segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Entrevista: Júnio Santos

AS ALEGRIAS E OS CAMINHOS TENEBROSOS DE JÚNIO

Desde que Júnio Santos trocou o RN pelo Ceará, só o vi duas vezes. Ambas em Mossoró. Na primeira delas, quase não nos reconhecemos. Mesmo assim, a alegria foi imensa. Nessa última, durante a Feira do Livro da cidade, não perdi a chance de entrevistá-lo. E foi ótimo perceber que ele continua em ótima forma. Durante a conversa, quando ele classificou o artista como “livro que anda”, fui obrigado a concordar de imediato, depois de ouvi-lo contar tantos fatos de sua vida. Júnio é mesmo um livro que anda, fala, conta, canta, interpreta, mostra e prende a atenção de qualquer um. Experimente, caro leitor, navegar pelas alegrias e também pelos caminhos tenebrosos do grande ator potiguar Júnio Santos. (Roberto Homem)

ZONA SUL – Qual o seu nome completo?
JÚNIO – Meu nome completo é um nome que, desde menino, eu pouco tenho usado. Uma vez perdi um vôo porque chamaram pelo meu nome e eu não lembrava mais que aquele era meu nome. Meu nome completo é o nome do meu pai: João Batista dos Santos Júnior. Mas logo cedo começaram a me chamar de Júnio Santos. Sou Júnio Santos de um batismo informal.
ZONA SUL – Onde você nasceu?
JÚNIO – Nasci em Natal, na Avenida 7, na Vila Naval. Meu pai era militar, sargento da Marinha, além de pastor protestante. Nasci com a velha Mãe Toinha, que era a grande parteira da região.
ZONA SUL – Você teve formação evangélica?
JÚNIO – Minha infância foi toda dentro de igrejas. Tive um programa na antiga Rádio Trairy. Chamava-se Vencendo vem Jesus. Era transmitido todos os sábados, às 6 da manhã. Eu tinha 13 anos, na época, e já fazia culto na igreja. Eu tocava violão, minha mãe tocava acordeom e meu pai cantava. Meu avô tocava violão e meus irmãos são todos músicos. Tenho um irmão regente de coral em Natal, o Isaque. Passei muito Carnaval em retiro, por exemplo. Um dia, quase por um acaso, peguei um livro e fiquei curioso em saber o que era filosofia. O estudo da filosofia tinha saído de dentro das escolas, era proibido. O livro era simples, quase uma história em quadrinhos. Falava de questionamentos como: de onde você vem, pra onde você vai, o que lhe rege, o que é a natureza... Passei a ter uma compreensão maior do que a compreensão minimizada que o Evangelho prega: aquela salvação que não é nem terrena e que você não consegue vislumbrar como ela vai ser. A partir dali comecei a perceber, e, percebendo, entrei no PCB, o Partido Comunista Brasileiro.
ZONA SUL – Isso foi em qual ano?
JÚNIO – No início dos anos 70. Nasci em 1955. Em 1970 eu tinha 15 anos. O PCB estava totalmente na ilegalidade. Por trás de onde hoje é o Memorial Câmara Cascudo, funcionava o Instituto Luís Maranhão. Lá era desenvolvido todo um trabalho de formação. Junto com Serginho Dieb, Hermano, Carlos Furtado e outros, formamos a primeira base de artistas dentro do partido.
ZONA SUL – A arte surgiu pela primeira vez na sua vida na forma de música?
JÚNIO – A música já vinha de nascença. Mas eu era fujão. Era para eu hoje ser um grande músico. Mas nunca aceitei aquela forma de educar usando a obrigatoriedade. Um dia meu pai viajou e comprou uma pianola, que era mais simples que o piano. Ela vinha com os nomes das notas nas teclas. Passei a exercitar ali. Mas eu fugia pra bater bola. Eu queria jogar futebol, e não tocar. Hoje me arrependo um pouco por não ter tido o afinco que meus irmãos tiveram. A música rege todas as outras artes, já nasce com o ser humano. As outras artes surgiram depois, a música nasceu com o mundo.
