quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Entrevista: Cortez

O sertanejo que ganhou o mundo com as letras


É comum ouvir dizer que a história de alguém daria um livro. A de José Xavier Cortez rendeu muito mais: uma biografia, um documentário em vídeo e um livro infantil. Sua vida não foi fácil. Ainda menino no sítio dos pais, em Currais Novos, ele ajudou a família a tirar da agricultura o sustento. Estudou nas horas de descanso. Maior de idade, deixou a terra natal para buscar um futuro melhor para si e para os seus. Entrou na Marinha, foi expulso de lá após o golpe de 64. Morou em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Em São Paulo, foi lavador de carros em um estacionamento. Nessa condição passou no vestibular de economia, da PUC. Vendeu livros na faculdade. Editou teses de mestrado e pós-graduação. Hoje Cortez é reverenciado no meio intelectual brasileiro. Sua editora completou 30 anos no primeiro semestre. A efeméride serviu como mote para relembrar a história desse potiguar que, apesar de ter ganho o mundo, nunca deixou de ter seus pés fincados no sertão do Rio Grande do Norte. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL: Vamos conversar um pouco sobre o seu período em Currais Novos...
CORTEZ - Divido minha trajetória em três momentos. O primeiro foi vivido lá no sertão, onde nasci, me criei, trabalhei e aprendi a ler. O segundo foi a fase militar, onde permaneci na Marinha. Aos 17 anos saí do sítio Santa Rita e fui para Natal. Em seguida entrei para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Recife, onde fiquei uns dez meses. Em janeiro de 1956, depois de fazer o curso de habilitação para a Marinha de Guerra, fui para o Rio, onde fiquei até dezembro de 1964. Toda essa etapa foi importante para eu deixar a vida de sertanejo e me adaptar à cidade. Fui punido com o golpe militar de 1964...
ZONA SUL - Vamos deixar os detalhes para depois...
CORTEZ - Certo. Então, continuando, o terceiro e último momento da minha trajetória começou logo após o golpe militar, quando fui desligado da Marinha e troquei o Rio por São Paulo. Essa fase segue até hoje. Nesse ano em que a Cortez Editora completou 30 anos, foram lançados um DVD, um livro e uma publicação infantil contando minha trajetória mais ou menos dividida nessas três fases.
ZONA SUL - Vamos falar um pouco sobre essa primeira etapa. Como foi a vida no sítio?
CORTEZ - Essa fase está muito bem detalhada no livro “Cortez - A saga de um sonhador”. A socióloga e biógrafa Teresa Sales fez uma pesquisa muito séria do meu nascimento até os 17 anos. O final dos anos 1950 e anos 60 do século passado foi um período de rudeza, de trabalho árduo. Não havia tecnologia, energia, água... Enfim, passei, uma fase dura lá no sertão do Rio Grande do Norte, trabalhando com os meus pais e a minha família naquela agricultura de subsistência.
ZONA SUL - Você começou a trabalhar muito cedo?
CORTEZ - Estou na faina diária, no trabalho diário, desde os cinco ou seis anos. Nessa idade eu já puxava boi pro meu pai arar a terra com a capinadeira. É uma das lembranças que eu tenho do tempo de criança.
ZONA SUL - Paralelo a isso você também estudava?
CORTEZ - Meus pais sempre tiveram essa preocupação. Somos dez irmãos, dos 17 que a minha mãe teve. A cada dois anos nos reunimos, em um encontro que apelidamos de Bienal da Família. Mas eu dizia que estudei em escola rural a partir de seis ou sete anos. Lá aprendi as primeiras letras.
ZONA SUL - Ajudando a família na roça e estudando, sobrava tempo para brincar?
CORTEZ - Eu e meus irmãos estudamos sempre no horário, digamos, do almoço: das 11 horas até por volta das duas horas da tarde. Algumas escolas eram distantes. Tínhamos que andar quatro ou cinco quilômetros para ir e a mesma distância pra voltar. Tínhamos que trabalhar de manhã até às dez horas. Tomávamos banho, almoçávamos e saíamos para a escola. Na volta, trocávamos de roupa e retornávamos o trabalho no roçado até o sol se por.
ZONA SUL - Então não sobrava mesmo tempo para as brincadeiras...
CORTEZ - Às vezes brincávamos à noite. Naquela época morava muita gente nas proximidades do sítio. Hoje não existe sequer 10% daquela população da época. Depois do jantar, quando comíamos coalhada ou sopa, vinham os vizinhos. Brincávamos de tica ou de outras brincadeiras no terreiro. No final de semana também tínhamos muita ocupação, como dar comida pro gado e levar os animais pra beber água. Geralmente, nas tardes de sábado ou domingo, sobrava um tempo maior pra brincar.
ZONA SUL - Por volta dos 17 anos você mudou-se pra Natal. Por que?
CORTEZ - Nós percebíamos, e meu pai também falava, que seria muito difícil sustentar toda a família naquele sítio que até hoje preservamos. Mal dava para os dez filhos. Pior ainda ficaria na medida em que fôssemos casando. Sabíamos que tínhamos que procurar alguma coisa. A pergunta era: onde encontrar trabalho com parcos estudos? Antes de ir pra Natal fiz outras coisas, como garimpar. Nos anos de seca íamos trabalhar nos garimpos. Eu, o mais velho dos irmãos, nunca tinha ido a lugares mais distantes até resolver mudar pra Natal. Eu sabia que possivelmente teria que servir ao Exército. Mudei para a capital com a expectativa de servir à Aeronáutica. Eu não tinha noção de militarismo, de nada. Em Natal fiquei durante sete ou oito meses na casa de um tio, o tio Alfredo, já falecido. Não consegui entrar na Aeronáutica, mas entrei na Marinha. Dessa forma fui para Recife e iniciei essa minha viagem. Não era o que eu esperava. Ganhávamos mal e o regulamento era muito rígido. Mas eu tinha como objetivo e projeto de vida fazer alguma coisa pra ajudar minha família. Fui e sou uma pessoa muito ligada às questões familiares. Meu pensamento era o de ajudar os meus pais. Dar algo melhor para eles. Eu via na Marinha o canal para isso. Fiquei lá nove anos.
ZONA SUL - Antes da Marinha você fez outras coisas em Natal?
CORTEZ - Quando mudei pra Natal eu sabia que ali era o ponto de partida da minha caminhada. Não pensava mais em voltar para o sertão. Em determinada época apareceu um conhecido do meu pai, que morava em Campo Redondo. Ele tinha um alambique e me arrumou um trabalho temporário pra encher garrafas nos tonéis de cachaça. Depois me envolvi com os exames da Aeronáutica. Como não deu certo, tentei a Marinha. Fiquei hospedado na chácara do meu tio, no Alecrim. Como lá tinha muitas árvores frutíferas, pedi permissão a ele e passei a vender umas frutas pela cidade. Com o apurado eu comprava uma pasta, comia um pão doce com caldo de cana, ou coisas do gênero. Foi assim até a Marinha me chamar, em março de 1955.
ZONA SUL - Quais suas atividades na Marinha?
CORTEZ - Depois de jurar bandeira em Recife, embarcamos em um navio chamado Barroso Pereira. Eu e mais 200 ou 300 colegas fomos para o Rio. Lá nos dividiram entre vários navios. Servi inicialmente um ano e pouco no contratorpedeiro Marcílio Dias. Nossa função era serviços gerais: faxina e tudo o que havia de pior. Depois que desembarquei fui para um quartel de marinheiros. Contraí esquistossomose e fiquei três ou quatro meses em um hospital naval. Depois fiz curso de especialização em máquinas. O maquinista, claro, trabalha na praça de máquinas. Sua função é fazer o navio navegar. Ao terminar o curso, fui servir no Cruzador Barroso. Fiquei cinco anos nesse navio. Em março de 1964 trabalhei na organização da festa de segundo aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil.
ZONA SUL - Ao descrever suas atividades na Marinha, você falou: “o que tinha de pior sobrava pra gente”. Como você recebia essa diferença de tratamento?
CORTEZ - Toda pessoa merece ser tratada com dignidade, independente de sua raça, condição social ou grau de instrução. Ao entrar na Marinha passei a conviver com pessoas de outros níveis. Comecei a ler jornais, ver televisão, a me informar. No sertão eu não tinha nada disso. Nunca tinha aberto um jornal ou lido um livro todo. Assim começou o meu contato com esse mundo mais civilizado. Passei a me conscientizar de algumas coisas. Por outro lado, quando eu vivi no sertão - em um lugar muito pobre - nunca fui humilhado. Ninguém deve ser humilhado por condição nenhuma. A Marinha tinha um regime arcaico. Seu regulamento já não condizia com a década de 1960. Nós, marinheiros, começamos a reivindicar algumas coisas. Foi assim que fundamos, em 1962 - quando eu já tinha sete anos de Marinha - uma associação de marinheiros. Nós estávamos sendo muito sacrificados e humilhados. As associações não eram permitidas nas Forças Armadas, como não é ainda hoje.
ZONA SUL - Esse movimento culminou com uma revolta dos marinheiros...
CORTEZ - A Marinha do Brasil teve muita importância na minha trajetória. No entanto, apesar de a Marinha ser considerada uma força armada de elite, somente a oficialidade recebia bom tratamento. Os praças e os oficiais subalternos, não. A história da Marinha é manchada por alguns episódios como a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910. Os marinheiros se rebelaram contra a aplicação de castigos físicos a eles impostos como punição. Em 1888 a escravidão havia acabado no Brasil, mas os marinheiros apanharam de chibata até 1910. Foi necessário haver um levante sob o comando do almirante negro João Cândido para acabar com essa selvageria. Em 1964 fazia apenas 50 anos daquela rebelião. Era um período muito curto. Ainda existiam pessoas daquela época. Em 1960 os marinheiros começaram a estudar e a participar da vida civil. Isso fez com que o pessoal subalterno, entre aspas, se conscientizasse. Foi aí que tudo começou. Resolvemos fazer uma festa para comemorar o segundo aniversário da associação. Era simplesmente uma festa, mas a Marinha proibiu. Dessa forma começou o grande duelo. Nos rebelamos contra as ordens, coisa que a hierarquia não permitia. Acredito que esse nosso movimento, ocorrido de 25 a 27 de março, foi o estopim para deflagrar o 31 de março.
ZONA SUL - Esse foi o motivo do seu afastamento da Marinha?
CORTEZ - Do meu e do afastamento de muitos outros. Estávamos lá no sindicato uns 2 ou 3 mil, não lembro mais. A nossa luta, que era a mesma de muita gente naquela época, era a favor do presidente João Goulart. Não era contra. Defendíamos as reformas de base, por exemplo. Mas o nosso movimento era interno, por mudanças como a permissão para o marinheiro casar, pelo direito a um tratamento mais humano e por uma melhor comida, entre outras reivindicações. Acabamos o movimento após fechar um acordo com o ministro da Marinha, o Leonel Brizola e outras pessoas que intermediaram essas conversações. Nunca esqueço do dia em que os fuzileiros navais - que são a força terrestre da Marinha - foram nos prender. Eram nossos colegas, a associação também era deles. Chegaram em frente ao sindicato e receberam a ordem de nos levar presos. Os fuzileiros desfizeram dos seus fuzis e ficaram ao nosso lado. Você nem pode imaginar a emoção de ver aderir à sua causa um grupamento convocado pra lhe prender. Depois de acertos e conversações, passamos pelo quartel do Exército e depois fomos liberados. Lá deixamos nossos nomes, essa coisa toda. Três ou quatro dias depois aconteceu o golpe militar. Foi facílimo pegar o nome de todos nós que estávamos lá no Exército. Aí começou a caça às bruxas.
ZONA SUL - O afastamento da Marinha foi a única represália que você sofreu ou houve outro tipo de perseguição?
CORTEZ - Sempre tive bom comportamento na Marinha. Nunca havia sido preso, apesar da rigidez do regulamento. Se o sapato não estava bem engraxado, o oficial não deixava sair, quando o navio estava em terra. Se o chapéu não estava branquinho como ele achava que deveria estar, a saída também era proibida. Só que não dispúnhamos de armário para guardar nossas coisas. Ficava tudo em um saco. Dessa maneira era praticamente impossível manter tudo impecável. Havia uma incompreensão grande. Com a associação, passamos a contar com assistência médica, dentária, assistência social e outras conquistas como o próprio direito de estudar. Se a saída era proibida, o marinheiro perdia sua aula. Quando saí da Marinha respondi a um IPM (Inquérito Policial Militar) simplesmente porque participei dos protestos. Eu não tinha ligação com partido nenhum, era praticamente apolítico. Sentíamos na pele a revolta de, por exemplo, ver um oficial ao seu lado ter direito a uma refeição com pratos especiais enquanto você só dispunha de uma comida de péssima qualidade. Servíamos na mesma embarcação, tínhamos o mesmo objetivo de servir à pátria, nosso estômago era semelhante e éramos pagos pelo governo para desempenhar funções militares. Nossa luta era também para que todos pudessem comer de forma decente. Essa foi a situação. Quando saí da Marinha vim embora pra São Paulo.
ZONA SUL – Por que São Paulo?
CORTEZ – No Rio de Janeiro o desemprego era maior. Além disso, onde arranjar um emprego de maquinista? Até então minha experiência era na agricultura de subsistência e na Marinha. Eu até podia trabalhar na Petrobras ou na Fronape (Frota Naconal de Petroleiros), mas todos nós, os que fomos punidos, entramos em uma lista negra elaborada por órgãos oficiais do governo. Fomos considerados maus elementos, comunistas e coisas desse tipo. Nem adiantava ir a um navio qualquer e dizer que era maquinista. Como o nome constava na lista, a resposta era que não havia emprego. Outro motivo para a escolha é que eu tinha parentes em São Paulo. Inicialmente fui trabalhar em um estacionamento, lavando carros. Não sabia dirigir, depois aprendi. Na Marinha aproveitei muito bem o tempo para estudar. Fiz um curso de técnico em contabilidade em um colégio particular graças a uma bolsa de estudos que ganhei. Quando não estava embarcado, ficava na casa de um parente que morava no Rio. Essa família foi muito importate para mim, pois eu tinha onde ir quando saía do navio. Muitos colegas, por não ter onde ir, ficavam a bordo ou iam morar a 40 ou 50 quilômetros de distância. Graças a essa família pude concluir o curso de contabilidade, embora eu tenha adquirido apenas um pouco de teoria. Meus cursos todos, inclusive o de economia, que fiz na PUC, foram mal feitos. Não por culpa das instituições ou dos professores, mas porque eu não tinha base. Reconheço que eu não tinha onhecimento nem método de estudo. Estudei em escola rural. Até hoje sinto falta de conhecimentos gerais e de uma porão de coisa.
ZONA SUL – Você estudou mais por força de vontade...
CORTEZ – A idade boa para eu ter aprendido era 8, 10, 12 ou 15 anos. Minhas filhas tiveram essa oportunidade. Eu não tive. Essa lacuna existe na minha vida ainda hoje.
ZONA SUL – Em São Paulo você começou lavando carros...
CORTEZ – Sim, e eu morava no próprio estacionamento, em uma casinha de madeira. Não gastava nada. Andava de tamanco, chinelo e calção. Fiquei dois anos nesse trabalho. Em frente ao estacionamento tinha um cursinho de alunos da USP. Ganhei uma bolsa para estudar à noite. Com isso passei no vestibular da PUC de São Paulo. Cursei economia a partir do ano de 1966. A partir daí a minha vida começou de fato. Mas deixe eu completar uma informação sobre o período da Marinha. Lá fiz algumas viagens e li bastante. Devo à leitura o que sou hoje.
ZONA SUL – Para ajudar a se manter na universidade, você vendeu livros. Como foi?
CORTEZ – Quando entrei na universidade, eu trabalhava no estacionamento. Um dia apareci com a cabeça raspada, devido ao trote, usando um boné. Os colegas pensaram que eu havia sido preso. Quando expliquei que tinha passado no vestibular, ficaram espantados. Um dos clientes do estacionamento disse que um universitário não podia continuar lavando carros. Conseguiu pra mim um emprego no Ceasa, que hoje é Ceagesp, como escriturário. Aluguei uma quitinete e passei a andar de gravata. Só que, o salário desse emprego não era suficiente para pagar as novas despesas. No estacionamento eu praticamente não tinha gastos. Fui morar ao lado de uma editora. Um funcionário de lá vendia livros na PUC. No intervalo das aulas eu sempre ia ao quiosque e ficava lendo aqueles livros. Ele sabia que eu não tinha dinheiro e me emprestava algumas publicações durante o final de semana. Eram livros de econometria e economia internacional, por exemplo. Ele só pedia para eu não amarrotar os livros. Eu devolvia na segunda-feira. Fizemos amizade. Eu dizia a ele os livros que tinham sido indicados na minha sala e nas salas vizinhas. Enfim, eu dava as dicas para ele levar os livros certos para vender. Após cinco ou seis meses, quando precisou ir embora, ele perguntou se eu não queria ficar com aquele ponto. Aceitei. Por aí começou a minha inserção no mercado livreiro. Depois de algum tempo os livros começaram a dar mais dinheiro do que o trabalho de escriturário. Saí do emprego e me dediquei integralmente à venda de livros. A PUC me cedeu um espaçozinho, abri um balcão com quatro ou cinco prateleiras. Comecei a vender pra psicologia, serviço social e educação. Em dois anos, quando já estava bastante conhecido, mandei chamar um primo, um irmão e assim foram vindo pessoas para me ajudar.
ZONA SUL – Naquela época de censura você conseguia alguns livros considerados proibidos.
CORTEZ – Alguns compradores sabiam que eu tinha sido marinheiro e do problema político. Eu não comentava porque poderia ser ouvido por algum órgão de segurança. Tinha medo que dissessem que eu estava fazendo pregações comunistas. A PUC era a universidade mais importante do país com relação às questões políticas. Quando abri esse espaço, as pessoas começaram a me conhecer e aprenderam a confiar em mim. Dessa forma conheci Florestan Fernandes, Paulo Freire, Otaviani e outros intelectuais que combateram a ditadura. Era a época que nasciam os cursos de pós-graduação na PUC. Foi nesse ambiente que consegui alguns livros que não eram vendidos nas livrarias comuns, por causa da censura. Eu trazia sob encomenda pra algumas pessoas.
ZONA SUL – Como você conseguiu dar o passo de livreiro para editor?
CORTEZ – Fui convencido por alguns professores a começar a publicar também. Comecei de uma forma muito artesanal a publicar teses de mestrado e doutorado. A procura por esse tipo de livro começou na PUC, mas depois se espalhou. Como esses alunos-autores eram bem relacionados pelo Brasil afora, a coisa se espalhou. Publiquei trabalhos de vários estados, inclusive do Rio Grande do Norte, como José Willington Germano e Safira Bezerra Ammann. A Cortez passou a publicar teses que traziam um contexto atual. A Cortez é considerada uma editora histórica porque teve a coragem de começar a publicar esses textos que não estavam de acordo com a política educacional da época, a da ditadura. Outras editoras tinham receio. Foi por aí que começou minha inserção no mercado editorial.
ZONA SUL – De lá pra cá são 30 anos...
CORTEZ – Nessa época a empresa se chamava Cortez & Moraes. Durou nove anos. Depois, por questões societárias, nos separaramos. Foi quando comecei sozinho a Cortez. Na época o nome Cortez & Moraes já estava constituído. Meu sócio, Moraes, era colega de classe. Hoje é professor da PUC, se dedicou ao trabalho acadêmico. Quando nos separamos ele ficou com a Moraes e eu comecei a Cortez, do zero, em janeiro de 1980. Por isso estamos comemorando os 30 anos. A Cortez se espalhou pelo Brasil e até para o exterior.
ZONA SUL – A editora teria um best-seller, um livro que se destacaria diante dos demais?
CORTEZ – O primeiro best-seller da Cortez foi “Metodologia do Trabalho Científico”, de Antonio Joaquim Severino. Foi um dos primeiros livros a ser publicado, no final da década de 1960, quando ainda era Cortez & Moraes. Esse livro sofreu várias reformulações no correr desses anos todos e continua sendo o mais vendido da editora. Temos outros livros que já venderam 500 mil ou 800 mil. Temos Paulo Freire, Boaventura de Sousa Santos e muitos outros intelectuais. Começamos há cinco ou seis anos a trabalhar com literatura infanto-juvenil, que tem dado muito prestígio. Já temos quase 200 títulos. Somos uma empresa familiar pequena. Temos condições de publicar entre 70 a 80 títulos por ano. Nosso pessoal é muito bem preparado.
ZONA SUL – A editora foi palco de uma história pitoresca: um assalto.
CORTEZ – Moro ao lado da editora. Em 2004, fui tomar café em casa, às sete horas da noite. Ficaram cinco ou seis pessoas trabalhando. A editora ainda não era separada da livraria. Logo que saí, chegaram três assaltantes perguntando pela minha filha. Disseram que ela não estava. Realmente Mara tinha saído uns dez minutos antes. Só ela sabia abrir o cofre. Eu não sabia, nem vou aprender nunca. Não ligo para essas coisas. Os ladrões tinham informação de tudo. Um subiu e colocou sentadas no corredor todas as pessoas que estavam lá em cima. Dois ficaram embaixo, tentando descobrir como abrir o cofre. Quando chegaram à conclusão de que não tinha ninguém que soubesse abrir o cofre, tentaram abri-lo com um pé de cabra. Não conseguiram. Nesse ínterim, eu cheguei. Quando entrei, me disseram que era um assalto. Os dois assaltantes estavam sentados, armados com revólveres. Eles deixaram a recepcionista continuar atendendo os telefonemas, mas sem dizer nada.
ZONA SUL – Qual sua reação inicial?
CORTEZ - Fiquei espantado, mas sentei ao lado de um dos assaltantes. Ele perguntou se eu sabia abrir o cofre. Respondi que não, que só a minha filha sabia. Tirei o relógio, a carteira e o celular. Ele disse que não queria nada daquilo. Então o rapaz telefonou para o comparsa que estava fora: “Olha, chegou o homem. Ele também não sabe abrir. Acho que não vai dar nada, melhor darmos de pinote.”. Pinote, nunca esqueci essa palavra. Marcaram de se falar novamente em cinco minutos. Perguntei ao assaltante de onde ele era. Respondeu que era da Paraíba. Eu disse que éramos vizinhos. Expliquei a ele que quem trabalha no ramo de livro não tem dinheiro. A gente compra, vende, paga, compra, vende... Não tem grana. Contei que tinha sido lavador de carros, que ralei muito para melhorar minha situação. Ele falou que procurava emprego e não conseguia. O cúmplice ligou de novo e marcaram de se encontrar em cinco minutos. Eu já estava mais sossegado desde que ele tinha falado que não queria nada daquilo. Ele mandou o colega que estava lá em cima se aprontar. Perguntei se ele tinha filhos. Tinha três ou quatro, acho que de 10, 13 e 14 anos. “Se eu der uns livros você leva para os seus filhos?”. Ele disse que sim. Tinham saído os primeiros 19 livros de nossa coleção de literatura infanto-juvenil. O assaltante levou uma sacola cheia de livros. O comparsa lá de cima desceu com os que estavam reféns e nos colocou a todos em uma sala no fundo da livravia. Disse pra só sairmos depois de 10 minutos. Eu disse ao assaltante: “vou dar esses livros a você porque espero que seus filhos não tenham essa desdita, essa sorte horrível que você tem”. Ele agradeceu, pegou a sacola e foi embora.
ZONA SUL – Uma situação incrível.
CORTEZ - Depois de tudo isso, minha interrogação é se ele realmente levou esses livros, se entregou aos filhos... O que aconteceu com esse filho de 14 anos, por exemplo? Será que hoje ele está na universidade? Não sei. Depois que eles foram embora, morremos de dar risada porque não tinha acontecido nada com a gente.
ZONA SUL - Você é uma pessoa que gosta de preservar as raízes, toda semana frequenta um forró.
CORTEZ - Cultivo muito do Nordeste. Ainda carrego coisas da minha vida de menino sertanejo. A publicação do livro com minha história avivou muita coisa. Teresa fez uma pesquisa muito boa, inclusive do ponto de vista social. Nunca deixei de ir ao Nordeste, à minha casa. Nosso sítio está preservado. Na primeira parte do livro “Cortez – A saga de um sonhador”, a socióloga Teresa Sales conta minha história desde o começo até a minha saída da Marinha. Todo o ambiente do sertão está muito bem retratado lá. Sobre o forró, fiquei muito tempo sem ir a um por falta de condições ou por uma série de circunstâncias. Depois que a vida melhorou, passei a frequentar e não tenho mais como abandonar.
ZONA SUL - Fale um pouco mais sobre o livro.
CORTEZ – Ele foi lançado em comemoração aos 30 anos da Cortez Editora. No começo eu não estava muito confortável com a ideia de ter a minha vida publicada nas páginas de um livro e no som e nas imagens de um vídeo, o documentário “O semeador de Livros”, que saiu em março. Esse DVD foi dirigido por Wagner Bezerra e contou com o apoio da Cosern, Petrobras e da PUC. Uma equipe da TV PUC foi até o sertão gravar tudo sobre o meu passado. Está muito bem feito. A TV Cultura e a TV Câmara transmitiram em rede nacional. Voltando ao livro, a Teresa Sales conversou com muitas pessoas lá no sítio e com meus ex-colegas marinheiros. A segunda parte foi escrita pela jornalista Goimar Dantas, que nasceu na maternidade de Santa Cruz, mas morou em Japi. Ela escreveu do dia 4 de janeiro de 1965 até 31 de março de 2010. Toda essa trajetória desde lavador de carros até o editor que sou hoje. O livro está em todas as livrarias, inclusive na nossa.
ZONA SUL – Teve também um livro infantil.
CORTEZ – O título é “Como um rio - A trajetória do menino Cortez”, de Silmara Casadei. A capa retrata o Rio dos Apertados, em Currais Novos. Os 30 anos da Cortez foram comemorados com uma festa belíssima no Tuca (Teatro da Universidade Católica), de São Paulo. Minha única tristeza em tudo isso é que a Potira, minha esposa, faleceu ano passado. Foi ela quem construiu comigo tudo o que nós temos hoje. Felizmente tenho as minhas três filhas: Mara, Márcia e Miriam, que hoje são minhas sócias e estão tocando o barco.
ZONA SUL – Algum projeto para o futuro?
CORTEZ - Sou muito feliz porque vejo o mundo editorial, livreiro e os intelectuais apoiando meus projetos. Até o final do ano pretendo começar um trabalho novo. Pretendo visitar algumas faculdades, escolas e secretarias de educação de prefeituras. Minha intenção é conversar com professores e alunos a respeito da minha trajetória. Quero dividir com as pessoas tudo o que aprendi: contar como saí do cabo da enxada e me transformei em um editor vitorioso.
ZONA SUL - O que lhe faltou ser perguntado que você gostaria de ter respondido?
CORTEZ - Em linhas gerais, é isso. Mais detalhes estão no livro. Procuro ser uma pessoa ética, compreensiva e cônscia dos meus deveres de cidadão, de brasileiro e de nordestino. Quero ser útil pras pessoas, assim como as pessoas têm sido para mim.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Entrevista: Noélia Ribeiro

