domingo, 14 de dezembro de 2008

Entrevista: Makalé

O HOMEM QUE RENASCEU DAS TREVAS



Sidney Seno, Feijoada, Tião Macalé, Makalé. Engraxate, estivador, figurante, ator de cinema, protagonista de shows de sexo explícito, promotor de eventos humanitários. Portador de deficiência visual e ferrenho defensor da chamada Lei Seca, que determina a cassação da carteira de habilitação e a aplicação de multa aos motoristas flagrados excedendo o limite de 0,2 grama de álcool por litro de sangue. Paulista, gaúcho, pauliúcho. Esse é o entrevistado do mês do jornal Zona Sul nessa edição natalina. A conversa foi realizada na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, lá no outro Rio Grande, o do Sul. Que a força que Makalé demonstrou quando despertou na cama de um hospital sem a visão sirva de lição para que nós possamos transformar 2009 em início de um novo tempo. Feliz Natal! (Roberto Homem)



ZONA SUL – Como é o seu nome completo?
MAKALÉ – É Sidney Seno. Makalé, com a letra “K”, é o pseudônimo artístico.

ZONA SUL – Você nasceu onde?
MAKALÉ – Nasci na cidade de São Paulo, aos 20 de outubro de 1955. Acabei de completar agora 53 anos muito bem vividos, graças a Deus.

ZONA SUL – Sua família é de São Paulo mesmo?
MAKALÉ – Os familiares do meu pai são italianos. E os da minha mãe são paulistas, de família negra. Minha mãe tinha aquele beiço de negra bem grande. Sou o mascote negrinho da família. O resto é mais claro, com traços de negro. Adoro uma massa, uma lasanha, um espaguete... Tudo que é comida de massa eu adoro. Um pastel muito bem feito... Eu adoro a minha família, adoro o Brasil, adoro ser brasileiro. Sou paulista mas, agora, com muito carinho e com muito amor, naturalizado também no Rio Grande do Sul, com muito orgulho. Há pouco tempo fui chamado de pauliúcho por uma poeta. Mistura de paulista com gaúcho.

ZONA SUL – O que você recorda da sua infância?
MAKALÉ – Graças a Deus eu tive uma infância muito boa. Perdi a minha mãe com um ano de idade, passei a ser criado pela minha avó paternal, Catarina Bonett Seno. Mãe do meu pai. Faleceu em primeiro de abril de 77, vítima de câncer de pulmão, embora ela nunca tenha fumado nem bebido. Ela era minha mãe e minha avó. Todos os irmãos menores e até os um pouquinho maiores foram criados por ela, já que minha mãe morreu cedo. Ela me deu estudo, afeto, carinho e me ensinou a ser uma pessoa honesta, meiga e com disposição para sempre ajudar as pessoas. O que eu sou um pouco hoje eu devo a minha avó. Acho que de algum lugar lá em cima, de alguma estrela onde ela estiver, ela está me olhando, me orientando.

ZONA SUL – Como eram as brincadeiras da sua turma naquele tempo?
MAKALÉ – Carrinho de rolimã era o principal. Soldado-ladrão era outra. À noitezinha a molecada dividia as equipes entre polícia e ladrão e era aquele pega aqui, pega ali, prende, ta preso, ta solto. E também brincava de quebrar vidraça e telhado da casa dos outros. Depois minha avó tinha que pagar. Eu arrumava essas tretas todas. Também mexia com as meninas na praça, na fonte luminosa, no bosque da cidade de Botucatu.

ZONA SUL – Então foi em Botucatu que você passou sua infância...
MAKALÉ – Em Botucatu, São Paulo. Fui criado lá.

ZONA SUL – E na escola? Você foi um bom aluno?
MAKALÉ – Fui. O maior barato foi quando, na primeira série minha, no fim do ano pensei que tinha passado de ano, mas não tinha. Meus colegas todos na fila dos que haviam passado e eu em outra. Foi quando eu soube que havia sido reprovado. Mas depois fui embora até o terceiro ano do ginásio. Fiz exame de admissão no Colégio La Salle, de Botucatu. Às quartas-feiras nós jogávamos bola. Eu era goleiro. Quando a bola vinha para o meu lado eu saltava fora, a bola entrava. Tinha jogador que acho que até hoje quer me pegar, porque eu deixava a bola entrar. Mas foi uma infância muito gostosa, sinto falta. Acho que a juventude de hoje gostaria de ter vivido o que vivi. Era uma infância sadia, não tinha malícia, não tinha violência, como hoje. A coisa era espontânea. A gente queria sair sem problema. Eu usava minha calça curta, calçava sapato novo de domingo para ir à missa na catedral. A cada dez metros que eu andava levantava o pé para limpar a sola do sapato. Hoje em dia não tem nada disso.

ZONA SUL – Você estudou até qual série?
MAKALÉ – Naquela época seria a terceira série, que hoje é a oitava. Sinto falta da aula de francês. Não tínhamos inglês, era francês. Até hoje chego nos amigos e digo “bonjour monsieur”, “bonjour mademoiselle”, “bonsoir”... Lamentavelmente a educação hoje retirou o francês e só deixou o inglês. Eu gostaria muito de pedir ao Ministério da Educação, aos órgãos especializados, que reponham na educação, no estudo hoje em dia o francês. É uma língua muito importante. Claro que o inglês é uma língua importante, mas o francês também é e faz muita falta. É um idioma muito bonito de se pronunciar.

ZONA SUL – Por que você deixou de estudar?
MAKALÉ – Olha, a gente começa a criar idade, a apanhar responsabilidades e aos 18 anos comecei a morar sozinho. Eu havia perdido a minha família, tinha que cuidar de mim. Então parei de estudar e passei a morar sozinho. Trabalhei de engraxate...

ZONA SUL – O seu primeiro emprego foi de engraxate?
MAKALÉ – Foi, na cidade de São Paulo mesmo. Depois passei a trabalhar de ajudante, a fazer um servicinho aqui e outro ali, a carpir quintais, daí fui trabalhar no mercado público ajudando a carregar caixa pra caminhão e assim foi a minha vida. Daí, em 88 eu melhorei. Em 85, aliás. Eu sempre tive vontade de ser artista. Na minha infância eu ia aos domingos ao cinema, de calça curta, com um troquinho no bolso para comprar sorvete, bala, chiclete, distribuir com os amigos. Eu era fã do Tarzan e já pensava naquela época que um dia seria artista de cinema. Eu não sabia o problema que era, a dificuldade que era: eu queria ser artista de cinema. Daí comecei a fazer figuração na televisão.

ZONA SUL – Qual foi sua primeira experiência na televisão?
MAKALÉ – Foi atuar como figurante no programa Os Trapalhões, na extinta TV Tupi. Com o Renato Aragão, Mussum, o Zacarias e aquele pessoal todo. Eu fazia parte do auditório falso, da platéia falsa, que batia palmas e tal. Mas quase não aparecia, entrava mudo e saía calado e ainda gastava o troco que tinha para tomar um lanche no bar do lado. Começava a gravar uma da tarde e acabava meia-noite, uma da manhã, a gravação.

ZONA SUL – Você chegou a ter contato com Mussum, Zacarias, Renato ou Dedé Santana?
MAKALÉ – Não, com eles não. Tive contato depois com o pessoal do SBT, daí fui engrenando, engrenando... Da Tupi fui para o SBT. A primeira cena minha foi no programa do saudoso Jacinto Figueira Júnior, o Homem do Sapato Branco. Eu fiz o papel de bandido metido com tráfico, armas. Foi gravado em São Paulo num galpão lá na Penha. Estava envolvido o Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos, o Garra. O pessoal todo já sabia que era uma gravação. Me deram uma arma, eu gostei tanto que não queria mais devolver o 38. Foi o maior barato. Foi muito bonita a cena. Deu aquela repercussão quando foi ao ar, em um sábado, onze horas da noite.

ZONA SUL – Mas essa cena passou como realidade ou encenação de um caso?
MAKALÉ – Passou como cena real. Eu assaltando. Só que na cena eu estava dormindo no mocó, com esse 38. Daí a polícia chegou, houve tiroteio, fui baleado e saí sangrando. Claro que o sangue não era verdadeiro, nem o tiro. O sangue falso escorreu pela boca, me jogaram dentro de uma viatura do Garra. Terminada a gravação, eu com o revólver na mão não queria mais devolver. No domingo minha família ligou apreensiva querendo saber o que tinha havido. Foi difícil, para mim, explicar que tudo não passava de ficção, de uma filmagem e que não tinha nada a ver com a vida real. Foi uma coisa muito legal. Disso segui em frente. Daí fiz com Wagner Montes um jornal policial, também interpretando o papel de bandido. Só sobrava pra mim papel de bandido. Nunca me viram como astro, como um Sylvester Stallone ou como Arnold Schwarzenegger, que hoje é governador da Califórnia. Tinha também aquele outro que dava um tapa, dava um karatê e virava o pescoço da pessoa. Eles não me viam assim, só no papel de bandido. Você ri, mas é real. Nossa vida era isso aí. Eu adorava. Recebia o cachê e ia gastar no bar da esquina.

ZONA SUL – Esse cachê era muito pequeno?
MAKALÉ – Naquela época era legal. Era trinta, quarenta, cinqüenta cruzeiros. Naquela época era dinheiro. Ia ao boteco da esquina mandava descer cerveja e carne. E eu sempre de olho nas meninas que iam fazer figuração. Sempre saía premiado com uma. Era muito gostoso.

ZONA SUL – Representar o papel de bandido o deixou mais popular entre as meninas?
MAKALÉ – Sim. Mais ainda quando comecei a fazer cinema.

ZONA SUL – Como foi essa troca da tv pelo cinema?
MAKALÉ – Fui trabalhar em um escritório de autônomos de contabilidade e entre eles tinha um cliente dono de uma produtora de cinema em São Paulo, o Jerônimo Freire. Era a Libra Filmes. O nome da empresa era meu signo. Daí, conversando com ele - que era meio nortista, meio acanhadão, meio violento - nesse papo, ele me convidou para fazer parte da produtora dele. Sábados e domingos fazíamos os testes com pretendentes às vagas que oferecíamos em anúncios nos jornais. Quer ser ator, atriz? Venha aqui nos conhecer, fazer um teste conosco. Era uma farra. Eu tinha as guria tudo.

ZONA SUL – Você já foi contratado como ator?
MAKALÉ – Já fui como ator e como professor. Que na realidade eu não era. Mas as meninas não sabiam e estavam tudo na mão.

ZONA SUL – Você foi contratado para fazer qual filme?
MAKALÉ – O filme era para ser rodado em Sergipe, O príncipe da vaquejada. Mas nunca foi rodado. Mas o enredo nosso, tema nosso era muito bonito. Mas o Jerônimo não conseguiu patrocinadores, não conseguiu nada e não teve como rodar.

