os cordéis. Eu lia cordel quase toda noite. Ele comprava, por exemplo, “A donzela Teodora”, ou os livretos sobre o cangaço. Também gostava daquelas coisas mais engraçadas. Ele me botava também para rezar os terços.

ZONA SUL – Por conta disso você se tornou uma pessoa religiosa?
DUMONT – Não. Sou uma pessoa espiritualizada, tenho espiritualidade, mas respeito todas as religiões, gosto de todas. Acredito em uma Existência Suprema, no Grande Desejo Universal. Não tem como negar que a vida é um milagre, mas não sou religioso, até porque minha natureza é essa. Mas tenho espiritualidade, naturalmente.

ZONA SUL – O contraste de trocar o interior pela capital foi muito grande?
DUMONT – Foi, mas para pior, porque fui morar na periferia de João Pessoa. No interior tinha pobreza, mas havia dignidade, moral. Na capital existe o processo de afavelamento. A exclusão é grande, o desleixo também. Acho que morei na última casa de João Pessoa. Ela ficava praticamente perto do mangue. Tinha o lado bom, porque a gente pescava, pegava caranguejo. Era uma forma de se alimentar. Mas era uma pobreza extremada.

ZONA SUL – O que você fez em João Pessoa?
DUMONT - Trabalhei muito, o que uma pessoa pode fazer, eu fiz. Não posso dizer que cheguei a ser um garoto de rua, porque eu tinha família. Meu pai era muito pobre, mas era muito legal. Ele não tinha condição de dar de comer a todos nós. Minha mãe morreu cedo. Como um homem podia criar sete filhos? Você sabe como é, tudo depende da mãe. Perder a mãe foi um desastre. Cada qual foi trabalhar num canto, foi prestar serviço, foi lavar carro, foi cortar grama nas casas dos outros. Fiquei até completar onze anos e voltei para o interior, onde permaneci até os 14. Voltei para Belém, por trás de uma chamada Pedra do Cordeiro, que tinha ali. Chegou a adolescência, aquela solidão, aquela coisa, e deu vontade de sair de novo. Voltei pra João Pessoa, fui trabalhar na rua: cortar grama, lavar carro. Trabalhei na casa de doutor Fernando e de Dolores Melo. Essas pessoas me ajudaram. Quando descobriram que eu sabia ler, de certa forma me deram acesso à leitura. Fiz uma espécie de intensivo para fazer o exame de admissão que existia na época. Mas aí esse casal mudou pra Recife e isso me desarmou novamente, porque voltei à mesma condição de ter que viajar 20 quilômetros pra estudar. Era difícil. Então estudei até o equivalente à sexta série. Servi o Quartel nessa época, fui soldado, saí como cabo. Fiz um curso de cabo, passei, mas eu não podia fazer o curso de sargento porque não tinha escolaridade. Foi uma experiência boa, apesar de eu ter pego o auge da história, o auge da repressão. Na Paraíba tinha uns presos políticos sim, mas eu não tinha a consciência que tenho hoje sobre o assunto, embora soubesse que existia. Parece que as barras mais pesadas rolavam lá pelo lado de Recife. Foi um período lamentável, ridículo e violento. Quando saí do Quartel, caí na estaca zero de novo, sem trabalhar, sem poder estudar... Hoje, bem ou mal, as escolas estão mais próximas, apesar de continuar a desatenção com o social. Dependendo da pessoa, pode até estudar, se formar. Na época não tinha mesmo. Fiz um curso de embarcadiço e fui pra São Paulo, pra tentar embarcar.

ZONA SUL – Quer dizer que você migrou pra São Paulo com um objetivo específico.
DUMONT – Meu objetivo era ir pra Santos. Fui tentar a sorte, mas já pensando em entrar na Marinha Mercante. Chegando lá, não consegui. A coisa não era tão simples assim. Tinha que sindicalizar-se, que esperar um tempão pra catar uma vaga e não tinha como. Nem São Paulo permitia isso, nem era o caso. Fiquei na casa de uma tia minha. Fiquei um mês lá e depois fui para uma pensão e tal. Trabalhei fazendo uns pequenos serviços, até em uma fábrica de moinho fiquei uns três ou quatro meses. Depois fiz um curso dos Correios e fui ser carteiro. Fui carteiro em São Paulo durante três anos, mas sempre pensando que um dia sairia.

