sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Entrevista: Joaquim Campelo

O COLECIONADOR DE PALAVRAS, AMIGOS E AZULEJOS


Pouca gente em Natal sabe quem é Joaquim Campelo Marques. Porém, percentual elevadíssimo dos habitantes da cidade pelo menos uma vez na vida ouviu falar em Aurélio Buarque de Holanda, que virou sinônimo de dicionário. O professor Campelo foi braços e pernas do lexicógrafo. E José Sarney, quem não conhece? Campelo o assessorou no período em que o maranhense exerceu a Presidência da República. Da Editora Alhambra, criada por Campelo, talvez poucos lembrem. Mas poucos esquecem de autores publicados por este selo como Ivan Illich, Glauber Rocha, Mark Twain, Friedrich Nietzche, Gogol, Tolstoi e Otto Maria Carpeaux, que acaba de ter sua História da Literatura Ocidental reeditada por Campelo, agora pelo Conselho Editorial do Senado, do qual nosso entrevistado é vice-presidente. O jornalista Carlyle Madruga, já entrevistado pelo Zona Sul, me ajudou na condução dessa entrevista, realizada em Belém, no finalzinho de setembro.

ZONA SUL - O senhor é maranhense de qual cidade?
CAMPELO - Nasci em Viana, na baixada ocidental do estado. É uma região que eu poderia qualificar de um pequeno pantanal. Seis meses de campo verde aberto, rios - Igarapés, no caso - e seis meses de muita água. Fica à beira de um lago. De janeiro a julho a água toma conta dos campos todos e chega à beira da cidade.
ZONA SUL - Hoje Viana tem cerca de quantos habitantes?
CAMPELO - O município tem menos de 40 mil habitantes. A cidade deve ter uns oito mil. Lá é predominantemente, ou quase que exclusivamente, rural. Produz fumo, gado, arroz e carnaúba. Lá também se extrai palmito e se pratica alguma caça.
ZONA SUL - Sua infância foi vivida toda em Viana?
CAMPELO - Não. Saí com uns quatro anos.
ZONA SUL - Tem alguma recordação até essa época?
CAMPELO – Remotíssima. Lembro de um cachorro chamado Mondego, nome de um rio que banha Coimbra, em Portugal. Eu montava nele como se fosse um cavalo. Meu pai era português, veio para o Brasil para Cururuca, que fica entre São Luís e o Rio Gurupi. De lá ele foi para Viana.
ZONA SUL – Sua mãe é de onde?
CAMPELO - É vianense. Eles se conheceram e casaram lá.
ZONA SUL - De Viana o senhor mudou-se para onde e por quê?
CAMPELO - Meu pai cresceu, economicamente falando. Ele era comerciante, deixou seu comércio com um primo - não sei se associado ou não - e foi embora. Provavelmente associado, porque o português tem o costume de passar o controle dos seus negócios para gerações sucessivas ou para parentes próximos. Fomos morar em São Luís. Ele associou-se lá com um senhor chamado Mendonça. Quando esse sócio morreu, ele assumiu a casa.
ZONA SUL - Qual era o tipo de comércio?
CAMPELO - Armazém de secos e molhados e importação. Tudo no Maranhão era importado. Ainda comia-se o que se produzia lá, como o arroz, o feijão e tal. Mas a parte industrializada toda vinha de fora: ou do estrangeiro ou de São Paulo, do sul do país. Da mesma forma também eram importadas as ferramentas como enxada, facão, foice e tecidos para vestimenta e o trigo - que praticamente ninguém produz no Brasil, só o Rio Grande do Sul, e assim mesmo pouco. Ele tinha um grande armazém na Praia Grande. Era um dos grandes comerciantes da capital e, por conseqüência, do estado.
ZONA SUL - Fale um pouco sobre o seu período de infância em São Luís.
CAMPELO - No primário, estudei no colégio de uma professora rigorosíssima que tratava a gente com puxões de orelha. Até palmatória lustrou a palma de minha mão, de vez em quando. Apesar disso, tive uma infância normal e feliz.
ZONA SUL - Como eram as brincadeiras daquela época?