ZONA SUL – Qual seria seu papel nesse filme?
MAKALÉ – Eu seria um vaqueiro. Já pensou Makalé vaqueiro? Era subir no cavalo de um lado e cair do outro. Vai ver seria muito legal... (risos). Mas, lógico, a gente ia ter treino, ia praticar uns quinze, vinte dias antes. Mas, como esse filme não saiu, depois fizemos um super-8 policial, também eu era bandido. Uma parte foi filmada dentro do meu apartamento no centro de São Paulo, perto do mercado público. Era um edifício enorme, até tinha o nome de Balança Mas Não Cai. Foram filmadas muitas cenas, de sexo e tudo, e depois terminamos com a Polícia, lá na zona norte, no Jardim Peri, em um barzinho que o pai de Neilton Mofarrej tinha. Nós estávamos bebendo, a polícia chegou, na fuga houve um tiroteio e, para variar, Makalé foi para o saco novamente. Caí dentro de uma valeta com um revólver na mão, um copo de cachaça. Mas era uma coisa gostosa. Hoje em dia lamentavelmente não temos mais.

ZONA SUL – Esse era um filme pornô ou apenas tinha cenas de sexo?
MAKALÉ – Ele tinha cenas de sexo mas era mesmo um filme policial. Até vou ficar devendo o nome. Mandamos revelar o filme, que era super-8 e depois não tivemos dinheiro para retirar. Até hoje deve estar no laboratório. Pra ver como eram as dificuldades há vinte anos.

ZONA SUL – Foi a partir daí que você começou a trabalhar com cinema pornô?
MAKALÉ – Foi. Eu conheci um camarada que inclusive até hoje ainda não pagou meus direitos. Entrei na justiça contra ele aqui no Rio Grande do Sul, por isso que eu vim para Porto Alegre. Seu nome verdadeiro é Sady Plauth, mas seu nome artístico é Sady Baby. Um louro, gaúcho de Erechim. Era dono das Produções Cinematográficas Sady. Eu era cenógrafo, diretor de produção e coreógrafo. Eu era tudo. Depois dele, era o Makalé. Na época meu nome artístico era Feijoada. Fazíamos filmes no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo. A sede era em São Paulo. E ele sempre enrolando. Chegava o fim de semana ele dava um cheque de 40, 50 ou 60 cruzeiros. A gente subia contente, que tava com um dinheirinho pro fim de semana e tal. Chegava o dia de pagamento ele não pagava também os direitos nossos: INPS, Sindicato, décimo-terceiro, ele nunca pagava, férias... Mas eu tava lá com ele, eu achava que tava numa boa. Até que tivemos um desentendimento aqui em Porto Alegre no Cinema Lido, onde nós trabalhávamos, e daí eu deixei ele. Eu gostava de beber. Ele não, nem fumava. Então ele aproveitava esse dom de eu gostar de beber e ele me enchia de bebida. Pra que eu fizesse tudo o que eles queriam. Na estrada ele parava o ônibus, comprava litros de bebida pra mim, me fazia beber. Quando tinha algum problema, ele me largava na estrada e ia embora. Ele não queria saber onde era, se Rio Grande do Sul ou São Paulo. Me largava no Paraná, em Santa Catarina. Me largava na estrada. Falava: “você bebeu, você encheu a cara, você ficou bêbado, se dane”. Ele tinha essa atitude e tem até hoje. Daí ele perdeu as ações todas na justiça do trabalho, na justiça comum, hoje daria mais de um milhão e meio de reais. Ele arrumou testas de ferro pra colocar os bens em nome dessas pessoas e entrou na justiça como se estivesse falido. Até hoje não recebi um tostão dele. Mas eu sei que um dia ele vai pagar. Não pra mim, mas pro homem lá de cima ele vai pagar. Mas ele me deve muito dinheiro. É muito triste isso aí.

ZONA SUL – Qual foi o primeiro filme pornô que você fez? Como foi a experiência?
MAKALÉ – Emoções sexuais de um cavalo.

ZONA SUL – Esse filme é famoso...
MAKALÉ – Deu muito dinheiro... Pra ele! Pra mim não deu nenhum. Pra mim deu dor de cabeça, problema. Não foi difícil fazer o filme. Ele chegava e dizia: “o roteiro é esse aqui, quer tomar um whiskynho antes?”. Whisky é modo de falar, era cachaça mesmo. Daí eu me empolgava. Mas sempre na cena eu me ferrava, porque sempre acontecia alguma coisa de errado com o bandido que seu eu tivesse no papel são eu não deixava o cara fazer aquilo que tava fazendo. Eu tive cena de a mulher chegar, tirar a roupa e mijar em cima de mim. Pra ele foi ótimo. Ele pôs na tela e tal. Quando vi fiquei sem acreditar que aquilo tinha acontecido comigo. Ele me chapava antes. Fizemos uma cena de assalto, eu era bandido, daí eu ficava encurralado dentro de uma peça, numa choupana, e o pessoal de fora botava fogo. O bandido era eu e me queimou de verdade. Olha, eu tive que ir pra pronto-socorro procurar atendimento de madrugada. Ele me deu, na época, vinte reais e mandou-me comprar uma pomada e passar. A roupa chegou a grudar, da queimadura. Por um triz eu não morri de verdade. O fogo devorando tudo e eu gritando, socorro, socorro! E ele dizendo que eu estava dando vida pra cena. Não era, eu tava mesmo sendo queimado vivo com a roupa de amianto frio, mas que não era uma roupa de boa qualidade. Vazou a gasolina dentro, até que na hora uma menina falou que eu estava me queimando de verdade. Foi quando apagaram o fogo. Mas tive uma parte muito boa, que eu passei a ser um tipo de freelance no programa da Hebe Camargo. Ali sim eu fiquei realizado. No fim do programa eu ia tomar cerveja com ela, ganhava brinde... Cachê eu não tinha, mas a câmera sempre dava close em mim. Aquilo me satisfazia bastante. As pessoas comentavam que tinham me visto no programa da Hebe.

ZONA SUL – Você ficava na platéia?
MAKALÉ – Sim. Mas na realidade eu era um contratado. Às vezes Hebe dizia: “o moreninho ali venha tomar cerveja comigo”, e tal. “O moreninho ali vai ganhar um pernil”. Claro que eu não podia ir toda semana, pois ficava manjado. Mas passava um mês, dois meses, eu voltava. Fui crescendo bastante e depois quando era para pegar o pique do auge mesmo, em 1992, no dia 13 de novembro, eu bati com o carro e fiquei cego.

ZONA SUL – Você estava voltando de onde?
MAKALÉ – Eu tinha acabado de fazer um show erótico em uma boate, em São Paulo, no Vagão Plaza, daí fui levar um colega até a casa dele atrás do aeroporto, e bebendo bastante, dirigindo, acabei dormindo ao volante, e acabou acontecendo esse acidente. Era uma sexta-feira 13. Perdi a visão total, meu amigo e empresário ficou lelé da cuca. Deu problema na mente dele. Hoje estou nessa vida, trabalhando em prol da sociedade, das pessoas portadoras de deficiência... Que hoje em dia nem chama mais assim, o correto é portadoras de necessidades especiais. Eu briguei muito por isso, porque deficientes todos nós somos: enxergando ou não, andando ou não. O rico depende do pobre, o pobre do rico. Fiquei feliz com esse novo nome.

ZONA SUL – Antes de prosseguir nessa sua nova fase, vamos voltar um pouco e falar sobre esses shows eróticos.
MAKALÉ – Você gostou da parte do show erótico, né? Eu viajava pelo Brasil quase todo.

ZONA SUL – Como você passou a participar desses shows?
MAKALÉ – Através dessa produtora de cinema do Sady, ela viajava fazendo shows de sexo explícito. A gente se apresentava nos cinemas, fazia dois dias em uma cidade, três em outra e seguia viajando. Eu ia na frente fazendo a ponte, enchendo a cara, ia no juiz, pedia alvará, ia no Juizado de Menores e tudo. A gente fazia aquela festa na cidade. Fizemos muita festa em Porto Alegre. Quem não gostava quando vínhamos aqui para o sul era um grande amigo meu, um grande homem na política nacional, um grande homem do Senado Federal, o senador Sérgio Zambiasi. Quando chegávamos em Porto Alegre ele falava assim “os malfeitores chegaram”. Ele não aceitava, metia o pau em nós.

ZONA SUL – Você não só fazia a parte administrativa, mas também era ator...
MAKALÉ – Também era ator. Era o toma lá dá cá. Todo dia tinha sessão. De manhã a gente dormia até tarde, fazia almoço... Eu era o responsável pela alimentação do pessoal. Depois das duas horas estava aquela fila no cinema para ver o sexo explícito. À noite, quando a gente terminava o show no cinema, ainda ia fazer shows em boates. “O casal 20 de São Paulo”. Fazíamos no cinema quatro sessões.

ZONA SUL – Você conseguia “representar bem” em todas essas sessões?
MAKALÉ – Olha, eu falhava em algumas (risos). O público rachava o bico. Quando falhava, tinha que sair de cinema e funcionava um outro esquema: entrava outro ator na parada. Agora o que eu achava mais gostoso era a fila do gargarejo. Quando você estava naquele auge mesmo, não podia soltar o teu prazer na mulher, tinha que fazer fora. Daí você mirava para a platéia. Era um corre-corre danado na fila do gargarejo. No escuro ainda...

ZONA SUL – Nessa vida você deve ter conhecido muitas mulheres bonitas...
MAKALÉ – Com certeza. Contracenei com muitas mulheres bonitas. No sexo explícito se a guria não for bonita não tem público. Muito velha também não dá ibope.

ZONA SUL – Chegou a acontecer de, depois de alguma apresentação, alguma mulher ir procurá-lo?
MAKALÉ – Mulheres e casais também. Esperavam na saída. O marido chegava e dizia: “quero contratar você para fazer isso, isso e isso com minha mulher e eu nem vou olhar, só vou lhe pagar”. Tinha esse problema também. E ele realmente só ficava olhando, enquanto eu ganhava o meu cachê. Ele pagava e dizia: “a partir desse momento eu não lhe conheço, você não me conhece e tamos conversados”.

ZONA SUL – Você chegou a se apresentar em Natal?
MAKALÉ – Não. Nos apresentamos no Rio de Janeiro, em São Paulo, quase todas as cidades do Paraná. Em Balneário Camboriú tinha uma casa noturna chamada Soltando a franga, que tem até hoje. Também nos apresentávamos na casa de Mário Haus, que era uma casa de travestis, mas todos eles artistas, faziam shows excepcionais. Como fazem até hoje, tanto é que os argentinos quando vem na temporada eles fecham o Mário Haus em Balneário Camboriú para suas festas. A gente fazia o espetáculo de sexo ao vivo, pra dar um tchan neles e depois saíamos fora. E eles continuavam com o show normal de strip-tease, essas coisas.