ZONA SUL – Como seu pai, evangélico e militar, encarou seu afastamento da Bíblia e a aproximação com o PCB?
JÚNIO – Houve uma ruptura, uma quebra nos valores familiares. Lá em casa somos seis homens e duas mulheres. Eu, como filho mais velho dos homens e carregando o nome do meu pai (que é um peso danado), era para ter sido o substituto dele como pastor. Aprendi a ler na Bíblia, que é um livro lindo, talvez um dos mais bem escritos do mundo. Mas, por outro lado, havia a figura do meu avô: Luiz Pereira Lucena. Era conhecido como Bizá. Foi motorista do Correio Aéreo Nacional, o CAN, e era um teólogo, apesar de nunca ido a uma faculdade de Teologia. Tinha um conhecimento bíblico fantástico. Ele me dizia que quando eu lesse um versículo, procurasse no dia seguinte lê-lo de novo, porque todas às vezes eu ia entender diferente, por não ser mais aquela pessoa de ontem. Na verdade, meu avô foi meu pai. Na hora em que rompi com meus pais, fui morar com meus avós.
ZONA SUL – Você rompeu com seus pais logo que se filiou ao PCB?
JÚNIO – Minha primeira saída de casa foi muito cedo. Eu tinha uns 14 anos. Fui embora pro Piauí. Só meu avô sabia. Ele foi quem me botou em um avião que descia em Parnaíba. De lá eu tinha que pegar um ônibus para Teresina. No caminho conheci uma senhora, dentro do avião. Fomos conversando, e ela me levou para sua casa.
ZONA SUL – O que você foi fazer no Piauí?
JÚNIO – Na época em que moramos em Recife - meu pai foi pastor por lá - tínhamos um programa na Rádio Relógio. Começava às 18h20min. Antes, às seis da tarde, passava a Hora do Ângelus, da igreja católica. O padre que apresentava se apaixonou por minha irmã. Eles fugiram, casaram e foram morar em Teresina. Então, eu tinha essa referência: minha irmã era casada com um ex-padre e morava em Teresina.
ZONA SUL – Piauí, então, virou mapa para fuga familiar...
JÚNIO – Mas, lá fui para a casa dessa senhora que conheci no avião. Fui para sua casa porque só tinha ônibus para Teresina três dias depois. Quase fiquei por lá mesmo! Mas depois três dias fui embora para Teresina. Foi lá, na escola, que comecei a brincar pela primeira vez com teatro. Já tinha feito, na igreja, teatro religioso. Mas não era o ritmo que eu queria e adorava: a questão da comicidade, das comédias picantes e tal. Depois de um ano fui passar o Natal em casa e me proibiram de voltar para Teresina.
ZONA SUL – Qual foi a justificativa?
JÚNIO – Foi o meu primeiro amor. Eu tinha 15 anos e ela tinha 35. Minha irmã ligava dizendo que a mulher estava jogando bilhetes perfumados por baixo da porta, essas coisas todas. Fiquei em Natal, mas não morando na casa do meu pai, fui para a Casa do Estudante. Como eu não podia morar lá, pois não era do interior, ficava num quartinho que tinha sido dos Escoteiros do Mar - ali no Paço da Pátria - junto com outras pessoas que não tinham conseguido vaga na Casa. Pra compensar alguma coisa, eu lavava louça nos finais de semana.
ZONA SUL – E você estudava onde?
JÚNIO – Nesse período eu estudava no Instituto Padre Miguelinho. Passei a assistir os ensaios do grupo de teatro do colégio e depois aderi a ele. Nosso primeiro desafio foi tremendo: montamos uma peça chamada O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Foi minha estréia. Tinha havido uma enchente muito grande em Jucurutu. O povo tava desabrigado. O espetáculo foi uma forma de arrecadar recursos e alimentos para a população.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – Por volta de 1971. Mas a estréia mesmo no teatro, de forma profissional, foi em 1973, quando eu já era do Teatro Infantil Jesiel Figueiredo. Natal, naquela época, basicamente tinha três grupos de teatro. Todos eles, de uma forma ou outra, estavam ligados a alguma instituição. O Tonus (Teatro Novo Universitário), com direção de Carlos Furtado, era ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O Teatro Jesiel Figueiredo, mesmo sendo independente, tinha ligação com o SESI. O Racine Santos, com o Tablado Nordestino, tinha o apoio da Fundação José Augusto. Ismael Mendes, que estudava comigo no Padre Miguelinho, convidou-me para fazer um teste no Teatro Jesiel Figueiredo. Depois daquele teste entrei pra fazer o espetáculo infantil.
