quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entrevista: Jeová Oliveira

ZÉ LOTERO: O CORONEL LUDUGERO DO CEARÁ

O subtenente Jeová Oliveira costuma desempenhar suas atividades no Centro de Convenções Edson Queiroz, em Fortaleza. Foi lá que o conheci, durante a última Bienal Internacional do Livro do Ceará. Ele analisava com cuidado uma cópia colorida da Lei Áurea. Conversamos um pouco. Apesar de estar usando sua farda de policial militar, Jeová esbanjava bom humor. Não havia nele a sisudez costumeira dos homens forjados na luta contra o crime. Em poucos instantes descobri que Jeová tinha uma boa história para contar. Marcamos a entrevista para o dia seguinte. Quando ele começou a falar, percebi que tinha acertado ao apostar que aquela seria uma excelente conversa. Ele falou do Jeová da PM acostumado a testemunhar as mais diferentes tragédias e diversos tipos de crime. Também contou dos temos de criança em Juazeiro do Norte, quando viveu na cidade respirando a presença espiritual de Padre Cícero. Foi lá também onde ele conheceu o homem que depois virou famoso personagem de histórias em cordel, Seu Lunga. Enfim, Jeová mostrou seu lado de Coronel Zé Lotero, o Coronel Ludugero do Ceará. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Como é o seu nome completo? JEOVÁ – José Jeová de Oliveira.

ZONA SUL – Onde você nasceu? JEOVÁ – Na cidade de Juazeiro do Norte, aqui no Ceará.

ZONA SUL – Você permaneceu em Juazeiro até qual idade? JEOVÁ – Aos cinco anos fui morar em Barbalha. Meu pai era funcionário federal de uma repartição desse município. Aos 18 anos, a convite do meu irmão, que era soldado, vim conhecer o carnaval de Fortaleza. Por aqui fiquei. Passei seis anos no Exército. De lá fui para a Polícia Militar, onde estou até hoje. Já são mais de 40 anos.

ZONA SUL – Vamos regressar um pouco no tempo: você tem alguma recordação desse seu primeiro período em Juazeiro? JEOVÁ – A distância de Juazeiro para Barbalha é de apenas três quilômetros. Por isso, apesar de ter mudado de um município para outro, eu vivia mais no Juazeiro do que em Barbalha. Eu até estudava em Juazeiro. Eu tenho recordação de tudo.

ZONA SUL – Como foi essa infância dividida entre Barbalha e Juazeiro? JEOVÁ – Sempre gostei do mundo do rádio. Estudei no Colégio Salesiano. Quando tinha aquelas festas da escola, eu me agarrava logo no serviço de som, para falar. O padre já sabia que eu gostava e já ia direto à minha sala avisar: “Jeová, amanhã tem”. Eu animava as festas. Meu negócio era esse. Onde tivesse um microfone, eu estava perto. Era comigo mesmo. Quando me mudei para Fortaleza, continuei do mesmo jeito. Antes de vir, cheguei a trabalhar na Rádio Iracema, de Juazeiro.

ZONA SUL – Seu salário era bom nessa rádio de Juazeiro? JEOVÁ - Nunca fui empregado de emissora de rádio. Vamos dizer que eu trabalhava como estagiário. Não aceitava ser contratado para não ter obrigação. A profissão de radialista exige muito. Ele pode estar doente, estar com o problema que for, mas os ouvintes não dispensam: querem ouvi-lo. Se alguém substitui o apresentador de determinado horário, mesmo que ele seja melhor do que o titular, o povo não aceita. O ouvinte quer o original. Certa vez morreu uma sobrinha minha e fui fazer um programa de forró. No meio a gente fazia humorismo, fazia tudo. Tive que ficar o tempo todinho lá. A sobrinha morta, em casa, e eu na emissora. Os ouvintes só souberam ao final do programa, quando o rapaz que trabalhava comigo falou: “vejam o que é o rádio. O rapaz deixou a sobrinha morta lá na casa dele, veio fazer o programa e agora vai voltar para o velório”. Esse é um retrato da vida de quem trabalha no rádio.