ZONA SUL – Em algum desses shows de sexo aconteceu algo pitoresco ou engraçado?
MAKALÉ – No Paraná, acho que em Paranavaí ou outra cidade, na hora eu não funcionei e um cara do auditório começou a me desafiar. Eu disse: então vem. Ele subiu no palco e até que começou bem, mas terminou mal. Ele não conseguiu resistir à tentação e o povo todo gritando, ele também deu pra trás. Daí foi aquela vaia, aquela risada. Porque quem ta de fora é fácil, mas pra quem ta na ativa fica meio difícil. Foram dois, e a guria ficou ali à disposição deles. Na hora chegaram brabos, violentos, com o mastro todo lá, desfraldando a bandeira. Chegou a hora o mastro caiu do palanque, a bandeira caiu. Daí foram embora, não esperaram nem terminar o espetáculo.

ZONA SUL – Como você recebeu a notícia de que tinha perdido a visão?
MAKALÉ – Foi muito fácil. Foi assim: acabei de sair do espetáculo erótico de uma boate de São Paulo. Eu tinha um automóvel Del Rey zero, cor de vinho. E ao lado da boate estava havendo inauguração de uma casa de batidas. Aqui no Rio Grande do Sul batida, pra nós, é suco. Mas lá em São Paulo não, leva cachaça. Experimentei um golinho daqui, um pouquinho daquela ali e já fiquei assim. Um amigo me pediu pra eu levá-lo na casa de sua irmã, para eu conhecê-la, isso o meu empresário. Tirei o carro, ele subiu, no meio do caminho parei num bar pra comprar cigarros e tomei uma meia cerveja. Naquela época tinha garrafa de meia cerveja, da Antarctica. Depois pedi mais uma dose de uísque. Peguei o carro e fui embora. Parava nos sinais direito, quando via que não tinha ninguém eu passava para evitar assalto. Isso em 92. Cheguei na casa dele, tomamos mais uma dose de uísque e fomos embora. Comecei a sentir sono. Na hora em que entrei na Avenida Washington Luís, dei uma freada, passou um ônibus da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos). Fui atrás, daí eu dormi. Só sei que quando vi subi num canteiro central, bati num semáforo ali onde bateu o avião da TAM, que infelizmente matou 199 pessoas, entre os quais muitos gaúchos. Capotei três vezes e foi fatal. Pra me tirarem do carro teve que vir um helicóptero de salvamento, um Águia e serrar o carro. Na hora fui dado como morto, mas estava vivo. Fizeram o tratamento, entrei em estado de coma três vezes, mas fiquei bastante debilitado. Quando eu voltava do coma eu ficava muito nervoso, brigava com os enfermeiros e eles me chamavam de qualquer nome. Na hora do acidente, tem aquele pessoal que diz que vem ajudar, mas se aproxima pra roubar. Levaram meus documentos, cordão e pulseira de ouro, carteira, dinheiro. Então eu fiquei como um bandido. Negrão. No nosso país tem isso. Eles falam que não, mas tem, a discriminação racial. Negrão, bêbado e de posse de um carro zero quilômetro de marca, é ladrão. Até que depois de uma semana quando descobriram quem eu era, viram que não era nada disso. Mas aí eu já estava ferrado. Depois passei por quatro cirurgias, entre as quatro duas cirurgias plásticas no rosto, eu tinha ficado bastante deformado. Quebrei o maxilar todo, o nariz, tenho o nariz defeituoso até hoje, e cego. Não quebrei costela, não quebrei perna, não quebrei nada mais.

ZONA SUL – A pancada foi toda no rosto...
MAKALÉ – O problema foi todo no rosto. Sinto uma dor no peito até hoje, uma seqüela do acidente que ficou, mas não quebrou. A fratura foi no rosto mesmo. Tive duas paradas cardíacas na mesa de cirurgia e uma no quarto e daí a psicóloga veio falar comigo: “olha, eu tenho uma coisa triste para falar com você”. Eu respondi logo que ela não precisava falar que eu ia ficar cego. “Como é que você sabe?” Eu disse que já imaginava. “E como é que você vai fazer”. Vou sair daqui, por uns óculos escuros e freqüentar uma escola de cegos. Ela falou que era obrigada a tirar o chapéu pra mim. “Aqui não é o programa do Raul Gil, mas vou tirar o chapéu pra ti”. Daí estudei, fui para escola de cegos em Santos, minha irmã me levou para morar um tempo com ela e me pôs no Lar das Moças Cegas, de Santos. Onde também aprontei um monte. Depois de cego continuei aprontando.

ZONA SUL – Aprontando como?
MAKALÉ – Namorando as gurias escondido dentro da escola, até que a mestra pegou a gente aos beijos e abraços, dentro do refeitório. Eu já estava a ponto de ser expulso. A dona lá queria me mandar embora. Mas como eu era um bom aluno e tudo... Eu gostava de namorar, contar história, contar piada. Comecei a aprender piano lá mesmo. Mas foi muito legal. Depois consegui, através de uma colega do Zero Hora, consegui aqui em Porto Alegre ir para o Lar da Amizade, coordenado pela senhora Adolfina Quaresma, no bairro de Ipanema. Fiquei um bom tempo ali também, mas também encrenquei com ela. Eu queria ter um ritmo de vida, ela queria que eu seguisse outro. Ela queria que eu seguisse as leis lá do lar dela, mas não estava legal para mim. Eu queria mais liberdade e ação e ela não me dava essa oportunidade. Daí ela também começou a falar umas coisas que não era e acabei saindo de lá. Somos muito amigos até hoje, ela já me convidou várias vezes para a diretoria, mas eu sempre saio fora. Ela tem um ritmo de trabalho um pouco mais apertado que não combina comigo. Na associação que estou hoje, a Associação de Cegos Louis Braille (Acelb), eu faço parte da diretoria já há doze anos e com toda liberdade.

ZONA SUL – Por que você trocou São Paulo pelo Rio Grande do Sul?
MAKALÉ – Por causa desse problema da ação na justiça contra Sady Baby. Como entrei na Justiça em Porto Alegre, mudei para cá para acompanhar o processo. O Sady tentou mandar me matar. Saiu no Zero Hora aqui toda a reportagem. A primeira audiência nossa no Ministério do Trabalho foi registrada pelo Zero Hora. “Confusão no mundo do sexo explícito”. Ele é safado, pilantra. Ele não aceitava perder uma causa ou perder dinheiro. Em qualquer momento ele não aceitava perder. Ele achava que pagando alguém pra ele seria a melhor maneira possível. Eu enxergava ainda quando ele mandou me matar. O rapaz veio com um chequinho dele do Banco Europeu, na época, mas eu descobri. O caso foi para o 1º Distrito Policial de Porto Alegre e ele parou com isso. Mas ele arrumou pessoas que depusessem contra mim. Consegui me aposentar mesmo ele não recolhendo meu INSS, meu Sindicato. Tudo que eu tinha direito nas leis trabalhistas ele não pagou. Mas através da Justiça consegui provar que eu tinha trabalhado pra ele. Me aposentei, sou aposentado até hoje. O dinheiro é pouco, mas pago meu aluguel.

ZONA SUL – O que você acha da chamada “Lei Seca”?
MAKALÉ – Se em 1992, no dia 13 de novembro, ela estivesse em vigor, talvez hoje eu não estivesse aqui falando contigo. Porque eu não teria batido meu carro, não teria ficado cego, nem deixado meu colega xarope, lelé da cuca. Porque eu bebi tudo o que tinha direito de beber, dormi ao volante do carro, causei esse caos todo, dei prejuízo até pro município, quebrei semáforo, luminária, estraguei metrô e um monte de coisa. O dinheiro que eu tinha indenizei esse meu amigo, mas sei que não foi suficiente. Hoje vivo na dependência dos outros. A Lei Seca veio até tarde. Ela deveria ter vindo antes. Ainda hoje, lamentavelmente, no Rio Grande do Norte não sei direito, mas aqui muitos casos ainda temos de pessoas que bebem e pegam o automóvel. Recentemente um funcionário da EPTC (Empresa Pública de Transportes Coletivos) de Porto Alegre, que cuida do tráfego, foi pego completamente alcoolizado com duas garrafas de vodca dentro do carro, furando barreira policial desde a rodovia federal até o centro de Porto Alegre. Num automóvel Honda Cívica que até hoje não sabem como um funcionário municipal de trânsito estava com aquele carro importado. Com vodca caríssima, garrafa vazia, cheia não tinha. Fora esse, muitos outros casos. A cada segunda-feira os jornais de Porto Alegre noticiam sete ou oito casos de acidente causado por alcoolismo. Têm muitas pessoas que não têm consciência. Gostariam muito que tivessem pra não se tornarem hoje um Makalé como eu. Não tirando os meus valores, as coisas boas que guardei. Mas digo no problema, na área da deficiência. A deficiência é muito triste. Sou feliz como cego, até. Se você falar pra mim “quer voltar a enxergar?”, não vou querer. Assim não vou poder enxergar as coisas ruins que acontecem no nosso país hoje em dia. Mas eu não gostaria de ver mais pessoas deficientes, seja auditiva, visual, paralítica causado pela bebida alcoólica. Sou obrigado a cumprimentar o governo federal, o autor da lei. Deveria ter feito há muito tempo. Tem mais. Ela deve ser mais rígida. O brasileiro quando você mexe no bolso dele ele sente. A lei ta muito devagar. 900 pila pra mim é dinheiro que ganho 415. Mas acho que uma multa de 1.500, dois mil reais acho que vamos melhorar pelo menos 60% diminuir os acidentes causados por bebida alcoólica.

ZONA SUL – Quais as principais dificuldades que um portador de deficiência visual enfrenta?
MAKALÉ – Dia 13 de novembro fiz 16 anos de cegueira. A pessoa cega ela tem as condições de fazer tudo o que ela quer. A deficiência nossa, você quer atravessar uma rua e tem uma pessoa do teu lado, ela te olha e vai embora. Na cabeça dela ela pensa: ele é cego, por que não arruma uma pessoa pra andar com ele na rua? Ele que se vire. Mas tem os que vêm e te ajudam. Na minha casa tenho minha mulher que sai de manhã pra trabalhar e chega à noite. Arrumei uma moça pra limpar a casa. Ela acabou limpando diferente. Levou toda a roupa da mulher, levou coisas minhas. Fez uma limpa geral. Isso aí não foi uma, umas três fizeram isso. Aproveitam que você não enxerga e está sozinho. Na tua casa ela não faria isso, na minha ela faz. Temos ainda bastante problemas, discriminação, por exemplo. No Brasil a deficiência, seja ela qual for, é discriminada. É a mesma coisa com a cor. Falam que não discriminam a raça negra, mas discriminam.

ZONA SUL – Investir na educação, então, seria algo que poderia ser feito em benefício dos cegos...
MAKALÉ – Sim. Até tentam fazer. Mas as pessoas não assimilam. Se eu falar que o governo não tenta, vou mentir. Porque faço parte de conferências, monte de atos mas as pessoas que enxergam não comparecem. Eles nem ligam. O próprio deficiente discrimina o deficiente.