ZONA SUL – Qual foi a peça da sua estréia profissional?
JÚNIO – Estreei profissionalmente no Teatro Jesiel Figueiredo. Lá tinha cachê em todos os espetáculos. O Jesiel marcou a história do teatro no Rio Grande do Norte, ninguém pode negar. Foi uma das figuras mais importantes do teatro potiguar. Através dele nosso teatro rompeu as fronteiras do estado. Depois, aproveitamos essa porta aberta para levar uma outra proposta teatral pra fora. Jesiel é de um período onde havia uma discriminação muito grande. O pai de Jesiel, Josué, também era protestante da mesma igreja do meu pai. E ele tinha um irmão, Jessé, casado com uma tia minha. No Teatro Jesiel Figueiredo a gente tinha horário de trabalho, tinha que ser pontual. Os espetáculos começavam às cinco da tarde e todos tínhamos que chegar às duas. De manhã a gente tinha que ir ao cabeleireiro, tinha que fazer todo o processo que um ator faz. O teatro infantil era feito com qualidade. A primeira peça que fiz foi O pequeno polegar. Meu tamanho já me credenciava a ser o ator principal. Fiz uma média de três ou quatro espetáculos infantis nesse período de um ano. Foi muito importante para a minha manutenção como ser humano. Comecei a ter uma independência com 15 anos de idade, através da arte, do teatro.
ZONA SUL – E depois do Jesiel Figueiredo, o que você foi fazer?
JÚNIO - Surgiu o Sistema de Teleducação do Rio Grande do Norte, o Sitern, na TV Universitária (TVU). Houve um concurso, me inscrevi nele. A nata do teatro do Rio Grande do Norte participou. Por ser muito jovem, achei que não passaria, mas passei. Tinha 18 anos. Lá fiz minha estréia em um espetáculo para adulto, A derradeira ceia, dirigido pelo Carlos Furtado. O resultado não foi interessante. Representei o filho de um coiteiro de Lampião. Veio então a criação do Expressão, grupo de teatro da TVU. Montamos O assalto, texto de suma importância para o teatro brasileiro naquela época. A obra era de um mineiro chamado José Vicente, e a direção foi de João Batista Campanholi. Com a peça ganhei meu primeiro prêmio, como ator coadjuvante, no Festival de Ponta Grossa, em 1978. Tem uma cena muito legal: eu fumava e tirava a roupa. Mas o censor proibiu a tirada da roupa. No espetáculo entrei com uma cueca branca. O iluminador, Carlinhos Meireles, aumentava a força da luz e era o mesmo que eu estar nu. Também tinha uma cena de beijo com outro homem, que era o Maurício Pandolphi. Imagina que meu pai foi me assistir pela primeira vez nesse dia...
ZONA SUL – Qual foi a reação dele?
JÚNIO - Ele só não saiu do teatro porque minha mãe segurou. Ela, como a maioria das mães, era minha tiete de primeira grandeza. Já era ela quem me incentivava, fazia das minhas fotografias quadros para colocar no seu quarto. O lado artístico dela, nessa hora, falava mais alto que o evangélico. Ela segurou meu pai, explicando que aquilo era arte, era teatro, não sei o que.
ZONA SUL – Naquela época os atores sofriam muito preconceito...