ZONA SUL – Até hoje Juazeiro do Norte é marcado pela figura de Padre Cícero. Apesar de ele ter morrido antes do seu nascimento, o que você comentaria sobre o famoso Padim Ciço? JEOVÁ – Ele foi o fundador da cidade de Juazeiro. Quando lá chegou, o povoado era uma vila que pertencia a Crato. Depois é que foi desmembrado e virou município. Tiraram uma parte de Barbalha, outra de Crato e um pedaço de Caririaçu para poder formar Juazeiro. É um município pequeno, mas muito bom e um dos mais desenvolvidos do estado. Sobre Padre Cícero posso dizer que ele foi um homem que só pregou o bem. Mesmo assim foi muito combatido. Botaram ele pra ser governador do estado e prefeito. Coisas da política. Ele não queria, aceitou na marra. Preferia estar no meio do povo, pois não tinha ambição nem nada. Foi o primeiro prefeito de Juazeiro, em 1911, quando a vila passou a ser cidade. Foi ele quem criou tudo em Juazeiro. É considerado o santo do Nordeste. Antigamente era só em novembro que vinha muito romeiro para Juazeiro. Mas agora o ano todo é cheio de caminhão de romeiro. Na festa de Nossa Senhora das Dores, que é em setembro, vem romeiro de todo o mundo para os milagres. Você conhece o Horto?

ZONA SUL – Nunca estive em Juazeiro. JEOVÁ – Você e os leitores do jornal precisam conhecer o Horto. Lá foi feito um museu vivo. A pessoa chega e vê a imagem dele, dos conselheiros, dos amigos, dos políticos da época... Até parece que todos estão vivos ainda. Os personagens são feitos de cera, mas as roupas são normais. Tudo é muito realista. Às vezes a gente vê a encenação das peças e percebe que ele só ensinava o bem. Para tudo Padre Cícero tinha uma solução. Qualquer pergunta que lhe fizessem, ele tinha a resposta. Muitos milagres já foram atribuídos a ele. Eu mesmo já recebi vários milagres dele.

ZONA SUL – Por exemplo... JEOVÁ – Muitas coisas. Você sabe que quando a gente está estudando não quer ser reprovado. Agora não, mas antigamente quando o filho era aprovado ganhava um presente do pai. Porém, se fosse reprovado levava uma pisa. Naquela época era normal. Hoje é que não pode mais bater nos filhos. Quando chegava perto do fim do ano eu já fazia uma promessa para não ser reprovado. Eu prometia ir para a missa. Lá no Juazeiro todo dia 20, que foi o dia que ele morreu, tem uma missa que vai todo mundo de preto. No dia 20 de todo ano eu estava lá, vestidinho de preto, assistindo a missa para pagar a promessa que tinha feito para não ser reprovado. Você vê gente de todo o Brasil dando os testemunhos dos milagres.

ZONA SUL – Quer dizer que Padre Cícero lhe livrou de levar muitas surras. JEOVÁ – Livrou de muita coisa. Escapei de muita surra por causa dele. Ele não é apenas o santo do Nordeste, mas de todo o Brasil. Eu chamo, e muita gente chama ele, de Padim Ciço. Quando alguém chama Padre Cícero, lá em Juazeiro, o pessoal sabe logo que é gente de fora. Lá todo mundo tem o costume de usar o rosário. Quando entrei na Polícia, aqui em Fortaleza, comecei usando. Mas o pessoal começou a me chamar de macumbeiro, de não sei o que. Fui aconselhado a deixar de andar com o rosário, para evitar briga. Então parei de usar. Mas ainda hoje tenho o meu guardadinho em casa. A gente compra o rosário e coloca em cima do túmulo de Padim Ciço, na Igreja do Socorro. Fica bento por ele, não precisa mais levar para o padre benzer.