ZONA SUL – Na área, por exemplo, de transporte público, o que poderia ser melhorado?
MAKALÉ – O respeito das pessoas. Isso é batido muito. Em Porto Alegre o prefeito Fogaça reservou um lugar para deficientes nos ônibus. Daí entram aquelas pessoas que não querem pagar a passagem, sentam no banco da frente e ficam ali. Entra o cego, ele faz de conta que não viu, que está dormindo ou se passa por cego. O cego fica de pé. Outros falam: “lá atrás tem lugar”, ao invés de ele ceder o lugar para o cego e ir lá para trás. Esses desrespeitam. Na travessia, as pessoas ficam do teu lado, vão embora, te largam. A juventude, as moças, por exemplo, vão embora. Agora se eu fosse garoto 25 anos, olhos verdes e de brinquinho, elas me carregavam no colo. Mas as crianças tem o maior prazer e carinho. Quando chego perto da minha casa, as crianças da rua correm pra me buscar. O Breno, de três anos, já pega na minha mão e pergunta se vou pra minha casa ou pro bar da frente. Com isso já perco um Babalu ou um pirulito pra ele. Minha filha, também com três anos, fui candidato a vereador em Porto Alegre, pelo PMDB, a Daira, ela fez campanha comigo. Mostrava buraco. Teve uma época que quebrei a perna, ela saia comigo e minha irmã teve que botar uma faixa branca na perna dela porque ela queria me imitar. Um cabo de vassoura na mão e a perna enfaixada pra fazer que era gesso. Já o adulto te ignora, acha que o lugar do cego é dentro de casa ou então andar na rua com um acompanhante. Não devia ser assim: todos nós temos nosso direito de ir e vir. Muita gente quer nos tirar esse direito. Por esse direito de ir e vir vou brigar até os últimos dias da minha vida.

ZONA SUL – Você teve quantos votos como candidato a vereador?
MAKALÉ – 710. Me elegeria com 3 mil. Os próprios deficientes visuais não votaram em mim. Porto Alegre tem um número bem alto de cegos. Por eles eu seria eleito. Você vai ficar surpreso, mas a discriminação do cego para o cego e por eu ser paulista. Eles não se conformam de um cego paulista. Teve um cego que recentemente eu tive que processá-lo. Eu participava no rádio e ele sempre depois entrava me xingando, dizendo que meu lugar era em São Paulo. Nem conhecia minha vida. Ouvia eu entrar no rádio e logo em seguida entrava pra esculhambar comigo. Me chamava até de mentiroso. Por exemplo. Eu faço uns eventos e pra ficar bonito o convite eu botava Makalé Produções e Eventos. Ele ficou três dias gastando dinheiro de táxi pra verificar na Junta Comercial se existia Makalé Produções e Eventos. Ele viu que não tinha, foi para a rádio, no ar, dizer que a empresa não existia, que eu era um Pinóquio, me chamando de mentiroso. Ligava pra Associação dizendo que ela tinha que me mandar embora porque eu era mentiroso, isso e aquilo. Até que não agüentei mais e entrei com uma ação judicial por perdas e danos, pedindo indenização. Até deixei indenização pra lá. Só pedi uma coisa ao juiz que Luiz Cláudio Abreu me respeite e quando eu participar no rádio ele esqueça que participei, como eu o ignoro também. Nos almoços de solidariedade que faço todo mês, se forem dois ou três cegos é muito. O resto é pessoa de visão normal.

ZONA SUL – Qual o objetivo desses almoços?
MAKALÉ – Faço o almoço dos amigos do Makalé. Não tem ingresso. Não obrigo ninguém, mas peço que cada um leve um quilo de alimento não perecível para eu doar ou para a Casa Lar do Cego Idoso, como geralmente eu faço a doação com a presença da diretoria da entidade, ou dou para outra entidade, seja ela qual for a área da deficiência. Eu não tenho lucro nem benefício nenhum. Pelo contrário, as vezes tenho despesa pagando almoço pra um, dois, três, quatro. Perdi um grande restaurante onde eu fazia almoços, a Churrascaria Quintinos porque tinham pessoas que além de não levar o alimento, não gastar em algum consumo dentro da churrascaria, ainda levavam dentro de uma sacolinha plástica escondida. Até que daí o proprietário é super-amigo meu da entidade, faz anúncio no jornal da entidade até hoje, me ajudou no evento do meu aniversário financeiramente, com o som e tudo. Mas disse que lá não dá. Ele arranja mil e uma desculpas, que o restaurante está lotado e tal. Mas eu sou esperto e sei.

ZONA SUL – Você falou que não é louro, não tem os olhos verdes, mas...
MAKALÉ – Mas tenho amigas que chamam “meu moreno dos olhos verdes”. Eu falei que ia colocar uma prótese de olhos verdes, mas não pus ainda porque não tenho money. Há dois anos atrás era 3 mil, agora deve estar uns seis. Eu ganhando 415 reais por mês... Mas a vontade é colocar uns olhos verdes.

ZONA SUL – Você me falou que fazia muito sucesso entre as mulheres. Qual o segredo?
MAKALÉ – Modéstia à parte... Talvez por eu ser considerado e ser muito espontâneo, eu gosto de contar piadas e fazer charadinhas. Isso aí foi criando um grande vínculo meu com as meninas, com as pessoas, com as gurias e tudo. Até hoje tem pessoas que jura, você não vai acreditar, pode por no jornal, que eu sou pedófilo. Dizem que Makalé só gosta de guriazinha, que sou pedófilo, e é mentira. Nunca tive caso com criança. Se alguém, algum vizinho tiver visto algum dia que levei uma criança na minha casa, eu quero que chegue, abra o livro e fale que eu sou pedófilo. Hoje duas gurias, quando saí de casa e cheguei no sinaleiro, 12, 13 anos, “seu Makalé”, chegam me abraçam, me beijam, são minhas vizinhas. Eu estou no bar me dá beijo. Já acham que estou assediando as gurias. Então é uma coisa muito triste. Como sou uma pessoa muito popular, alguns acham que sou pedófilo. Eu gosto de andar com meninas bonitas, meninas novas. A mãe dos meus filhos tem 49 anos. Tenho uma filha com 30 anos que me ignora. Depois que fiquei cego, me ignora. O meu filho de 23 anos depois que fiquei cego também me ignora. Mas em compensação a minha filha de 10 me adora.

ZONA SUL – Sua atual companheira é bem mais nova que a mãe dos seus dois primeiros filhos...
MAKALÉ – É a minha paixão. Meu pezinho de beija-flor. Ela começou como minha assistente lá no Sarandi, onde eu morava, depois teve um desentendimento com os pais, saiu de casa, se complicou, daí ela me procurou. Dei todo apoio. Estamos morando juntos há três anos. Ela tem 19 anos hoje, é geminiana, o nome dela é Vanessa. Ela é arrogante, é prepotente. Não vai aos meus eventos porque têm ciúmes das tias me abraçarem. Sempre dá desculpa. Ela trabalha e tudo direitinho. É uma pessoa que não me explora, tem a vida dela, ganha o dinheiro dela. Quando precisa de alguma coisa extra ela me pede, mas não é aquela pessoa que exige nada. Se eu falar que não posso dar, ela aceita. Não obrigo ela a nada, como ela também não me obriga a nada. A gente vive muito bem. Claro que, como em todo casal, temos algumas discussões. Quando ela está na TPM é um pouco terrível. Mas é uma gata linda que adoro. Ela é morena, mas pinta o cabelo de louro. Então a chamo de minha lagartinha loura. O pezinho a coisa mais linda. Faço massagem todo dia. Passo creme. Ela fala: “esse homem não tem jeito”. Daí as pessoas ficam com ciúmes. Tenho amigos que falam assim: “Makalé negrão, cego, sem dente, sem dinheiro como é que consegue essas gatas lindas maravilhosas passeando pra lá e pra cá no shopping, na Assembléia, na Câmara?”. Mas acho que cada pessoa tem um imã que atrai os outros. Eu tenho isso. Tenho amigas de todas as idades que me adoram. Alguns de cabeça poluída é que confundem essa amizade com algo mais. E não é nada disso. Até porque tenho uma filha com dez anos, a que falei, e o que não quero pra ela não quero para as outras. Cheguei até a fazer campanha de produtos pra crianças recém-nascidos, fraldas, pra duas gurias que estavam gestantes em frente à minha casa, de 14 anos. Ao invés de estar brincando com boneca estavam carregando um filho. E os caras fazem o filho e caem fora. Fiz uma campanha, consegui bastante roupinha, fralda, coisas pra dar banho. Talco, óleo Johnson. Não cobrei um tostão e ainda dei do meu bolso. Isso é que me faz feliz, poder ajudar as pessoas. E por ser paulista, morar no Rio Grande do Sul poder ajudar os gaúchos carentes como eu. Só que felizmente Deus me deu o dom de, mesmo cego, poder ajudar as pessoas que mais precisam. Eu preciso também, mas faço o possível para ajudar quem está mais necessitado ainda. Me sinto muito feliz com isso.

ZONA SUL – E o apelido Makalé, como surgiu?
MAKALÉ – Foi do cinema. Você lembra do saudoso Tião Macalé? Antes o meu nome artístico era Feijoada. Daí um diretor de fotografia da Sadi Produções disse que como eu estava sem dentes, eu tinha que trocar o apelido Feijoada por Macalé. Eu não quis aceitar, argumentei que Tião Macalé me processaria. Mas eles conseguiram uma autorização do próprio Macalé para eu usar o nome. Ele concordou e disse que até seria um prestígio. Só que logo em seguida ele faleceu e fiquei no início Tião Macalé. De um ano e meio pra cá eu passei a usar o Makalé com K.

ZONA SUL – Deixe uma mensagem para o leitor do Zona Sul.
MAKALÉ – Quero deixar um grande abraço e fazer um pedido: as pessoas que bebem, eu também gosto de beber até hoje. Mas façam assim: quando for dirigir, não bebam. Se forem beber, não dirijam. Pra vocês não serem mais um Makalé da vida. Não por que ser cego é ruim. Temos bastante prioridade e ajuda, mas o importante é você ser uma pessoa feliz, normal, sem nenhum tipo de necessidade especial. Ainda mais quando essa dificuldade foi causada pelo alcoolismo e através do volante. Vamos colaborar com essa Lei Seca. No início a gente acha que é ruim, mas se a gente pensar bem, vai ver que é uma coisa necessária. A nossa família nos deixa sair e quer que a gente volte feliz e não voltar deficiente, paralítico ou cego. Então, se beber não dirija, e se for dirigir, não beba, e lei seca para sempre.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Entrevista: Joaquim Campelo

O COLECIONADOR DE PALAVRAS, AMIGOS E AZULEJOS


Pouca gente em Natal sabe quem é Joaquim Campelo Marques. Porém, percentual elevadíssimo dos habitantes da cidade pelo menos uma vez na vida ouviu falar em Aurélio Buarque de Holanda, que virou sinônimo de dicionário. O professor Campelo foi braços e pernas do lexicógrafo. E José Sarney, quem não conhece? Campelo o assessorou no período em que o maranhense exerceu a Presidência da República. Da Editora Alhambra, criada por Campelo, talvez poucos lembrem. Mas poucos esquecem de autores publicados por este selo como Ivan Illich, Glauber Rocha, Mark Twain, Friedrich Nietzche, Gogol, Tolstoi e Otto Maria Carpeaux, que acaba de ter sua História da Literatura Ocidental reeditada por Campelo, agora pelo Conselho Editorial do Senado, do qual nosso entrevistado é vice-presidente. O jornalista Carlyle Madruga, já entrevistado pelo Zona Sul, me ajudou na condução dessa entrevista, realizada em Belém, no finalzinho de setembro.

