quinta-feira, 23 de junho de 2011

Entrevista: Flamínio Oliveira

A GINÁSTICA OLÍMPICA POTIGUAR NA NOVA ZELÂNDIA

Flamínio das Neves de Oliveira nasceu em Natal, na década de 1960. Estudamos juntos no velho Salesiano lá da Ribeira. Como muitos da nossa turma, concluímos o segundo grau preparados
para o vestibular, mas sem noção do que fazer da vida. Muitos daquela época ingressaram em um curso universitário e trocaram por outro no meio do caminho. Com Flamínio foi assim. Comigo também. No caso dele, o Rio Grande do Norte deixou de ter um arquiteto ou um administrador de empresas, mas o mundo ganhou um professor de ginástica olímpica e, mais do que isso, o formador de uma parcela dos jovens que construirão o futuro do planeta. Um dos principais nomes da implantação e divulgação da ginástica olímpica em Natal, Flamínio contribuiu para a educação esportiva de duas atletas potiguares que posteriormente trocaram Natal por Curitiba e chegaram à seleção brasileira. O próprio Flamínio alargou seus horizontes e hoje mora em Auckland, na Nova Zelândia, com sua esposa Denise e a filha Luna Blanco Oliveira. Aliás, Luna está tomando gosto pelo mundo da fotografia e já consegue expressar sensibilidade e competência nos retratos que faz. Quando a entrevista for publicada na Internet, três fotos dela estarão lá: uma mostrando um emaranhdo de barcos no porto de Auckland, outra mostrando o pai se servindo de uma iguaria culinária que não consegui identificar e a terceira, também com Flamínio como modelo, tirada em Rotorua, cidade onde a terra ferve a céu aberto. As fotos com Flamínio devem estar aqui no jornal impresso em papel também. A conversa com Flamínio Oliveira se deu através da Internet, com o auxílio da ferramenta Skype. Devido ao fuso horário – quando o relógio aponta 19 horas no Brasil, na Nova Zelândia já são 10 da manhã do dia seguinte – e às nossas obrigações profissionais, a entrevista foi realizada em dois dias. Ele contou sua vida, falou sobre a ginástica olímpica e revelou um pouco do estilo de vida do neozelandês. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Toda a sua família é de Natal?
FLAMÍNIO – Todos, com exceção do meu avô, o pai da minha mãe, que é alagoano. Quando nasci, minha mãe morava na Rua Lourival Açucena, em Tirol, perto da Avenida Afonso Pena. Hoje em dia têm uns prédios muitos grandes por lá, mas a casinha onde nasci ainda existe. Sempre que vou por aquela região, dou uma passada e lembro...
ZONA SUL – Do que você lembra? Quais suas primeiras lembranças?
FLAMÍNIO – Tento ficar com o máximo que consigo de memória. Sou meio nostálgico: gosto de ter as memórias, de ficar com a família, com os amigos e resgatar todas as informações e contatos que pude manter durante a vida. Nasci em uma sexta-feira de Carnaval. Se a vida me tivesse proporcionado oportunidade, eu teria sido carnavalesco. Meu pai foi dono de um bloco de carnaval chamado “Ases do Ritmo”. Ele, que ainda está vivo, graças a Deus, se chama Gilson Bezerra de Oliveira. Foi mecânico: um dos criadores da Selvagem. Era sócio da Oliveira & Neves, que depois se transformou na Selvagem. Seu sócio era Marcos Neves, meu tio, irmão da minha mãe. O nome da minha mãe é Maryzia das Neves de Oliveira. Graças a Deus ela também está viva. Meus pais moram em Parnamirim, em uma granja.
ZONA SUL – Você ia falar de algumas das recordações que guarda da infância...
FLAMÍNIO – Uma das coisas que lembro é quando íamos veranear na praia de Santa Rita. No caminho atravessávamos o Rio Pontegi por aquela ponte de ferro em Igapó. Quando vinha o
trem, tínhamos que aguardar. Comecei a ir para Santa Rita ainda bebê, no colo da minha mãe. Aquela ponte de ferro é herança dos ingleses. A Nova Zelândia foi colonizada pelos ingleses, têm algumas pontes parecidas. A diferença é que as daqui estão sendo preservadas. Aquela lá está se acabando, abandonada. As pessoas tiram pedaços para vender no ferro-velho.
ZONA SUL – Parece que, para a cidade, aquela ponte velha é mais um entulho do que um marco importante da história de Natal. Fale mais um pouco sobre a sua infância.