CAMPELO - Basicamente era empinar papagaio. Tinha também o futebolzinho, o racha. Meus colegas gostavam de tomar banho na beira-mar, mas eu não ia.
ZONA SUL - Por que?
CAMPELO - Eu não gostava, a água era um pouco suja. Eles iam para a aventura. No ginásio eu pratiquei voleibol, basquetebol e corrida. Corrida de fundo, não corrida de velocidade.
ZONA SUL - Quando criança o senhor ajudava o seu pai no armazém?
CAMPELO - Ajudava. Todo dia, no armazém, eu abria caixa.
ZONA SUL - O senhor foi um bom aluno?
CAMPELO - Mediano. Nem bom, nem mal. Mais pra baixo do médio, até.
ZONA SUL - Mas desde cedo tomou gosto pela leitura?
CAMPELO – Sempre gostei de ler, sempre fui um leitor forte.
ZONA SUL - Há alguma explicação para isso? Algum leitor voraz dentro da família ou no círculo de amigos?
CAMPELO - Não. O fato é que o Maranhão teve a tradição marcante de terra de literatos, hoje não tem mais. Vamos botar as coisas em pratos sujos: a província do Brasil, me parece, é muito esquecida pelos veículos de comunicação. Apenas eventualmente eles fazem matérias extensas sobre um ou outro dos grandes da província. O escritor da porção norte do país só passa a ser respeitado pela imprensa quando vence e ganha alguma notoriedade. Então, temos Ariano Suassuna, Ferreira Gullar, João Ubaldo e quem mais no norte? No sul você encontra Luís Fernando Veríssimo, os mineiros, aqueles contistas da década de 60, os paranaenses e tantos outros. Qualquer coisa que eles fazem é um estouro. A porção norte fica lutando sozinha.
ZONA SUL – De onde veio essa tradição literária do Maranhão sobre a qual o senhor falou agora há pouco?
CAMPELO - Nos séculos XVIII e XIX, por conta de uma economia muito rica, sobrou dinheiro no Maranhão para a literatura, para as artes e para mandar os filhos estudarem na Europa. O Gonçalves Dias, por exemplo, aprofundou seus estudos na Alemanha depois de vencer no Rio de Janeiro e passar a gozar da admiração do Imperador. O grande latinista e grecista Odorico Mendes – autor das primeiras traduções integrais para português das obras de Virgílio e Homero - estudou na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele traduzia na métrica original! Muitos outros nomes importantes da literatura nasceram no Maranhão no século XIX. Do século XX destacaram-se apenas Ferreira Gullar e Josué Montello, na prosa. O resto, por uma razão ou outra, ficou esquecido.
ZONA SUL – Quem, por exemplo, ficou esquecido?
CAMPELO – Um deles foi o Bandeira Tribuzi, que embora tivesse vivido alguns anos no Rio de Janeiro e trabalhado na imprensa de lá, nunca extrapolou as fronteiras do Maranhão. Se tivesse permanecido mais tempo no Rio, teria se tornado um homem do top de Ferreira Gullar. Outro é o Sarney, que teve seu trabalho prejudicado pelo fato de ser um político. Os críticos literários deixam contaminar sua opinião, que poderia ou não ser diferente. Então, são andorinhas sem fazer verão.
ZONA SUL – O que incentivou o senhor a começar a ler?
CAMPELO – Essa imagem, essa mensagem histórica do Maranhão é uma carga tão forte que permeia tudo. Em casa há referências, na escola a professora fala em Gonçalves Dias, diz que Aluísio Azevedo morou em tal rua, que tem um mirantezinho onde ele escreveu O mulato...
ZONA SUL - Quais os primeiros livros que o senhor recorda de ter lido?
CAMPELO - Foram os dito clássicos do Maranhão e os portugueses clássicos.
ZONA SUL - O senhor só lia ou também escrevia? Fez muitos poemas para as namoradas?
CAMPELO - Não. Eu não caí nesse insulto.
ZONA SUL - Por que insulto?