A MUSA DO LIGA TRIPA

A pernambucana Noélia Maria Ribeiro da Silva nasceu emRecife, mas saiu de lá aos três anos de idade. Depois de um período no Rio de Janeiro, fixou-se em Brasília. Foi protagonista – junto com os poetas Nicolas Behr e Paulo Tovar, com o artista Renato Russo e com a turma do grupo Liga Tripa – da cena cultural da capital federal. No final do ano passado lançou o livro “Atarantada”, reunindo poemas inéditos e alguns revisitados. Paralelo à produção literária, é testemunha ocular da história do Brasil atuando como taquígrafa da Câmara dos Deputados. Para entrevistar Noélia, o Zona Sul contou com a colaboração dos músicos Glauco Porto (violão) e Paulão (percussão) e da cantora Fátima. Não fosse a reunião marcada para esse bate papo, poderia ter sido organizado um ótimo show. Em tempo: Fátima é irmã de Noélia e mulher de Paulão. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – Você permaneceu durante muito tempo em território pernambucano?
NOÉLIA – Até os três anos de idade, quando minha mãe foi transferida para o Rio de Janeiro.
ZONA SUL – Apesar de ter saído tão cedo, você guarda alguma recordação de Recife?
NOÉLIA – Nada, nada. Aos três anos minha mãe se separou do meu pai e foi para o Rio. Então, não lembro nada... Alias, lembro um pouco da casa onde a gente ficava, na Rua do Lima, no bairro de Santo Amaro. Lembro da gente brincando: eu, minha irmã e meu irmão. Basicamente é só isso.
ZONA SUL – Por que o destino de sua família foi o Rio e não outro local qualquer?
NOÉLIA – Minha mãe era do Ministério da Fazenda e pediu transferência. Talvez tenha escolhido o Rio por ser uma cidade grande. Ela passou a vida inteira trocando um lugar menor por um maior. Está no seu sangue.
ZONA SUL – No Rio, onde a família foi morar?
NOÉLIA – Em Botafogo, na Rua da Passagem.
ZONA SUL – O baiano Hélio Contreiras tem uma música que fala nessa rua... Quais suas recordações desse tempo?
NOÉLIA – Muita coisa. Lembro, por exemplo, de estar torcendo na Copa do Mundo de 1970.
ZONA SUL – Contra ou a favor?
NOÉLIA – A favor. Naquela época eu ainda não era rebelde. Lembro de quando eu ia comprar Coca-Cola em um bar chamado “Orquídea”, para tomar assistindo aos jogos. Lá eu via as pessoas ligadas na TV, aguardando o começo das partidas. Também recordo de trocar figurinhas com os meninos da rua e de pedir pra namorar o vizinho do outro andar. Lembro ainda da minha atuação como patrulheira escolar de segurança. Eu ficava no sinal com as bandeirinhas de “PARE” e “SIGA”.
ZONA SUL – Essa época era a do regime militar. Você entendia que o país vivia sob uma ditadura?
NOÉLIA – Nem tinha noção. Eu era muito novinha e não era rebelde. Só entendi dessas coisas quando me mudei para Brasília, aos 12 anos. Fátima – minha irmã mais velha – e meu irmão participavam de encontros desse tipo. Eu preferia assistir novela e escutar aquelas trilhas sonoras.
ZONA SUL – A mudança para Brasília também foi para acompanhar sua mãe...
NOÉLIA – Isso. Foi uma mudança completa na nossa vida. No Rio morávamos em uma quitinete com um quarto bem grande. Toda a família dormia nesse quarto: eu, minha irmã, meu irmão, minha tia Cáritas e minha mãe.
ZONA SUL – Diga o nome das pessoas, pois até agora você só nominou Fátima e sua tia Cáritas.
NOÉLIA – Meu irmão é o Vinicius. Cáritas é a irmã mais nova da minha mãe, que se chama Dorinha.
ZONA SUL – E o seu pai?
NOÉLIA – José Raimundo. Ele morreu quando eu tinha 15 anos. Não tive contato com ele após sair de Recife. A separação foi abrupta. Minha mãe deu um dinheiro a ele e disse que estava saindo do casamento. Ele ainda perguntou se podia se despedir dos filhos. Minha mãe respondeu que não, que depois nos explicaria. Em um dia eu estava com o meu pai, no outro não estava mais.
ZONA SUL – Em que ele trabalhava?
NOÉLIA – Acho que era bancário. Espera: Fátima está dizendo que ele era comerciário. Diferente de mim, ela teve contato com ele após a separação.
ZONA SUL – Você guardou alguma mágoa dele?
NOÉLIA – Não, pelo contrário. Guardei mágoa da minha mãe, por não ter deixado que ele se despedisse de mim. Até idealizo um pouco, porque não o conheci.
ZONA SUL – Como foi trocar o Rio por Brasília?
NOÉLIA – Trocar uma quitinete por um apartamento de quatro quartos foi como mudar de classe social. De certa forma mudamos, já que o padrão financeiro melhorou. O quarto maior da casa era meu e de Fátima. Meu irmão tinha um quarto só para ele e minha mãe também. O último ficou para assistir televisão, essas coisas.
ZONA SUL – Quais suas primeiras impressões da nova cidade?
NOÉLIA – Fiquei encantada. Era começo dos anos 70, Brasília estava ainda sendo construída. Não tinha nada muito pronto. Fomos morar na quadra 109 Sul. Até hoje a minha mãe mora lá. Conheci muita gente, a adolescência em Brasília foi maravilhosa.
ZONA SUL – Tudo foi bom nessa mudança? Você não sentiu falta do mar e dos amigos que tinha conquistado no Rio?
NOÉLIA – Quando criança, não. Depois que fui crescendo é que passei a sentir falta do mar.
ZONA SUL – O tamanho do apartamento compensou...
NOÉLIA – Hoje não compensaria, jamais! Naquela época tudo era novo. Eu ficava sentada na jardineira ainda sem planta, conversando com a primeira amiga que fiz, a Gerti. Éramos vizinhas de janela. Ela sentava na jardineira do apartamento dela e eu na jardineira do meu.
ZONA SUL – E o colégio?
NOÉLIA – Comecei no Ginásio Setor Oeste, que era na 912. Ia a pé com as amigas. Essa independência eu não tinha no Rio. Também podia ficar embaixo do bloco. No Rio não tinha isso, e nem era por causa da violência. Não existia esse costume de ficar conversando embaixo de bloco, como em Brasília.
ZONA SUL – Brasília era majoritariamente uma cidade de forasteiros vindos de todos os cantos do país. Você sentiu dificuldade no relacionamento com pessoas tão diferentes?
NOÉLIA – A maioria das pessoas que morava no meu bloco tinha vindo do Rio. Muitos eram do trabalho da minha mãe. Ficamos perto desse pequeno núcleo já conhecido. Depois fui conhecendo outras pessoas.
ZONA SUL – Nessa época você já tinha alguma identificação com a literatura?
NOÉLIA – Comecei a fazer poemas aos nove anos de idade. Ia ao trabalho da minha mãe e lá perguntava o nome das pessoas para fazer versinhos para elas, rimando. Um dia alguém me deu um caderno para eu registrar o que escrevia. Acho que foi minha mãe. O primeiro poema que fiz tinha o nome de “A borboleta prosa”. Aliás, era música, bem jovem guarda. Eu gostava de fazer letra com música.
ZONA SUL – Antes de escrever, você deve ter lido alguns poemas...
NOÉLIA – Não lembro se tive contato com poesia naquela época. Talvez tenha ocorrido na escola. Depois, fiz Letras na Universidade de Brasília. Segundo a minha mãe, aprendi a ler sozinha, antes de ir para a escola. Com a poesia deve ter ocorrido o mesmo. Lembro que adorava minhas professoras de Português. Mas não lembro ter lido poesias ou minha mãe me incentivando a ler.
ZONA SUL – Você tomou gosto pela leitura em qual época?
NOÉLIA – Já em Brasília. Demorei um pouco a ler, era meio preguiçosa. Lia obrigada pelo colégio. No ensino médio, que na época era o segundo grau, é que tomei gosto. Fui incentivada pelos professores de Português. Me identificava com eles.
ZONA SUL – Você começou lendo o que?
NOÉLIA – Na começo li Machado de Assis, José de Alencar e aquelas coisas da escola. “Dom Casmurro” me impressionou um pouco. Eu ainda não sabia que a literatura seria a minha praia. Na época eu lia muito prosa, obrigada pelos professores. Quando entrei na universidade, a poesia tomou conta de mim. Comprei a coleção de Fernando Pessoa, em papel bíblia, e a de Cecília Meireles. Drummond foi outro que li loucamente. Na universidade, Álvares de Azevedo me impactou muito. Vieram os simbolistas: até hoje tenho as obras completas de Cruz e Souza. Augusto dos Anjos é autor do primeiro poema que decorei: “Versos Íntimos”. Outra influência poética, que é tida como segunda categoria foi Bruna Lombardi. Tenho todos os livros dela.
ZONA SUL – Qual o primeiro livro que lhe agradou verdadeiramente?
NOÉLIA – Lembro muito de um livro de Dalton Trevisan, “O vampiro de Curitiba”, que eu gostei muito. Fiquei com ele na cabeça.
ZONA SUL – Quando?
NOÉLIA – Em 1977 ou 1978. Quando comecei a namorar o Nicolas Behr - na época em que ele começou a fazer livros como “Iogurte com farinha” - eu já estudava Letras na UnB. Nesse tempo eu sabia mais de poesia do que ele. Nicolas escrevia intuitivamente. Depois ele passou a ler mais, embora nunca tenha feito curso superior.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre Nicolas Behr para os leitores que não o conhecem.
NOÉLIA – Antes deixa eu voltar um pouquinho. Em Brasília comecei a me relacionar com muitas pessoas. Conheci músicos como o Sérgio Duboc, do Liga Tripa. Gostei de ingressar no mundo dos músicos, poetas e artistas. Passei a escrever para mostrar e ver se as pessoas gostavam. Além do Duboc, também faziam parte dessa turma a Gerti (minha amiga de infância), o Aldo Justo (outro compositor da cidade) e o Vicente Sá (poeta). Assisti a todos os festivais de Brasília. Antes de conhecer o Nicolas fiz um poema chamado “Humanita qualquer”. Houve um concurso de letrista e músicos no “Elefante Branco”. Pedi a Abraão para ele fazer uma música para aquele poema. Ele nem gostou muito da poesia, mas fez. Tirei o primeiro lugar no festival. Abraão colocou outra música dele, além da nossa parceria. Ele ficou em segundo lugar com sua música e em primeiro com “Uma Anita qualquer”. Eu era novinha, tinha uns 16 anos. Terminei o ensino médio no “Elefante Branco”. Depois fiz cursinho e passei no vestibular para Letras.
ZONA SUL – Concluiu o curso?
NOÉLIA – Sim. Nessa época conheci os poetas Paulo Tovar, que já faleceu, e Sóter. Nós três lançamos um livro juntos, o “Salada Mista”. A tiragem foi pequena. O livro era rodado em mimeógrafo, grampeado e vendido de mão em mão. Foi minha primeira participação em livro, isso em 1978, por aí. Esqueci de falar que antes de namorar o Nicolas, na época em que conheci os músicos de Brasília, a gente lançou uma cooperativa de músicos e poetas chamada COPPO, com dois “pês”. Eu era secretária da COPPO, recebia as inscrições. Os artistas preenchiam uma ficha e me entregavam, junto com uma foto. Todos os músicos de Brasília passaram pela minha mão de alguma forma: Eduardo Rangel, Zelito Passos, Paulo Cauim...
ZONA SUL – Você falou que esse COPPO tinha dois “pês”, mas tinha muitas garrafas também?
NOÉLIA – Muitas. Tinha muita cachaça “Velho Barreiro” e outras marcas da época. A gente também tomava conhaque de alcatrão “São João da Barra”. Realizamos o primeiro show da COPPO com Kaluca (piano), Sérgio Duboc (violão) e mais alguém que não lembro. Os músicos tocavam, Gerti e eu dizíamos poemas. Ao final do show dei meu primeiro autógrafo, a um senhor que pediu.
ZONA SUL – E o Nicolas Behr?
NOÉLIA – Junto com Tovar e Sóter fomos lançar o “Salada Mista” em Catalão (GO). Foi lá que conheci o Nicolas. Voltei com ele, os meninos ficaram. Na viagem de volta, dentro do ônibus, começamos a namorar. Niki tinha lançado o livro de poesias “Iogurte com Farinha”. Vendia em escolas, cinemas, na rua, nos bares e restaurantes... Passei a acompanhá-lo. Niki brilhando e eu ao seu lado. Eu tinha poemas guardados que ninguém lia. Eu era a que estudava literatura e Nicolas o que fazia poesia. Paulo Tovar foi quem teve a ideia de lançar meu primeiro livro individual, também em mimeógrafo, o “Expectativa”. O desenho da capa é da Fátima. Tem uns 20 poemas, é um livro pequenininho. O lançamento foi legal, o Paulo Tovar ajudou muito. Foi no Centro Cultural da 508. Vários músicos da cidade tocaram. Vendi um pouquinho, embora não tivesse muito jeito pra isso. Tovar me ajudou. Namorei o Nicolas por cinco anos. Era um namoro muito intenso. Fiquei mais conhecida por causa de um poema que ele fez pra mim: “Te amo 24 horas por segundo”. Ele até pichou seu quarto com esse poema.
ZONA SUL – Como é o poema?
NOÉLIA – “Te amo 24 horas por segundo”. Esse é o poema. Niki pegava o microfone nos “Concertos Cabeças” e falava pra mim. Era um namoro superfestejado.
ZONA SUL – O que eram esses “Concertos Cabeças”?
NOÉLIA – Eram apresentações periódicas promovidas pela galeria de artes “Cabeças”. Ocorriam na 310 Sul. Eram shows ao ar livre com muita música, teatro, dança, poesia e artes plásticas. Também tinham uns joguinhos, umas adivinhações sobre música. Eu e o Niki acertávamos todas. A gente ganhava tudo que era oferecido naqueles concertos. Nesse meio tempo, acredito que antes do lançamento de “Expectativa”, participei do livro “Aí é que são elas”. É uma coletânea da qual participamos eu, Tita (a mãe do Haroldinho Matos e do Paulinho Matos) e Teca.
ZONA SUL – Que tipo de música você escutava nessa época?
NOÉLIA – Todos os de Minas: Lô Borges, Milton Nascimento... Eu era louca pelo Beto Guedes. Fiz poema pra ele. Minha poesia tem um pouco de letra de música. Até hoje sou ligada em letra de música. Muito letrista me inspira. Eu também sofria influência da minha irmã, que ouvia Gonzaguinha, Ângela Rorô... Aprendi a gostar. Ouvi muito o “Boca Livre”. Eu tinha uma discoteca enorme, um baú entupido de coisa. Tudo o que era lançado, eu ia olhar. Também adorava os baianos.
ZONA SUL – Você falou de muita gente, mas não citou ninguém de Brasília.
NOÉLIA – Eu estava com os músicos de Brasília o tempo inteiro. Não citei porque eles ainda não tinham gravado discos, e a pergunta foi sobre os elepês que eu ouvia. Convivi muito com os músicos daqui: Gadelha, Flávio Faria, Sergio Duboc, Aldo Justo, Abraão, Paulo Tovar, Calouro...
ZONA SUL – Você conviveu também com artistas de outros estados que moraram em Brasília, como Fagner e Ednardo?
NOÉLIA – Os cearenses também faziam parte da minha discoteca. Tive o primeiro disco de Ednardo, Rodger e Téti. Pedi a minha mãe, que estava em São Paulo, para procurar o primeiro de Belchior nas discotecas de lá. Gostava do Fagner e era apaixonada pelo Clodo. Mas minha ligação era apenas de fã. Quando Ednardo veio fazer um show aqui, dei um vinho pra ele. Sempre tive essa coisa de fã. Até já disse ao Djavan que o amava... Eu amava todo mundo. Era apaixonada pelo Climério, queria conhecê-lo. Um dia me levaram até a sua casa. Ele abriu a porta e eu fiquei paralisada, sem saber o que fazer. Fui embora pra casa porque não dava conta de falar com Climério. Acabou que ele fez um livro e colocou um poema meu. Fiz minha monografia sobre canções do Paulinho Moska. Fui até a casa dele, o entrevistei e até hoje trocamos e-mail. Ainda cultivo essa coisa de fã.
ZONA SUL – Paulão está nos lembrando que saímos um pouco do rumo da conversa. Estávamos falando sobre o Nicolas Behr.