FLAMÍNIO – Minha mãe me contou uma vez que ficou muito surpresa quando - atravessando a Ponte de Igapó - eu ouvindo aquele barulho do carro passando por aquelas divisões que tinham no chão da ponte, comecei a dançar no colo dela. Mesmo criança eu já demonstrava receber alguma influência do ritmo. De repente vem desde esse tempo o envolvimento com a ginástica olímpica e até com a dança. Em termos de veraneio e de férias, meu mundo era Santa Rita e Genipabu, com todas aquelas dunas e as praias. Aquilo tudo é maravilhoso, o mundo inteiro já está dizendo isso. Uma das coisas que sinto falta, morando aqui na Nova Zelândia, é da água quente do nosso mar. Em Natal, se a pessoa quiser, pode nadar durante o dia ou à noite também. Mas, retornando, minha infância também foi assistir o carnaval na Prudente de Morais, o corso. Meu avô tinha uma oficina na Prudente de Morais. Enquanto as pessoas assistiam ao desfile da calçada, a gente via de cima de um pilar. Passei por toda aquela fase dos blocos de carnaval: Elite, Saca-Rolha, Bakulejo... Mas nunca tive oportunidade de participar porque, além de ser caro, meus pais tinham muito cuidado com os filhos. Se preocupavam com bebida e com os acidentes que costumam acontecer durante o carnaval no mundo inteiro. Minha infância também foi no Instituto Brasil. Lembro de Dona Pina e de Dona Carmem Pedrosa. Até hoje sou muito agradecido a elas.
ZONA SUL – Tinha também Dona Climéria. Como você conheceu a ginástica olímpica?
FLAMÍNIO – Através da televisão. Eu via e tentava copiar. Achava magnífico. Aquele exercício não era feito com apenas uma parte do corpo, mas com todo ele. A ginástica olímpica não é um malabarismo que você joga uma bolinha pra cima e pega de novo. É mais complexo: você joga o seu corpo todo pra cima e volta para o aparelho. Essa é uma das diferenças entre a ginástica olímpica e a ginástica rítmica. Por exemplo: você não trabalha com o aparelho, mas trabalha no aparelho. Desde criança eu fazia estrelinha, fazia cambalhota pra frente e pra trás, parada de mão, plantava bananeira... Eu tinha muita vontade de fazer um salto mortal, de ser mais flexível. Recebi influência também do circo. Depois de assistir aos espetáculos, quando voltava pra casa eu queria fazer exatamente o que os contorcionistas tinham feito. Na adolescência peguei uma época especial: o período onde mais se mostrou ginástica olímpica na história da televisão. Foi a época do russo Alexander Ditiatin e da romena Nadia Comaneci. Nadia foi o primeiro 10 na história da ginástica olímpica. Naquela época eu estava com 14 anos, tinha a mesma idade dela. Alexander era um pouco mais velho. A partir dali, o gramado da minha casa – eu morava na Potilândia com meus pais, depois mudei para Ponta Negra - ganhou um X queimado na grama, por causa das práticas que eu fazia tentando repetir os exercícios.
ZONA SUL – Você praticava a ginástica olímpica em alguma academia?
FLAMINIO - Até os 14 anos eu não havia encontrado nenhum lugar em Natal para fazer ginástica olímpica. Já tinha ginástica olímpica, acho que na ETFRN e no Atheneu. Mas eu não encontrava essas pessoas.
ZONA SUL – Algum colega do Salesiano, nessa época, compartilhava desse mesmo interesse pela ginástica?
FLAMÍNIO – No Salesiano, não. Mas lembro de uma aula de Educação Física em que o professor João Alfredo, o João Bolão, passou alguma coisa sobre a ginástica olímpica. Ele colocou uns colchões e umas caixas e pediu para a gente fazer peixinho, por cima do plinto. Não consegui
fazer. Ele disse que eu não dava para a ginástica olímpica. Fiquei muito mal. Sei que ele não fez por maldade e nem foi nada pessoal. Não consegui fazer aquele exercício, paciência. Depois tive oportunidade de conversar com ele, já na minha carreira dentro da ginástica olímpica. Cheguei até a conversar sobre aquela aula. Depois da fatídica aula encontrei um amigo que treinava na universidade e também encontrei o campeão arremessador de peso ou dardo... Fui treinar com ele na ETFRN. Ele me encaminhou e comecei a fazer saltos mortais na duna, na praia, na grama de casa e onde mais tinha oportunidade. Nunca tive oportunidade de competir na ginástica olímpica. Quando ingressei de verdade na escolinha de ginástica olímpica do DED, no dia que fui fazer a matrícula, não pude porque já tinha 18 anos e os outros alunos tinham 12. Na verdade não tive uma escola de ginástica olímpica. Em contato com Omar Oliveira, que era e ainda deve ser professor do Neves, ele me disse que mesmo eu não podendo me matricular, podia frequentar e ficar treinando com eles. Foi isso que aconteceu.
ZONA SUL – Essa deve ter sido a época do seu vestibular.