JÚNIO – Quem fazia teatro ou dança era considerado drogado ou homossexual - na época nem usavam esse termo, mas um tratamento pejorativo mesmo. Isso nos acompanhou por muito tempo. Quando o ator dizia que fazia teatro, seu interlocutor o olhava com uma cara assustada. Hoje vejo essa ruma de menino fazendo teatro e dizendo com o maior prazer que é ator. As pessoas já entendem a arte como uma profissão tão importante quanto às outras.
ZONA SUL – Como foi seu trabalho na TVU?
JÚNIO – Fizemos programas infantis, para sala de aula, que iam para a zona rural. Foi um dos primeiros processos de educação à distância que apareceram no Brasil. Meu personagem era o Palhaço Bolão, que em pouco tempo virou a sensação da meninada. Gravávamos muito, em um ano fizemos 160 programas. Comecei com Português, depois entrei na Matemática. A força da televisão dava uma resposta muito positiva. Montamos uma caravana, em cima de um caminhão, pra percorrer os sítios da área que a TV abrangia. Foi um momento, na minha carreira como ator, de me sentir muito reconhecido pelo público. Só que tivemos alguns problemas de ordem política dentro da TVU.
ZONA SUL – O que aconteceu?
JÚNIO - Na campanha salarial de 1979, fizemos uma greve. No final de toda essa peleja, desse período em que nos recusamos a gravar programas, dois foram demitidos da TV Universitária: eu e a atriz Quinha Costa, que hoje está na Holanda. Saímos já em 80 e no mesmo ano fui convidado por Racine pra integrar a equipe do Tablado Nordestino. Fiquei até 82, quando fui para um grupo de Petrópolis chamado MIJO (Movimento de Integração Jovem). Era ligado à igreja católica. Lá conheci muitas figuras que marcaram minha vida, entre elas Jorge Romano Neto, hoje arquiteto, que depois me convidou montar um espetáculo chamado O troco, de um autor chamado Domingos Pelegrini Júnior. Rodamos bastante com ele, fomos a Recife, Aracaju...
ZONA SUL – Qual foi o próximo passo nessa sua vida inquieta?
JÚNIO – Passei a pensar que eu precisava ter um grupo. Até aquele momento eu vinha passando por grupo e participando de montagens dos outros. E percebi que havia uma brecha, dentro do Rio Grande do Norte, para fazer uma forma de teatro que não se fazia até então. Como coordenador de alguns festivais no Teatrinho do Povo, o Teatro Sandoval Wanderley, vi que o sonho dos meninos da periferia era um dia se apresentar no Teatro Alberto Maranhão. Imaginei um teatro que não precisasse do Teatro Alberto Maranhão, que não precisasse de palco ou luz. Necessitasse apenas de uma praça e de ter gente ao redor pra assistir. Nessa época fui assistir um grupo chamado Imbuaça, em Aracaju, que fazia teatro de rua. Mas eles trabalhavam só com cordel. Também conheci o Amir Haddad, que já trabalhava seu teatro inquirindo as pessoas sobre determinadas questões. Augusto Boal também já tinha sua forma de trabalhar. Então busquei uma forma papa-jerimum de fazer teatro. Dessa forma criamos o Alegria Alegria.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – O início foi em 1981, mas somente em 1983 o Alegria Alegria surgiu de fato. Em 1981 promovemos a primeira oficina de palhaço no Teatro Sandoval Wanderley. Fizemos o primeiro cortejo de palhaços, saindo do Alecrim até o Centro da cidade, em cima de uma carroça. Em 1983 entramos na campanha das Diretas Já. Estabelecemos uma relação com os sindicatos. Passamos a ter uma aproximação muito forte com o Sindicato dos Bancários e fizemos várias lutas sindicais. Depois passamos a trabalhar com o Sindicato dos Comerciários e o Sindicato da Limpeza, com o hoje vereador Fernando Lucena. Começamos a operar junto do meio sindical, ocupando uma brecha que ninguém tinha utilizado antes. Antes de nós, já se fazia teatro de rua no Rio Grande do Norte. Nas Quintas, na Rua Baraúna, no final dos anos 70, tinha um espetáculo chamado Dona Baraúna vai à prefeitura. Mas era esporádico e não era exclusivamente teatro de rua. Eles também encenavam nos centros sociais, nas comunidades. O Alegria Alegria foi, de fato, o primeiro grupo a se instalar como teatro de rua. Pra isso a gente teve que ser radical. Definimos que éramos teatro de rua e, portanto, éramos contra o estilo tradicional. Hoje, lógico, somos a favor de todos os teatros. Mas pra gente pegar o número de pessoas interessadas, entramos na radicalização mesmo.