ZONA SUL – Outra figura que se tornou conhecida a partir do Juazeiro foi “Seu Lunga”, que se transformou em personagem de diversos livretos de cordel. Fale um pouco sobre ele. JEOVÁ – Quando eu morava lá, na Rua da Boa Vista, era próximo da casa dele. Seu Lunga tem um comércio na Rua Santa Luzia onde se encontra de tudo: ferramenta, fruta, comida, objeto usado... O povo diz que ele é bruto, mas eu não acho. Ele é muito positivo. Se você perguntar uma coisa de forma errada, ele vai responder de forma errada. Se você perguntar certo, ele responderá certo. Por exemplo: ele tem raiva quando uma pessoa que está indo embora diz “estou chegando”. Na mesma hora ele diz: “você não está chegando, está é saindo”. Outro cara chega e diz bom dia. Ele responde: “bom dia não, pois o dia não passou”. Na lógica de Seu Lunga, durante o dia a pessoa tem que dar boa noite, pois foi a noite que já passou. Uma vez Seu Lunga ia abrindo sua loja às duas horas da tarde. Um cara perguntou por que ele estava abrindo a loja apenas naquele horário. “Foi a minha tia Vicentina que morreu”. Até aí a conversa ia aprumada. Mas o cidadão inventou de perguntar se ela estava doente. “Não, ela estava bem e nós enterramos ela viva”, foi o que seu Lunga respondeu. Ele responde na hora. É um poeta por natureza. O poeta tem que rimar na hora. Ele é como o poeta, responde na hora. Outra vez ele foi entrando na farmácia e um amigo viu e perguntou: “o senhor está doente?”. Ele respondeu: “quer dizer que seu tivesse saindo do cemitério estava morto?”. Ele responde na hora, não deixa por menos. Não deixa passar nada. Tem a rima na hora.

ZONA SUL – Seu Lunga virou um dos principais personagens da literatura de cordel. Você também escreve cordéis? JEOVÁ – Quem começou a divulgar Seu Lunga foi um colega meu que veio do Juazeiro, Silvino Neves. Hoje ele tem um programa na rádio Verdes Mares. Silvino gostava de contar histórias do Seu Lunga. Nesse tempo eu trabalhava na rádio Iracema, de Maranguape. Eu levei o Silvino para lá. Começamos a fazer versos, escrevendo sobre Seu Lunga. Começou assim: eu fazia um verso, Silvino fazia outro, contando as histórias do Seu Lunga. Depois isso espalhou e pronto. Hoje todo mundo escreve alguma coisa sobre Seu Lunga. O nome verdadeiro de Seu Lunga é Joaquim Rodrigues dos Santos.

ZONA SUL – Qual era o nome do programa na Rádio Iracema? JEOVÁ – A rádio Iracema foi vendida e hoje é a Rádio Cidade, de Fortaleza. O programa era aos sábados. Um dos versos que inventei foi “A mulher e a saia lascada”, sobre uma moda que havia, na época, de as mulheres usarem roupas com um lascão. O nome do programa era “Meu sertão e sua gente”, nome escolhido por Silvino Neves. A gente tocava músicas de Ari Lobo, Jackson do Pandeiro, Zé Calixto, Zé do X, Clementino Moura, João Bandeira, Abdias, Marinês, Marinalva, Paulo Nei, Elino Julião, Gerson Filho e Luiz Gonzaga, que é o causador de tudo. São muitos, não dá para lembrar todos. Mas no meio de tanta música boa, a gente colocava poesia. Só quem consegue fazer um programa só falando, e já faz isso há mais de 30 anos, é o Paulo Oliveira. Outra pessoa não consegue. Ele apresenta todo dia, das 5 às 9 da manhã, na Rádio Verdes Mares, só falando. Não sei como um cara faz um negócio desses. Não bota uma música. O intervalozinho é quando entra o noticiário que uma moça vem fazer. Eu prefiro falar um pouquinho e botar música.

ZONA SUL – Eu pensei que você ia recitar o poema da mulher e da saia lascada... JEOVÁ – Eu tenho mais de 500 poemas feitos, mas não sei nenhum deles decorado na íntegra. Lembro apenas de alguns versos. Esse da saia lascada foi o primeiro que eu fiz. Virou música também. É mais ou menos assim: “As mulheres inventaram uma moda engraçada / Vestem uma saia comprida bem justinha e apertada / Cobrindo o mocotó, mas do lado é lascada / Se ela passa no quartel, mexe até com o sentinela / O praça levanta a arma, apontando para ela / Os outros soldados olham o lascão da saia dela”. São muitas estrofes, não decoro. Tem gente que decora, declama e canta. Eu só consigo olhando para o papel.