ZONA SUL – Até então você não pensava em seguir uma carreira artística...
DUMONT – Nem sabia o que era isso. Eu assisti cinema em João Pessoa, na época tinha muitas salas por lá. Meu irmão me levava para ver bang-bang, aquelas coisas. Virou um hábito. Mas teatro, ou outra forma de arte, eu nunca tinha visto. Em São Paulo, por acaso, me deram uma filipeta, um panfletozinho, e eu entrei no teatro para assistir. E aí começa a história. Assisti, achei lindo, e voltei várias vezes. Como morava perto, comecei a freqüentar o barzinho, as coisas, e a conhecer as pessoas que faziam teatro. Eram novas, tinham minha idade, 22, 23, 24 anos. Comecei a me enturmar, pois sempre fui bom de prosa. Uns estavam fazendo a escola de cinema que era de Zé do Caixão na época. Cheguei a freqüentar uns três ou quatro meses. Com o tempo os meninos que estavam comigo saíram para formar um grupo de teatro. Fui com eles. Coincidiu que quando estavam montando uma peça chamada O consertador de brinquedos – acho que chegou a ser exibida uma vez só - veio uma outra do Ceará, dirigida pelo Haroldo Serra. Chamava-se O morro do ouro, e era sobre a periferia de Fortaleza. Depois de fazer sucesso no Ceará, fizeram uma montagem paulista, no Teatro Aplicado. Meus amigos foram fazer o teste e eu também. Eu tinha essa história do lastro cultural, da emoção, a cara da região. O cara gostou do meu teste e acabei ficando. Minha história foi muito rápida, muito curta, muito despreparada até. Não tive uma formação teatral básica. A peça foi um sucesso de crítica, mas de público nem tanto.

ZONA SUL – E seu primeiro trabalho na televisão?
DUMONT - Nessa época o Gianfrancesco Guarnieri tinha escrito um texto, um Caso Especial, um dos primeiros que saiu na Globo. Era sobre a história de uma família que vinha encontrar o marido e se desencontrava na rodoviária. Não é como hoje, que tem celular. Um desencontro ali era fatal. E eles se perdem. Foi um sucesso. Então Zelito Viana estava fazendo o Morte e Vida Severina. Ele queria intercalar uns poemas, pra dar um sabor à obra de João Cabral de Melo Neto. Ele queria uns atores pra dizer esse texto. Nosso grande mestre Jofre Soares e nosso grande mestre Stênio Garcia já estavam fazendo. Tinha também Elba Ramalho e Tânia Alves, que eram do grupo de Luiz Mendonça, e Walter Breda e Tonico Pereira.

ZONA SUL – Acho que a compositora paraibana Cátia de França chegou a participar também...
DUMONT Cátia de França trabalhava sim, Vital Farias também. Cátia cantava, atuava e tocava sanfona. É uma grande amiga, uma grande cantora e já era grande compositora. Continua sendo uma pessoa fantástica. Eu estava começando, também não sabia nada de teatro.

ZONA SUL – Você já tinha deixado suas outras ocupações profissionais pra se dedicar à vida de ator?
DUMONT – Eu acreditei que aquele era um caminho, um mundo novo que se abria, o mundo da arte. Era uma outra forma de expressão, outra forma de convivência, outra forma de liberdade. Era um mundo totalmente novo pra mim. Fui começar uma carreira nova. Eu pensei que ia pegar todo mundo, que ia ganhar dinheiro... Nada disso, não aconteceu coisa nenhuma.