ZONA SUL – Qual foi a primeira encenação do Alegria Alegria?
JÚNIO - Aproveitamos um texto do Racine Santos chamado As aventuras de Pedro Malasartes pelos caminhos tenebrosos do sertão. Pedi a Racine para mudar o final, que no original era um Pastoril. Trocamos por um Boi de Reis. O Boi Calemba é uma coisa muito forte. Além de encenar na rua, nosso teatro diferia do outro por não usar maquiagem. O único ator que pintava o rosto de preto era o Alex, porque as Caterinas são feitas por homens que pintam o rosto de preto. Todos os demais atores não usavam maquiagem, era cru. As roupas também eram simples, não tínhamos bagagem. Era só a calça e a camisa.
ZONA SUL – Dessa forma o custo era bastante reduzido...
JÚNIO – Sim. Fomos uma vez fazer uma campanha do Sindicato dos Cortadores de Cana, em Ceará Mirim, todos os sete atores dentro de um fusca. A bagagem maior que tinha era um boi de espuma, feito por João Marcelino. Ele podia ser dobrado todinho e cabia na mala do fusca. Apesar disso, por mais simples que nosso figurino fosse, só aquelas palas, com as cores que a gente chegava, e o boi, já chamavam atenção de todo mundo. A gente tinha pensado em toda essa praticidade. Era um espetáculo de praticidade.
ZONA SUL – Desde o princípio a recepção do público foi boa?
JÚNIO – A nossa estréia já foi maravilhosa, na Praça Kennedy, que antigamente chamava-se Praça da Cocada. Quando terminamos, o povo tava ali junto, querendo saber quando ia ter de novo. Reunimos-nos e definimos que toda quarta-feira faríamos espetáculo no mesmo canto. Nos outros dias estávamos livres para vender a apresentação ou fazer o que quiséssemos. Quando não estivéssemos na cidade, avisaríamos com antecedência que naquela quarta não haveria espetáculo. Quando construíram o Calçadão do Grande Ponto, passamos pra lá. Toda quarta, às cinco da tarde, abríamos a roda ali, com o mesmo espetáculo. Chegou um momento em que estávamos comemorando 500 apresentações do Pedro Malasartes. Só lá naquele local, a gente tinha feito 200. Quase a metade.
ZONA SUL – A imprensa desde o princípio recebeu bem o Alegria Alegria?
JÚNIO – Recebeu, apesar de, como a gente fazia teatro de rua, temos colocado na cabeça que a imprensa tinha que vir a gente. E começou a imprensa a vir. Aparecia sempre um jornalista pra fazer matéria. O Vicente Serejo sempre mandava alguém, a Tribuna do Norte, também. Tínhamos acesso também à coluna de Woden Madruga, que era super-lida. Ele nos cedia espaço para divulgarmos o que quiséssemos. Porém, tinha alguns segmentos da imprensa, alguns jornalistas, que passavam e nem olhavam. Poucos jornalistas discutiam arte, naquele tempo. Diferente, por exemplo, de Rogério Cadengue, que dentro da UFRN, brigava para que os jornais dessem espaço. Estreamos sem material, sem nada. Só com o boi que a gente tinha feito. Em seguida vendemos 10 espetáculos à antiga Secretaria de Turismo e Cultura - que tinha Gileno Guanabara como secretário - em troca do material. O Toinho Silveira também foi uma figura importantíssima. Ele nos deu o prêmio de destaque do ano, em sua coluna. Fomos para a famosa festa que tinha no 1001 Noites. Não pudemos entrar porque não tínhamos smoking. Só entramos na hora de fazer a apresentação. Tudo isso fez com que passássemos a ter um espaço que até então nenhum outro grupo do teatro tinha.