ZONA SUL - O senhor é maranhense de qual cidade?
CAMPELO - Nasci em Viana, na baixada ocidental do estado. É uma região que eu poderia qualificar de um pequeno pantanal. Seis meses de campo verde aberto, rios - Igarapés, no caso - e seis meses de muita água. Fica à beira de um lago. De janeiro a julho a água toma conta dos campos todos e chega à beira da cidade.
ZONA SUL - Hoje Viana tem cerca de quantos habitantes?
CAMPELO - O município tem menos de 40 mil habitantes. A cidade deve ter uns oito mil. Lá é predominantemente, ou quase que exclusivamente, rural. Produz fumo, gado, arroz e carnaúba. Lá também se extrai palmito e se pratica alguma caça.
ZONA SUL - Sua infância foi vivida toda em Viana?
CAMPELO - Não. Saí com uns quatro anos.
ZONA SUL - Tem alguma recordação até essa época?
CAMPELO – Remotíssima. Lembro de um cachorro chamado Mondego, nome de um rio que banha Coimbra, em Portugal. Eu montava nele como se fosse um cavalo. Meu pai era português, veio para o Brasil para Cururuca, que fica entre São Luís e o Rio Gurupi. De lá ele foi para Viana.
ZONA SUL – Sua mãe é de onde?
CAMPELO - É vianense. Eles se conheceram e casaram lá.
ZONA SUL - De Viana o senhor mudou-se para onde e por quê?
CAMPELO - Meu pai cresceu, economicamente falando. Ele era comerciante, deixou seu comércio com um primo - não sei se associado ou não - e foi embora. Provavelmente associado, porque o português tem o costume de passar o controle dos seus negócios para gerações sucessivas ou para parentes próximos. Fomos morar em São Luís. Ele associou-se lá com um senhor chamado Mendonça. Quando esse sócio morreu, ele assumiu a casa.
ZONA SUL - Qual era o tipo de comércio?
CAMPELO - Armazém de secos e molhados e importação. Tudo no Maranhão era importado. Ainda comia-se o que se produzia lá, como o arroz, o feijão e tal. Mas a parte industrializada toda vinha de fora: ou do estrangeiro ou de São Paulo, do sul do país. Da mesma forma também eram importadas as ferramentas como enxada, facão, foice e tecidos para vestimenta e o trigo - que praticamente ninguém produz no Brasil, só o Rio Grande do Sul, e assim mesmo pouco. Ele tinha um grande armazém na Praia Grande. Era um dos grandes comerciantes da capital e, por conseqüência, do estado.
ZONA SUL - Fale um pouco sobre o seu período de infância em São Luís.
CAMPELO - No primário, estudei no colégio de uma professora rigorosíssima que tratava a gente com puxões de orelha. Até palmatória lustrou a palma de minha mão, de vez em quando. Apesar disso, tive uma infância normal e feliz.
ZONA SUL - Como eram as brincadeiras daquela época?
CAMPELO - Basicamente era empinar papagaio. Tinha também o futebolzinho, o racha. Meus colegas gostavam de tomar banho na beira-mar, mas eu não ia.
ZONA SUL - Por que?
CAMPELO - Eu não gostava, a água era um pouco suja. Eles iam para a aventura. No ginásio eu pratiquei voleibol, basquetebol e corrida. Corrida de fundo, não corrida de velocidade.
ZONA SUL - Quando criança o senhor ajudava o seu pai no armazém?
CAMPELO - Ajudava. Todo dia, no armazém, eu abria caixa.
ZONA SUL - O senhor foi um bom aluno?
CAMPELO - Mediano. Nem bom, nem mal. Mais pra baixo do médio, até.
ZONA SUL - Mas desde cedo tomou gosto pela leitura?
CAMPELO – Sempre gostei de ler, sempre fui um leitor forte.
ZONA SUL - Há alguma explicação para isso? Algum leitor voraz dentro da família ou no círculo de amigos?
CAMPELO - Não. O fato é que o Maranhão teve a tradição marcante de terra de literatos, hoje não tem mais. Vamos botar as coisas em pratos sujos: a província do Brasil, me parece, é muito esquecida pelos veículos de comunicação. Apenas eventualmente eles fazem matérias extensas sobre um ou outro dos grandes da província. O escritor da porção norte do país só passa a ser respeitado pela imprensa quando vence e ganha alguma notoriedade. Então, temos Ariano Suassuna, Ferreira Gullar, João Ubaldo e quem mais no norte? No sul você encontra Luís Fernando Veríssimo, os mineiros, aqueles contistas da década de 60, os paranaenses e tantos outros. Qualquer coisa que eles fazem é um estouro. A porção norte fica lutando sozinha.
ZONA SUL – De onde veio essa tradição literária do Maranhão sobre a qual o senhor falou agora há pouco?
CAMPELO - Nos séculos XVIII e XIX, por conta de uma economia muito rica, sobrou dinheiro no Maranhão para a literatura, para as artes e para mandar os filhos estudarem na Europa. O Gonçalves Dias, por exemplo, aprofundou seus estudos na Alemanha depois de vencer no Rio de Janeiro e passar a gozar da admiração do Imperador. O grande latinista e grecista Odorico Mendes – autor das primeiras traduções integrais para português das obras de Virgílio e Homero - estudou na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele traduzia na métrica original! Muitos outros nomes importantes da literatura nasceram no Maranhão no século XIX. Do século XX destacaram-se apenas Ferreira Gullar e Josué Montello, na prosa. O resto, por uma razão ou outra, ficou esquecido.
ZONA SUL – Quem, por exemplo, ficou esquecido?
CAMPELO – Um deles foi o Bandeira Tribuzi, que embora tivesse vivido alguns anos no Rio de Janeiro e trabalhado na imprensa de lá, nunca extrapolou as fronteiras do Maranhão. Se tivesse permanecido mais tempo no Rio, teria se tornado um homem do top de Ferreira Gullar. Outro é o Sarney, que teve seu trabalho prejudicado pelo fato de ser um político. Os críticos literários deixam contaminar sua opinião, que poderia ou não ser diferente. Então, são andorinhas sem fazer verão.
ZONA SUL – O que incentivou o senhor a começar a ler?
CAMPELO – Essa imagem, essa mensagem histórica do Maranhão é uma carga tão forte que permeia tudo. Em casa há referências, na escola a professora fala em Gonçalves Dias, diz que Aluísio Azevedo morou em tal rua, que tem um mirantezinho onde ele escreveu O mulato...
ZONA SUL - Quais os primeiros livros que o senhor recorda de ter lido?
CAMPELO - Foram os dito clássicos do Maranhão e os portugueses clássicos.
ZONA SUL - O senhor só lia ou também escrevia? Fez muitos poemas para as namoradas?
CAMPELO - Não. Eu não caí nesse insulto.
ZONA SUL - Por que insulto?
CAMPELO - Porque eu não fazia coisa que prestasse. Desde o ginásio éramos estimulados ao beletrismo, que é a bela arte das letras. Os colégios tinham centros ou grupos culturais. O nosso chamava-se Centro Cultural Coelho Neto. A cada semana um indivíduo era destacado para escrever uma crônica, um conto, um soneto e tal. Outro era escalado para fazer a crítica daquilo. Isso dava uma emulação muito grande, um estímulo na rapaziada. Para o debate que havia era sempre convidado para, digamos, moderação, um acadêmico. Esse acadêmico comentava o que um e outro diziam. Isso estimulava muito.
ZONA SUL - O senhor chegou a ser vítima de alguma crítica feroz?
CAMPELO - Não. Por sorte fui escolhido apenas para criticar.
ZONA SUL - O senhor carrega alguma frustração por não ser escritor?
CAMPELO - Nenhuma.
ZONA SUL - O senhor ficou em São Luís até que idade?
CAMPELO - Fiquei até os 19. Fui para o Rio de Janeiro.
ZONA SUL - Como foi trocar a pequena São Luís pelo Rio de Janeiro?'
CAMPELO - Foi pegar um avião e descer lá. Há algum tempo eu digo que desconfio que daria um bom detento, um bom presidiário. Eu sei olhar para a parede horas seguidas. Agora, se quiserem estender isso - que eu daria um bom monge, um bom soldado na caserna - está aberto.
ZONA SUL - No Rio o senhor foi estudar Direito?
CAMPELO - Eu fiz três escolas ao mesmo tempo. Diziam na época que era proibido por lei, mas eu fiz Comunicação, que se chamava Jornalismo, Direito e Administração Pública.
ZONA SUL - Simultaneamente?
CAMPELO – Sim, mas deixei o curso de Direito no terceiro ano e obrigaram-me a deixar Administração Pública também com pouco mais da metade do curso concluído. Terminei apenas jornalismo.
ZONA SUL - Como foi a vida no Rio de Janeiro? Como foi passar a morar sozinho?
CAMPELO - Eu morava com um colega do Maranhão.
ZONA SUL - Como foi deixar de morar com a família para encarar a vida?
CAMPELO - Foi tudo normal. É aquele negócio do presidiário, só que sem gangues apertando a gente dentro do presídio. Fui para o Rio em 1950.
ZONA SUL - No Rio de Janeiro o senhor chegou a se envolver com política, com movimento estudantil?
CAMPELO - Com o movimento estudantil, sim. Fui presidente de diretório três anos seguidos, na Fundação Getúlio Vargas.
ZONA SUL - De qual curso?
CAMPELO - De Administração Pública. Também me quiseram por na política nas outras faculdades, mas eu não aceitei. Eu era, e ainda sou, muito tímido. Como já estou muito mais pra lá do que pra cá, fiquei mais liberado pra me manifestar. Hoje eu posso entrar tranqüilamente no Vaticano pra cumprimentar o Papa. Antes eu ficaria escondido pelas paredes, encostado, despistando para o Papa não me ver e perguntar "quem é aquele homem bonito lá?".
ZONA SUL - O que o senhor diria se tivesse oportunidade de cumprimentar o Papa?
CAMPELO - Eu provavelmente o abençoaria. (risos)
ZONA SUL - O senhor precisou trabalhar enquanto estudava ou foi mantido pela mesada da família?
CAMPELO - No início eu recebia mil cruzeiros, que dava para sobreviver.
ZONA SUL - Seria mais ou menos quanto, hoje?
CAMPELO - Não tenho a menor idéia, nunca parei para imaginar ou calcular.
ZONA SUL – Mas o senhor trabalhou ou não enquanto estudante?