NOÉLIA – Sim. Outro poema que ele fez para mim foi “Estou perdendo o medo de gente: já pego na mão da minha namorada”. E teve o que acabou virando música, que foi o “Travessia do Eixão”. É mais ou menos assim: “Nossa Senhora do Cerrado / Protetora dos pedestres / Que atravessam o Eixão / Às seis horas da tarde / Fazei com que eu chegue são e salvo / Na casa da Noélia”. Ele atravessava realmente o Eixão para ir à minha casa. Nicolas morava na 415 Sul e eu na 109 Sul.
ZONA SUL – A oração funcionou? Ele conseguiu sempre atravessar o Eixão ileso?
NOÉLIA – Funcionou, nunca aconteceu nada. Amigos dizem que até hoje rezam quando vão atravessar o Eixão. Continuei convivendo com amigos músicos, como o Nonato Veras. Nessa época o “Liga Tripa” estava começando a aparecer. Um dia fui ao apartamento do Nonato. Ele mostrou a música que fez pro poema “Travessia do Eixão”. O “Liga Tripa” criou uma versão e incorporou às suas canções. Nesse meio tempo, conheci o Renato Russo. Ele era fã dos poemas do Niki. Como eu namorava o Niki, a gente foi se conhecendo. Renato acabou se aproximando da gente em encontros na noite. Nunca fui amiga de ir à casa dele, mas a gente sempre se encontrava. Renato era muito gentil e receptivo. Aproximei-me mais dele do que o Niki, que se retraiu um pouco. Tenho até a foto de um aniversário de Niki na qual estou sentada no colo do Renato. Quase todos os músicos da cidade estão nessa foto.
ZONA SUL – Isso tudo deve ter acontecido antes de Renato Russo fazer sucesso com o “Legião Urbana”...
NOÉLIA – Sim, foi antes de ele estourar.
ZONA SUL – Dava pra notar que ele era diferente?
NOÉLIA – Sim. Quando ouvi aquele primeiro disco, fiquei completamente em êxtase.
ZONA SUL – Você ouviu o disco após ele estar sendo vendido nas lojas ou teve uma audição privilegiada?
NOÉLIA – Só depois que o disco saiu. Conhecia o trabalho do “Aborto Elétrico”, não do “Legião Urbana”. Eu já adorava o som mais pesado e agressivo do “Aborto Elétrico”. Conhecia alguma coisa que o “Legião” gravou e que o Renato cantava muito, como “Dado Viciado”. Mas aquela coisa de “Geração Coca-Cola” eu não conhecia. Certa vez recitei para Renato, em um concerto no Lago Norte, um poema que fiz pra ele. Era e ainda sou muito tímida. Eu disse assim: “Gente, vou falar um poema, mas como sou muito tímida, vou falar de costas”. Foi assim que fiz. Fui super aplaudida.
ZONA SUL – Por que você respondeu com tanta convicção que dava para notar que Renato Russo era uma pessoa diferenciada?
NOÉLIA – Não apenas seu som, mas como pessoa, ele também era muito especial. Era muito carismático, era uma pessoa divina.
ZONA SUL – Você também conviveu com Cássia Eller?
NOÉLIA – Pouco. Meu ex-marido tinha mais contato.
ZONA SUL – E Oswaldo Montenegro?
NOÉLIA – Entrou de penetra na minha festa de 18 anos. (risos). Não foi convidado, entrou porque era muito ligado a Léa, uma das minhas convidadas. Chamei esse meu aniversário de 18 anos de “Realce”, por causa daquela música do Gil. Eu colocava purpurina em todo mundo que entrava. Não tinha contato com Oswaldo, mas gostava daquelas primeiras músicas dele. Zélia Duncan morou perto. Namorei o irmão dela, Luiz Otávio. Eu tinha 13, ele estava com 12 anos. Mas, voltemos ao Renato Russo. Encontrei com ele no Conic após o lançamento do primeiro disco do “Legião”, antes de estourar. Eu tinha ficado fascinada. Disse a ele: “Renato, o que é aquilo? Que disco lindo!”. Comprei até uns óculos como os dele, para ficar parecida. Nesse dia, enquanto conversávamos, Renato me mostrou as marcas da tentativa de suicídio que ele praticou na banheira. Cortou os pulsos. Usava muito aquelas camisas de mangas compridas para as cicatrizes não aparecerem. Fiquei mais fascinada ainda. Achei tudo aquilo lindo, sou uma fã inveterada, não tem jeito. Já a gravação que ele fez de “Travessia do Eixão” ficou guardada na gravadora. Só saiu depois que Renato morreu. Quando o disco começou a ser vendido, me ligaram: “Pega o disco póstumo do Renato que saiu a sua música lá”.
ZONA SUL – Apenas para relembrar, “Travessia do Eixão” é a oração que Nicolas fazia para chegar “são e salvo na casa da Noélia”.
NOÉLIA – Sim. Na época em que eu tinha contato com os músicos, eu e o Duboc compusemos uma canção. Ele me deu uma melodia para eu colocar a letra. A música chama-se “Entressafra”. O nome foi aproveitado por Duboc para batizar um show que ele organizou. Depois virou o nome desse grupo dele. Paulão, que está aqui conosco, era o percussionista. ZONA SUL – Renato Russo continuou seu amigo mesmo depois do sucesso?
NOÉLIA – Após ele ir para o Rio de Janeiro, depois daquele sucesso estrondoso, perdemos um pouco o contato. Passei a receber apenas cartões de Natal. Ele vinha sempre a Brasília ver a família. Em uma dessas vezes, ligou pra mim. Eu morava com uma amiga. Renato deixou um recado na secretária eletrônica que até hoje tenho gravado em uma fita k7. Ele disse: “queria falar com a Noélia, mas já que não está, queria desejar Feliz Natal para ela e para a secretária eletrônica também”. Outra vez me telefonou convidando para assistir a duas apresentações que faria aqui em Brasília: no Teatro Nacional e no Ginásio de Esportes. Respondi que iria e que até já tinha comprado ingresso para o show no teatro. Fui apanhar com ele convites para o ginásio também. O show me deixou impressionada. Vi como ele estava fazendo sucesso. Tinha gente se jogando lá de cima para poder chegar perto do palco. A polícia teve que fazer milhões de manobras pra segurar os fãs. Eu não acreditava que era convidada para aquele show. Depois vi o mesmo show na Sala Villa-Lobos, do teatro. No dia seguinte, Renato me ligou chamando pra eu ir ao hotel onde estava hospedado. Estava promovendo uma recepção para poucos amigos. Respondi que estava dura. Ele disse: “venha que eu pago o táxi”. Fui e ele pagou meu táxi. A festa era muito louca. Todos completamente enlouquecidos. Eu não fazia parte daquilo, me senti meio perdida. Diverti-me o que pude, falei com ele e fui embora. Depois o encontrei no Gate's Pub. Fui falar com ele. Foi engraçado. Ele estava enlouquecido: se ajoelhou aos meus pés e beijou minha mão. Eu disse: “Renato, pelo amor de Deus, levanta, meu filho. Você está me matando de vergonha”. Ele nem aí. Aquele ídolo para quem muita gente se ajoelharia, estava ali ajoelhado diante de mim. Ele dizia sempre que não esquecia os amigos de Brasília. “São os únicos sinceros, o resto veio por interesse. Vocês são as pessoas que realmente conquistei. Gostam de mim apesar de qualquer coisa”. Ele sempre frisava isso.
ZONA SUL – Quando terminou o curso de Letras você foi fazer o que da vida?
NOÉLIA – Terminei o curso de licenciatura e fui ensinar Português. Fui professora do Colégio Santa Dorotéia durante um ano e meio. Depois disso resolvi voltar à UnB. Fui fazer bacharelado em Inglês. Foi na época em que entrei para o Ministério da Fazenda, como agente administrativo. De manhã era professora e de tarde trabalhava no Ministério. Larguei a sala de aula porque estava muito cansada. Optei por estudar.
ZONA SUL – E a poesia?
NOÉLIA – Continuei escrevendo uma coisa ou outra e guardando.
ZONA SUL – Quando você resolveu desengavetar esse material?
NOÉLIA – Somente no ano passado. Parei um pouco de escrever quando casei. Em 1989 comecei a namorar o meu ex-marido, Adauto Soares. Casamos em 1992. O conheci na noite. Virou amigo. Eu desabafava com ele. Sempre fui uma mulher apaixonada. Toda semana eu estava apaixonada por uma pessoa diferente. Acho que a paixão era sempre a mesma, só mudava o destinatário. Queria estar sempre apaixonada para poder usar esse sentimento escrevendo muita poesia.
ZONA SUL – Alguns dizem que a poesia flui mais fácil quando a pessoa está sofrendo...
NOÉLIA – Ou sofrendo ou muito apaixonada. É um sofrimento ficar muito apaixonada. Tudo é muito intenso. Quando a vida está morninha, não. Quando casei com Adauto, a vida ficou morninha, a produção caiu a zero. Cinco anos depois veio o primeiro filho, o Nino Soares, que tem 15 anos hoje. Como sou meio intensa, só consigo fazer uma coisa de cada vez. Fui ser mãe, só pensava nele. Depois, pra quebrar um pouco essa ligação muito forte que tive com ele, resolvi engravidar de novo. O nascimento da minha filha, Alice, foi minha libertação. Pensei que seria minha prisão, mas foi minha libertação. Ela tem nove anos hoje.
ZONA SUL – Nessa época você já trabalhava na Câmara dos Deputados?
NOÉLIA – Quando estava de licença-gestante devido a meu primeiro filho, passei no concurso para a Câmara. Estudei taquigrafia alguns anos e passei. Trabalho lá até hoje.
ZONA SUL – Os taquígrafos devem encontrar muita dificuldade para anotar o discurso de determinados políticos.
NOÉLIA – Um bem difícil era o Enéas. A gente perdia trechos do que ele falava, mas depois recuperava ouvindo a gravação. Ele falava 140 palavras por minuto, nosso treinamento é para pegar 120 por minuto.
ZONA SUL – Você lembra ter taquigrafado algum fato histórico ou situação engraçada?
NOÉLIA – Várias. Teve um deputado que levou uma galinha viva, farinha e outros tipos de comida para a tribuna. Eu estava presente no dia em que certa deputada fez aquela “dança da pizza”, comemorando a absolvição de um colega de partido. Ainda apareci na beirinha da foto. Outro dia entrei toda de verde no Plenário. Saia verde, blusa verde e colete verde. Clodovil me olhou de cima abaixo e fez uma cara de reprovação. Olhou como quem diz: “que abacate é esse, que árvore é essa chegando?”. Percebi claramente que não agradei. Como eu trabalho mais pela manhã, pego sessões mais tranquilas.
ZONA SUL – Agora, depois de muito tempo você tirou a poesia das gavetas.
NOÉLIA – Apesar de não publicar, eu vinha escrevendo no meu caderninho. No começo do namoro com Adauto, escrevi algumas coisas pra ele. Depois se tornou aquela coisa morninha e não tinha poesia que segurasse. Quando o casamento começou a entrar em crise, voltei a escrever. E a sofrer. No fim eu já estava meio engatada no livro. Quando estava prestes a me mudar - o casamento já terminando - as caixas do livro chegaram para eu fazer a revisão.
ZONA SUL – A crise no casamento influenciou o título do livro: “Atarantada”?
NOÉLIA – Não. Esse é o título de um poema feito muito antes. Ele estava guardadinho. Peguei poemas novos e juntei com uns antigos, nos quais dei uma recauchutada, uma melhorada. “Atarantada” já existia há muito tempo. Na verdade o nome do livro seria “Sorriso do desconhecido”
ZONA SUL – Por que a troca?
NOÉLIA – Fui à casa de uma amiga que gosta muito de mim e é muito ativa. Ela foi me ajudar a mexer na capa. Ela achou a capa horrível e o título também. O editor também já havia opinado que aquela capa anterior não vendia. Juntou uma coisa com outra.
ZONA SUL – Como foi o lançamento do livro?
NOÉLIA – Foi lançado no Café da Rua 8, no dia 3 de dezembro. Convidei vários músicos pra tocar. O “Liga Tripa” se apresentou maravilhosamente. O astral estava muito bom. Só não foi melhor porque choveu. Nonato cantou Nonô (“Travessia do Eixão”). Gadelha cantou também. Foi uma grande festa. Falei alguns dos meus poemas e convidei alguns amigos pra falarem outros. Minha irmã falou um, Duboc e Nicolas falaram também. A tiragem foi de 750 exemplares.
ZONA SUL – Você tem algum site para divulgar o seu trabalho?
NOÉLIA – Tenho Orkut. Uma amiga entrou no Orkut, no “Recanto das Letras” e vendeu livro pra caramba. Eu entrei no Orkut pra divulgar um pouco a minha poesia, mas não mudou muita coisa. Muita gente ligada a Literatura me escreveu através do “Recanto das Letras”, mas, com relação às vendas, não teve esse impulso todo. Também lancei o “Atarantada” no “Café com Letras”, junto com o lançamento do livro do Joãozinho da Vila. A intenção agora é lançar no Rio de Janeiro. Tenho feito contato com alguns músicos. Mandei o livro pro Celso Fonseca e pro Antonio Adolfo. Como gosto de música, espero que repercuta de alguma forma. Fui convidada a lançar o livro também em uma semana de literatura do Ceub. Coincidentemente fui colocada no mesmo dia de uma palestra do Nicolas. Acabou que fizemos a palestra os dois. Foi interessante porque contamos milhões de histórias e os estudantes ficaram animados. Histórias do tempo em que a gente namorava. Ao final ele vendeu os livros dele e eu vendi os meus. Foi muito legal.
ZONA SUL – Qual a repercussão do livro?
NOÉLIA – Os homens, principalmente, fizeram comentários como se a minha poesia fosse meio sexual e pornô, o que não tem nada a ver. Uns perguntaram se as pernas da capa do livro são as minhas. Eu gostava da poesia de Bruna Lombardi porque ela é meio erótica. Sempre tive essa queda para a sensualidade, para o erotismo. Mas alguns confundem um pouco o “eu” poético com o próprio poeta. Tem gente que pensa que tudo o que escrevi eu fiz. Quando escrevo “no meu colchão lilás deitariam homens”, já imaginam que tenho um colchão lilás dentro de casa e que encho de gente. Tem homens que reagem assim: “nossa, seu livro, hein... uma sacanagem pura”. Mas na verdade é um livro muito feminino. Em um poema falo de mãe, num outro o tema é Paulinho Moska. Já a reação das mulheres é de identificação com o que escrevo.
ZONA SUL – Como alguém, por exemplo, em Natal, pode adquirir seu livro?
NOÉLIA – É só escrever para o meu e-mail: nocamaria@gmail.com/. O prefácio é da compositora Ana Terra que faz músicas com Joyce. Elis Regina gravou várias canções com a letra dela. Não a conheço pessoalmente. Mandei o livro por e-mail, depois de encontrá-la na Rede de Escritoras Brasileiras (Rebra). A internet funcionou nessa hora! Participei de uma antologia da Rebra. No email que enviei para ela eu escrevi mais ou menos assim: “Ana Terra, sou sua fã desde os 20 anos, você é tudo pra mim. Suas letras me inspiram, são maravilhosas. Você não quer fazer o prefácio do meu livro?”. Mandei junto com o livro. Ela foi super gentil. Fez um prefácio muito gracinha e até me comparou a Florbela Espanca. Achei tudo lindinho. Engraçado que devido a essa minha ligação com música acabei chamando uma compositora, e não um poeta, pra fazer o prefácio. Nicolas fez a orelha e Aluisio Brandão, que compõe muito com Climério, fez a contracapa. O livro tem 71 poemas e duas gravuras de Gustavo Maron, um amigo que desenha acessórios em Paris para a Chanel. Foi editado pela Verbis. Foi o primeiro livro da editora. Ainda tem alguns exemplares a venda no Café com Letras, na quadra 203 Sul, ou por e-mail, comigo. Meu editor vai tentar comercializar também através da Saraiva e da Cultura.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do Zona Sul. Mas, antes, diga qual o seu poeta preferido
NOÉLIA – O poeta é Drummond. Aos amigos de Natal eu posso dizer que já estive nessa linda cidade, quando tinha 18 anos. Não lembro muitos detalhes, mas guardo a sensação de que gostei muito. Também quero complementar que “Atarantada” é um livro muito acessível. A linguagem não é difícil. As mulheres adoram e os homens também gostam muito. É gostoso de ler. A minha manicure adorou. Minha professora de Literatura adorou. Na verdade, quem lê, gosta.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Entrevista: Lene Macedo