ZONA SUL – Isso provocou muitos ciúmes?
JÚNIO – Algumas pessoas se afastaram e passaram a nos olhar de forma diferente. Em compensação outras figuras se aproximaram mais ainda. O Chico Villa, que já faleceu, foi diretor nosso em um espetáculo. O João Marcelino sempre estava nas rodas assistindo nosso espetáculo. Mas não tínhamos muito essa preocupação. Sabíamos que não estávamos fazendo um espetáculo para a classe, nem para a crítica, mas para o povo. Fiquei feliz porque passei a ser um dos caras mais conhecidos daquela região ali. Eu morava na Princesa Isabel, e às vezes, quando passava, era reconhecido até pelos mendigos. E eles não me pediam esmolas, mas perguntavam quando seria o próximo espetáculo. Eu chegava a uma sapataria na Doutor Barata e era atendido com uma rapidez muito grande. Uma vez fui comprar um sapato e um dos vendedores falou: “eu gosto muito do espetáculo, mas esse horário não é bom pra gente que trabalha no comércio. Vocês começam às cinco, a gente fecha às cinco e meia e ainda tem que arrumar as prateleiras todas. Quando a gente chega, só vê o final”. Mudamos o horário pras seis horas, para atender nosso público.
ZONA SUL – Qual o espetáculo do qual você participou que mais obteve sucesso?
JÚNIO – O que mais marcou, não diminuindo os outros trabalhos, foi O assalto. Mas só fizemos quatro apresentações, três em Natal e uma no Paraná. Ele marcou muito na minha educação como ator. Agora, o trabalho que mais tempo ficamos em cena e que mudou de alguma forma uma história, foi As aventuras de Pedro Malasartes pelos caminhos tenebrosos do sertão. Eu fiz 1.462 vezes o mesmo personagem, o Pedro Malasartes. A partir desse espetáculo, as portas do interior do Rio Grande do Norte se abriram pra mim. Comecei a ver o quão gostoso é o sertão. E as oportunidades começaram a surgir. Filhos de agricultores em Lagoa Nova formaram um grupo com a bandeira de construir uma casa de farinha. Fomos convidados pra trabalhar com eles. Fomos. Depois apoiamos grupos em Mossoró, Currais Novos e outras cidades. As O mercado de trabalho na área foi ampliado. Tanto que logo em seguida saí da Fundação José Augusto sem nenhum trauma.
ZONA SUL – Como foi sua passagem pela Fundação José Augusto?
JÚNIO – Começou com uma tentativa de dar um viés democrático a cultura, logo no início do governo Geraldo Melo. Porém, talvez por não estarmos na época acostumados com essa primeira abertura democrática, algumas coisas sujaram o processo. Vou explicar melhor. Foi feita uma eleição pra escolher o diretor do Teatro Alberto Maranhão. Em uma reunião na Academia de Letras, eu e a Diana Fontes fomos definidos como candidatos. Depois o Racine lançou o nome dele também. Eu tinha sido presidente da Federação de Teatro durante dois anos. A Federação estava no país todo e tinha algumas realizações muito fortes no Rio Grande do Norte. Ela me indicou para ser diretor do Teatro. No dia da eleição, foi mobilizada uma verdadeira máquina eleitoral. Era ônibus e kombi chegando cheia de gente. Não havia um cadastro de artistas, ninguém tinha uma carteira ou um documento provando que era artista. Qualquer pessoa chegava lá e votava. Perdemos para Diana Fontes, se não me engano, por 10 ou 12 votos. Apesar disso, ela assumiu o teatro com o nosso apoio. O Chico Alves, que estava na Fundação, uma indicação de Woden Madruga, ofereceu a mim, como segundo lugar, o cargo de chefe do Núcleo de Artes Cênicas, que juntava o Circo da Cultura e o teatro.
ZONA SUL – Qual sua principal contribuição ocupando esse cargo?