ZONA SUL – Seu primeiro cordel publicado foi sobre Seu Lunga? JEOVÁ – Nem eu nem Silvino nunca publicamos cordel sobre o Seu Lunga. A gente fazia a divulgação no rádio, contava as histórias. A negada ficava ouvindo e publicando. Meu primeiro cordel foi esse da saia lascada. Toda semana eu e Silvino apresentávamos um novo verso. Danei a fazer verso. Uns colegas que já escreviam cordel me deram umas dicas, tipo não repetir palavra na mesma estrofe, rimar uma coisa com outra. Eu até brinquei com um deles. “Quer dizer que eu posso rimar urubu com carvão, já que os dois são pretos”. Me ensinaram tudinho como era. Peguei o embalo e hoje faço umas histórias que eu sei que não aconteceram, mas eu até acredito que estão certas. Também pego um fato que aconteceu, faço a história e no meio, quando não dá certo, eu invento e fica bom.

ZONA SUL – Qual o seu cordel mais popular? JEOVÁ – “A tragédia de Juazeiro”, que conta a história de um monsenhor que foi assassinado no ano de 1950, na pedra fundamental da Igreja dos Franciscanos, o monsenhor Joviniano Barreto. Ele foi assassinado por um rapaz que era doido. Foi o cordel que mais fez sucesso porque contou uma história antiga de Juazeiro. Muitas pessoas vieram me perguntar, depois, como eu soube daquelas informações todas. Eu ouvi muita gente conversar sobre o caso, inclusive os meus tios e os meus pais. Demorei 50 anos para escrever. Eu era do Salesiano e os padres de lá é que tomam conta do Horto. Lá eu ouvia muitas histórias e ficava só gravando na cabeça. Depois botei tudo no papel. Juntei tudo, montei o quebra-cabeça. Teve uma grande repercussão no Cariri. Publiquei esse cordel através de um concurso realizado pelo SESC, em Juazeiro. Quando cheguei lá com os originais, o cara disse que meu cordel não ia para julgamento, ia logo para publicação. Perguntaram se eu autorizava. Autorizei na hora, porque eu queria era ver o meu nome no mundo.

ZONA SUL – Além de cordel, você também compõe música. JEOVÁ – Passei a compor música depois. Um cara me deu a idéia de pegar as poesias, botar música e cantar. A dica era eu não usar a letra toda, mas apenas uns três ou quatro versos, pro povo aprender logo. Faço a história, tiro três ou quatro versos, e crio a música. Para mim é muito fácil. Todas as músicas do meu CD são de minha autoria. O pessoal tem mania de fazer músicas de duplo sentido, mas tem muita gente que não gosta. Eu não faço. Só tem uma música de duplo sentido no meu CD. A história é a seguinte: o cara estava dançando, a dona passou a mão e perguntou: “o que é isso?”. “É uma espiga de milho que tem no meu bolso”, ele respondeu. A dona não acreditou. “Deixe de mentira, Zé: essa espiga que passei a mão só tem dois caroços?”. O cara só nota que é duplo sentido quando a música termina. Os humoristas de Fortaleza têm a mania de puxar para a imoralidade. Uma criança não pode ouvir. Meu show reúne gente de 8 a 80 anos e ninguém reclama.

ZONA SUL – Fale um pouco sobre o CD que você pretende lançar. JEOVÁ – Fiz esse CD depois de ouvir muita cobrança do pessoal. Uma noite eu estava fazendo um show e mais uma vez perguntaram pelo CD. Um produtor de disco chamado Newton Costa estava assistindo e me propôs gravar o tal disco. Eu disse que não sabia como fazer. Ele me levou para o estúdio e gravamos as faixas de conversa. Vamos agora gravar as músicas, para lançar. Eu nem queria, mas o povo está obrigando.

ZONA SUL – Vai ser bom para deixar registrado o seu trabalho. JEOVÁ – Você vai levando uma cópia das gravações. Já ouviu? Aprovou?

ZONA SUL – Já. Aprovei. JEOVÁ – Então pague.

ZONA SUL – Você não tinha falado que eu tinha que pagar... JEOVÁ – Se gostou, tem que pagar. Não precisava pagar se não gostasse.

ZONA SUL – Deixe pelo menos terminar a entrevista... JEOVÁ – (risos) Se não pagar eu chamo o Coronel Zé Lotero para receber por mim. E ele é bravo. CORONEL – Oxente, qual é o cabra que não quer pagar? Óia aqui o tamanho do revólver...