A VIDA E A ARTE DE LENE MACEDO

Shirlene Alves de Macedo é o nome de batismo da cantora natalense Lene Macedo. A entrevistada desse mês do Zona Sul foi sabatinada por mim, pelos jornalistas Costa Júnior e Roberto Fontes, pelo músico Ricardo Menezes e pelo advogado e meu irmão, Ronaldo Siqueira. A conversa foi travada no local que se transformou em sede informal do jornal, o Restaurante Veleiros, em Ponta Negra. Lene não mediu palavras ao contar detalhes de sua trajetória artística e pessoal. Para comemorar dez anos de carreira na música potiguar, ela está lançando seu primeiro CD. O lançamento do disco coincide com a publicação dessa entrevista. Vale a pena ler o que Lene Macedo tem para contar. Vale a pena ouvir o que Lene Macedo tem para cantar... (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – Você sempre morou em Natal?
LENE – Aos dois anos fui morar em Picos, no Piauí. Meu pai era do 13º Batalhão de Engenharia, se não me engano. Quando ele foi transferido, a família toda o acompanhou: eu, minha mãe e sete irmãos. Morei lá dos dois aos oito anos de idade.
ZONA SUL – Como foi sua infância em Picos?
LENE – O que mais lembro é que eu tinha muita liberdade. Como minha família nunca teve muito dinheiro, sempre foi de batalha, eu não possuía muitos brinquedos. Então eu brincava muito na rua, em uns morros que tinha perto de onde morava. Também gostava de construir brinquedos de barro, usando a argila molhada de um açude. Eu colocava para secar embaixo da cama de minha mãe, para depois brincar. Meu irmão fazia cavalinhos, eu moldava bonecas, fogões... Na rua a diversão era o pique-esconde. Picos era bem pequena, estava começando a se desenvolver. O clima era horroroso, quente demais. Porém, às vezes chovia granizo. Era uma loucura. Quando formava aqueles redemoinhos na rua, a gente tinha que correr para fechar as portas e janelas. O vento invadia as casas e derrubava cadeiras, objetos, tudo. Os agricultores cultivavam alho na beira do açude que tinha lá. Minhas duas irmãs mais velhas e um dos meus irmãos ajudavam na colheita. Nós, os mais novos, íamos juntos. Era bom demais. A gente caminhava quilômetros e às vezes voltava de carona em caminhão. É muito bom falar nessas coisas que fazia tempo que eu não lembrava...
ZONA SUL – Você citou seus pais e irmãos, mas não falou o nome deles...
LENE – Meu pai, Severino Lopes Macedo, faleceu em 1998. É daquelas bandas de Santana do Matos, Lagoa Nova... Minha mãe é Adalgisa Alves de Macedo. Meus irmãos são sete.
ZONA SUL – Pode dizer o nome de todos, temos duas páginas do jornal.
LENE – (risos) A primeira vai encher só com minha árvore genealógica. Naquela época tinha o costume de as meninas serem batizadas com a inicial do pai e os meninos com a inicial da mãe. Então, na minha família o nome dos meninos começa com “A” e o das meninas com “S”. A mais velha é Sílvia, que trabalha em serviço burocrático na Base Aérea, no Catre. Solange trabalha na CAERN. Depois vem Alexandre, que herdou a profissão do meu pai, a marcenaria. Não posso falar que ele é restaurador, mas Alexandre é ótimo com detalhes. Aprendeu a fazer aquele trabalho de marchetagem, de madeira prensada. Estou misturando homens e mulheres porque estou vindo pela sequência de nascimento.
ZONA SUL – Pois não, pode prosseguir.
LENE – Depois veio Adejair, o mais engraçado dos irmãos. Acho que minha mãe queria Jair, mas como tinha que ser no “A”, ela inventou esse nome. Nós o chamamos de Jair. Ele teve paralisia infantil. Minha mãe batalhou muito com ele. Jair andou com cinco anos de idade. Hoje ainda tem uma deficiência grande, mas consegue levar uma vida normal. Tem seu trabalho, sua esposa e é completamente independente. Atualmente está trabalhando em serviço burocrático, na Unimed. Álvaro, que a gente chama de Neguinho, trabalha com construção. Simone mora com a minha mãe e tem um filhinho. Na sequência, eu sou próxima. A mais nova, Sheila, mora há um ano e meio em Brasília. É corredora profissional. Foi ela quem me ensinou o quanto é gostoso correr. Também terminou curso de gastronomia e está trabalhando em um restaurante. Minha mãe, que durante muito tempo foi “do lar” – como as mulheres de antigamente - hoje é costureira.
ZONA SUL – Ninguém da sua família mexia com música?
LENE – Não. Minha mãe teve contato e foi amiga de Agnaldo Rayol, quando ele morou em Natal e estava começando. Aos domingos ela não perdia um programa de auditório da Rádio Poti. Também gostava de cantar, em casa. Sempre teve voz muito bonita e afinada.
ZONA SUL – Qual o repertório dela?
LENE – Adorava Ângela Maria, Noel Rosa, Cartola... Minha mãe sempre teve um gosto musical primoroso. Dela herdei pelo menos o gosto por música boa.
ZONA SUL – Como foi retornar para a cidade onde tinha nascido?
LENE – Natal não existia para mim. Eu não lembrava de nada. Quando a gente chegou a Natal, estavam começando a calçar as ruas do Alecrim. Morei anos e anos - e minha mãe ainda mora lá - na Avenida 3. Aquele trabalho de calçamento era ótimo porque a gente brincava com a areia e se escondia na tubulação. O padrinho de minha irmã Solange tomava conta da parte de irrigação da Escola Agrícola de Jundiaí, em Macaíba. Todo mês de junho a gente ia passar as férias lá.
ZONA SUL – E os estudos?
LENE – Fiz até a oitava série na Escola Dom Marcolino Dantas. Depois fui para o Winston Churchill, na época em que as Lojas Americanas estavam inaugurando sua filial, em frente. Nós, alunos, ficávamos loucos: atravessávamos a rua para comprar biscoito.
ZONA SUL – Você foi boa aluna?
LENE – Média ou razoável, dava pro gasto. Os gênios se dão bem em tudo. Como uma pessoa normal, eu me dava bem em algumas: Português, Redação, História, Geografia... Não gostava de Química e Matemática. Porém não tirava notas muito ruins. Prestei vestibular, mas não consegui passar.
ZONA SUL – Você envolveu-se com música na escola?
LENE – Não. Minha história é atípica: ela não tem nada a ver com garagem, com banda, com adolescência...
ZONA SUL – Então vamos prosseguir. Você estava falando no vestibular...
LENE – Vai demorar até chegar na música... Prestei vestibular duas vezes. Uma delas foi para Letras. Resolvi trabalhar por me sentir responsável pela minha família. Meu pai foi alcoólatra durante muitos anos. Eu via que ele já não trabalhava como antes, por isso minha mãe passou a costurar em domicílio. Passava o dia fora, quando chegava em casa tinha um monte de coisas pra fazer. Comecei a trabalhar aos 19 anos.
ZONA SUL – Fazendo o que?
LENE – Meu primeiro emprego foi vendendo cachaça artesanal, a Murim-Mirim. Eu vendia e personalizava as garrafas. Foi lá que adquiri meu problema de miopia. Tinha um campo no rótulo da garrafa para a gente colocar o nome da pessoa, ou uma frase. A gente prensava e personalizava o rótulo na hora. Lembro que um dia Pedrinho Mendes chegou lá na loja quando estávamos fechando. Eu tinha um compromisso e estava doida pra sair. Era perto de uma data comemorativa, todo mundo queria comprar a cachaça. Eu e Noé - um rapaz que trabalhava comigo - queríamos ir embora. Quando fechei a porta, Pedrinho colocou o pé. Apesar de ele estar fazendo muito sucesso naquela época, eu não o conhecia. Ele pediu pelo amor de Deus que eu vendesse só uma garrafa. Eu disse que não podia, estava fechado. Ele perguntou se eu sabia quem ele era. Respondi: “nem quero saber”. (risos).
ZONA SUL – Você apenas vendia ou também tomava Murim? Depois de vender cachaça, o que você foi fazer da vida?
LENE – Naquela época eu não tomava, hoje bebo um pouco de cachaça mineira e de Samanaú. Mas não sou muito fã. Depois dali trabalhei quase sete anos com contabilidade. Quando tive minha filha, resolvi ficar em casa, dar um tempo. Eu sempre dizia que quando engravidasse queria ficar com meu filho pelo menos um ano. Depois disso foi que a música apareceu.
ZONA SUL – Caiu de pára-quedas? Como foi?
LENE – Eu tinha um rival dentro de casa, que poderia ser meu aliado: o violão do meu marido Josué, o Jô Fernandes. Ele tocava. Quando ele pegava o violão, eu sentia ódio. O desejo que eu sentia era de quebrar o instrumento na cabeça dele.
ZONA SUL – Ele tocava apenas em casa?
LENE – Em casa, farras e na praia. Aliás, naquela época não era “tocar” violão, era “bater” violão. Literalmente. Todo mundo cantava junto. Josué trabalhava na Caixa Econômica Federal. Eu tinha combinado de voltar a trabalhar depois de um ano do nascimento da nossa filha. Mesmo em casa, trabalhei ainda uns seis meses. Era bem apertado, eu tendo que cuidar de Rebeca bem pequenininha. Jô trabalhava à noite na CEF, recebendo adicional e tudo. Mudaram seu horário para o dia e ele perdeu um bocado de vantagens e dinheiro. Passamos por uma barra pesada, financeiramente falando. Tentamos ser empresários, mas não conseguimos.
ZONA SUL – Em qual ramo?
LENE – (risos) De novo a danada da bebida estava lá no meio, me perseguindo. Montamos um quiosque perto do Via Direta para vender espetinho, caldinho, cerveja... Eu preparava tudo previamente em casa e levava para o Jô, quando ele saía do trabalho. Não deu muito certo. Era muito cansativo e o trabalho era bem maior do que a recompensa. E outra: aguentar os bêbados de fim de noite era dose. Em uma fase crítica, vendemos o quiosque.
ZONA SUL – Nada da música ainda?
LENE – Então vamos lá. Em 1999 Jô conheceu uma moça chamada Rejane Luna, que estava começando a cantar profissionalmente. Ele me chamou para irmos ao Safari, um barzinho no bairro Cidade Satélite. Era a estreia de Rejane. No meio da apresentação, ela chamou Jô para dar uma canja. Ele tocou uma música de Djavan, acompanhando Rejane. Depois Jô acompanhou outro cantor, e Rejane Luna veio sentar à mesa comigo. Não nos conhecíamos. Ela percebeu que eu cantarolava as músicas que estavam sendo tocadas. Então, quando retornou ao microfone, Rejane disse: “eu queria chamar uma amiga pra cantar”. Fiquei procurando a amiga, mas só notei que era eu quando ela disse meu nome. Ela deve ter imaginado que eu costumava cantar com Jô, mas eu estava morta de vergonha. Sempre fui tímida demais. Tinham poucas pessoas no bar, mas mesmo assim a cobrança foi grande, depois que eu disse não. A plateia devia estar pensando que eu estava fazendo charme. Resolvi cantar meia música para que percebessem que eu era um fiasco. Cantei “Tigresa”, de Caetano Veloso. Saiu direitinho, não saiu feio. Quando terminei, pediram para eu cantar mais uma. Eu não queria, mas acho que cantei umas cinco músicas, nessa noite. Era tanta vergonha que eu tinha, que eu quase me enforco com o casaco que eu trazia amarrado ao pescoço. Meu pé escorregava no sapato, por causa do suor frio. Quando terminei, o gringo dono do restaurante perguntou se meus sábados estavam livres. Tive que explicar que não era cantora e que jamais assumiria novamente um microfone para canar. A sensação foi ruim, de insegurança. Eu não sabia o que estava fazendo. Foi horrível. Jô ficou surpreso com a forma como me comportei no palco, apesar de tudo. Dava para ver nos olhos dele aqueles cifrões, como se Jô fosse um Tio Patinhas. Enfrentar a noite foi horrível. É maravilhoso hoje, mas naquela época, sem experiência e sem repertório, foi muito difícil.
ZONA SUL – Você encarou a noite antes mesmo de ensaiar e preparar um repertório?
LENE – Fui levada a isso, não foi irresponsabilidade. Um dia depois daquela minha estreia, encontramos o artista Rubinho, que também trabalhava na CEF. Jô falou, brincando com ele e comigo: “olha, Rubinho, tem concorrência na parada, a bichinha aí cantou sexta-feira e parece que tem a voz boa: se trabalhar acho que dá certo”. Rubinho nos convidou para ir à sua casa. Jô ficou tão empolgado que já queria ir no dia seguinte. Dois dias depois passamos lá. Rubinho tocava e me perguntava se eu conhecia tal música. Foi numa dessas idas que recebi a ligação avisando que meu pai tinha falecido. Mas, voltando, uma semana depois Rubinho ligou perguntando se Jô conhecia alguém para substituí-lo durante uma hora na praça de alimentação do Via Direta. Ele ia cantar em um casamento. Jô, com os cifrões ainda nos olhos, respondeu que conhecia. Quando eu soube que ele pretendia me colocar para cantar, corri pro banheiro. Nunca me senti tão mal em toda minha vida. E ele me pressionando: “Lene, entenda, ele falou que vamos ganhar tanto”. Na época a gente estava precisando mesmo. Eu reclamei “não faça isso comigo, você não pode colocar a responsabilidade em mim, eu não sei cantar”. Ele propôs a gente sentar naquela hora para ensaiar. Respondi que não era assim, que eu sequer sabia como me comportar, que tinha muito medo, era muito ansiosa e não ia conseguir. Emagreci horrores no começo, perdi uns cinco ou seis quilos, pois quando sabia que teria que cantar, dava vontade de me mudar para o banheiro. As amigas perguntavam que dieta era aquela. Dieta coisa nenhuma, era medo mesmo.
ZONA SUL – Como foi essa estreia recebendo cachê?