CAMPELO – Um diretor da Fundação Getúlio Vargas fez umas entrevistas, uns concursos, uns exames em São Luís e fui aprovado como bolsista. Eu recebia inicialmente 2 mil cruzeiros. Depois passou para 3 mil. Mas no terceiro ano cancelaram minha bolsa e convidaram a retirar-me da escola, por causa de política estudantil. Antes de sair da Fundação Getúlio Vargas, passei a trabalhar para o Aurélio Buarque de Holanda. Isso foi por volta de 1956.
ZONA SUL - Como o senhor começou a trabalhar com ele?
CAMPELO – Aurélio foi nosso professor. Ele aproveitava os alunos que se interessavam pela língua portuguesa para ajudá-lo na correção de provas e em outros trabalhos. Uns quatro ou cinco alunos começamos a freqüentá-lo. Mesmo quando saí da FGV, continuei com o Aurélio e tornei-me seu amigo. Ele era uma pessoa muito caótica e trocava o dia pela noite. O biorritmo dele era noturno.
ZONA SUL – Aurélio era caótico e trocava o dia pela noite?
CAMPELO - Trocar o dia pela noite não significa caos. Ele trabalhava, rendia muito. Dormia até dez, onze horas da manhã. Mas o trabalho dele era um caos, uma bagunça. O trabalho de Aurélio era como uma árvore sem um jardineiro que a podasse como devia. Ele era um levantador de assuntos, um anotador. Ficava aquilo tudo sem sistemática, jogado em caixas, baús e gavetas. Era um curioso, um xereta dos vocábulos e das palavras novas.
ZONA SUL – O senhor conheceu o principal concorrente dele?
CAMPELO – Conheci o Antônio Houaiss. Havia muita diferença entre um e o outro. Houaiss tinha formação acadêmica, o Aurélio, mesmo formado em Direito, era autodidata nas áreas de lexicografia, etimologia e lingüística. Mas ele tinha um talento natural muito grande para definir, para a gramática. Houaiss sabia mais latim e grego do que Aurélio, que sabia pouco ou pouquíssimo. Mas o Aurélio, digamos, era ecumênico e tinha facilidade para elaborar e transmitir. O Antônio Houaiss era complicado, talvez por essa condição de saber mais profundamente. Comparo o Antônio Houaiss com o Gustavo Corção e o Aurélio com o Alceu Amoroso Lima. O Gustavo Corção e o Alceu eram teóricos do catolicismo. Corção era mais profundo do que o Alceu, que era mais abrangente e ecumênico. O Houaiss era mais profundo do que o Aurélio, mas o Aurélio era mais abrangente e ecumênico.
ZONA SUL - O senhor trabalhou durante quanto tempo com o Aurélio?
CAMPELO - Até três anos antes da morte dele. Aurélio morreu aos 78 anos, em 1988. Ele era de 1910.
ZONA SUL – Durante o período em que esteve com Aurélio o senhor teve outras atividades paralelas?
CAMPELO - Sim. Trabalhei n’O Cruzeiro, na revista, de 1957 até ela começar a mandar as pessoas embora. Eu era redator. No Jornal do Brasil entrei por volta de 1960. Lá trabalhei 24 anos, também como redator. Nunca fui repórter. Repórter é muito curioso, pergunta.
ZONA SUL - O senhor tem uma questão na Justiça com relação ao Dicionário Aurélio...
CAMPELO – Isso é um caso a parte que daria até um livro. Se fôssemos remexer nesse assunto ficaria um bando de escaninho sem ser preenchido e o leitor iria voar.
ZONA SUL – Como foi o trabalho de elaborar o primeiro dicionário com a grife Aurélio?
CAMPELO - Em determinada época Aurélio assinou contrato com O Cruzeiro para fazer um dicionário que seria publicado pela revista, em fascículos. Depois de três ou quatro anos, não saiu nada. É bom que se diga que O Cruzeiro pouco deu para ele, em matéria de equipe. Só eu trabalhava com ele, por minha conta. E um dicionário, uma enciclopédia e essas obras de referência a equipe é que tem que elaborar. Ninguém é enciclopédico o suficiente para fazer tudo. Aí ele negociou com a Delta Larousse que deu equipe. Eu era o chefe e tinha cinco assistentes e oito datilógrafos, além de um boy que cuidava do escritório e fazia a ligação com a sede. Durante três anos a Delta enterrou mais de 700 mil cruzeiros. Eu não sei a quanto monta isso aqui, mas acho que alguns bons milhões. O Aurélio recebeu adiantamento pra ser descontado depois, de direitos autorais, e pagou a nós, a equipe. O direito autoral era 3% a 4%. Uma coisa realmente ridícula. Mas ele quis. Quando o dicionário não saiu, Aurélio ficou arrasado, chorou. Eu peguei a equipe e propus que nós fizéssemos o dicionário. Resolvi criar uma editora para tentar lançar o dicionário. Fundei a JCM: Joaquim Campelo Marques. Editamos alguns livros como os de José Ramos Tinhorão sobre música popular brasileira. Era uma tentativa de ganhar dinheiro para financiar a elaboração do dicionário. A JCM feneceu porque um dos livros que ia ser um sucesso foi apreendido pelo governo.
ZONA SUL - A censura o perseguiu muito como editor?
CAMPELO - Tive apenas esse livro censurado, apreendido. Não por ele ter sido nomeado no decreto de apreensão. O livro citado, apesar de ser o mesmo, era de uma outra editora. Era A filosofia na alcova, do Marquês de Sade. O ministro da Justiça, Gama e Silva, em sua portaria citava apenas o livro do concorrente, que era a Coordenada Editora de Brasília. Quando os agentes apreensores chegaram à livraria tomaram conhecimento da existência do outro e imediatamente levaram também. Estiveram na loja do distribuidor do meu livro e o prenderam pra saber quem era o editor daquele livro. Sebastião Sena, o distribuidor, dizia que JCM era José Machado Campelo, tentando despistar. Mas os policiais insistiam que não, achavam que JCM era Juventude Comunista Mundial. A JCM acabou assim. Ela foi criada só para tentar ganhar dinheiro para financiar o dicionário e não deu em nada. O dicionário terminou saindo pela Editora Nova Fronteira. Antes eu havia procurado umas cinco ou seis editoras e outras tantas pessoas físicas, mas ninguém quis emprestar o dinheiro para editarmos o dicionário.
ZONA SUL – Por que, diante de tantas negativas, a Nova Fronteira bancou o dicionário?
CAMPELO - Não foi pela loucura do Carlos Lacerda, que era o dono, pois ele era contra. Ele achava que aquilo era uma aventura que levaria a editora à falência. Mas o superintendente dele - um jovem sem nenhuma experiência como editor, um rapaz de 30 anos que morreu dois ou três a nos depois de o dicionário sair – tinha uma estrela propícia, digamos. Roberto Correia era um executivo intuitivo que apesar de nunca ter dirigido nada, tinha uma estrela favorável: onde ele punha a mão virava dinheiro. Trabalhou com o ministro Cirne Lima, no governo Geisel, no departamento jurídico do Ministério da Agricultura. Era advogado. Depois pegou um empreguinho no Escritório Nabuco Araújo e caíram nas mãos dele os assuntos de Carlos Lacerda. Muito ligado aos jovens, Lacerda ficou fã dele e o levou para ser superintendente da Nova Fronteira. Ele transformou a editora, retirou-a do buraco e entrou de sola na aventura do dicionário.
ZONA SUL - Quando saiu o primeiro dicionário Aurélio?
CAMPELO - Em abril de 75, e foi um sucesso. Não existia nenhum dicionário feito no Brasil. Existiam léxicos mínimos, a maioria cópias de dicionários portugueses ou dicionários portugueses que concorriam. O único dicionário brasileiro que tinha presença era aquele médio chamado Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, originalmente editado pela Companhia Editora Nacional. Posteriormente ele foi passado como dote da filha do dono da editora, o Otales Marcondes. Sua filha casou-se com Ênio Silveira e levou o dicionário como dote. E o Ênio ficou com aquela mina na mão. Até então era o dicionário que mais vendia no país. Voltemos um pouco na história. Esse dicionário foi apresentado ao Otales em 1934 por Hildebrando de Lima, alagoano irmão do poeta e médico Jorge de Lima. Hildebrando fez o dicionário e levou para Otales, que tinha sido o administrador da editora que o Monteiro Lobato criou. Só que o Monteiro Lobato era um incompetente administrador tal como eu fui e sou. Nisso eu me nivelo com ele: na incompetência administrativa, gerencial e financeira. Mas o Otales, que era um homem do comércio, propôs a Hidelbrando que Gustavo Barroso, que tinha nome, fosse chamado para se incorporar ao dicionário, que saiu no nome dos dois. A equipe era grande. Um deles era Manuel Bandeira, encarregado de brasileirismos e da coordenação. Muito míope, Bandeira desistiu e o Otales convidou Aurélio. Como não tinha formação como Houaiss, mas lhe sobrava sensibilidade para a matéria língua, Aurélio começou a mexer no dicionário, a criar, a botar os brasileirismos e o dicionário frutificou com ele ali. Foi a partir dessa experiência que houve o acerto com O Cruzeiro para o dicionário em fascículos.
ZONA SUL – O senhor também criou a Editora Alhambra...
CAMPELO – Eu tive a fortuna de na vida criar uma coisa muito profunda e importante: amizades. Criei amigos. Alguns deles me deram dinheiro a fundo esquecido e perdido para eu fazer o dicionário. Quando o dicionário saiu, ganhei um dinheirinho e criei a Alhambra. Editamos livros notáveis.
ZONA SUL – Ganhou dinheiro com a Alhambra?
CAMPELO – Não. Editora é um cristal, é uma coisa delicada, pode quebrar fácil. Editora só ganha dinheiro quando se cria um fundo editorial e quando não se edita para si mesmo. Eu tinha a visão dupla do mercado. Eu queria editar horóscopos para ganhar dinheiro e poder sustentar o que eu queria editar pra mim. Arrolo na Alhambra três ou mais momentos dos quais realmente me orgulho. As publicações de Imagens do inconsciente, de Nize da Silveira, de História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux, e de O século do cinema, de Glauber Rocha. Fui editor desses três. Eu pus os bons livros desses caras pra fora. Editei também livros de alta classe de autores como Tchekov, Mark Twain, Gogol, Andreiev e Tolstoi. Isso tudo eu editei na minha editora, mas aí a Alhambra também feneceu.