CAMPELO - Porque eu não fazia coisa que prestasse. Desde o ginásio éramos estimulados ao beletrismo, que é a bela arte das letras. Os colégios tinham centros ou grupos culturais. O nosso chamava-se Centro Cultural Coelho Neto. A cada semana um indivíduo era destacado para escrever uma crônica, um conto, um soneto e tal. Outro era escalado para fazer a crítica daquilo. Isso dava uma emulação muito grande, um estímulo na rapaziada. Para o debate que havia era sempre convidado para, digamos, moderação, um acadêmico. Esse acadêmico comentava o que um e outro diziam. Isso estimulava muito.
ZONA SUL - O senhor chegou a ser vítima de alguma crítica feroz?
CAMPELO - Não. Por sorte fui escolhido apenas para criticar.
ZONA SUL - O senhor carrega alguma frustração por não ser escritor?
CAMPELO - Nenhuma.
ZONA SUL - O senhor ficou em São Luís até que idade?
CAMPELO - Fiquei até os 19. Fui para o Rio de Janeiro.
ZONA SUL - Como foi trocar a pequena São Luís pelo Rio de Janeiro?'
CAMPELO - Foi pegar um avião e descer lá. Há algum tempo eu digo que desconfio que daria um bom detento, um bom presidiário. Eu sei olhar para a parede horas seguidas. Agora, se quiserem estender isso - que eu daria um bom monge, um bom soldado na caserna - está aberto.
ZONA SUL - No Rio o senhor foi estudar Direito?
CAMPELO - Eu fiz três escolas ao mesmo tempo. Diziam na época que era proibido por lei, mas eu fiz Comunicação, que se chamava Jornalismo, Direito e Administração Pública.
ZONA SUL - Simultaneamente?
CAMPELO – Sim, mas deixei o curso de Direito no terceiro ano e obrigaram-me a deixar Administração Pública também com pouco mais da metade do curso concluído. Terminei apenas jornalismo.
ZONA SUL - Como foi a vida no Rio de Janeiro? Como foi passar a morar sozinho?
CAMPELO - Eu morava com um colega do Maranhão.
ZONA SUL - Como foi deixar de morar com a família para encarar a vida?
CAMPELO - Foi tudo normal. É aquele negócio do presidiário, só que sem gangues apertando a gente dentro do presídio. Fui para o Rio em 1950.
ZONA SUL - No Rio de Janeiro o senhor chegou a se envolver com política, com movimento estudantil?
CAMPELO - Com o movimento estudantil, sim. Fui presidente de diretório três anos seguidos, na Fundação Getúlio Vargas.
ZONA SUL - De qual curso?
CAMPELO - De Administração Pública. Também me quiseram por na política nas outras faculdades, mas eu não aceitei. Eu era, e ainda sou, muito tímido. Como já estou muito mais pra lá do que pra cá, fiquei mais liberado pra me manifestar. Hoje eu posso entrar tranqüilamente no Vaticano pra cumprimentar o Papa. Antes eu ficaria escondido pelas paredes, encostado, despistando para o Papa não me ver e perguntar "quem é aquele homem bonito lá?".
ZONA SUL - O que o senhor diria se tivesse oportunidade de cumprimentar o Papa?
CAMPELO - Eu provavelmente o abençoaria. (risos)
ZONA SUL - O senhor precisou trabalhar enquanto estudava ou foi mantido pela mesada da família?
CAMPELO - No início eu recebia mil cruzeiros, que dava para sobreviver.
ZONA SUL - Seria mais ou menos quanto, hoje?
CAMPELO - Não tenho a menor idéia, nunca parei para imaginar ou calcular.
ZONA SUL – Mas o senhor trabalhou ou não enquanto estudante?
CAMPELO – Um diretor da Fundação Getúlio Vargas fez umas entrevistas, uns concursos, uns exames em São Luís e fui aprovado como bolsista. Eu recebia inicialmente 2 mil cruzeiros. Depois passou para 3 mil. Mas no terceiro ano cancelaram minha bolsa e convidaram a retirar-me da escola, por causa de política estudantil. Antes de sair da Fundação Getúlio Vargas, passei a trabalhar para o Aurélio Buarque de Holanda. Isso foi por volta de 1956.