JÚNIO - O nosso processo lá foi de rompimento, de tirar a Fundação de uma atuação só metropolitana e levá-la para o interior. Estabeleci convênios com Caicó, Currais Novos, Mossoró, Macau... Uma cidade que pouca gente conhecia, Janduís, perdida lá no sertão, estava vivendo uma efervescência cultural tremenda, principalmente na área da poesia. Foi até tema de matérias em Veja e no Globo. Fui conhecer e me encantei pelo trabalho, até hoje sou janduiense adotado. Minha passagem pela Fundação teve o objetivo de criar a possibilidade de interiorização.
ZONA SUL – Por que você saiu do Alegria Alegria?
JÚNIO – Eu ainda estava na Fundação José Augusto quando, em 1991, surgiu o Movimento Popular Escambo Livre de Rua, que integro até hoje. Fizemos um encontro de três dias em Janduís, onde cada artista levava o seu próprio alimento e lá socializava com os outros, enquanto fazíamos arte. Além disso, realizávamos produção artística. Visitávamos as pessoas procurando saber o que elas podiam oferecer a um grupo local. Levantamos roupas, bengalas, paletó, chapéu. O que era para ser uma experiência única transformou-se em várias. Outra cidade estava passando pelo mesmo problema e nós fomos até lá. Passei a dar uma dedicação muito grande ao Escambo. Quando José Agripino reassumiu o governo, Iaperi Araújo substituiu Woden Madruga na presidência da Fundação. Eu nunca fui muito de jogo político. Teve uma reunião da Fundação e lá foi colocado que a partir daquele dia todos tinham que vestir a camisa da Fundação. Eu disse que já vestia uma camisa que era a da arte. Eu tinha uma relação de respeito e de trabalho com Woden que não era a mesma com Iaperi. Eram outras pessoas que ele admirava e achava que seriam mais importantes naquele momento.
ZONA SUL – Mas, e a saída do Alegria Alegria?
JÚNIO – Eu saí do Alegria Alegria muitas vezes. Sou um eterno iniciante. Vou morrer iniciando. Já entrei em cursos, passo um tempo, depois saio pra começar outro. Com 10 anos de Alegria Alegria entrei no meu primeiro processo de crise. A gente já tinha uma estrutura muito legal. Quando começamos com o teatro infantil, a gente pagava um salário mínimo por mês aos atores. E tinha uma sede com geladeira, fogão, comida e lá se guardava a roupa. Eu estava me separando, praticamente morava lá. Quando o Alegria Alegria pegou um nome, a gente vivia em festivais fora. O grupo estava se preparando pro primeiro festival em Portugal, e eu estava em Janduís fazendo um trabalho e tive um desgaste político muito forte. Eu queria continuar fazendo um teatro comprometido com as lutas sociais, já que o movimento era de muita efervescência. Por outro lado tinha os interesses de profissionalização dos outros atores. De dar vôos maiores, de se firmar como artista, como grupo na cidade. Eu tava também passando do período da minha prisão. Tinha sido preso, um incidente que me levou a responder a um processo, em 1993.
ZONA SUL – Que incidente foi esse?