ZONA SUL – Atualmente o senhor é vice-presidente do Conselho Editorial do Senado. Como está sendo a experiência?
CAMPELO – Esse trabalho me dá oportunidade de repor no mercado livros esquecidos que não despertam nenhum interesse do editor comercial. O interessante é que apesar de termos 81 chefes, os senadores, a ingerência política é pequena ou até nula. O fato de eu ser discreto, de não procurar brilho ou faturar presença e tal, contribui para isso.
ZONA SUL – Indique umas três ou quatro publicações do Senado para o leitor do Zona Sul adquirir através do site http://www.livrariasenado.com/ . É bom lembrar que o frete é grátis e os livros são vendidos a preço de custo.
CAMPELO – Olha, três ou quatro todas. A resposta é essa. Tenho muito orgulho e vaidade do que estou fazendo. Tenho a mania de eu mesmo ir para o espelho e cuspir em mim. Claro que se for deixar o cuspe lá, vai roer tudo aquilo. O cuspe sai aqui pesado de ironia, sarcasmo e tal. É uma maneira de eu não querer me elogiar. Não é por eu estar na minha presença, mas o caso do Dicionário eu não cheguei a dizer porque o repórter já vem com uma pauta...
ZONA SUL – Eu não trouxe pauta nenhuma. Apenas uma folha em branco para tomar notas durante a conversa.
CAMPELO – E você ainda discute? Não vou dizer mais a coisa mais importante sobre o dicionário Aurélio, suspendi.
ZONA SUL – Se não quiser, não diga...
CAMPELO – Não diga coisa nenhuma! Você ficou interrompendo. A modéstia me impede de dizer... Mas vou dizer, pronto.
ZONA SUL – Então fale.
CAMPELO – Como é difícil fazer esse cara calar... Escuta, Roberto, é o seguinte: sucesso editorial como o Dicionário Aurélio não houve no século XX. Pouca gente sabe, mas a existência física do dicionário - lombada, corte papel, letras e tal – deve-se a quatro fatores concretos e um abstrato, todos fundamentais. 1) O nome, a importância e o saber de Aurélio. 2) A equipe que fez com ele, aprendeu com ele e mexeu com ele. As virtudes de cada um, independentemente dele, somaram em benefício da obra. 3) Não é por eu estar na minha presença, mas minha participação determinada, aguerrida, aberta, tinhosa e mais do que fiel, leal. 4) O superintendente da Nova Fronteira, Roberto Correia, que bancou. Esses foram os fatores concretos. O fator abstrato que deu força para esse superintendente bancar o sonho que estava sendo criado foi o livro O exorcista ter se transformado em best seller. Essa publicação rendeu muito dinheiro à editora, o que permitiu a conclusão do dicionário. A conclusão disso é que independentemente da santice do nosso grupo, o dicionário teve a contribuição, a participação de Deus e do diabo, via O exorcista.
ZONA SUL – Se fosse comprar hoje um dicionário, compraria qual?
CAMPELO – Compraria os dois.
ZONA SUL – Se o dinheiro desse apenas para um?
CAMPELO – Compraria o Aurélio por aquilo que eu falei: é ecumênico, abrangente, simples e é povo. O Aurélio tinha o talento de comunicar-se, de ser povo. Antônio Houaiss era elite.
ZONA SUL - Como foi sua aproximação com o ex-presidente e hoje senador José Sarney?
CAMPELO - Fomos colegas no Maranhão, no ginásio. Ele é mais velho do que eu um ano. Estudamos na mesma escola. Reencontramos-nos no Rio de Janeiro, ele como deputado e eu como jornalista. Sarney sempre procurava a nós, contemporâneos dele. Quando se elegeu governador do Maranhão, procurou os antigos companheiros para ajudá-lo. Contribuo com ele na área intelectual, literária. Nunca fui solicitado para a área política, não que eu fuja, mas ele nunca me procurou.
ZONA SUL – Ele deve ter outros amigos para esse tipo de tarefa.
CAMPELO - É. Esses políticos bons, autênticos e sensíveis - como Sarney e Antonio Carlos Magalhães - sabem a quem recorrer pra esta ou aquela missão.
ZONA SUL - O senhor trocou o Rio por Brasília quando Sarney assumiu a Presidência da República?
CAMPELO - Eu ia para a vice-presidência, que foi para onde o Sarney foi eleito. Após a eleição, ele foi ao Rio e me convidou para o cargo de assessor. Com a morte de Tancredo Neves ele, que ia para a Vice-Presidência, pulou para a Presidência e eu, que ia ser assessor do vice-presidente, virei assessor de presidente.
ZONA SUL - Como foi essa experiência?
CAMPELO - Eu trabalhei, só. Trabalhei pra ele, com ele, por ele e pelo Maranhão. Lá vi como existem os enganadores, os espertos... Todos são politicamente bem equipados. Eu vi ali as qualificações das pessoas. A proximidade com o poder lembra aquela história dos animais predadores. Existem muitas rêmoras que vão junto com os predadores para pegar as migalhas que caem. Esses são terríveis.
ZONA SUL – O senhor tem uma paixão por azulejos...
CAMPELO – Eu colecionei palavras no Dicionário de Aurélio; amigos, que são os que tenho e azulejos. Colecionei três coisas. Não colecionei angústias, não colecionei sorrisos, não colecionei olhares. Esses ficam comigo, não como coleção. A coleção eu exibo.
ZONA SUL – O senhor acaba de dar o título da entrevista: O colecionador de palavras, amigos e azulejos.
CAMPELO – Gostei. Minha coleção de azulejos vou doar à cidade de São Luís. O senhor prefeito já está preparando um museu. Tenho cerca de 5 mil peças. Não vou dizer que eu deva ser o grande colecionador de azulejos, mas tenho uma coleção expressiva.
ZONA SUL – Como a coleção foi iniciada?
CAMPELO – Tem origem no Maranhão. Um amigo chegou pra mim e disse que tinha uma grande coleção de azulejos. Eu disse que não me interessava. Ele disse que tava vendendo e que tinha tudo a ver com o Maranhão. Ele foi no ponto. Fui ver e fiquei com a coleção. Coleção é vírus: depois disso fui atrás de azulejos, azulejos, azulejos, azulejos...
ZONA SUL – Em quanto está avaliada sua coleção?
CAMPELO – Não tenho a menor idéia. O que eu ponho na vida eu não contabilizo, seja dinheiro, seja... Só contabilizo as coisas abstratas.
ZONA SUL – O senhor tem uma ligação forte com o Rio Grande do Norte, que e a sua esposa, a Margarida.
CAMPELO – Seu sobrenome é Patriota. Nilson, Nélson são todos primos do pai dela, o Antonio. A família é oriunda de São José do Egito. Tem cantadores, poetas populares... Ela é uma escritora, está dentro do sangue dela esse viés.
ZONA SUL – O senhor já criticou alguma obra dela?
CAMPELO – Não tenho competência pra criticar, e muito menos a obra dela, que é de alta qualidade. Margarida foi professora de literatura francesa na UnB até dois anos, quando se aposentou. Ela fez doutorado em Indiana e morou no Canadá alguns bons anos. Já 25 livros publicados e sete prêmios literários conquistados.
ZONA SUL – Como o senhor a conheceu?
CAMPELO – Ela foi editar um livro através de um amigo meu, dono de uma gráfica, que a conhecia. Ele falou que quem cuidava dos seus livros era eu. Ela me procurou e levou um original. Era o originalíssimo de um livro, Mafalda Amazona, que eu editei com a grife Alhambra, que não existia mais. Foi assim que a conheci. Ela teve a felicidade de me conquistar.
ZONA SUL – O jornalista Carlyle Madruga vai fazer uma pergunta para encerrar.
CARLYLE – Eu teria duas perguntas a fazer ao mestre Campelo. Certa feita ouvimos o senador Sarney dizer que, na época dele como presidente, não assinava nenhum documento sem o crivo de duas pessoas: do doutor Saulo Ramos e do professor Joaquim Campelo. É verdade?
CAMPELO – Eu cuidava fundamentalmente do discurso dele e das coisas que ele considerava importante e me mandava. Dizer que eu lia tudo o que ele assinava é abrangente de mais. Por exemplo: o presidente da República tem que assinar as leis. Isso aí não vinha pra mim. Como eu iria dizer que aquilo poderia ser escrito de outro jeito? Quando o Código Penal foi modificado sob a batuta do ilustre, notável e maravilhoso homem que só honrou o Senado, o Josaphat Marinho, ele me pediu para ler. Alguém sugeriu a ele, eu desconfio que foi o senador Antonio Carlos Magalhães. Eu até fiz algumas sugestões, mas não adiantou porque já foi no fim do processo. Tem muita coisa que eu acho que está mal dita, está dita mal, de maneira ruim para a compreensão. Tem muita coisa coloquial, que deveria estar no cânone da sintaxe, da língua culta. Devia alterar, mas aí teria que ser necessária nova votação.
CARLYLE – A palavra ex-ofício está grafada diferentemente no Aurélio e no Houaiss. Aurélio grafa com hífen e Houaias sem hífen. Qual das duas formas está correta?
CAMPELO – Depende. Se ela está em emprego substantivado, deve ser com o hífen. Se não está, é sem hífen. É só a gente ler o contexto e ver. Acho que no momento de registrar como um verbete independente, deve estar com hífen.
ZONA SUL – Por que tem tanta gente que fala héterossexual?
CAMPELO – Porque ignoram. É heterossexual. Diz-se muito, mas está errado. Dizem porque ignoram. É no sentido ignorante não pejorativo. Porque não sabem. Os veículos de comunicação audiovisuais, ou seja, a televisão, porque quando a gente escreve o cara pode ler hétero ou hetero. Mas ali na tela da televisão é que é importante que aja a verdade. Data de bons 30 ou 40 anos, a propósito daqueles desenhos de publicidade de governo de caráter educacional, a propósito de livros que se distribuíam. Tinha o Sujismundo. Foi governo Figueiredo. Rapaz, o tal do gratuíto estava solto. Foram gravados comerciais do governo com o tal do gratuíto.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Entrevista: Júnio Santos