ZONA SUL - Como o senhor começou a trabalhar com ele?
CAMPELO – Aurélio foi nosso professor. Ele aproveitava os alunos que se interessavam pela língua portuguesa para ajudá-lo na correção de provas e em outros trabalhos. Uns quatro ou cinco alunos começamos a freqüentá-lo. Mesmo quando saí da FGV, continuei com o Aurélio e tornei-me seu amigo. Ele era uma pessoa muito caótica e trocava o dia pela noite. O biorritmo dele era noturno.
ZONA SUL – Aurélio era caótico e trocava o dia pela noite?
CAMPELO - Trocar o dia pela noite não significa caos. Ele trabalhava, rendia muito. Dormia até dez, onze horas da manhã. Mas o trabalho dele era um caos, uma bagunça. O trabalho de Aurélio era como uma árvore sem um jardineiro que a podasse como devia. Ele era um levantador de assuntos, um anotador. Ficava aquilo tudo sem sistemática, jogado em caixas, baús e gavetas. Era um curioso, um xereta dos vocábulos e das palavras novas.
ZONA SUL – O senhor conheceu o principal concorrente dele?
CAMPELO – Conheci o Antônio Houaiss. Havia muita diferença entre um e o outro. Houaiss tinha formação acadêmica, o Aurélio, mesmo formado em Direito, era autodidata nas áreas de lexicografia, etimologia e lingüística. Mas ele tinha um talento natural muito grande para definir, para a gramática. Houaiss sabia mais latim e grego do que Aurélio, que sabia pouco ou pouquíssimo. Mas o Aurélio, digamos, era ecumênico e tinha facilidade para elaborar e transmitir. O Antônio Houaiss era complicado, talvez por essa condição de saber mais profundamente. Comparo o Antônio Houaiss com o Gustavo Corção e o Aurélio com o Alceu Amoroso Lima. O Gustavo Corção e o Alceu eram teóricos do catolicismo. Corção era mais profundo do que o Alceu, que era mais abrangente e ecumênico. O Houaiss era mais profundo do que o Aurélio, mas o Aurélio era mais abrangente e ecumênico.
ZONA SUL - O senhor trabalhou durante quanto tempo com o Aurélio?
CAMPELO - Até três anos antes da morte dele. Aurélio morreu aos 78 anos, em 1988. Ele era de 1910.
ZONA SUL – Durante o período em que esteve com Aurélio o senhor teve outras atividades paralelas?
CAMPELO - Sim. Trabalhei n’O Cruzeiro, na revista, de 1957 até ela começar a mandar as pessoas embora. Eu era redator. No Jornal do Brasil entrei por volta de 1960. Lá trabalhei 24 anos, também como redator. Nunca fui repórter. Repórter é muito curioso, pergunta.
ZONA SUL - O senhor tem uma questão na Justiça com relação ao Dicionário Aurélio...
CAMPELO – Isso é um caso a parte que daria até um livro. Se fôssemos remexer nesse assunto ficaria um bando de escaninho sem ser preenchido e o leitor iria voar.
ZONA SUL – Como foi o trabalho de elaborar o primeiro dicionário com a grife Aurélio?
CAMPELO - Em determinada época Aurélio assinou contrato com O Cruzeiro para fazer um dicionário que seria publicado pela revista, em fascículos. Depois de três ou quatro anos, não saiu nada. É bom que se diga que O Cruzeiro pouco deu para ele, em matéria de equipe. Só eu trabalhava com ele, por minha conta. E um dicionário, uma enciclopédia e essas obras de referência a equipe é que tem que elaborar. Ninguém é enciclopédico o suficiente para fazer tudo. Aí ele negociou com a Delta Larousse que deu equipe. Eu era o chefe e tinha cinco assistentes e oito datilógrafos, além de um boy que cuidava do escritório e fazia a ligação com a sede. Durante três anos a Delta enterrou mais de 700 mil cruzeiros. Eu não sei a quanto monta isso aqui, mas acho que alguns bons milhões. O Aurélio recebeu adiantamento pra ser descontado depois, de direitos autorais, e pagou a nós, a equipe. O direito autoral era 3% a 4%. Uma coisa realmente ridícula. Mas ele quis. Quando o dicionário não saiu, Aurélio ficou arrasado, chorou. Eu peguei a equipe e propus que nós fizéssemos o dicionário. Resolvi criar uma editora para tentar lançar o dicionário. Fundei a JCM: Joaquim Campelo Marques. Editamos alguns livros como os de José Ramos Tinhorão sobre música popular brasileira. Era uma tentativa de ganhar dinheiro para financiar a elaboração do dicionário. A JCM feneceu porque um dos livros que ia ser um sucesso foi apreendido pelo governo.