LENE – Horrível. Rubinho tinha dito: “pra você que está iniciando, vinte músicas dá pra fazer uma hora”. Pegamos canções simples, que todo mundo canta. Quando terminei de cantar as vinte, ainda faltavam vinte minutos para o show encerrar. Foi aí que começaram os pedidos das pessoas. E eu não contava com isso. Eram músicas fáceis, como “Canteiros”. Durante todo o show cantei com os dedinhos no cós da calça, por não conseguir movimentar minha mão. Eu parecia uma pedra de gelo ali, tesa. Quando me pediram para cantar “Leãozinho”, Jô insistiu que era fácil demais. Mas eu não lembrava da letra. Começamos a discutir baixinho. Eu não querendo cantar, ele insistindo. Por fim ele perguntou se eu conhecia a melodia. Disse que sim. Ele combinou: “então você vai cantando e eu vou soprando daqui”. Eu respondi que estava certo, mas não ia dar certo. Jô começou a tocar e eu a cantar. Quando eu mais precisei dele, na parte que eu não lembrava da letra, quando olhei para o lado Jô estava de cabeça baixa, tocando. Parei de cantar, foi aquele silêncio total. Ele olhou pra mim, desandou tudo, foi horrível. Mas eu gostei de alguma coisa naquela noite. Não sei nem dizer muito o que foi. Rubinho voltou a precisar da gente outras duas vezes, se não me engano. Mas até lá, montamos um repertório. Rejane Luna sempre que ia cantar nos chamava para dar uma canja. Ela foi muito importante pra gente. Arrumava os contratos, pegava seu som, nos levava até o local do show, montava o equipamento, passava o som, ia embora, e voltava quando a gente acabava de cantar para recolher o som e nos levar pra casa no carro dela. Nunca vou esquecer.
ZONA SUL – Jô também enfrentou a mesma insegurança que você sentiu?
LENE – Não, porque ele já tocava há muito tempo, desde os oito anos de idade. Ele foi um louco, mas a responsabilidade maior foi minha. Eu tinha que dar a cara à tapa. Eu não tinha a dimensão disso. Para cantar eu precisava fazer o teste prático da Ordem dos Músicos. Quando fiz, o presidente da época, depois de me ouvir, disse: “Lene você tem uma coisa na voz que pode ser um problema ou uma característica da sua voz. Seria legal você ver isso”. Sugeriu que eu fizesse uns cursos na Escola de Música. Fiz e foi muito legal, aprendi coisas que até hoje guardo e uso. Foi bem prático, mas não me deu tudo que eu precisava. Fiz mais umas três oficinas e entrei no curso básico de música na Escola de Música da UFRN.
ZONA SUL – Você toca algum instrumento?
LENE – Nunca me interessei em tocar. Acho muito bonito. Estou mais pra percussão do que pra cordas.
ZONA SUL – Você compõe?
LENE - Tenho umas coisas escritas, mas nunca mostrei. Talvez eu não acredite no que escreva. De repente um dia vou mostrar e alguém vai dizer que é legal. O fato é que hoje sinto que não sei o que seria de mim sem a música. Cantar pra mim é uma coisa fabulosa. Pra minha personalidade e pra minha vida a música foi fundamental.
ZONA SUL – Você começou a tocar na noite em qual barzinho?
LENE – Estação de Minas. Era uma cachaçaria. O tempo que esse bar existiu, cinco anos, eu cantei lá.
ZONA SUL – Você enfrentou alguma situação inusitada cantando na noite?
LENE – Lembra daquela música “Titanic”? Rubinho insistiu que eu aprendesse a cantá-la. Ele me incentivou dizendo que a música subia um tom não sei como, não sei onde, e que seria bom pra mim. Passamos essa música algumas vezes e em todas deu certo. Marcamos uma canja no “Praia Shopping”. Rubinho estava no teclado e Jô no violão. Começaram a tocar a música do Titanic. Eu estava muito nervosa, meu lábio tremia, mas comecei muito bem. Quando foi perto da hora de começar a subida, eu ouvi Jô dizer a Rubinho que eu não ia conseguir. Rubinho apostava que eu ia. Na hora de subir o tom, eles naquela discussão, quase gritando, Jô levou um choque e deu um grito.
ZONA SUL – Mas você conseguiu alcançar a nota ou não?
LENE – Acho que ia conseguir, mas não sei. Foi um choque tão grande que Jô soltou o violão e foi aquele barulho. Nem fiquei sabendo se eu ia conseguir ou não. Mas esse dia foi muito engraçado.
ZONA SUL – Tocando em barzinho você deve ter sentido vontade de, por exemplo, cantar em um teatro.
LENE – Na época do Estação de Minas uma das sócias, Míriam, promoveu alguns festivais. Participei do I Festival da Canção como intérprete. Quem me acompanhou foi Eduardo Taufic. O conheci quando Miriam resolveu gravar um disco só com canções de Minas. Pagou pra gente gravar um CD no estúdio de Eduardo Taufic. Cantei quatro canções no disco “Estação de Minas canta Minas”. Foi assim que conheci o Eduardo. No festival pedi que ele me acompanhasse tocando teclado. Eu queria um arranjo só com voz e teclado. A música nas duas primeiras fases foi “A quem interessar possa”, de Mirabô Dantas e José Nêumanne Pinto. Eduardo não conhecia a canção e nem quis ouvi-la gravada. Apenas pediu para eu cantar. Cantei um pedacinho e ele perguntou qual era o tom. Gravamos para eu ficar ouvindo em casa e me acostumar com o arranjo. Ele anotou as cifras em um papel e me entregou. Pediu para eu devolver as anotações na hora da apresentação. Mas no dia, não achei esse papel. Pra completar, o palco era tão pequeno que ele tinha que ficar de costas pra mim. Apesar de tudo isso, a música ficou linda! Na terceira fase, como intérprete, eu podia trocar a canção. Escolhi “Cantar”, de Galvão Filho. Fiquei em segundo lugar. Fui eleita melhor intérprete no II Festival da Canção, com uma música chamada “Tudo Valeu”, de Jô Fernandes e Ivan do Monte.
ZONA SUL – Como foi sua participação no Projeto Seis e Meia?
LENE – Fiz duas vezes. A primeira com Luciana Melo e a segunda com Selma Reis.
ZONA SUL – Você chegou a ter contato com elas?
LENE – Com a Selma Reis, sim. Também tive contato com Vanessa da Mata, no circuito Banco do Brasil. Eu estava fazendo vocal no show de abertura. Antigamente colocavam o artista da terra para dividir o palco com a atração nacional. Agora eles já chegam em cima da hora, atrasados, não dá pra combinar nada. Cantei duas músicas em um show instrumental de Eduardo Taufic, chamado “Tributo a Tom Jobim”. Participei do I Cosern Musical, na Casa da Ribeira. Cantei nos CDs de Fábio Fernandes, Manassés Campos e de Genildo Costa, uma figura lá de Mossoró. Houve muitos outros projetos legais, como o da “Quartinha da Cultura”, da Petrobras e o “Poticanto”. No “Poticanto” eu cantei músicas de um compositor que gosto muito, o Zeca Brasil. Nesse CD que estou lançando tem três canções dele. Antes desse disco agora, gravei um demo. Quando a gente canta em determinados lugares, sempre cobram, principalmente os turistas. Eles querem levar uma lembrança. Gravei mais como um cartão de visita. Foi gravado na época em que eu ia viajar para Portugal, por volta de 2001.
ZONA SUL – Como foi essa história?
LENE – Eu e o Jô gravamos o CD em 2001. A gente fez base de voz e violão e gentilmente meu amigo Eduardo Taufic fez uns samplers, botou tudo que você possa imaginar. Ficou lindo. A gente pensava em fazer um disco bem básico, mas ficou lindo. O repertório era só gente desconhecida: Tom Jobim, Chico Buarque, bossa nova do Vinicius, Roberto Carlos... Pretendíamos viajar para Portugal e ter algum registro para apresentar nosso trabalho. Quando estávamos nos apresentando em bares e restaurantes, muitos turistas portugueses davam endereço e nos convidavam para se apresentar por lá. Alguns diziam que eram donos de restaurante. Nossa ideia era conhecer outro país e, de quebra, ganhar um dinheirinho. Compramos passagens e fizemos algumas despedidas, mas, faltando uma semana, minha filha teve um problema emocional e eu fiquei com medo de ir. Portugal não está riscado dos planos. Minha filha Rebeca Macedo hoje tem 15 anos, canta com uma voz linda e está tocando seu violãozinho.
ZONA SUL – Qual seu repertório atual?
LENE – É bem variado. Se fosse tocar agora, seria Chico, Djavan, Vinicius, Adriana Calcanhoto e gente nova como Vander Lee e Vanessa da Mata. Adoro Ceumar e Céu.
ZONA SUL – E dos compositores do estado?
LENEPedro Mendes, Babal, Mirabô Dantas, Manassés Campos, Nelson Freire, Zeca Brasil, Ivan do Monte, Jô Fernandes, Rebeca Macedo. Sim, minha filha é compositora, tem uma música. ZONA SUL – Fale sobre o seu CD.
LENE – É um sonho que tenho há muito tempo de cantar e mostrar como eu quero que as pessoas me conheçam. O disco ficou a minha cara: versátil e diferente. Tem samba, bossa, salsa, chorinho... O repertório ficou muito bom. São composições do Nelson Freira, Zeca Brasil, Jô Fernandes, Ivan do Monte, Antonio Ronaldo, Rebeca Macedo, Chico Eliont... São músicas que fizeram parte da minha trajetória de dez anos de carreira. Todas de compositores potiguares. O nome do disco é o meu nome: Lene Macedo. A direção musical, os arranjos, a mixagem e o estúdio foram de Eduardo Taufic, meu padrinho e meu amigo que sempre ajudou pra caramba. Tem participações especiais como as de Ricardo Menezes tocando sete cordas, Jubileu Filho fazendo guitarra e cavaquinho, Rafael Almeida no bandolim e cavaquinho. Também tem Darlan Marley na bateria, Sami Tarik e Dudu Campos na percussão. Tem ainda Roberto Taufic, que está na Itália há tantos anos, tocando violão. Meu marido não quis participar. Disse que não ia se meter nesse meio, porque ele tocava apenas um feijão com arroz.
ZONA SUL – A internet ajuda de alguma forma na sua carreira?
LENE – Não sou muito ligada nessa história. Meu marido faz, através de e-mail, a divulgação dos nossos shows. Tenho Myspace com algumas fotos, músicas e a minha biografia. O endereço é http://www.myspace.com/lenemacedo/ .
ZONA SUL – Você prefere trabalhar em bar ou teatro?
LENE – O palco do teatro tem a magia e requer todo aquele preparo. Chegar lá é como um sonho que está se realizando. No bar ou restaurante tem a proximidade maior, uma troca que eu gosto mais. Troca de energia mesmo. É mais interativo. O repertório é moldado de acordo com as pessoas que estão ali. Acho que nosso repertório hoje reúne 600 músicas. Tem músicas a partir da década de 30, pois fiz show, no inicio do ano, comemorando o centenário de Carmem Miranda, no Praia Shopping. Não sou muito de modismos, muita coisa tenho decorado. Levo quatro pastas para os shows. Tem dias que nem olho. Mas às vezes pedem uma música que não estou lembrando e pego a pasta para tentar atender da melhor maneira possível.
ZONA SUL – Você sobrevive da música? Canta em velórios, como o violonista e compositor potiguar João Salinas?
LENE – Vivo completamente da música. Já cantei em dois sepultamentos, foi inusitado, mas não envolveu contrato ou pagamento. Quiseram me contratar, mas não aceitei. Um rapazinho era freguês assíduo do Seven, na Praça das Flores, onde eu cantava. Sua mãe, sempre que aparecia por lá, me pedia uma música. Ela estava passando por um tratamento contra câncer. A gente acompanhou a evolução do problema superficialmente. O rapaz chegava lá, bebia alguma coisa e comentava se a mãe tinha melhorado ou piorado. Sempre dava alguma notícia. No dia em que ela se internou, o rapaz já sabia que não tinha mais volta. Ele comunicou que sua mãe poderia falecer a qualquer momento e pediu que cantássemos a música que ela gostava, quando ocorresse o sepultamento. Não havia como negar. Poucos dias depois, estávamos chegando em casa, depois de tocar em Macau. Encontramos uma mensagem na secretária eletrônica. Ela tinha morrido. O enterro seria às oito horas da manhã. Dormimos uma hora e fomos. Cantei a música dela, “Naquela Estação”, de Adriana Calcanhoto. Foi difícil, mas emocionante. O outro foi quando a mãe de um amigo nosso morreu. Foi improvisado. Ela gostava de “Como é grande o meu amor por você”, de Roberto Carlos. Eu estava lá, todo mundo chorando. A nora dela chegou pra mim e pediu pra eu cantar. Cantei sozinha, à capela. O silêncio foi absoluto. Também foi tocante.
ZONA SUL – Você também participou de um projeto que homenageou Chico Buarque.
LENE – Foi um projeto de Zé Dias. Cantei o Chico Buarque político. O projeto piloto era chamado de “Nós e Chico”. No cartaz tinha a foto dele meio embaçada, junto com as nossas fotos e nossos nomes. Teve gente que pensou que Chico cantaria conosco. Participei junto com Tânia Soares, Andrezza Costa e Sirleide Andrade, de Pernambuco. Também fiz Carmem Miranda e Roberto Carlos. Com Luciane Antunes fiz o show “Afinidade”. Ela é madrinha da minha filha, uma grande amiga e comadre. Luciane é mineira. Como é às de informática, me ajuda na divulgação das apresentações. O projeto foi feito sem muita pretensão, mas superou as expectativas. Quando é coisa boa, acaba acontecendo. Cantávamos Rita Ribeiro, Vanessa da Mata, Céu e Maria Rita: quatro cantoras em evidência, na época. Mudamos um pouco os arranjos. Apresentamos umas dez ou doze edições do “Afinidade”. O Armazém Pará tinha um projeto chamado “Pararte”. O palco era montado no estacionamento e a cada mês um artista era convidado. Também me apresentei por lá.
ZONA SUL – Onde se pode assistir Lene Macedo cantando?
LENE – Tenho uma agenda fixa e outra que vai mudando à medida em que os shows vão pintando. Aos domingos, segundas e quintas-feiras canto no Restaurante Rio, na orla de Ponta Negra. Há cinco anos me apresento toda terça-feira no Guinza, no dia do sushi. As sextas tenho show agendado no SeaWay. Cantei durante quase cinco anos aqui mesmo, no Veleiros. Em todo lugar que eu me apresento termino me tornando uma pessoa da casa, da família.
ZONA SUL – O que faltou dizer? Se despeça do Zona Sul
LENE – Comecei minha carreira aos trinta anos, o que não é comum. Estou correndo até hoje. Esse CD representa pra mim a conquista de um objetivo importante. Por isso eu gostaria que todos ouvissem as canções que escolhi para compor esse disco. É o resultado de uma batalha grande. Não sei o que vai acontecer a partir de agora. Mas isso é o que menos importa. O que vale é que gravei um disco como eu queria, com a minha cara. Gostaria de agradecer a todos os que colaboraram para que esse sonho pudesse ser concretizado.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Entrevista: Jeová Oliveira