ZONA SUL – Mas pelo menos deve ter melhorado...
DUMONT – Melhorou. Eu descobri meu caminho, que podia me expressar de outra forma. Participei do Cancão de Fogo, uma peça mais malasarteana, uma espécie de João Grilo. Foi muito legal. Mas, na volta ao Rio, toda a expectativa sumiu. O grupo tinha suas dificuldades, por inexperiência de todos. Apesar do reconhecimento, não dava pra sobreviver disso. Aí eu paguei meus pecados, porque a TV tinha me esquecido. Fiquei morando em pensão, tentando fazer uma coisinha ou outra. Mas já tinha começado, não queria mais desistir. Em seguida começaram a aparecer pequenas coisas. Fiz uma participação no Lúcio Flávio, passageiro da agonia, que é um belíssimo filme de Hector Babenco. Apareço na hora de matar Lúcio Flávio, no final do filme. Essa parte da minha vida foi difícil. Dormi no Aterro do Flamengo várias vezes.

ZONA SUL – Qual teria sido o papel que você fez que modificou essa realidade difícil?
DUMONT – Eu comecei a fazer uma série de filmes importantes por seus realizadores e pelo tema. Mas eram participações, para viver era difícil. Só dava pra comer e mal. Fiz vários filmes, Coronel Delmiro Gouveia, com Geraldo Sarno, na Bahia. Também fiz Tudo Bem, de Arnaldo Jabor. Estou falando dos mais importantes. Aí fiz um especial na TV Globo que foi o Inimigo público número 1 – O Paraibinha. Foi o primeiro especial da série Plantão de Polícia. Tinha o Hugo Carvana e era dirigido pelo Daniel Filho. Foi um grande sucesso e ganhei meu primeiro prêmio. Era a estória de um homem pobre que saiu na rua com uma televisão nas costas e foi confundido pela polícia com um marginal. Levado para a delegacia por não ter documentos, foi preso. Em seguida fiz Gaijin – Os caminhos da liberdade, quando ganhei meu primeiro prêmio em cinema, no Festival de Gramado. João Batista de Andrade, que era júri do Festival de Gramado em 1979, viu o filme e gostou muito do meu trabalho e me convidou para fazer O homem que virou suco. No filme sou protagonista, faço dois papéis. Não foi um filme fácil de fazer porque o conceito do filme é profundo. São Paulo é a maior cidade nordestina. E o tema do filme é inerente a todas essas pessoas. Já tinham uns atores nordestinos famosos, como o grande Jofre Soares, Rafael de Carvalho e tal. Mas pra mim foi uma grande experiência ter feito. Foi um filme que me projetou.

ZONA SUL – Você também fez Morte e Vida Severina na TV, não foi?
DUMONT – Antes fiz uma série de bons filmes e de bons seriados. Em 1981, na Globo, fiz Morte e Vida Severina, um clássico da dramaturgia brasileira. Fiz também Lampião e Maria Bonita, que foi um sucesso tremendo com Tânia Alves e Nélson Xavier, que está deslumbrante. Nessas obras ligadas ao Nordeste sempre recorri ao lastro emocional, à experiência de vida e sabendo dimensionar essas coisas e dar um novo feitio, uma nova interpretação. Fiz Grandes Sertões Veredas e Bandidos da Falange... No cinema prossegui com O baiano fantasma e A hora da estrela, com a grande Marcélia Cartaxo. Ganhei uma seqüência de prêmios de 1980 até 1985, até que o cinema brasileiro começou a entrar em declínio. Ganhei, por exemplo, três vezes o Festival de Brasília e três vezes o de Gramado. Ganhei Cuba, Huelva (Espanha). O homem que virou suco foi medalha de ouro no Festival de Moscou. Não deu público, mas deu prestígio, deu reconhecimento. Depois começou a complicar com a fase da galãnização, onde o ator para trabalhar tinha que ser da TV. E só tinha a Globo. Não é como agora. Hoje estou na Record, muito bem, satisfeitíssimo. Mas na época foi complicado. Em 1990 veio o governo Collor, aí acabou tudo mesmo. Foi um apagão. Quem tava na TV Globo, tava bem. Quem estava fora, enfrentava dificuldades. Fiz muita coisa boa na Globo, mas sempre por obra, nunca fui contratado. Se fosse no contrato, minha vida teria sido melhor.