FLAMÍNIO – Era a fase de escolher o que eu ia fazer como profissional. Meu primeiro vestibular foi para Arquitetura. Minha irmã, que também tinha estudado no Salesiano, tinha sido aprovada em Arquitetura. Fiz não sei se por influência ou se por pressão da sociedade. Aqui na Nova Zelândia, depois que o adolescente termina a escola, muitas vezes ele tem o que chamam de “gap year”, ou “ano buraco”. É um ano de espaço, um ano vazio onde ele viaja pelo mundo. Um dos destinos principais é Londres. Outras cidades da Europa e dos Estados Unidos também são escolhidas. Eles vão experimentar o que é viver. Eles vão trabalhar e aprender a mexer com dinheiro. Eles aprendem a sobreviver. A criança aqui sai de casa aos 16 anos. Muitos dos amigos da minha filha - a Luna completou 18 anos - já moram sozinhos. Aqui há o costume de dois meninos dividirem apartamento. Saem de casa e vão morar juntos. Às vezes, casais de namorados também. Aqui eles já trabalham a partir dos 14 anos. Muitas vezes você vê a criancinha do lado do pai, na loja, atendendo.
ZONA SUL – No Brasil o pai poderia ser acusado de explorar trabalho infantil.
FLAMÍNIO – Isso mostra que alguma coisa está errada: aí ou aqui. Minha filha, quando estava com 15 anos, deu aula de ginástica no mesmo ginásio onde estou trabalhando. Com o salário, ajudou a comprar seu próprio carro. Aqui as pessoas começam a dirigir aos 15 anos. Outra coisa interessante na Nova Zelândia é que geralmente esse primeiro carro que o filho ganha é velho. Não é como no Brasil, que os pais esperam o filho passar no vestibular para dar um carro zero quilômetro.
ZONA SUL – Vamos retornar um pouco: você estava falando que prestou vestibular para Arquitetura...
FLAMÍNIO – Sim, mas não passei. Como meu pai não queria que eu ficasse seis meses parado, entrei na UNP. Fui cursar Administração de Empresas. Quando fiz o primeiro semestre, abriram vagas para a UFRN. Como não tinha para Arquitetura, Engenharia ou outro curso que a sociedade, digamos assim, quer que a gente faça, coloquei Educação Física como primeira opção, depois Fisioterapia e, em terceiro, Enfermagem. Passei para Educação Física.
ZONA SUL – Seu pai fez algum questionamento por você ter optado por Educação Física?
FLAMÍNIO – Não, ele era desportista. Jogava voleibol. Gosta muito de esporte. Na minha infância eu nadei, joguei basquete, fiz karatê e judô e integrei o time de voleibol do Salesiano. Tive minhas experiências com o futebol, mas não foram muito positivas. Minha habilidade era mais com as mãos do que com os pés. Mas eu corria bem. Nunca fiz muita coisa de atletismo, mas corria bem. Aqui na Nova Zelândia a gente vê as crianças praticando tudo o que é de esporte até decidir o que vai fazer.
ZONA SUL – Dentro do curso de Educação Física você teve a possibilidade de se aprofundar nessa área de ginástica olímpica?
FLAMÍNIO – Não. Fiz Administração e Educação Física paralelamente. Como o curso de
Educação Física era mais curto, comecei ele depois e concluí antes. Por conta da falta de recursos e de equipamentos e da própria desmotivação da ginástica olímpica da UFRN, tive que buscar experiência fora daquele ambiente. Por sorte tive dois professores – Omar de Oliveira Júnior e José Lucas - que tinham acabado de fazer uma especialização em ginástica olímpica na USP. Eles me passaram muita informação a respeito dessa modalidade e a minha base inteira eu devo aos dois. Na época em que eu estava concluindo a universidade, consegui começar a trabalhar no SESI. Entrei pela natação e depois implantei a escolinha de ginástica olímpica do SESI. Natal descobriu que tinha ginástica olímpica. Um dos projetos que desenvolvemos foi o “Domingo é dia de praça”. A gente fazia nossas apresentações na frente do Palácio dos Esportes. As aberturas de jogos escolares também facilitaram a divulgação do meu trabalho. Fosse escola pública ou particular, quem me chamasse para fazer abertura, eu estava lá. Também participamos de muitas ruas de lazer.
ZONA SUL – Foi complicado conquistar alunos nessa sua primeira experiência no SESI?