ZÉ LOTERO: O CORONEL LUDUGERO DO CEARÁ

O subtenente Jeová Oliveira costuma desempenhar suas atividades no Centro de Convenções Edson Queiroz, em Fortaleza. Foi lá que o conheci, durante a última Bienal Internacional do Livro do Ceará. Ele analisava com cuidado uma cópia colorida da Lei Áurea. Conversamos um pouco. Apesar de estar usando sua farda de policial militar, Jeová esbanjava bom humor. Não havia nele a sisudez costumeira dos homens forjados na luta contra o crime. Em poucos instantes descobri que Jeová tinha uma boa história para contar. Marcamos a entrevista para o dia seguinte. Quando ele começou a falar, percebi que tinha acertado ao apostar que aquela seria uma excelente conversa. Ele falou do Jeová da PM acostumado a testemunhar as mais diferentes tragédias e diversos tipos de crime. Também contou dos temos de criança em Juazeiro do Norte, quando viveu na cidade respirando a presença espiritual de Padre Cícero. Foi lá também onde ele conheceu o homem que depois virou famoso personagem de histórias em cordel, Seu Lunga. Enfim, Jeová mostrou seu lado de Coronel Zé Lotero, o Coronel Ludugero do Ceará. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Como é o seu nome completo? JEOVÁ – José Jeová de Oliveira.

ZONA SUL – Onde você nasceu? JEOVÁ – Na cidade de Juazeiro do Norte, aqui no Ceará.

ZONA SUL – Você permaneceu em Juazeiro até qual idade? JEOVÁ – Aos cinco anos fui morar em Barbalha. Meu pai era funcionário federal de uma repartição desse município. Aos 18 anos, a convite do meu irmão, que era soldado, vim conhecer o carnaval de Fortaleza. Por aqui fiquei. Passei seis anos no Exército. De lá fui para a Polícia Militar, onde estou até hoje. Já são mais de 40 anos.

ZONA SUL – Vamos regressar um pouco no tempo: você tem alguma recordação desse seu primeiro período em Juazeiro? JEOVÁ – A distância de Juazeiro para Barbalha é de apenas três quilômetros. Por isso, apesar de ter mudado de um município para outro, eu vivia mais no Juazeiro do que em Barbalha. Eu até estudava em Juazeiro. Eu tenho recordação de tudo.