ZONA SUL - A censura o perseguiu muito como editor?
CAMPELO - Tive apenas esse livro censurado, apreendido. Não por ele ter sido nomeado no decreto de apreensão. O livro citado, apesar de ser o mesmo, era de uma outra editora. Era A filosofia na alcova, do Marquês de Sade. O ministro da Justiça, Gama e Silva, em sua portaria citava apenas o livro do concorrente, que era a Coordenada Editora de Brasília. Quando os agentes apreensores chegaram à livraria tomaram conhecimento da existência do outro e imediatamente levaram também. Estiveram na loja do distribuidor do meu livro e o prenderam pra saber quem era o editor daquele livro. Sebastião Sena, o distribuidor, dizia que JCM era José Machado Campelo, tentando despistar. Mas os policiais insistiam que não, achavam que JCM era Juventude Comunista Mundial. A JCM acabou assim. Ela foi criada só para tentar ganhar dinheiro para financiar o dicionário e não deu em nada. O dicionário terminou saindo pela Editora Nova Fronteira. Antes eu havia procurado umas cinco ou seis editoras e outras tantas pessoas físicas, mas ninguém quis emprestar o dinheiro para editarmos o dicionário.
ZONA SUL – Por que, diante de tantas negativas, a Nova Fronteira bancou o dicionário?
CAMPELO - Não foi pela loucura do Carlos Lacerda, que era o dono, pois ele era contra. Ele achava que aquilo era uma aventura que levaria a editora à falência. Mas o superintendente dele - um jovem sem nenhuma experiência como editor, um rapaz de 30 anos que morreu dois ou três a nos depois de o dicionário sair – tinha uma estrela propícia, digamos. Roberto Correia era um executivo intuitivo que apesar de nunca ter dirigido nada, tinha uma estrela favorável: onde ele punha a mão virava dinheiro. Trabalhou com o ministro Cirne Lima, no governo Geisel, no departamento jurídico do Ministério da Agricultura. Era advogado. Depois pegou um empreguinho no Escritório Nabuco Araújo e caíram nas mãos dele os assuntos de Carlos Lacerda. Muito ligado aos jovens, Lacerda ficou fã dele e o levou para ser superintendente da Nova Fronteira. Ele transformou a editora, retirou-a do buraco e entrou de sola na aventura do dicionário.
ZONA SUL - Quando saiu o primeiro dicionário Aurélio?
CAMPELO - Em abril de 75, e foi um sucesso. Não existia nenhum dicionário feito no Brasil. Existiam léxicos mínimos, a maioria cópias de dicionários portugueses ou dicionários portugueses que concorriam. O único dicionário brasileiro que tinha presença era aquele médio chamado Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, originalmente editado pela Companhia Editora Nacional. Posteriormente ele foi passado como dote da filha do dono da editora, o Otales Marcondes. Sua filha casou-se com Ênio Silveira e levou o dicionário como dote. E o Ênio ficou com aquela mina na mão. Até então era o dicionário que mais vendia no país. Voltemos um pouco na história. Esse dicionário foi apresentado ao Otales em 1934 por Hildebrando de Lima, alagoano irmão do poeta e médico Jorge de Lima. Hildebrando fez o dicionário e levou para Otales, que tinha sido o administrador da editora que o Monteiro Lobato criou. Só que o Monteiro Lobato era um incompetente administrador tal como eu fui e sou. Nisso eu me nivelo com ele: na incompetência administrativa, gerencial e financeira. Mas o Otales, que era um homem do comércio, propôs a Hidelbrando que Gustavo Barroso, que tinha nome, fosse chamado para se incorporar ao dicionário, que saiu no nome dos dois. A equipe era grande. Um deles era Manuel Bandeira, encarregado de brasileirismos e da coordenação. Muito míope, Bandeira desistiu e o Otales convidou Aurélio. Como não tinha formação como Houaiss, mas lhe sobrava sensibilidade para a matéria língua, Aurélio começou a mexer no dicionário, a criar, a botar os brasileirismos e o dicionário frutificou com ele ali. Foi a partir dessa experiência que houve o acerto com O Cruzeiro para o dicionário em fascículos.