FLAMÍNIO – Foi um pouco difícil fazer as pessoas da administração do SESI entenderem que aquilo funcionava. Mas só um pouco. Pessoas que já sabiam que eu tinha esse envolvimento com a ginástica - como Assis Dantas, que era do América – me deram uma força grande dentro do SESI. As meninas procuram mais a ginástica olímpica. Os meninos vêm para a ginástica olímpica porque querem aprender a fazer salto mortal. Montamos um grupo excelente no SESI e fomos para rua mostrar a ginástica olímpica de verdade e divulgar esse esporte em Natal. Eu tinha uma caminhonete. Botava os colchões em cima, e os alunos por cima dos colchões. A gente fazia quatro apresentações em lugares diferentes. Eles me ajudavam a tirar e por de volta os colchões. As pessoas vibravam com as apresentações.
ZONA SUL – Depois do SESI você montou a Academia Olímpia?
FLAMÍNIO – A academia surgiu paralelamente ao meu trabalho no SESI. Criei a Olímpia pela dificuldade que era usar a quadra polivalente: tínhamos que montar o equipamento de ginástica, treinar e depois desmontar tudo. Outra opção era treinar dentro de uma sala, mas essa sala era muito apertada. Não cabia, não dava para montar o pórtico da argola e nem a barra fixa, por exemplo. Optei por alugar um espaço para poder dar aula. Foi aí que surgiu a Academia Olímpia. Não obtive resultado financeiro porque o que a gente recebia das crianças mal dava para pagar o aluguel. Mas foi um período muito bom. Nessa época eu estava casando. Minha filha nasceu logo em seguida. Minha mulher, Denise, que é paulista, também é treinadora de ginástica olímpica. Por coincidência nasceu em uma cidade chamada Olímpia, mas decidi o nome da academia antes de conhecê-la. A conheci na APEC. Fui convidado para dar treinamento para o masculino. Denise foi convidada para o feminino. Nos conhecemos lá e estamos juntos até hoje. Como eu ia dizendo, montei a academia mas continuei trabalhando no SESI. Na academia fizemos um festival chamado FIGO: Festival Interestadual de Ginástica Olímpica. Tinha competições no sábado, dentro do ginásio, entre equipes de Natal e cidades como Recife, João Pessoa, Salvador... No domingo fazíamos uma carreata com a participação de todas as crianças, com o apoio de batedores da polícia. Escolhíamos uma praia, levávamos cama elástica e colocávamos as crianças para brincar.
ZONA SUL – Você, através da Academia Olímpia, também desenvolveu um trabalho social. Como foi?
FLAMÍNIO – Na época do SESI vi que a criança sem muitos recursos financeiros tem menos
preconceito. Talvez pela necessidade de praticar uma atividade esportiva, ou algo assim, ela se envolve e se dedica mais. Percebi que poderia até descobrir talentos nessa faixa da população. Foi então que abri espaço para que mais e mais crianças viessem para a academia. Uma parcela dos nossos atletas vinha das escolas públicas. Foi bom porque aumentou o número de atletas e de escolas participantes da ginástica olímpica nos JERNs. Esse projeto foi feito em parceria com uma pessoa que contribuiu bastante com o nosso trabalho. Não tenho autorização de citar o nome da empresa ou da pessoa, mas a gente teve essa força e foi muito interessante, porque pude dar continuidade à academia por mais uns três ou quatro anos. Conseguimos trazer 40 crianças para esse projeto social dentro da academia. As crianças iam duas vezes por semana à academia. Tomavam banho assim que chegavam lá e depois era servido o café da manhã. Logo após, estudavam e faziam uma aula de ginástica. Em seguida estudavam de novo, tomavam banho, almoçavam e iam para a escola. Na verdade, algumas vezes não iam para a escola, pois eram comuns as greves de professores. Começamos com vinte crianças e, com o apoio dessa empresa, duplicamos. O projeto durou uns dois anos. Até hoje tenho contato com algumas dessas crianças, pela Internet.
ZONA SUL – Foi através desse projeto que você conseguiu descobrir Ana Cláudia Silva?
FLAMÍNIO – Não. Ela foi minha atleta na academia. Ana Cláudia começou a treinar novinha na Olímpia. Chegou na academia com cinco anos de idade. Eu não estava lá no dia em que seus pais a levaram para fazer uma experiência. Meu auxiliar, Roberto Silva (hoje ele é um DJ famoso em Natal), fez os testes. Um dos testes foi a subida na corda. Eram duas cordas: uma próxima à outra. Normalmente o aluno subia e descia pela mesma corda. Ana Cláudia subiu no prédio, que estava a uns cinco metros de altura, passou pela viga andando e desceu pela outra corda. Ela entendeu que tinha que fazer assim. Só aí a gente viu que era uma menina que não sentia medo e era forte. E ela era flexível também. Então juntava tudo o que a ginástica olímpica precisava. Além disso, o pai dela jogou basquete quando foi aluno do Colégio das Neves. Ele teve uma oportunidade de ir para a seleção brasileira, mas seu pai não deixou. Ficou a vontade de ser seleção e representar o país. Acho que isso repercute e dá força para que ele mantenha Ana Cláudia treinando até hoje.