ZONA SUL – Calma, Coronel Zé Lotero, eu estava brincando: vou pagar. JEOVÁ – Coronel, não puxe esse revólver não, que o homem está me entrevistando. Ele está se tremendo todinho, Coronel, guarde esse revólver.

ZONA SUL – Obrigado. Ainda bem que o Coronel acalmou-se. Aproveitando o embalo, como surgiu esse seu personagem, o Coronel Zé Lotero? JEOVÁ – Quando eu morava no município de Barbalha, costumava ouvir as emissoras de rádio de Pernambuco. Pegava muito bem por lá. Coronel Ludugero trabalhava na Rádio Clube de Pernambuco. Eu acompanhava os seus programas. Quando vim para Fortaleza, entrei no Exército e fui fazer um curso em Recife. Lá conheci o Coronel pessoalmente. Ele até me deu um elepê autografado, que eu guardo até hoje. Naquele tempo seus discos saíam pela gravadora Mocambo. Eu disse ao Coronel Ludugero que gostava de imitá-lo. Ele respondeu “prossiga, estou gostando” e completou com uma brincadeira: “quando eu morrer, você assume o meu lugar”. O negócio deu tão certo que quando ele morreu, eu assumi. Passei a fazer o show “O Coronel Ludugero Cearense”. Abdias, que produziu alguns discos de Ludugero, assistiu a uma apresentação e falou que estava muito bom. Porém ele disse que eu estava fazendo sucesso para um cara que tinha morrido. Dessa forma todos só me chamariam de imitador. Ele sugeriu que eu criasse um novo nome e fizesse algumas alterações no personagem. Eu criei Zé Lotero, para ficar parecido. O secretário dele era Eutrópio, mas todo mundo chamava de Otrópi. Da mesma forma, o meu é Euclides, mais conhecido como Ocride. É porque lá no mato o povo chama Ocride mesmo. Para encontrar o nome da mulher do Coronel foi o maior problema. Uma humorista aqui de Fortaleza, Franciram Cavalcanti, que é quem faz o papel da mulher do Coronel Zé Lotero, sugeriu Ambrosina. Ficou assim. O jumento é chamado de Helicóptero, porque helicóptero baixa em qualquer canto. O jumento é igual: onde vê uma grama, ele baixa pra comer. Troquei o nome de todos. Hoje estou com esse personagem, o Coronel Zé Lotero, pra não confundir. Tem gente que pergunta se sou irmão do Coronel Ludugero. Quando estive em Caruaru, fui visitar a feira da cidade. Lá tem estátua dele, de Otrópi, e de tudo. Eu assisti ao último show do Coronel Ludugero. Foi aqui em Fortaleza, em uma festa na Secretaria de Agricultura. Depois ele pegou um avião para Belém. Quando a aeronave ia chegando, ao invés de pousar na pista do aeroporto, pousou na água. Ele morreu. O corpo de Artrópi passou aqui por Fortaleza, indo para Recife. Mas o corpo do Coronel Ludugero não foi encontrado. Suspeitam que ele esteja vivo. Isso uma vez deu uma confusão danada.

ZONA SUL – Que confusão? JEOVÁ – Eu estava fazendo um show no Parque da Criança. Uma equipe de uma emissora de rádio de Recife estava em Fortaleza para cobrir o jogo Ceará X Sport, no Castelão. Eles estavam passando por perto do parque quando viram o show. Pararam e gravaram um pedaço. Em Recife eles passaram aquela fita dizendo que Ludugero estava vivo. Foi uma confusão. Até polícia veio de Recife pra cá. Nesse tempo eu era sargento e trabalhava no reboque do BPTRAN (Batalhão de Polícia de Trânsito). Eu estava na rua quando fui convocado, via rádio, para voltar ao quartel. Lá me mandaram falar com o comandante. Quando entrei na sala dele, os caras já foram logo tirando retrato, e eu entrei na onda: “que é isso? Vai chover? De onde vêm esses relâmpagos todos?”. E os caras dizendo: “é ele, é ele”. Eu continuei: “cadê o meu guarda-chuva? Tá relampiano”. E os pernambucanos: “é o homem mesmo, é o homem mesmo”. Um delegado pediu para ver minha identidade. Mostrei. Quando viram que meu nome era José Jeová de Oliveira foi que constatam que eu não era o Coronel Ludugero, que se chamava Luiz Jacinto Silva, natural de Caruaru. Eu sou de Juazeiro do Norte. Ele era filho do velho José Jacinto e da dona Maria Jacinta. Meus pais são outros: Manoel Francisco de Oliveira e Carolina Oliveira dos Santos. Não tinha nada a ver. Foi só assim que acabou a confusão. Depois eles perceberam que o Coronel Ludugero era mais baixo do que eu. Eles ficaram muito impressionados porque até minha voz é parecida com a dele. Abdias também me aconselhou a modificar um pouco a voz, para não ficar tão parecido.