JÚNIO – Fomos fazer um espetáculo do Pedro Malasartes em frente ao Palácio do Governo. Era para o primeiro grupo de apoio aos aidéticos de Natal. O hospital que cuidava disso era o Gizelda Trigueiro e lá só tinha cinco leitos e o material ficava enrolado em jornal. Era um espetáculo de solidariedade, a gente não cobrava. Enfoquei esses problemas dançando com minha boneca. Quando fomos saindo, um carro da Polícia nos cercou e nos convidou para ir à Secretaria de Segurança. Éramos três pessoas. Como o João Pinheiro tinha um carro, um fusquinha, pedi que ele fosse até a sede do PT - o partido estava em reunião - e comunicasse que eu estava descendo pra Secretaria de Segurança. O Luis Humberto, que fazia o Xexéu comigo, me acompanhou. Doutor Maurílio Pinto estava sentado em uma cadeira quando entramos. Ele disse: “como é que pode, com tanta tristeza, se prender o Alegria Alegria?”. Ele aconselhou: “Júnio, evite fazer espetáculo no Palácio, têm algumas pessoas que não gostam disso, procure outra praça”. Nessa hora entrou Manoel de Brito, o secretário de Segurança, que estava em uma vaquejada em Macaíba. Ele entrou e nem conversou conosco. Foi citando cinco artigos pra nos enquadrar. Era atentado ao pudor, formação de quadrilha, perturbação da ordem pública, desacato à autoridade... O Maurílio ainda tentou conversar com ele, mas não teve jeito. Fomos para a Delegacia de Candelária. O delegado de lá era Buenos Aires, já falecido. Ele disse que não ia lavrar o auto porque aquela prisão era inconstitucional, já que a censura tinha acabado. Do lado de fora começou a chegar gente. A alegação era que tínhamos chamado o governador de Galega do Alecrim. Expliquei que, como artista de rua, como não vivia nos palácios, não tinha como saber o apelido do governador. Galega do Alecrim era a boneca com a qual eu dançava. Dormimos na delegacia, eu e o Beto. Ele armou a rede dele, eu botei um colchão no chão. No outro dia tinha um grande café da manhã oferecido por Fernandão, do PT com quem eu tinha tido problema. Numa montagem, ele tinha parado o espetáculo pra fazer um discurso político e eu tinha brigado com ele. Socializamos o café com os policiais e com os presos e de lá saímos para a primeira audiência. As testemunhas de acusação todas tinham sido arranjadas pelo Palácio do Governo, pelo Leônidas Ferreira, o chefe de gabinete. Na noite anterior tinha havido jogo em Natal e Júnior Baiano tinha dado murro num repórter. Ele pagou a fiança às 4 da manhã pra poder viajar com o Flamengo. Quando foram nos liberar eram 4 da tarde. Os bancos já estavam fechados pra pagar a fiança. Tive que conseguir um atestado de pobreza para não dormir de novo na cadeia. Ficamos respondendo processo. Na última sessão, na qual nem precisei comparecer, o promotor viu que a testemunha de acuação tinha todas as respostas anotadas em uma agenda. Eles criaram a testemunha e deram tudo por escrito. Fomos absolvidos.
ZONA SUL – A desilusão com essa prisão motivou a saída do grupo?
JÚNIO – Foi um processo doloroso ver um ato cênico de teatro, voltado pra um problema de saúde, se transformar numa polêmica toda dessa. Mas ao mesmo tempo nos deu mais coragem de continuarmos fazendo do nosso teatro uma arma também de denúncia. Por outro lado, essa história também forçou minha saída de Natal. Havia uma idéia de perseguição também. Foi no período em que o Centro de Direitos Humanos começou a denunciar os Meninos de Ouro de Natal. Um dos acusados tinha me prendido. Alguns de nós tínhamos que sair de Natal. Gonzaga foi pra São Paulo e eu saí para Icapuí. Fiz um trabalho interessante que depois a prefeitura assumiu. Criamos a Escolinha de Arte. Vivo por lá esse tempo todo. Contribuiu para minha saída também o fato de eu estar querendo criar um centro e não mais um grupo de teatro. Não queria continuar com a responsabilidade de montar espetáculos, mas ajudar pessoas que estavam sem condições de fazê-lo. Criamos o Centro Volante de Assessoria Teatral, que a gente chama de Cervantes do Brasil.
ZONA SUL – Como está sua vida hoje?
JÚNIO – Estou mais uma vez morando em Icapuí, continuo dentro do movimento popular Escambo Livre de Rua. São 17 anos e 24 realizações. Estou fazendo mestre de cerimônias de abertura de encontros do movimento popular, sem aquela formalidade. Tenho dito muito nesses encontros que o movimento popular – que hoje recebe muito recurso – tem que destinar uma parte considerável pra esse trabalho de arte. O teatro pode contar a história do movimento de uma forma muito mais viva do que uma palestra. Somos verdadeiros livros andantes. Os artistas são livros que andam, livros que falam, livros que cantam. Sem tirar a força do livro.