ZONA SUL – O que Ana Cláudia Silva já conquistou no esporte? Uma coisa legal nela é que não esqueceu seus professores, como você. Da mesma forma que você não esqueceu as pessoas que foram importantes na sua formação.
FLAMÍNIO – Ana Cláudia influenciou muito na minha carreira. Tive oportunidades magníficas por conta dos resultados que ela atingiu. Pouca gente sabe que, dos atletas potiguares, não foi Ana Cláudia somente quem chegou a treinar na seleção brasileira. Da nossa academia umas cinco meninas chegaram a ser convidadas ou foram até Curitiba tentar ingressar na seleção brasileira. Ana Cláudia foi a primeira. Depois foi Merly de Jesus, que se saiu muito bem. Chegou a competir internacionalmente no Chile e a viajar para a Ucrânia e a Rússia para treinar por lá. Merly quase coloca o nome dela no Código de Pontuação da Ginástica Olímpica, como Daiane dos Santos fez. Ela estava executando um exercício que ninguém mais fazia. Se tivesse participado de um campeonato mundial ou de uma olimpíada, o nome dela teria entrado no Código de Pontuação.
ZONA SUL – O que faltou para ela disputar essa competição internacional?
FLAMÍNIO – Independente da área que for, é difícil atingir o alto nível. Nem todo mundo chega lá. Mesmo em profissões como Arquitetura e Urbanismo, ou a carreira de modelo, ou o que for, um imprevisto ou outro pode atrapalhar. Com Merly aconteceu que ela estava se machucando com frequência. Os dirigentes da seleção decidiram que não compensava mantê-la competindo. Ela voltou para Natal. Outras meninas estiveram treinando em Curitiba, como Francesca e Larissa Cunha. Minha filha também foi convidada. Ela é muito flexível e tinha uma linha boa de ginástica. Mas Luna não era muito de batalha e de enfrentar a parte de condicionamento físico de alto nível. Além disso, optamos por não direcioná-la para o altão nível da ginástica olímpica. É sofrido. No Pan-Americano Ana Cláudia rasgou a mão na série de barra. Abriu um calo na mão dela e a mídia veio em cima. A TV mostrou a mão dela sangrando. A foto da mão sangrando chegou a compor uma exposição fotográfica realizada em um shopping de Curitiba. Ana Cláudia começou comigo aos cinco anos de idade. Depois de atingir um nível muito bom, participou de torneio nacional em Brasília. Aos sete anos de idade ela foi medalha, na trave. A partir daí as pessoas começaram a prestar um pouco mais de atenção. Um dia os pais dela me disseram que iriam se mudar para que ela pudesse treinar em um centro maior de ginástica olímpica, para poder atingir um nível mais elevado. Perguntaram para onde deveriam ir. Falei que se ele não queria ter problemas políticos, o certo seria ir para onde funciona a Confederação Brasileira de Ginástica: Curitiba. Ele se mudou com a família toda para lá. Ela treinou com muita determinação e garra até atingir a idade de ingressar na seleção brasileira.
ZONA SUL – Em qual nível ela encontra-se hoje?
FLAMÍNIO – Ela é seleção brasileira. Acabou de voltar do Flamengo, depois de passar um período treinando por lá. Voltou porque foi chamada novamente para treinar em Curitiba. As perspectivas são de que ela irá para a Olimpíada de 2012, em Londres. Ela já participou de um Pan-Americano e da Olimpíada da China. Na China foi a 22ª colocada no individual geral. Quem classifica no individual geral é quem é mais ou menos equilibrado em todos os aparelhos. Ela se saiu bem nos quatro aparelhos: a trave, o solo, o salto sobre a mesa e as barras assimétricas. Essa classificação é muito boa. A partir do desempenho de Ana Cláudia, a Confederação Brasileira passou a me convidar para alguns cursos nacionais e internacionais que eles promoveram. Fui convidado para o primeiro curso que o técnico ucraniano da seleção brasileira, Oleg Ostapenko, deu em Curitiba. Nessa época a gente tinha Ana Cláudia e Nerly treinando no grupo da seleção brasileira. Foi uma época de ouro na ginástica do Rio Grande do Norte, e pouca gente sabe. Durante esse curso fui laureado e até ganhei uma garrafa de vinho do pessoal da Confederação Brasileira de Ginástica. Fui convidado a sair das arquibancadas e perfilar junto com as meninas. Fui premiado junto com Luiza Parente, Berenice Arruda (técnica da seleção brasileira feminina durante onze anos) e outros grandes nomes da ginástica olímpica. Depois fui convidado para um curso de ginástica olímpica no Equador. Foi o meu primeiro curso internacional. Foi ministrado em espanhol. Ouvir os discos da cantora argentina Mercedes Sosa ajudou a melhorar meu espanhol. Comecei a brincar com as letras naquela língua. Participando desses cursos também fui indicado a fazer os três níveis de curso da Federação Internacional de Ginástica, que é o órgão que rege a ginástica olímpica no mundo inteiro. Dois cursos foram no Rio de Janeiro e um em Curitiba. Como eles não tinham muitas vagas para ginástica feminina, os meus cursos foram na ginástica masculina. Isso me ajudou muito a ter o que tenho hoje. Trabalho com a ginástica masculina aqui na Nova Zelândia.