ZONA SUL – No filme Memórias do Cárcere você fez o papel de um potiguar...
DUMONT – Esse é um filme lindo. Primeiro que é Nélson Pereira e Graciliano Ramos. E é uma história fascinante. Aquela história é muito louca. Eu fiz o Mário Pinto, que é um personagem deslumbrante. Memórias foi uma coisa especial, uma chance de se falar de um evento que pouca gente sabia e deu um filme muito bonito, com Carlos Vereza, Gloria Pires, Jofre Soares e um grande elenco. É desse filme uma das cenas que mais gostei de ter feito no cinema, que foi cantar A ema naquele navio. Embora eu não seja cantor, não importa, a cena é revolucionária. Mário Pinto engloba vários personagens. Toma uma cachaça e canta A ema pra todo mundo ver. É uma cena antológica. Revolucionário não é só pegar arma.

ZONA SUL – Qual o personagem que lhe agradou mais fazer?
DUMONT – Eu acho que o que mais curti, do ponto de vista da interpretação, foi fazer Antonio Biá, em Narradores de Javé. Tem muito a ver com o meu tom, que é da prosa, da oralidade, que o nordestino tem muito disso. Agora, o que me projetou mesmo foi Deraldo de O homem que virou suco, porque sintetiza a história do imigrante. Apesar de ser assunto sério, é tratado com humor, com inteligência. O nordestino é muito criativo, né? Gosto de O Abril despedaçado pela profundidade, pelo enfoque do anacronismo, da intolerância, da liberdade. Em Os dois filhos de Francisco o personagem é maravilhoso e o filme também. A história de seu Francisco precisa ser contada para todos os brasileiros, não é a toa que fez tanto sucesso. O Memórias do Cárcere gosto pela história, por Graciliano, pelo Nordeste. Foi o primeiro filme que falou do tema mesmo, da tortura, da perseguição política, mas com uma sensibilidade enorme.

ZONA SUL – Você se afastou um pouco do cinema para se dedicar ao projeto da Rede Record...
DUMONT – É, estou na TV, em Os Mutantes, mas a novela é bem cinematográfica, é um pouco X-Men. É uma novela que faz um sucesso danado, a criançada adora e a gente faz planos bem de cinema, a linguagem é cinematográfica. É como se estivéssemos fazendo cinema. Fui convidado para alguns filmes, mas estou muito ocupado lá, não dá pra sair e fazer cinema... Já estou fazendo uma novela que é bem cinematográfica, porque o texto do Tiago Santiago permite isso. A direção do Alexandre Avancini é muito boa. Ele é filho do Walter Avancini, um grande mestre que me dirigiu em Morte e Vida Severina e em Mandacaru, na antiga TV Manchete, que deu um calote na gente.

ZONA SUL – Como foi a história desse calote?
DUMONT – Eles não pagaram. É bom que você saiba, como jornalista. Espero que as pessoas, o governo, os obriguem a pagar. Não pode continuar esse tipo de coisa no Brasil: o nego passa a obra, não paga e fica por isso mesmo. O juiz deu ganho de causa, o Judiciário fez a parte dele, mas se as autoridades não pressionarem, a gente não vai receber.

ZONA SUL – O calote no meio artístico é comum?
DUMONT – Não. Comum é aquele jogo de se puder pagar menos, melhor. Não é o caso da Record, que me paga bem e me paga em dia. Não tenho problema nenhum com a emissora. Estou falando de coisa do passado, de terem feito a novela Mandacaru, que fez o maior sucesso, e não terem pagado. A novela passou inclusive na Band depois, que pagou direitinho. Outro exemplo é Pantanal, que fez o maior sucesso e chegou a dar uma balançada na Rede Globo. Mas agora, sou obrigado a falar isso, o SBT ta fazendo um grande sucesso com a novela, de novo. Mas na hora de pagar, fica aquela coisa e tal que é feia. Um contra-senso do ponto de vista da economia, da amizade. Não é assim. Estão faturando milhões em cima. Dá um certo desânimo. Não é que o SBT não queira pagar, é a história de ficar com ninharia. Meu personagem no Pantanal vai até o capítulo 10. É um personagem bacana, sou o pai da protagonista, tenho crédito especial na tela. Sou um dos protagonistas da primeira fase, com Paulo Gorgulho, Ingra Liberato e Cássia Kiss. Espero que essa situação com o SBT seja resolvida, é feio não resolver.