ZONA SUL – Como foi essa infância dividida entre Barbalha e Juazeiro? JEOVÁ – Sempre gostei do mundo do rádio. Estudei no Colégio Salesiano. Quando tinha aquelas festas da escola, eu me agarrava logo no serviço de som, para falar. O padre já sabia que eu gostava e já ia direto à minha sala avisar: “Jeová, amanhã tem”. Eu animava as festas. Meu negócio era esse. Onde tivesse um microfone, eu estava perto. Era comigo mesmo. Quando me mudei para Fortaleza, continuei do mesmo jeito. Antes de vir, cheguei a trabalhar na Rádio Iracema, de Juazeiro.

ZONA SUL – Seu salário era bom nessa rádio de Juazeiro? JEOVÁ - Nunca fui empregado de emissora de rádio. Vamos dizer que eu trabalhava como estagiário. Não aceitava ser contratado para não ter obrigação. A profissão de radialista exige muito. Ele pode estar doente, estar com o problema que for, mas os ouvintes não dispensam: querem ouvi-lo. Se alguém substitui o apresentador de determinado horário, mesmo que ele seja melhor do que o titular, o povo não aceita. O ouvinte quer o original. Certa vez morreu uma sobrinha minha e fui fazer um programa de forró. No meio a gente fazia humorismo, fazia tudo. Tive que ficar o tempo todinho lá. A sobrinha morta, em casa, e eu na emissora. Os ouvintes só souberam ao final do programa, quando o rapaz que trabalhava comigo falou: “vejam o que é o rádio. O rapaz deixou a sobrinha morta lá na casa dele, veio fazer o programa e agora vai voltar para o velório”. Esse é um retrato da vida de quem trabalha no rádio.

ZONA SUL – Até hoje Juazeiro do Norte é marcado pela figura de Padre Cícero. Apesar de ele ter morrido antes do seu nascimento, o que você comentaria sobre o famoso Padim Ciço? JEOVÁ – Ele foi o fundador da cidade de Juazeiro. Quando lá chegou, o povoado era uma vila que pertencia a Crato. Depois é que foi desmembrado e virou município. Tiraram uma parte de Barbalha, outra de Crato e um pedaço de Caririaçu para poder formar Juazeiro. É um município pequeno, mas muito bom e um dos mais desenvolvidos do estado. Sobre Padre Cícero posso dizer que ele foi um homem que só pregou o bem. Mesmo assim foi muito combatido. Botaram ele pra ser governador do estado e prefeito. Coisas da política. Ele não queria, aceitou na marra. Preferia estar no meio do povo, pois não tinha ambição nem nada. Foi o primeiro prefeito de Juazeiro, em 1911, quando a vila passou a ser cidade. Foi ele quem criou tudo em Juazeiro. É considerado o santo do Nordeste. Antigamente era só em novembro que vinha muito romeiro para Juazeiro. Mas agora o ano todo é cheio de caminhão de romeiro. Na festa de Nossa Senhora das Dores, que é em setembro, vem romeiro de todo o mundo para os milagres. Você conhece o Horto?

ZONA SUL – Nunca estive em Juazeiro. JEOVÁ – Você e os leitores do jornal precisam conhecer o Horto. Lá foi feito um museu vivo. A pessoa chega e vê a imagem dele, dos conselheiros, dos amigos, dos políticos da época... Até parece que todos estão vivos ainda. Os personagens são feitos de cera, mas as roupas são normais. Tudo é muito realista. Às vezes a gente vê a encenação das peças e percebe que ele só ensinava o bem. Para tudo Padre Cícero tinha uma solução. Qualquer pergunta que lhe fizessem, ele tinha a resposta. Muitos milagres já foram atribuídos a ele. Eu mesmo já recebi vários milagres dele.

ZONA SUL – Por exemplo... JEOVÁ – Muitas coisas. Você sabe que quando a gente está estudando não quer ser reprovado. Agora não, mas antigamente quando o filho era aprovado ganhava um presente do pai. Porém, se fosse reprovado levava uma pisa. Naquela época era normal. Hoje é que não pode mais bater nos filhos. Quando chegava perto do fim do ano eu já fazia uma promessa para não ser reprovado. Eu prometia ir para a missa. Lá no Juazeiro todo dia 20, que foi o dia que ele morreu, tem uma missa que vai todo mundo de preto. No dia 20 de todo ano eu estava lá, vestidinho de preto, assistindo a missa para pagar a promessa que tinha feito para não ser reprovado. Você vê gente de todo o Brasil dando os testemunhos dos milagres.

ZONA SUL – Quer dizer que Padre Cícero lhe livrou de levar muitas surras. JEOVÁ – Livrou de muita coisa. Escapei de muita surra por causa dele. Ele não é apenas o santo do Nordeste, mas de todo o Brasil. Eu chamo, e muita gente chama ele, de Padim Ciço. Quando alguém chama Padre Cícero, lá em Juazeiro, o pessoal sabe logo que é gente de fora. Lá todo mundo tem o costume de usar o rosário. Quando entrei na Polícia, aqui em Fortaleza, comecei usando. Mas o pessoal começou a me chamar de macumbeiro, de não sei o que. Fui aconselhado a deixar de andar com o rosário, para evitar briga. Então parei de usar. Mas ainda hoje tenho o meu guardadinho em casa. A gente compra o rosário e coloca em cima do túmulo de Padim Ciço, na Igreja do Socorro. Fica bento por ele, não precisa mais levar para o padre benzer.

ZONA SUL – Outra figura que se tornou conhecida a partir do Juazeiro foi “Seu Lunga”, que se transformou em personagem de diversos livretos de cordel. Fale um pouco sobre ele. JEOVÁ – Quando eu morava lá, na Rua da Boa Vista, era próximo da casa dele. Seu Lunga tem um comércio na Rua Santa Luzia onde se encontra de tudo: ferramenta, fruta, comida, objeto usado... O povo diz que ele é bruto, mas eu não acho. Ele é muito positivo. Se você perguntar uma coisa de forma errada, ele vai responder de forma errada. Se você perguntar certo, ele responderá certo. Por exemplo: ele tem raiva quando uma pessoa que está indo embora diz “estou chegando”. Na mesma hora ele diz: “você não está chegando, está é saindo”. Outro cara chega e diz bom dia. Ele responde: “bom dia não, pois o dia não passou”. Na lógica de Seu Lunga, durante o dia a pessoa tem que dar boa noite, pois foi a noite que já passou. Uma vez Seu Lunga ia abrindo sua loja às duas horas da tarde. Um cara perguntou por que ele estava abrindo a loja apenas naquele horário. “Foi a minha tia Vicentina que morreu”. Até aí a conversa ia aprumada. Mas o cidadão inventou de perguntar se ela estava doente. “Não, ela estava bem e nós enterramos ela viva”, foi o que seu Lunga respondeu. Ele responde na hora. É um poeta por natureza. O poeta tem que rimar na hora. Ele é como o poeta, responde na hora. Outra vez ele foi entrando na farmácia e um amigo viu e perguntou: “o senhor está doente?”. Ele respondeu: “quer dizer que seu tivesse saindo do cemitério estava morto?”. Ele responde na hora, não deixa por menos. Não deixa passar nada. Tem a rima na hora.

ZONA SUL – Seu Lunga virou um dos principais personagens da literatura de cordel. Você também escreve cordéis? JEOVÁ – Quem começou a divulgar Seu Lunga foi um colega meu que veio do Juazeiro, Silvino Neves. Hoje ele tem um programa na rádio Verdes Mares. Silvino gostava de contar histórias do Seu Lunga. Nesse tempo eu trabalhava na rádio Iracema, de Maranguape. Eu levei o Silvino para lá. Começamos a fazer versos, escrevendo sobre Seu Lunga. Começou assim: eu fazia um verso, Silvino fazia outro, contando as histórias do Seu Lunga. Depois isso espalhou e pronto. Hoje todo mundo escreve alguma coisa sobre Seu Lunga. O nome verdadeiro de Seu Lunga é Joaquim Rodrigues dos Santos.

ZONA SUL – Qual era o nome do programa na Rádio Iracema? JEOVÁ – A rádio Iracema foi vendida e hoje é a Rádio Cidade, de Fortaleza. O programa era aos sábados. Um dos versos que inventei foi “A mulher e a saia lascada”, sobre uma moda que havia, na época, de as mulheres usarem roupas com um lascão. O nome do programa era “Meu sertão e sua gente”, nome escolhido por Silvino Neves. A gente tocava músicas de Ari Lobo, Jackson do Pandeiro, Zé Calixto, Zé do X, Clementino Moura, João Bandeira, Abdias, Marinês, Marinalva, Paulo Nei, Elino Julião, Gerson Filho e Luiz Gonzaga, que é o causador de tudo. São muitos, não dá para lembrar todos. Mas no meio de tanta música boa, a gente colocava poesia. Só quem consegue fazer um programa só falando, e já faz isso há mais de 30 anos, é o Paulo Oliveira. Outra pessoa não consegue. Ele apresenta todo dia, das 5 às 9 da manhã, na Rádio Verdes Mares, só falando. Não sei como um cara faz um negócio desses. Não bota uma música. O intervalozinho é quando entra o noticiário que uma moça vem fazer. Eu prefiro falar um pouquinho e botar música.

ZONA SUL – Eu pensei que você ia recitar o poema da mulher e da saia lascada... JEOVÁ – Eu tenho mais de 500 poemas feitos, mas não sei nenhum deles decorado na íntegra. Lembro apenas de alguns versos. Esse da saia lascada foi o primeiro que eu fiz. Virou música também. É mais ou menos assim: “As mulheres inventaram uma moda engraçada / Vestem uma saia comprida bem justinha e apertada / Cobrindo o mocotó, mas do lado é lascada / Se ela passa no quartel, mexe até com o sentinela / O praça levanta a arma, apontando para ela / Os outros soldados olham o lascão da saia dela”. São muitas estrofes, não decoro. Tem gente que decora, declama e canta. Eu só consigo olhando para o papel.

ZONA SUL – Seu primeiro cordel publicado foi sobre Seu Lunga? JEOVÁ – Nem eu nem Silvino nunca publicamos cordel sobre o Seu Lunga. A gente fazia a divulgação no rádio, contava as histórias. A negada ficava ouvindo e publicando. Meu primeiro cordel foi esse da saia lascada. Toda semana eu e Silvino apresentávamos um novo verso. Danei a fazer verso. Uns colegas que já escreviam cordel me deram umas dicas, tipo não repetir palavra na mesma estrofe, rimar uma coisa com outra. Eu até brinquei com um deles. “Quer dizer que eu posso rimar urubu com carvão, já que os dois são pretos”. Me ensinaram tudinho como era. Peguei o embalo e hoje faço umas histórias que eu sei que não aconteceram, mas eu até acredito que estão certas. Também pego um fato que aconteceu, faço a história e no meio, quando não dá certo, eu invento e fica bom.

ZONA SUL – Qual o seu cordel mais popular? JEOVÁ – “A tragédia de Juazeiro”, que conta a história de um monsenhor que foi assassinado no ano de 1950, na pedra fundamental da Igreja dos Franciscanos, o monsenhor Joviniano Barreto. Ele foi assassinado por um rapaz que era doido. Foi o cordel que mais fez sucesso porque contou uma história antiga de Juazeiro. Muitas pessoas vieram me perguntar, depois, como eu soube daquelas informações todas. Eu ouvi muita gente conversar sobre o caso, inclusive os meus tios e os meus pais. Demorei 50 anos para escrever. Eu era do Salesiano e os padres de lá é que tomam conta do Horto. Lá eu ouvia muitas histórias e ficava só gravando na cabeça. Depois botei tudo no papel. Juntei tudo, montei o quebra-cabeça. Teve uma grande repercussão no Cariri. Publiquei esse cordel através de um concurso realizado pelo SESC, em Juazeiro. Quando cheguei lá com os originais, o cara disse que meu cordel não ia para julgamento, ia logo para publicação. Perguntaram se eu autorizava. Autorizei na hora, porque eu queria era ver o meu nome no mundo.

ZONA SUL – Além de cordel, você também compõe música. JEOVÁ – Passei a compor música depois. Um cara me deu a idéia de pegar as poesias, botar música e cantar. A dica era eu não usar a letra toda, mas apenas uns três ou quatro versos, pro povo aprender logo. Faço a história, tiro três ou quatro versos, e crio a música. Para mim é muito fácil. Todas as músicas do meu CD são de minha autoria. O pessoal tem mania de fazer músicas de duplo sentido, mas tem muita gente que não gosta. Eu não faço. Só tem uma música de duplo sentido no meu CD. A história é a seguinte: o cara estava dançando, a dona passou a mão e perguntou: “o que é isso?”. “É uma espiga de milho que tem no meu bolso”, ele respondeu. A dona não acreditou. “Deixe de mentira, Zé: essa espiga que passei a mão só tem dois caroços?”. O cara só nota que é duplo sentido quando a música termina. Os humoristas de Fortaleza têm a mania de puxar para a imoralidade. Uma criança não pode ouvir. Meu show reúne gente de 8 a 80 anos e ninguém reclama.

ZONA SUL – Fale um pouco sobre o CD que você pretende lançar. JEOVÁ – Fiz esse CD depois de ouvir muita cobrança do pessoal. Uma noite eu estava fazendo um show e mais uma vez perguntaram pelo CD. Um produtor de disco chamado Newton Costa estava assistindo e me propôs gravar o tal disco. Eu disse que não sabia como fazer. Ele me levou para o estúdio e gravamos as faixas de conversa. Vamos agora gravar as músicas, para lançar. Eu nem queria, mas o povo está obrigando.

ZONA SUL – Vai ser bom para deixar registrado o seu trabalho. JEOVÁ – Você vai levando uma cópia das gravações. Já ouviu? Aprovou?

ZONA SUL – Já. Aprovei. JEOVÁ – Então pague.

ZONA SUL – Você não tinha falado que eu tinha que pagar... JEOVÁ – Se gostou, tem que pagar. Não precisava pagar se não gostasse.

ZONA SUL – Deixe pelo menos terminar a entrevista... JEOVÁ – (risos) Se não pagar eu chamo o Coronel Zé Lotero para receber por mim. E ele é bravo. CORONEL – Oxente, qual é o cabra que não quer pagar? Óia aqui o tamanho do revólver...

ZONA SUL – Calma, Coronel Zé Lotero, eu estava brincando: vou pagar. JEOVÁ – Coronel, não puxe esse revólver não, que o homem está me entrevistando. Ele está se tremendo todinho, Coronel, guarde esse revólver.