ZONA SUL – Como surgiu a oportunidade de sair do Brasil?
FLAMÍNIO – Minha saída para a Nova Zelândia veio através de uma ginasta que treinou na Academia Olímpia. Seus pais, que eram do Rio de Janeiro, tinham ido morar em Natal para trabalhar na UFRN. Tinham um casal de filhos que vieram treinar junto com a gente. Nossas famílias ficaram amigas. Como a mãe de dessa ginasta tinha pós-graduação em informática, aplicou para vir trabalhar na universidade daqui de Auckland. Conseguiu. Depois que eles vieram morar aqui, continuamos mantendo contato durante cinco anos. Denise, a minha esposa, já tinha morado em Londres, Israel e viajado pela Europa. Ela tinha vontade de dar à nossa filha oportunidade de falar outra língua, de conhecer outras culturas. Nesses cinco anos que mantivemos contato com essa família, fomos organizando a papelada. Quando minha ex-aluna começou a fazer ginástica olímpica aqui em Oackland, o técnico gostou muito da técnica que ela tinha e do exercício que fazia. Mantivemos contato e, devido aos cursos que eu tinha no currículo, pude aplicar para um ramo que eles chamam de visto de talento. Fui contratado, ainda morando em Natal, para vir trabalhar aqui, com visto de trabalho pra mim e para a minha esposa também. Antes da viagem, estudamos e praticamos o máximo possível do inglês. O turismo em Natal ajudou, porque passamos a procurar pessoas que falavam inglês para treinar a língua. Colocamos nossa filha para assistir filmes de Walt Disney e desenhos animados em inglês, para ela não sentir tanta dificuldade.
ZONA SUL – Deu certo?
FLAMÍNIO - Na Nova Zelândia as crianças vão pela primeira vez na escola no dia em que completam cinco anos de idade. É no dia, não é no começo do ano. Luna, quando chegou, foi direto para a escola. Ela poderia ter ido para o ano oito, mas não quisemos. Optamos por ela ficar no ano sete porque a ginasta ex-aluna minha estava no ano sete. Elas ficaram juntas. Esse ano que ela ficou atrás não representou muita diferença. Ela não teve nenhum problema com o inglês.
ZONA SUL – Quais foram as principais dificuldades que você e sua família enfrentaram ao trocar o Brasil pela Nova Zelândia?
FLAMÍNIO – Acho que pela facilidade que o brasileiro tem de se comunicar, de ser um povo alegre, comunicativo e desenrolado, posso dizer que não enfrentamos muita dificuldade. Principalmente porque o nosso grupo de amigos aqui é muito bom. Só de Natal deve ter umas treze pessoas no nosso grupo. Alguns filhos desses nossos amigos já nasceram aqui. Outros vieram por influência de alguém, ou coisa desse tipo.
ZONA SUL – Você enfrentou algum preconceito pelo fato de ser brasileiro?
FLAMÍNIO – De jeito nenhum. Aqui tem uma miscigenação racial incrível. Em Auckland, o que você vê de chinês falando em chinês, na rua, é uma coisa incrível. O que você vê de indiano... Acho que metade das casas da rua onde moro é ocupada por indianos. É fácil encontrar russo, chileno, peruano, brasileiro... Você entra no trem e encontra gente falando tudo o que é de língua.
ZONA SUL – As diferenças entre Natal e Oackland devem ser marcantes...
FLAMINIO – Sim. Por exemplo, Denise, quando volta do trabalho, vem de trem, para casa. A estação é pertinho, ela vem andando. Certa vez, seu casaco, que estava pendurado na bolsa, caiu. No dia seguinte, depois de procurar em casa e não encontrar, ela me disse que achava que o casaco tinha caído na rua: provavelmente no percurso da estação do trem para casa. Resolvemos arriscar. Fizemos o mesmo trajeto, de carro, bem devagarzinho. O casaco dela estava na calçada, no mesmo lugar onde caiu. E não era um casaco que tivesse acabado ou rasgado, que alguém deixaria de pegar porque estava um lixo.
ZONA SUL – Seria impossível essa mesma coisa acontecer no Brasil.