ZONA SUL – E o caso com a Manchete?
DUMONT - Em relação à Manchete, espero que o governo, o presidente Lula, pressione as pessoas, porque tem que acabar com esse negócio. Não pode ser assim. Com a Manchete foi impressionante porque não pagaram e ficou por isso mesmo. Mas, Pantanal é uma novela linda, diferente. Mostrou o Pantanal com toda a sua beleza, o Centro-Oeste, esse Brasil interiorano que Juscelino Kubitschek fez. JK fez um governo genial. Ele tinha um projeto e realizou esse projeto. Sempre gostei muito dele. Não é à toa que foi no seu governo que surgiu o Cinema Novo, a Bossa Nova... Ele convenceu os alemães de que era bom fazer carro no Brasil, abriu estradas, mudou o perfil político do país, descentralizou. JK e Dom Pedro II, pra mim, foram exemplos máximos de grandes estadistas.

ZONA SUL – Por falar em política, como você está vendo a atuação de Gilberto Gil como ministro?
DUMONT – Gosto dele. Já gostava de Gil como cantor. Mas no Brasil acontece o seguinte: o país tem os maiores juristas do mundo e as piores leis. Não dá pra dizer que os caras não têm competência, eles têm. O presidente Lula é simpático, interessado. Foi um sindicalista brilhante, é um homem muito inteligente. Mas o sistema do Brasil é precário, o sistema político é velho. Algumas leis do Brasil datam do século XVII. Alguns temas são tratados como mito. Não são apresentadas leis para a nova realidade e isso dificulta. Sou a favor do imposto único, da moeda magnética e não aceito miséria, nem poderia aceitar. E acho que ser Primeiro ou Terceiro Mundo é uma questão de escolha. Países não tão ricos quanto o nosso têm qualidade social muito melhor, como a Dinamarca e a Noruega.

ZONA SUL – Você já pensou em ingressar na política?
DUMONT – Não, não tenho talento para isso. Se eu entrasse, teria que ser pra colocar em prática essas teorias que defendo. Sei que não ia colar. Falo como cidadão, não tenho nenhum projeto para virar político. Mas acredito que existem homens capazes de modificar nossa realidade, só que eles são minoria. É preciso fazer o básico, pois falta qualidade social. Para gerar emprego, é preciso melhorar para o empregador e para o trabalhador. Portanto, é necessário fazer uma reforma fiscal, melhorar a tributação e o código trabalhista. Resolvendo isso, o país passa a ser Primeiro Mundo em dez anos. Outras medidas imprescindíveis são as reformas do Judiciário e a política. O que não pode é ficar discutindo indefinidamente sobre aborto. Quer saber sobre aborto? Pergunte à mulher. Sou a favor do aborto, sim, e acabou. Qual a mulher que quer fazer um aborto sem necessidade? Agora, se tem que fazer, que faça de forma legítima, legal e bem feita. Mas a discussão fica girando em torno de tabus, de mitologia.

ZONA SUL – O que você sugeriria para melhorar a cultura brasileira?
DUMONT - É preciso ter salas de cinema. As salas que existiam foram acabando. Um problema grave é que nunca tivemos órgãos anunciadores, apenas uma emissora de TV anunciava filmes, mas apenas os dela. Não os dos outros. A Record vai começar a produzir, se tiver inteligência e sabedoria de se aliar, se criar novos parceiros, vai ser muito bacana. A regionalização está começando a acontecer, mas a produção ainda se resume muito a Rio e São Paulo. Outra coisa natural é fortalecer o compromisso de não deixar roubar dinheiro público, seja por pessoas do cinema ou de qualquer outra área. A arte tem que chegar às escolas, tem que fazer parte do currículo escolar: dança, poesia, pintura, música e literatura. Toda cidade do interior tem que ter grupo de teatro, de cinema, e, principalmente, livraria. Tem que ter. O país deveria garimpar seus talentos culturais. Se você é bom músico, mesmo que nasça no interior, tem que ser selecionado. O governo tem que pagar para você fazer o melhor possível pelo seu povo, pelo seu país e pela humanidade também. Como tem com os atletas.