ZONA SUL – Você esteve prestes a gravar um elepê. Por que não deu certo? JEOVÁ – É o novo... Elepê. Mas é verdade. Abdias - que era sanfoneiro, compositor e produtor musical - me viu fazer um programa na TV Ceará, que nesse tempo era TV Educativa. Era o programa do Carneiro Portela. Abdias assistiu e depois me orientou a fazer aquelas alterações todas. Por fim ele disse que ia me levar para o Rio de Janeiro, para gravar um elepê. Infelizmente, pouco tempo depois ele morreu. Foi em 1991. Não gravei, mas também nem liguei muito. Eu não ligo para essas coisas. Na verdade eu não levo a sério. Agora é que vou lançar o primeiro CD, pela insistência do povo e dos produtores. Tem muita gravação minha espalhada por gente que assiste a show meu, grava e passa pra frente. Eu não ganho nada. Vou fazer shows e não cobro.

ZONA SUL – Sua vida como militar serviu como fonte de inspiração de histórias para você incluir no seu repertório? JEOVÁ – Quase todas as histórias incluídas no meu repertório surgiram através da minha vida militar. Trabalhei um tempo no policiamento de trânsito e o resto foi na rádio-patrulha, em ocorrência. Em ocorrência é que a gente vê coisa boa para botar em disco. Quem passa 24 horas rodando em uma cidade como Fortaleza, vê muita coisa. Coisa boa e ruim. Num instante eu estava cheio de histórias. Fazia poema de desastre e de tudo o que eu via. Depois de algumas ocorrências, enquanto os colegas continuavam pensando naquela tragédia, crime ou acidente, eu estava tomando nota para fazer as poesias. A vida de policial me ajudou muito. Os comandantes também me ajudaram bastante. Na polícia poucas pessoas sabem que o meu nome é Jeová. Só me chamam de “Coroné”. Coronel sem o “L”. Uma vez o bispo que hoje está em João Pessoa, Dom Aldo Pagotto, foi celebrar uma missa de despedida no quartel. Sou ministro da eucaristia e estava ajudando a ele. Quando terminou a celebração, ele perguntou se eu era militar. Na mesma hora chegou um oficial e disse: “bispo, você foi auxiliado pelo Coronel”. Ficou por isso mesmo. Depois dessa eu não ia mais dizer ao bispo que eu era subtenente, já que tinha sido apresentado como coronel. Ele até pediu para tirar um retrato junto comigo, o coronel. A vida militar me ajudou muito e ainda hoje ajuda.

ZONA SUL – Conte alguma história que aconteceu nas ruas de Fortaleza, virou verso na sua mão e ganhou as ruas. JEOVÁ – São muitas histórias que viraram faixa de disco. A gente faz aquela adaptação pra dar certo. Às vezes até troca o nome de uma pessoa, porque tem gente que não gosta. Uma vez fui para uma ocorrência que o cara tinha dado uma lapada no outro. Eu perguntei por que ele tinha feito aquilo. O acusado respondeu que a vítima havia pedido. Só que a vítima pediu uma lapada de cachaça. E o cara deu foi uma lapada de cinturão nas costas dele. Esse é um exemplo de ocorrência que virou “causo” do Coronel Zé Lotero. O cara estava com a marca vermelha do cinturão nas costas. Adaptei. Mas foi uma ocorrência que fiz na rádio-patrulha. Aproveitei muita coisa. Foram 35 anos trabalhando na rua. Eu nunca quis trabalhar em sala. Quando fui promovido a primeiro sargento, me ofereceram para trabalhar interno. Eu ficaria doente se fosse obrigado a ficar trancado. Eu gosto de estar no meio da rua, na lama, na chuva, na poeira. Se eu passar um dia numa sala, fico doente. Por exemplo: agora, dando essa entrevista a você, de vez em quando fico com vontade de tossir, por causa do ar-condicionado. Acho que vou passar a tarde doente. Meu negócio é poeira, sol e chuva. É com isso que estou acostumado. Sou matuto do interior, nascido no Cariri, criado com baião de dois e pequi. Meu negócio é coisa pesada, não gosto de moleza.