FLAMÍNIO – Outra vez Denise deixou o celular dela no ônibus. E não foi nem na Ilha Norte, onde moramos, mas na na Ilha Sul. Um cara cara achou e demorou um dia pra enviar o celular dela pelo correio. E não cobrou nem a despesa postal. Ela já esqueceu um livro no trem. Bastou ligar para o terminal e, dois dias depois, eles encontraram e devolveram. As bicicletas das crianças ficam no jardim. E não tem muro separando o jardim da rua. Que bom seria se no Brasil fosse parecido. A mão aqui é inglesa, a direção é ao contrário. Até no trânsito eles são gentis. Totalmente diferente da guerra diária que acontece no Brasil. A faixa de pedestres aqui é respeitada. Quando nós, os brasileiros, nos reunimos aqui, sempre fazemos essas comparações. É até meio delicado falar sobre isso, pois pode parecer que, pelo fato de estamos fora do país, estamos potencializando as críticas. Não é isso. O que queremos é melhorar. Para isso não devemos ter vergonha de utilizar os exemplos de quem quer que seja: Irã, Iraque, Estados Unidos, França, Nova Zelândia ou Austrália. Por exemplo: no horário da escola aqui, todas as crianças estão na escola. A escola começa às 9 e termina às três da tarde. Se você vir alguma criança fora da escola durante esse horário, é porque algo importante está acontecendo para essa criança não estar dentro da sala de aula. Não seria ótimo se no Brasil fosse parecido?
ZONA SUL - Infelizmente, aqui no Brasil, tornou-se comum a figura do menino de rua.
FLAMÍNIO – Exatamente. Mas por aqui nem tudo são flores. Está começando a aparecer em Auckland aqueles limpadores de para-brisas no sinal de trânsito, tão comuns em Natal. Em alguns lugares a gente já vê isso. Outra coisa interessante é que não tem prédio aqui. Se você der uma olhada na cidade, vai encontrar poucos prédios de, no máximo, três andares. O resto são casas. Nesse terremoto que houve em Christchurch, e foi noticiado mundialmente, algumas casas de tijolo caíram e outras tiveram problemas. Mas o que caiu foi de tijolo. Como a maioria das casas é de madeira, não cai. O Brasil é tão rico de madeira, e tem espaço suficiente pra plantar. Por que não construir mais casas de madeira?
ZONA SUL – Com relação ao idoso. Como ele é tratado na Nova Zelândia?
FLAMÍNIO - A valorização do idoso está ligada até com a questão das calçadas, aqui. A calçada é tipo um asfalto, mas inteira e lisa, toda no mesmo plano. Lógico que tem as descidas e subidas. A Nova Zelândia é praticamente de altos e baixos, geograficamente falando. A calçada é um asfalto que continua. O idoso que não consegue mais caminhar direito, usa aquele carrinho à bateria. Ele anda na calçada, atravessa a faixa de pedestres, vai ao supermercado, faz suas compras e volta. Sem problema, sem ter que subir ou descer degraus. O sistema de transporte aqui não é muito bom. O ônibus não funciona bem. Você até consegue ir para a cidade de ônibus. Mas é meio precário. Outro dia um político quis promover uma melhora grande no sistema ferroviário. O trem aqui funciona de uma forma interessante, mas termina custando caro. Em Natal não tem trem. Fui criado em frente à linha do trem. Meu pai sempre comentava que o trem era o sistema de transporte mais econômico, onde muito mais gente poderia ser transportada. Cadê o trem no Brasil? Tem trem em Londres e na Europa inteira.
ZONA SUL – Como é aí com relação a corrupção?
FLAMÍNIO - A Nova Zelândia é um dos países de mais baixa corrupção no mundo. Outro dia estavam querendo construir um ginásio na beira da praia, para a copa do mundo de rugby. Esse ginásio ia ser metade dentro d'água e metade fora. A copa do mundo de rugby será realizada esse ano, aqui. Teve passeata de tudo o que foi jeito na rua, contra a construção do ginásio. A população não deixou construir o ginásio. Outra: a Petrobras está querendo explorar petróleo aqui. Tem passeata na rua direto. Sai na TV direto que o povo não quer.
ZONA SUL – Enquanto isso, em Natal – não apenas pelo que vai ser gasto na construção de um novo estádio de futebol, mas pelo valor histórico – vão derrubar o Machadão e a população assiste a tudo anestesiada.
FLAMÍNIO – Exatamente. Sou completamente contra. O meu pai, que foi da Procuradoria da Fazenda e completou 75 anos, está doente com essa história. Aqui a comunidade tem força, os políticos dão uma segurada quando ela se mobiliza contra algo. Outra coisa interessante é que eles aqui estimulam que o cliente faça o seu atendimento bancário pela Internet. Se você for ao caixa do banco resolver qualquer problema, tem que pagar uma taxa. O sentido é evitar as filas.