ZONA SUL – O senhor também criou a Editora Alhambra...
CAMPELO – Eu tive a fortuna de na vida criar uma coisa muito profunda e importante: amizades. Criei amigos. Alguns deles me deram dinheiro a fundo esquecido e perdido para eu fazer o dicionário. Quando o dicionário saiu, ganhei um dinheirinho e criei a Alhambra. Editamos livros notáveis.
ZONA SUL – Ganhou dinheiro com a Alhambra?
CAMPELO – Não. Editora é um cristal, é uma coisa delicada, pode quebrar fácil. Editora só ganha dinheiro quando se cria um fundo editorial e quando não se edita para si mesmo. Eu tinha a visão dupla do mercado. Eu queria editar horóscopos para ganhar dinheiro e poder sustentar o que eu queria editar pra mim. Arrolo na Alhambra três ou mais momentos dos quais realmente me orgulho. As publicações de Imagens do inconsciente, de Nize da Silveira, de História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux, e de O século do cinema, de Glauber Rocha. Fui editor desses três. Eu pus os bons livros desses caras pra fora. Editei também livros de alta classe de autores como Tchekov, Mark Twain, Gogol, Andreiev e Tolstoi. Isso tudo eu editei na minha editora, mas aí a Alhambra também feneceu.
ZONA SUL – Atualmente o senhor é vice-presidente do Conselho Editorial do Senado. Como está sendo a experiência?
CAMPELO – Esse trabalho me dá oportunidade de repor no mercado livros esquecidos que não despertam nenhum interesse do editor comercial. O interessante é que apesar de termos 81 chefes, os senadores, a ingerência política é pequena ou até nula. O fato de eu ser discreto, de não procurar brilho ou faturar presença e tal, contribui para isso.
ZONA SUL – Indique umas três ou quatro publicações do Senado para o leitor do Zona Sul adquirir através do site http://www.livrariasenado.com/ . É bom lembrar que o frete é grátis e os livros são vendidos a preço de custo.
CAMPELO – Olha, três ou quatro todas. A resposta é essa. Tenho muito orgulho e vaidade do que estou fazendo. Tenho a mania de eu mesmo ir para o espelho e cuspir em mim. Claro que se for deixar o cuspe lá, vai roer tudo aquilo. O cuspe sai aqui pesado de ironia, sarcasmo e tal. É uma maneira de eu não querer me elogiar. Não é por eu estar na minha presença, mas o caso do Dicionário eu não cheguei a dizer porque o repórter já vem com uma pauta...
ZONA SUL – Eu não trouxe pauta nenhuma. Apenas uma folha em branco para tomar notas durante a conversa.
CAMPELO – E você ainda discute? Não vou dizer mais a coisa mais importante sobre o dicionário Aurélio, suspendi.
ZONA SUL – Se não quiser, não diga...
CAMPELO – Não diga coisa nenhuma! Você ficou interrompendo. A modéstia me impede de dizer... Mas vou dizer, pronto.
ZONA SUL – Então fale.