ZONA SUL – Você atuou em algum caso que gerou grande repercussão? JEOVÁ – Vi tragédia de todos os tipos: desde rapto de crianças, a acidente automobilístico com várias vítimas fatais. Trabalhei no resgate a um ônibus que caiu em uma ribanceira. Todos os passageiros morreram. Até desastre de avião eu socorri. Quando o boeing da Vasp caiu na Serra da Pacatuba, deixando mais de 100 mortos, participei da equipe de resgate. Ao chegar lá encontramos um cenário terrível. Os corpos das pessoas não estavam inteiros. Passei uns oito dias por lá. Foi uma tragédia muito grande. Nunca consegui esquecer. Até hoje parece que estou vendo aqueles corpos.

ZONA SUL – Quem nunca viu não tem nem como imaginar um cenário desses... JEOVÁ – É. Comecei a trabalhar em rádio-patrulha no começo de 1970. O primeiro acidente que fui atender envolvia um carro que tinha despedaçado um menino. Logo em seguida fui chamado para um atropelamento de trem. Eu não era acostumado com aquelas cenas. Cheguei em casa e fiquei sem comer. Nos primeiros dias foi assim, até perceber que se permanecesse daquele jeito eu ia morrer de fome. Fui obrigado a me acostumar. Pra mim hoje é normal encontrar uma pessoa morta em alguma ocorrência. No começo eu ficava com medo até de chegar perto. Trabalhei muito tempo no batalhão de trânsito. Quando ele foi extinto, fui transferido para o batalhão de rádio-patrulha.

ZONA SUL – Como seus colegas policiais encaram o seu lado artístico? JEOVÁ – Eles gostam. Certa vez decidi não fazer mais brincadeiras. Cheguei ao quartel todo sério. Os colegas brincavam comigo e eu não aceitava. Eu pedia até pra não me chamarem mais de “Coroné”. “Me chamem de Jeová”, eu dizia. Algum tempo depois um tenente me avisou que o coronel queria falar comigo em seu gabinete. Quando cheguei lá, ele disse: “não fale nada. Vá para casa, descanse três dias e volte. Você está com um problema muito grande. Umas cinco pessoas já me disseram”. Fiquei desconfiado e fui para casa. Cheguei à conclusão de que eles queriam mesmo era o meu lado brincalhão, e não o lado sério. Três dias depois, quando voltei, já fui brincando com um e com outro. Não posso dizer nada sério. Eu tenho o costume de colocar apelido no povo. Não posso nem chamar o cara pelo nome certo, tenho que chamá-lo pelo apelido. Do coronel ao soldado, ninguém acha ruim esse meu comportamento. Se eu chamar pelo nome verdadeiro, a pessoa pergunta logo o que é que está havendo. Mesmo quando me encontram trabalhando na rua, fardado, querem que eu faça alguma brincadeira do Coronel Zé Lotero. O povo me obriga a ser o “Coroné” mesmo. Uma vez meu pai foi ao quartel e pediu para falar com o sargento Jeová. Ele estava esperando há quase uma hora na sala de visita quando eu, que estava passando, o vi. Perguntei aos colegas porque eles não tinham me avisado. Eles responderam que a pessoa, o meu pai, não estava me procurando, mas sim a um tal de sargento Jeová. Ensinei ao meu pai que na próxima vez ele procurasse o “Coroné”. Assim achava bem ligeirinho. Quando desapareço do rádio, porque fico com preguiça de ir, o povo fica cobrando, telefonando, perguntando por onde eu ando. Os locutores respondem que eu estou viajando. É assim que acontece.

ZONA SUL – Em qual emissora de rádio você costuma se apresentar? JEOVÁ – Na emissora em que eu chegar que tiver programa de forró, sou bem recebido e todo mundo gosta. Eles sempre pedem para eu voltar mais vezes. Tenho minha carteira de radialista há 40 anos. Recentemente o Nonato Albuquerque, da Rádio O Povo, reclamou que eu nunca mais havia aparecido em seu programa. Chegou a perguntar se eu queria receber um cachê para ir lá. Respondi na hora que não era homem de andar recebendo dinheiro para essas coisas. É assim.