ZONA SUL – Obrigado. Ainda bem que o Coronel acalmou-se. Aproveitando o embalo, como surgiu esse seu personagem, o Coronel Zé Lotero? JEOVÁ – Quando eu morava no município de Barbalha, costumava ouvir as emissoras de rádio de Pernambuco. Pegava muito bem por lá. Coronel Ludugero trabalhava na Rádio Clube de Pernambuco. Eu acompanhava os seus programas. Quando vim para Fortaleza, entrei no Exército e fui fazer um curso em Recife. Lá conheci o Coronel pessoalmente. Ele até me deu um elepê autografado, que eu guardo até hoje. Naquele tempo seus discos saíam pela gravadora Mocambo. Eu disse ao Coronel Ludugero que gostava de imitá-lo. Ele respondeu “prossiga, estou gostando” e completou com uma brincadeira: “quando eu morrer, você assume o meu lugar”. O negócio deu tão certo que quando ele morreu, eu assumi. Passei a fazer o show “O Coronel Ludugero Cearense”. Abdias, que produziu alguns discos de Ludugero, assistiu a uma apresentação e falou que estava muito bom. Porém ele disse que eu estava fazendo sucesso para um cara que tinha morrido. Dessa forma todos só me chamariam de imitador. Ele sugeriu que eu criasse um novo nome e fizesse algumas alterações no personagem. Eu criei Zé Lotero, para ficar parecido. O secretário dele era Eutrópio, mas todo mundo chamava de Otrópi. Da mesma forma, o meu é Euclides, mais conhecido como Ocride. É porque lá no mato o povo chama Ocride mesmo. Para encontrar o nome da mulher do Coronel foi o maior problema. Uma humorista aqui de Fortaleza, Franciram Cavalcanti, que é quem faz o papel da mulher do Coronel Zé Lotero, sugeriu Ambrosina. Ficou assim. O jumento é chamado de Helicóptero, porque helicóptero baixa em qualquer canto. O jumento é igual: onde vê uma grama, ele baixa pra comer. Troquei o nome de todos. Hoje estou com esse personagem, o Coronel Zé Lotero, pra não confundir. Tem gente que pergunta se sou irmão do Coronel Ludugero. Quando estive em Caruaru, fui visitar a feira da cidade. Lá tem estátua dele, de Otrópi, e de tudo. Eu assisti ao último show do Coronel Ludugero. Foi aqui em Fortaleza, em uma festa na Secretaria de Agricultura. Depois ele pegou um avião para Belém. Quando a aeronave ia chegando, ao invés de pousar na pista do aeroporto, pousou na água. Ele morreu. O corpo de Artrópi passou aqui por Fortaleza, indo para Recife. Mas o corpo do Coronel Ludugero não foi encontrado. Suspeitam que ele esteja vivo. Isso uma vez deu uma confusão danada.

ZONA SUL – Que confusão? JEOVÁ – Eu estava fazendo um show no Parque da Criança. Uma equipe de uma emissora de rádio de Recife estava em Fortaleza para cobrir o jogo Ceará X Sport, no Castelão. Eles estavam passando por perto do parque quando viram o show. Pararam e gravaram um pedaço. Em Recife eles passaram aquela fita dizendo que Ludugero estava vivo. Foi uma confusão. Até polícia veio de Recife pra cá. Nesse tempo eu era sargento e trabalhava no reboque do BPTRAN (Batalhão de Polícia de Trânsito). Eu estava na rua quando fui convocado, via rádio, para voltar ao quartel. Lá me mandaram falar com o comandante. Quando entrei na sala dele, os caras já foram logo tirando retrato, e eu entrei na onda: “que é isso? Vai chover? De onde vêm esses relâmpagos todos?”. E os caras dizendo: “é ele, é ele”. Eu continuei: “cadê o meu guarda-chuva? Tá relampiano”. E os pernambucanos: “é o homem mesmo, é o homem mesmo”. Um delegado pediu para ver minha identidade. Mostrei. Quando viram que meu nome era José Jeová de Oliveira foi que constatam que eu não era o Coronel Ludugero, que se chamava Luiz Jacinto Silva, natural de Caruaru. Eu sou de Juazeiro do Norte. Ele era filho do velho José Jacinto e da dona Maria Jacinta. Meus pais são outros: Manoel Francisco de Oliveira e Carolina Oliveira dos Santos. Não tinha nada a ver. Foi só assim que acabou a confusão. Depois eles perceberam que o Coronel Ludugero era mais baixo do que eu. Eles ficaram muito impressionados porque até minha voz é parecida com a dele. Abdias também me aconselhou a modificar um pouco a voz, para não ficar tão parecido.

ZONA SUL – Você esteve prestes a gravar um elepê. Por que não deu certo? JEOVÁ – É o novo... Elepê. Mas é verdade. Abdias - que era sanfoneiro, compositor e produtor musical - me viu fazer um programa na TV Ceará, que nesse tempo era TV Educativa. Era o programa do Carneiro Portela. Abdias assistiu e depois me orientou a fazer aquelas alterações todas. Por fim ele disse que ia me levar para o Rio de Janeiro, para gravar um elepê. Infelizmente, pouco tempo depois ele morreu. Foi em 1991. Não gravei, mas também nem liguei muito. Eu não ligo para essas coisas. Na verdade eu não levo a sério. Agora é que vou lançar o primeiro CD, pela insistência do povo e dos produtores. Tem muita gravação minha espalhada por gente que assiste a show meu, grava e passa pra frente. Eu não ganho nada. Vou fazer shows e não cobro.

ZONA SUL – Sua vida como militar serviu como fonte de inspiração de histórias para você incluir no seu repertório? JEOVÁ – Quase todas as histórias incluídas no meu repertório surgiram através da minha vida militar. Trabalhei um tempo no policiamento de trânsito e o resto foi na rádio-patrulha, em ocorrência. Em ocorrência é que a gente vê coisa boa para botar em disco. Quem passa 24 horas rodando em uma cidade como Fortaleza, vê muita coisa. Coisa boa e ruim. Num instante eu estava cheio de histórias. Fazia poema de desastre e de tudo o que eu via. Depois de algumas ocorrências, enquanto os colegas continuavam pensando naquela tragédia, crime ou acidente, eu estava tomando nota para fazer as poesias. A vida de policial me ajudou muito. Os comandantes também me ajudaram bastante. Na polícia poucas pessoas sabem que o meu nome é Jeová. Só me chamam de “Coroné”. Coronel sem o “L”. Uma vez o bispo que hoje está em João Pessoa, Dom Aldo Pagotto, foi celebrar uma missa de despedida no quartel. Sou ministro da eucaristia e estava ajudando a ele. Quando terminou a celebração, ele perguntou se eu era militar. Na mesma hora chegou um oficial e disse: “bispo, você foi auxiliado pelo Coronel”. Ficou por isso mesmo. Depois dessa eu não ia mais dizer ao bispo que eu era subtenente, já que tinha sido apresentado como coronel. Ele até pediu para tirar um retrato junto comigo, o coronel. A vida militar me ajudou muito e ainda hoje ajuda.

ZONA SUL – Conte alguma história que aconteceu nas ruas de Fortaleza, virou verso na sua mão e ganhou as ruas. JEOVÁ – São muitas histórias que viraram faixa de disco. A gente faz aquela adaptação pra dar certo. Às vezes até troca o nome de uma pessoa, porque tem gente que não gosta. Uma vez fui para uma ocorrência que o cara tinha dado uma lapada no outro. Eu perguntei por que ele tinha feito aquilo. O acusado respondeu que a vítima havia pedido. Só que a vítima pediu uma lapada de cachaça. E o cara deu foi uma lapada de cinturão nas costas dele. Esse é um exemplo de ocorrência que virou “causo” do Coronel Zé Lotero. O cara estava com a marca vermelha do cinturão nas costas. Adaptei. Mas foi uma ocorrência que fiz na rádio-patrulha. Aproveitei muita coisa. Foram 35 anos trabalhando na rua. Eu nunca quis trabalhar em sala. Quando fui promovido a primeiro sargento, me ofereceram para trabalhar interno. Eu ficaria doente se fosse obrigado a ficar trancado. Eu gosto de estar no meio da rua, na lama, na chuva, na poeira. Se eu passar um dia numa sala, fico doente. Por exemplo: agora, dando essa entrevista a você, de vez em quando fico com vontade de tossir, por causa do ar-condicionado. Acho que vou passar a tarde doente. Meu negócio é poeira, sol e chuva. É com isso que estou acostumado. Sou matuto do interior, nascido no Cariri, criado com baião de dois e pequi. Meu negócio é coisa pesada, não gosto de moleza.

ZONA SUL – Você atuou em algum caso que gerou grande repercussão? JEOVÁ – Vi tragédia de todos os tipos: desde rapto de crianças, a acidente automobilístico com várias vítimas fatais. Trabalhei no resgate a um ônibus que caiu em uma ribanceira. Todos os passageiros morreram. Até desastre de avião eu socorri. Quando o boeing da Vasp caiu na Serra da Pacatuba, deixando mais de 100 mortos, participei da equipe de resgate. Ao chegar lá encontramos um cenário terrível. Os corpos das pessoas não estavam inteiros. Passei uns oito dias por lá. Foi uma tragédia muito grande. Nunca consegui esquecer. Até hoje parece que estou vendo aqueles corpos.

ZONA SUL – Quem nunca viu não tem nem como imaginar um cenário desses... JEOVÁ – É. Comecei a trabalhar em rádio-patrulha no começo de 1970. O primeiro acidente que fui atender envolvia um carro que tinha despedaçado um menino. Logo em seguida fui chamado para um atropelamento de trem. Eu não era acostumado com aquelas cenas. Cheguei em casa e fiquei sem comer. Nos primeiros dias foi assim, até perceber que se permanecesse daquele jeito eu ia morrer de fome. Fui obrigado a me acostumar. Pra mim hoje é normal encontrar uma pessoa morta em alguma ocorrência. No começo eu ficava com medo até de chegar perto. Trabalhei muito tempo no batalhão de trânsito. Quando ele foi extinto, fui transferido para o batalhão de rádio-patrulha.

ZONA SUL – Como seus colegas policiais encaram o seu lado artístico? JEOVÁ – Eles gostam. Certa vez decidi não fazer mais brincadeiras. Cheguei ao quartel todo sério. Os colegas brincavam comigo e eu não aceitava. Eu pedia até pra não me chamarem mais de “Coroné”. “Me chamem de Jeová”, eu dizia. Algum tempo depois um tenente me avisou que o coronel queria falar comigo em seu gabinete. Quando cheguei lá, ele disse: “não fale nada. Vá para casa, descanse três dias e volte. Você está com um problema muito grande. Umas cinco pessoas já me disseram”. Fiquei desconfiado e fui para casa. Cheguei à conclusão de que eles queriam mesmo era o meu lado brincalhão, e não o lado sério. Três dias depois, quando voltei, já fui brincando com um e com outro. Não posso dizer nada sério. Eu tenho o costume de colocar apelido no povo. Não posso nem chamar o cara pelo nome certo, tenho que chamá-lo pelo apelido. Do coronel ao soldado, ninguém acha ruim esse meu comportamento. Se eu chamar pelo nome verdadeiro, a pessoa pergunta logo o que é que está havendo. Mesmo quando me encontram trabalhando na rua, fardado, querem que eu faça alguma brincadeira do Coronel Zé Lotero. O povo me obriga a ser o “Coroné” mesmo. Uma vez meu pai foi ao quartel e pediu para falar com o sargento Jeová. Ele estava esperando há quase uma hora na sala de visita quando eu, que estava passando, o vi. Perguntei aos colegas porque eles não tinham me avisado. Eles responderam que a pessoa, o meu pai, não estava me procurando, mas sim a um tal de sargento Jeová. Ensinei ao meu pai que na próxima vez ele procurasse o “Coroné”. Assim achava bem ligeirinho. Quando desapareço do rádio, porque fico com preguiça de ir, o povo fica cobrando, telefonando, perguntando por onde eu ando. Os locutores respondem que eu estou viajando. É assim que acontece.

ZONA SUL – Em qual emissora de rádio você costuma se apresentar? JEOVÁ – Na emissora em que eu chegar que tiver programa de forró, sou bem recebido e todo mundo gosta. Eles sempre pedem para eu voltar mais vezes. Tenho minha carteira de radialista há 40 anos. Recentemente o Nonato Albuquerque, da Rádio O Povo, reclamou que eu nunca mais havia aparecido em seu programa. Chegou a perguntar se eu queria receber um cachê para ir lá. Respondi na hora que não era homem de andar recebendo dinheiro para essas coisas. É assim.

ZONA SUL – Qual a sua preferência: inventar a história ou interpretá-la? JEOVÁ – Gosto de tudo, até porque se alguém for interpretar o que eu escrevo não vai sair como quero. Aprendi uma técnica com um professor de oratória que a gente não deve olhar para os olhos do povo, quando subir em um palco. O correto é olhar acima da cabeça. Se olhar para os olhos, o povo tem uma energia tão forte que faz você tremer. Uma vez fui fazer show para um candidato, em Canindé. Naquele tempo artista podia participar de campanha política. O candidato veio me buscar em Fortaleza. O cara que foi comigo olhou para o povo e começou a tremer. Eu usava uma daquelas pistolas que era chamada de garrucha. Então eu puxei o revolver, apontei pra ele e disse: “olha pessoal, o cara está todo se tremendo por causa da minha garrucha”. Inventei isso para o povo pensar que ele estava tremendo de propósito. Então pedi para darem uma vaia nele. O remédio para tremedeira em cima de palco é a pessoa levar uma vaia. Na hora da vaia eu ensinei ao meu ajudante: “olha pra cima da cabeça do povo”. Foi um negócio sério ele subir no palco e olhar para os olhos daquela plateia de quatro mil pessoas.

ZONA SUL – Como alguém de Natal pode conhecer o seu trabalho? JEOVÁ – Meus filhos, que são ligados nesse negócio de Internet, fizeram um site para mim. Mas eu nunca atualizei porque estou esperando terminar o CD. Quando ficar pronto, vou colocar no site. Por enquanto ele está parado.

ZONA SUL – Já tem o endereço? JEOVÁ – Ainda não. Estamos escolhendo um. Até porque Jeová tem um bocado. Talvez a opção seja Zé Lotéro, porque não tem. Botaram só “Coroné”, e também já tinha um bocado. Mas não sei ainda. Meus filhos é que vão resolver.

ZONA SUL – O Coronel Zé Lotero gostaria de dizer alguma coisa? CORONEL – Se quisé fazê alguma pregunta, faça. Só não fale na minha véia, se não lhe dou um tapa-olho! Fale noutra coisa. O que é que você quer saber?

ZONA SUL – Não se preocupe, Coronel, que não falarei na sua esposa. CORONEL – Então possa preguntá, pessoa. Mas não fale na minha véia. Ela tá lá na fazenda e coisa, mas não venha saber dela não. Só quem sabe é eu, que sou casado nos dois. Pessoa, fique do lado de lá e pregunte outra coisa.

ZONA SUL – Está certo. Então me fale sobre a sua fazenda. CORONEL – A fazenda está boa. Incrusive consegui fazer com que todos os meus bois escapassem dessa última seca. Eu comprei óculos raiban e botei nos bois. Eles comeram o mato seco pensando que era verde. Tá tudo gordo. E agora que chegou a chuva, não tem mais probrema. Eu sou do bom!

ZONA SUL – Coronel, mande uma mensagem para o povo de Natal. CORONEL - Ói, pessoá de Natá, principalmente a administração municipá. Quando for em dezembro eu vou aí arrancá uma árvore lá na Praça Pedro Velho, porque a minha véia adora uma árvore de Natá. Todo ano ela pede uma deferente. Vou tirar uma que eu vi bem fulorida e vou trazer. Dessa vez vou levar um trator, porque os cabra pode não ter força pra arrancá. Vou colocá a árvore dentro do caminhão e trazê pra mode botá na minha fazenda. Eu gosto muito de Natá porque foi lá que Jesus se batizou, naquele Rio Potengi. Nasceu em Belém e se batizou em Natá. Ele não quis se batizá naquele rio do Recife porque é muito fedorento. Agradeço sua paciência de conversá com eu. Até porque sou meio despranaviado e brabo. Ainda bem que você não falou na véia. Os outros vêm logo falá na minha véia, de cara. Acho que é porque você tá com medo desse meu revólver que dispara bala até pelo cabo. Eu sou do bom, nunca miei no serviço!