CAMPELO – Como é difícil fazer esse cara calar... Escuta, Roberto, é o seguinte: sucesso editorial como o Dicionário Aurélio não houve no século XX. Pouca gente sabe, mas a existência física do dicionário - lombada, corte papel, letras e tal – deve-se a quatro fatores concretos e um abstrato, todos fundamentais. 1) O nome, a importância e o saber de Aurélio. 2) A equipe que fez com ele, aprendeu com ele e mexeu com ele. As virtudes de cada um, independentemente dele, somaram em benefício da obra. 3) Não é por eu estar na minha presença, mas minha participação determinada, aguerrida, aberta, tinhosa e mais do que fiel, leal. 4) O superintendente da Nova Fronteira, Roberto Correia, que bancou. Esses foram os fatores concretos. O fator abstrato que deu força para esse superintendente bancar o sonho que estava sendo criado foi o livro O exorcista ter se transformado em best seller. Essa publicação rendeu muito dinheiro à editora, o que permitiu a conclusão do dicionário. A conclusão disso é que independentemente da santice do nosso grupo, o dicionário teve a contribuição, a participação de Deus e do diabo, via O exorcista.
ZONA SUL – Se fosse comprar hoje um dicionário, compraria qual?
CAMPELO – Compraria os dois.
ZONA SUL – Se o dinheiro desse apenas para um?
CAMPELO – Compraria o Aurélio por aquilo que eu falei: é ecumênico, abrangente, simples e é povo. O Aurélio tinha o talento de comunicar-se, de ser povo. Antônio Houaiss era elite.
ZONA SUL - Como foi sua aproximação com o ex-presidente e hoje senador José Sarney?
CAMPELO - Fomos colegas no Maranhão, no ginásio. Ele é mais velho do que eu um ano. Estudamos na mesma escola. Reencontramos-nos no Rio de Janeiro, ele como deputado e eu como jornalista. Sarney sempre procurava a nós, contemporâneos dele. Quando se elegeu governador do Maranhão, procurou os antigos companheiros para ajudá-lo. Contribuo com ele na área intelectual, literária. Nunca fui solicitado para a área política, não que eu fuja, mas ele nunca me procurou.
ZONA SUL – Ele deve ter outros amigos para esse tipo de tarefa.
CAMPELO - É. Esses políticos bons, autênticos e sensíveis - como Sarney e Antonio Carlos Magalhães - sabem a quem recorrer pra esta ou aquela missão.
ZONA SUL - O senhor trocou o Rio por Brasília quando Sarney assumiu a Presidência da República?
CAMPELO - Eu ia para a vice-presidência, que foi para onde o Sarney foi eleito. Após a eleição, ele foi ao Rio e me convidou para o cargo de assessor. Com a morte de Tancredo Neves ele, que ia para a Vice-Presidência, pulou para a Presidência e eu, que ia ser assessor do vice-presidente, virei assessor de presidente.
ZONA SUL - Como foi essa experiência?
CAMPELO - Eu trabalhei, só. Trabalhei pra ele, com ele, por ele e pelo Maranhão. Lá vi como existem os enganadores, os espertos... Todos são politicamente bem equipados. Eu vi ali as qualificações das pessoas. A proximidade com o poder lembra aquela história dos animais predadores. Existem muitas rêmoras que vão junto com os predadores para pegar as migalhas que caem. Esses são terríveis.
ZONA SUL – O senhor tem uma paixão por azulejos...
CAMPELO – Eu colecionei palavras no Dicionário de Aurélio; amigos, que são os que tenho e azulejos. Colecionei três coisas. Não colecionei angústias, não colecionei sorrisos, não colecionei olhares. Esses ficam comigo, não como coleção. A coleção eu exibo.
ZONA SUL – O senhor acaba de dar o título da entrevista: O colecionador de palavras, amigos e azulejos.
CAMPELO – Gostei. Minha coleção de azulejos vou doar à cidade de São Luís. O senhor prefeito já está preparando um museu. Tenho cerca de 5 mil peças. Não vou dizer que eu deva ser o grande colecionador de azulejos, mas tenho uma coleção expressiva.
ZONA SUL – Como a coleção foi iniciada?
CAMPELO – Tem origem no Maranhão. Um amigo chegou pra mim e disse que tinha uma grande coleção de azulejos. Eu disse que não me interessava. Ele disse que tava vendendo e que tinha tudo a ver com o Maranhão. Ele foi no ponto. Fui ver e fiquei com a coleção. Coleção é vírus: depois disso fui atrás de azulejos, azulejos, azulejos, azulejos...