ZONA SUL – Qual a sua preferência: inventar a história ou interpretá-la? JEOVÁ – Gosto de tudo, até porque se alguém for interpretar o que eu escrevo não vai sair como quero. Aprendi uma técnica com um professor de oratória que a gente não deve olhar para os olhos do povo, quando subir em um palco. O correto é olhar acima da cabeça. Se olhar para os olhos, o povo tem uma energia tão forte que faz você tremer. Uma vez fui fazer show para um candidato, em Canindé. Naquele tempo artista podia participar de campanha política. O candidato veio me buscar em Fortaleza. O cara que foi comigo olhou para o povo e começou a tremer. Eu usava uma daquelas pistolas que era chamada de garrucha. Então eu puxei o revolver, apontei pra ele e disse: “olha pessoal, o cara está todo se tremendo por causa da minha garrucha”. Inventei isso para o povo pensar que ele estava tremendo de propósito. Então pedi para darem uma vaia nele. O remédio para tremedeira em cima de palco é a pessoa levar uma vaia. Na hora da vaia eu ensinei ao meu ajudante: “olha pra cima da cabeça do povo”. Foi um negócio sério ele subir no palco e olhar para os olhos daquela plateia de quatro mil pessoas.

ZONA SUL – Como alguém de Natal pode conhecer o seu trabalho? JEOVÁ – Meus filhos, que são ligados nesse negócio de Internet, fizeram um site para mim. Mas eu nunca atualizei porque estou esperando terminar o CD. Quando ficar pronto, vou colocar no site. Por enquanto ele está parado.

ZONA SUL – Já tem o endereço? JEOVÁ – Ainda não. Estamos escolhendo um. Até porque Jeová tem um bocado. Talvez a opção seja Zé Lotéro, porque não tem. Botaram só “Coroné”, e também já tinha um bocado. Mas não sei ainda. Meus filhos é que vão resolver.

ZONA SUL – O Coronel Zé Lotero gostaria de dizer alguma coisa? CORONEL – Se quisé fazê alguma pregunta, faça. Só não fale na minha véia, se não lhe dou um tapa-olho! Fale noutra coisa. O que é que você quer saber?

ZONA SUL – Não se preocupe, Coronel, que não falarei na sua esposa. CORONEL – Então possa preguntá, pessoa. Mas não fale na minha véia. Ela tá lá na fazenda e coisa, mas não venha saber dela não. Só quem sabe é eu, que sou casado nos dois. Pessoa, fique do lado de lá e pregunte outra coisa.

ZONA SUL – Está certo. Então me fale sobre a sua fazenda. CORONEL – A fazenda está boa. Incrusive consegui fazer com que todos os meus bois escapassem dessa última seca. Eu comprei óculos raiban e botei nos bois. Eles comeram o mato seco pensando que era verde. Tá tudo gordo. E agora que chegou a chuva, não tem mais probrema. Eu sou do bom!

ZONA SUL – Coronel, mande uma mensagem para o povo de Natal. CORONEL - Ói, pessoá de Natá, principalmente a administração municipá. Quando for em dezembro eu vou aí arrancá uma árvore lá na Praça Pedro Velho, porque a minha véia adora uma árvore de Natá. Todo ano ela pede uma deferente. Vou tirar uma que eu vi bem fulorida e vou trazer. Dessa vez vou levar um trator, porque os cabra pode não ter força pra arrancá. Vou colocá a árvore dentro do caminhão e trazê pra mode botá na minha fazenda. Eu gosto muito de Natá porque foi lá que Jesus se batizou, naquele Rio Potengi. Nasceu em Belém e se batizou em Natá. Ele não quis se batizá naquele rio do Recife porque é muito fedorento. Agradeço sua paciência de conversá com eu. Até porque sou meio despranaviado e brabo. Ainda bem que você não falou na véia. Os outros vêm logo falá na minha véia, de cara. Acho que é porque você tá com medo desse meu revólver que dispara bala até pelo cabo. Eu sou do bom, nunca miei no serviço!