ZONA SUL – E a questão da Amazônia?
DUMONT - Quem tem a Amazônia, tem o mundo, porque tudo vai depender de lá. Acabaram com a Mata Atlântica, que era o maior banco genético do mundo. O segundo é a Amazônia. Temos que preservá-la, não entregá-la. Os países desenvolvidos não preservaram suas florestas e estão de olho na Amazônia. Mas ela é nossa, e acabou. Um país que tem a Amazônia, como o Brasil, não pode permitir que aja pobreza dentro do seu território. Nossos governantes, ou seja, Executivo, Judiciário e Legislativo, tem que voltar os olhos para a Amazônia. Têm que trabalhar para acabar com a seca no Nordeste. As pessoas têm que discutir a forma. Não vale a minha opinião só, vale a minha, a sua, a de todos nós juntos. Esse negócio da maioridade penal também é uma porcaria. Onde você acha que o cara com 17 anos é de menor? A partir de 14 anos, todo mundo sabe o que faz. Mas são necessárias leis maduras e bem feitas que acompanhem a transição para a maioridade. A população deve pagar a conta dos que estão presos? Esse é outro grande debate. Se o país tiver qualidade social, vai ter poucos presos. Não adianta deixar pra tentar recuperar depois. A lei do menor favorece ao crime. Se a pessoa de 14 anos tiver pai, mãe, família, condição e qualidade de vida, não vai virar bandido. Da mesma forma, a identificação com a cultura brasileira tem que ser feita a partir do berço, a partir da infância.

ZONA SUL – Você veio a Brasília receber uma homenagem do Centro Cultural Banco do Brasil. O país reconhece à altura o talento de José Dumont?
DUMONT – Acho que reconhece. O problema é que durante 30 anos a gente ficou com uma mídia só, uma televisão só, e esse reconhecimento é facilitado pela televisão. Agora está mudando, com o aparecimento da TV Record. Eu fiz muita coisa na TV, mas sempre coisas isoladas. Fui discriminado sim, houve preconceito sim. O preconceito atinge não apenas o nordestino, mas também o negro. Agora as coisas estão mudando. Desde que assumiu um presidente que é de lá, é sindicalista, as coisas começaram a mudar. E Deus queira que mude mais.

ZONA SUL – A Internet melhorou, facilitou ou modificou a forma de o ator se relacionar com seu público?
DUMONT – Eu tenho Orkut, tenho e-mail. Acho que a Internet, quando bem usada, é bem legal. Antigamente você fazia as coisas e ficava escondido. Hoje alguém chega lá e descobre. O que fica chato é que se usa muito mal, se usa pra besteira. Mas, bem usada, é um elemento bacana sim. Mas facilitou a comunicação. Criou-se um espaço para contar a história que não ganha as manchetes dos jornais. Li outro dia, por exemplo, que existem 300 ONGs (organizações não-governamentais) atuando na Amazônia, uma região onde ninguém passa fome, pois é rica por sua própria natureza. Já na região Nordeste não tem nenhuma. Eles vêm pra cá bancar interesses de fora, da Europa, dos Estados Unidos. Vem colher patente, fazer pesquisa. Não dá pra não ser mais politizado hoje em dia. Da mesma forma, na Internet se fala sobre cultura, política e tudo em geral. Você vai lendo e tirando os prós e os contras.

ZONA SUL – O que você está planejando para os próximos anos?
DUMONT – Nos próximos três anos vou estar na Record, pois acredito no projeto da emissora e sou muito bem tratado. Quero fazer o melhor possível. Também estou pensando em fazer uma peça, em voltar ao teatro, e fazer uns filmes. Acho que está na época de reciclar meu trabalho. Acredito que os próximos três anos serão muito difíceis para o mundo. O Brasil, se se cuidar, será o país menos afetado.