ZONA SUL – Em quanto está avaliada sua coleção?
CAMPELO – Não tenho a menor idéia. O que eu ponho na vida eu não contabilizo, seja dinheiro, seja... Só contabilizo as coisas abstratas.
ZONA SUL – O senhor tem uma ligação forte com o Rio Grande do Norte, que e a sua esposa, a Margarida.
CAMPELO – Seu sobrenome é Patriota. Nilson, Nélson são todos primos do pai dela, o Antonio. A família é oriunda de São José do Egito. Tem cantadores, poetas populares... Ela é uma escritora, está dentro do sangue dela esse viés.
ZONA SUL – O senhor já criticou alguma obra dela?
CAMPELO – Não tenho competência pra criticar, e muito menos a obra dela, que é de alta qualidade. Margarida foi professora de literatura francesa na UnB até dois anos, quando se aposentou. Ela fez doutorado em Indiana e morou no Canadá alguns bons anos. Já 25 livros publicados e sete prêmios literários conquistados.
ZONA SUL – Como o senhor a conheceu?
CAMPELO – Ela foi editar um livro através de um amigo meu, dono de uma gráfica, que a conhecia. Ele falou que quem cuidava dos seus livros era eu. Ela me procurou e levou um original. Era o originalíssimo de um livro, Mafalda Amazona, que eu editei com a grife Alhambra, que não existia mais. Foi assim que a conheci. Ela teve a felicidade de me conquistar.
ZONA SUL – O jornalista Carlyle Madruga vai fazer uma pergunta para encerrar.
CARLYLE – Eu teria duas perguntas a fazer ao mestre Campelo. Certa feita ouvimos o senador Sarney dizer que, na época dele como presidente, não assinava nenhum documento sem o crivo de duas pessoas: do doutor Saulo Ramos e do professor Joaquim Campelo. É verdade?
CAMPELO – Eu cuidava fundamentalmente do discurso dele e das coisas que ele considerava importante e me mandava. Dizer que eu lia tudo o que ele assinava é abrangente de mais. Por exemplo: o presidente da República tem que assinar as leis. Isso aí não vinha pra mim. Como eu iria dizer que aquilo poderia ser escrito de outro jeito? Quando o Código Penal foi modificado sob a batuta do ilustre, notável e maravilhoso homem que só honrou o Senado, o Josaphat Marinho, ele me pediu para ler. Alguém sugeriu a ele, eu desconfio que foi o senador Antonio Carlos Magalhães. Eu até fiz algumas sugestões, mas não adiantou porque já foi no fim do processo. Tem muita coisa que eu acho que está mal dita, está dita mal, de maneira ruim para a compreensão. Tem muita coisa coloquial, que deveria estar no cânone da sintaxe, da língua culta. Devia alterar, mas aí teria que ser necessária nova votação.
CARLYLE – A palavra ex-ofício está grafada diferentemente no Aurélio e no Houaiss. Aurélio grafa com hífen e Houaias sem hífen. Qual das duas formas está correta?
CAMPELO – Depende. Se ela está em emprego substantivado, deve ser com o hífen. Se não está, é sem hífen. É só a gente ler o contexto e ver. Acho que no momento de registrar como um verbete independente, deve estar com hífen.
ZONA SUL – Por que tem tanta gente que fala héterossexual?
CAMPELO – Porque ignoram. É heterossexual. Diz-se muito, mas está errado. Dizem porque ignoram. É no sentido ignorante não pejorativo. Porque não sabem. Os veículos de comunicação audiovisuais, ou seja, a televisão, porque quando a gente escreve o cara pode ler hétero ou hetero. Mas ali na tela da televisão é que é importante que aja a verdade. Data de bons 30 ou 40 anos, a propósito daqueles desenhos de publicidade de governo de caráter educacional, a propósito de livros que se distribuíam. Tinha o Sujismundo. Foi governo Figueiredo. Rapaz, o tal do gratuíto estava solto. Foram gravados comerciais do governo com o tal do gratuíto.