ZONA SUL – Uma ideia dessas poderia vingar no Brasil. Não pelo interesse em evitar filas, mas pela possibilidade de se criar uma nova taxa.
FLAMÍNIO – (risos) Pois é. Nem tinha pensando nesse ponto. Aqui, praticamente não tem fila em lugar nenhum. No banco ou no correio, tem uma fila de três ou quatro pessoas. No supermercado é difícil ter fila. Em se comparando salário e gasto, a nossa vida aqui não é muito diferente de quando morávamos no Brasil. Recebo salário como um professor de ginástica. Professor já recebe mal. De ginástica olímpica, nem se fala.
ZONA SUL – Provavelmente o professor, aí, é mais valorizado do que no Brasil.
FLAMÍNIO – É mais valorizado e respeitado. O salário deve ser um pouco maior. O meu, de técnico ou professor de ginástica olímpica, deve ser mais ou menos a mesma coisa. Minha vida aqui é normal, praticamente igual a que eu vivia no Brasil. Não tem muita diferença.
ZONA SUL – Você poderia falar um pouco mais a respeito de como o neozelandês trata suas crianças?
FLAMÍNIO – Os pais buscam passar responsabilidade para os filhos desde cedo. Por exemplo: se os pais estão andando em uma rua movimentada com seus filhos, eles não dão a mão, como no Brasil. A criança anda sozinha. Se tornam independentes mais cedo, com o apoio dos pais. Outra coisa interessante é que, quando nasce um filho, o pai tem direito a uma licença no trabalho de seis meses. Pode pedir essa licença para ficar junto da família naquele momento importante. Muitas vezes a mãe volta a trabalhar e o pai fica cuidando da criança, em casa. Família tem um valor absurdo. Outro dia liguei para o trabalho para dizer que não ia, pois minha filha estava doente. Eles aceitam numa boa. Muitas vezes quando as pessoas estão um pouco mais cansadas, dizem que precisam viajar com a família e são liberadas do trabalho.
ZONA SUL – É uma atitude inteligente. O empregado cansado rende bem menos.
FLAMÍNIO – E ele vai se sentir bem. Outra coisa é a universidade paga. Aqui só tem universidade paga. Como o jovem depois dos 16 anos já pode trabalhar, ele pode pagar a sua universidade. É o oposto do Brasil. Aqui o ensino básico é gratuito e de qualidade. A universidade é paga. A criança não ganha dinheiro, mas o adulto ganha e pode pagar seus estudos. A maioria dos símbolos que representam a Nova Zelândia vem da cultura maori. Eles valorizam muito o indígena. Lógico que alguns fazem chacota, dizem que o maori é preguiçoso, que trata mal, chama palavrão... Tem a questão racial também. Os maoris são marrons, como o nosso caboclo. No Brasil eu sou branco, aqui sou marrom. Mas preconceito, não tem. Fazem brincadeira, como todo mundo faz. Eles abrem os programas de televisão com uma saudação em maori. As crianças na escola aprendem algumas palavras e a contar em maori.
ZONA SUL – Deixe um recado para os seus conterrâneos que ficaram em Natal.
FLAMÍNIO – A saudade é grande. Andei pensando em tanta coisa pra dizer... Não é porque eu e você saímos de Natal que deixamos de gostar da cidade. É importante que as pessoas saibam que existe Natal e que Natal é um lugar magnífico para se viver. Mas não podemos esquecer que existe o Brasil, e que o Brasil também é um lugar magnífico pra se viver. Quer dizer: viaje, conheça o Brasil nas oportunidades que tiver, e depois volte para Natal com as informações recolhidas, para ajudar na construção de uma cidade melhor. Podemos viajar através de livros, de ônibus ou avião. Podemos conhecer lugares bastante diferentes. Depois de conhecer o Brasil, devemos lembrar que existe um mundo. As proporções vão sempre aumentando. E nós vivemos nesse mundo. Devem existir outros planetas por aí. No futuro, nós – ou os nossos descendentes - poderemos visitá-los. Lá chegando, devermos ter orgulho de dizer que a terra é um lugar muito bom de se viver. Então, a perspectiva é: Natal é um lugar magnífico pra se viver; o Brasil, da mesma forma; o mundo também. Nos países que visitei, sempre fui bem recebido: Inglaterra, Nova Zelândia, Portugal... Devemos sempre procurar crescer e disponibilizar para nossa a terra as boas experiências que aprendemos. Um exemplo: hoje vivo um pouco angustiado porque meu pai hoje está velho e continua dirigindo. Como será que ele está sendo tratado no trânsito de Natal? Nesse sentido, gostaria de deixar uma mensagem: dirija como se sua mãe estivesse dirigindo o carro ao lado. Eu amo Natal, acima de tudo.