AS ALEGRIAS E OS CAMINHOS TENEBROSOS DE JÚNIO

Desde que Júnio Santos trocou o RN pelo Ceará, só o vi duas vezes. Ambas em Mossoró. Na primeira delas, quase não nos reconhecemos. Mesmo assim, a alegria foi imensa. Nessa última, durante a Feira do Livro da cidade, não perdi a chance de entrevistá-lo. E foi ótimo perceber que ele continua em ótima forma. Durante a conversa, quando ele classificou o artista como “livro que anda”, fui obrigado a concordar de imediato, depois de ouvi-lo contar tantos fatos de sua vida. Júnio é mesmo um livro que anda, fala, conta, canta, interpreta, mostra e prende a atenção de qualquer um. Experimente, caro leitor, navegar pelas alegrias e também pelos caminhos tenebrosos do grande ator potiguar Júnio Santos. (Roberto Homem)

ZONA SUL – Qual o seu nome completo?
JÚNIO – Meu nome completo é um nome que, desde menino, eu pouco tenho usado. Uma vez perdi um vôo porque chamaram pelo meu nome e eu não lembrava mais que aquele era meu nome. Meu nome completo é o nome do meu pai: João Batista dos Santos Júnior. Mas logo cedo começaram a me chamar de Júnio Santos. Sou Júnio Santos de um batismo informal.
ZONA SUL – Onde você nasceu?
JÚNIO – Nasci em Natal, na Avenida 7, na Vila Naval. Meu pai era militar, sargento da Marinha, além de pastor protestante. Nasci com a velha Mãe Toinha, que era a grande parteira da região.
ZONA SUL – Você teve formação evangélica?
JÚNIO – Minha infância foi toda dentro de igrejas. Tive um programa na antiga Rádio Trairy. Chamava-se Vencendo vem Jesus. Era transmitido todos os sábados, às 6 da manhã. Eu tinha 13 anos, na época, e já fazia culto na igreja. Eu tocava violão, minha mãe tocava acordeom e meu pai cantava. Meu avô tocava violão e meus irmãos são todos músicos. Tenho um irmão regente de coral em Natal, o Isaque. Passei muito Carnaval em retiro, por exemplo. Um dia, quase por um acaso, peguei um livro e fiquei curioso em saber o que era filosofia. O estudo da filosofia tinha saído de dentro das escolas, era proibido. O livro era simples, quase uma história em quadrinhos. Falava de questionamentos como: de onde você vem, pra onde você vai, o que lhe rege, o que é a natureza... Passei a ter uma compreensão maior do que a compreensão minimizada que o Evangelho prega: aquela salvação que não é nem terrena e que você não consegue vislumbrar como ela vai ser. A partir dali comecei a perceber, e, percebendo, entrei no PCB, o Partido Comunista Brasileiro.
ZONA SUL – Isso foi em qual ano?
JÚNIO – No início dos anos 70. Nasci em 1955. Em 1970 eu tinha 15 anos. O PCB estava totalmente na ilegalidade. Por trás de onde hoje é o Memorial Câmara Cascudo, funcionava o Instituto Luís Maranhão. Lá era desenvolvido todo um trabalho de formação. Junto com Serginho Dieb, Hermano, Carlos Furtado e outros, formamos a primeira base de artistas dentro do partido.
ZONA SUL – A arte surgiu pela primeira vez na sua vida na forma de música?
JÚNIO – A música já vinha de nascença. Mas eu era fujão. Era para eu hoje ser um grande músico. Mas nunca aceitei aquela forma de educar usando a obrigatoriedade. Um dia meu pai viajou e comprou uma pianola, que era mais simples que o piano. Ela vinha com os nomes das notas nas teclas. Passei a exercitar ali. Mas eu fugia pra bater bola. Eu queria jogar futebol, e não tocar. Hoje me arrependo um pouco por não ter tido o afinco que meus irmãos tiveram. A música rege todas as outras artes, já nasce com o ser humano. As outras artes surgiram depois, a música nasceu com o mundo.
ZONA SUL – Como seu pai, evangélico e militar, encarou seu afastamento da Bíblia e a aproximação com o PCB?
JÚNIO – Houve uma ruptura, uma quebra nos valores familiares. Lá em casa somos seis homens e duas mulheres. Eu, como filho mais velho dos homens e carregando o nome do meu pai (que é um peso danado), era para ter sido o substituto dele como pastor. Aprendi a ler na Bíblia, que é um livro lindo, talvez um dos mais bem escritos do mundo. Mas, por outro lado, havia a figura do meu avô: Luiz Pereira Lucena. Era conhecido como Bizá. Foi motorista do Correio Aéreo Nacional, o CAN, e era um teólogo, apesar de nunca ido a uma faculdade de Teologia. Tinha um conhecimento bíblico fantástico. Ele me dizia que quando eu lesse um versículo, procurasse no dia seguinte lê-lo de novo, porque todas às vezes eu ia entender diferente, por não ser mais aquela pessoa de ontem. Na verdade, meu avô foi meu pai. Na hora em que rompi com meus pais, fui morar com meus avós.
ZONA SUL – Você rompeu com seus pais logo que se filiou ao PCB?
JÚNIO – Minha primeira saída de casa foi muito cedo. Eu tinha uns 14 anos. Fui embora pro Piauí. Só meu avô sabia. Ele foi quem me botou em um avião que descia em Parnaíba. De lá eu tinha que pegar um ônibus para Teresina. No caminho conheci uma senhora, dentro do avião. Fomos conversando, e ela me levou para sua casa.
ZONA SUL – O que você foi fazer no Piauí?
JÚNIO – Na época em que moramos em Recife - meu pai foi pastor por lá - tínhamos um programa na Rádio Relógio. Começava às 18h20min. Antes, às seis da tarde, passava a Hora do Ângelus, da igreja católica. O padre que apresentava se apaixonou por minha irmã. Eles fugiram, casaram e foram morar em Teresina. Então, eu tinha essa referência: minha irmã era casada com um ex-padre e morava em Teresina.
ZONA SUL – Piauí, então, virou mapa para fuga familiar...
JÚNIO – Mas, lá fui para a casa dessa senhora que conheci no avião. Fui para sua casa porque só tinha ônibus para Teresina três dias depois. Quase fiquei por lá mesmo! Mas depois três dias fui embora para Teresina. Foi lá, na escola, que comecei a brincar pela primeira vez com teatro. Já tinha feito, na igreja, teatro religioso. Mas não era o ritmo que eu queria e adorava: a questão da comicidade, das comédias picantes e tal. Depois de um ano fui passar o Natal em casa e me proibiram de voltar para Teresina.
ZONA SUL – Qual foi a justificativa?
JÚNIO – Foi o meu primeiro amor. Eu tinha 15 anos e ela tinha 35. Minha irmã ligava dizendo que a mulher estava jogando bilhetes perfumados por baixo da porta, essas coisas todas. Fiquei em Natal, mas não morando na casa do meu pai, fui para a Casa do Estudante. Como eu não podia morar lá, pois não era do interior, ficava num quartinho que tinha sido dos Escoteiros do Mar - ali no Paço da Pátria - junto com outras pessoas que não tinham conseguido vaga na Casa. Pra compensar alguma coisa, eu lavava louça nos finais de semana.
ZONA SUL – E você estudava onde?
JÚNIO – Nesse período eu estudava no Instituto Padre Miguelinho. Passei a assistir os ensaios do grupo de teatro do colégio e depois aderi a ele. Nosso primeiro desafio foi tremendo: montamos uma peça chamada O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Foi minha estréia. Tinha havido uma enchente muito grande em Jucurutu. O povo tava desabrigado. O espetáculo foi uma forma de arrecadar recursos e alimentos para a população.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – Por volta de 1971. Mas a estréia mesmo no teatro, de forma profissional, foi em 1973, quando eu já era do Teatro Infantil Jesiel Figueiredo. Natal, naquela época, basicamente tinha três grupos de teatro. Todos eles, de uma forma ou outra, estavam ligados a alguma instituição. O Tonus (Teatro Novo Universitário), com direção de Carlos Furtado, era ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O Teatro Jesiel Figueiredo, mesmo sendo independente, tinha ligação com o SESI. O Racine Santos, com o Tablado Nordestino, tinha o apoio da Fundação José Augusto. Ismael Mendes, que estudava comigo no Padre Miguelinho, convidou-me para fazer um teste no Teatro Jesiel Figueiredo. Depois daquele teste entrei pra fazer o espetáculo infantil.
ZONA SUL – Qual foi a peça da sua estréia profissional?
JÚNIO – Estreei profissionalmente no Teatro Jesiel Figueiredo. Lá tinha cachê em todos os espetáculos. O Jesiel marcou a história do teatro no Rio Grande do Norte, ninguém pode negar. Foi uma das figuras mais importantes do teatro potiguar. Através dele nosso teatro rompeu as fronteiras do estado. Depois, aproveitamos essa porta aberta para levar uma outra proposta teatral pra fora. Jesiel é de um período onde havia uma discriminação muito grande. O pai de Jesiel, Josué, também era protestante da mesma igreja do meu pai. E ele tinha um irmão, Jessé, casado com uma tia minha. No Teatro Jesiel Figueiredo a gente tinha horário de trabalho, tinha que ser pontual. Os espetáculos começavam às cinco da tarde e todos tínhamos que chegar às duas. De manhã a gente tinha que ir ao cabeleireiro, tinha que fazer todo o processo que um ator faz. O teatro infantil era feito com qualidade. A primeira peça que fiz foi O pequeno polegar. Meu tamanho já me credenciava a ser o ator principal. Fiz uma média de três ou quatro espetáculos infantis nesse período de um ano. Foi muito importante para a minha manutenção como ser humano. Comecei a ter uma independência com 15 anos de idade, através da arte, do teatro.
ZONA SUL – E depois do Jesiel Figueiredo, o que você foi fazer?
JÚNIO - Surgiu o Sistema de Teleducação do Rio Grande do Norte, o Sitern, na TV Universitária (TVU). Houve um concurso, me inscrevi nele. A nata do teatro do Rio Grande do Norte participou. Por ser muito jovem, achei que não passaria, mas passei. Tinha 18 anos. Lá fiz minha estréia em um espetáculo para adulto, A derradeira ceia, dirigido pelo Carlos Furtado. O resultado não foi interessante. Representei o filho de um coiteiro de Lampião. Veio então a criação do Expressão, grupo de teatro da TVU. Montamos O assalto, texto de suma importância para o teatro brasileiro naquela época. A obra era de um mineiro chamado José Vicente, e a direção foi de João Batista Campanholi. Com a peça ganhei meu primeiro prêmio, como ator coadjuvante, no Festival de Ponta Grossa, em 1978. Tem uma cena muito legal: eu fumava e tirava a roupa. Mas o censor proibiu a tirada da roupa. No espetáculo entrei com uma cueca branca. O iluminador, Carlinhos Meireles, aumentava a força da luz e era o mesmo que eu estar nu. Também tinha uma cena de beijo com outro homem, que era o Maurício Pandolphi. Imagina que meu pai foi me assistir pela primeira vez nesse dia...
ZONA SUL – Qual foi a reação dele?
JÚNIO - Ele só não saiu do teatro porque minha mãe segurou. Ela, como a maioria das mães, era minha tiete de primeira grandeza. Já era ela quem me incentivava, fazia das minhas fotografias quadros para colocar no seu quarto. O lado artístico dela, nessa hora, falava mais alto que o evangélico. Ela segurou meu pai, explicando que aquilo era arte, era teatro, não sei o que.
ZONA SUL – Naquela época os atores sofriam muito preconceito...
JÚNIO – Quem fazia teatro ou dança era considerado drogado ou homossexual - na época nem usavam esse termo, mas um tratamento pejorativo mesmo. Isso nos acompanhou por muito tempo. Quando o ator dizia que fazia teatro, seu interlocutor o olhava com uma cara assustada. Hoje vejo essa ruma de menino fazendo teatro e dizendo com o maior prazer que é ator. As pessoas já entendem a arte como uma profissão tão importante quanto às outras.
ZONA SUL – Como foi seu trabalho na TVU?
JÚNIO – Fizemos programas infantis, para sala de aula, que iam para a zona rural. Foi um dos primeiros processos de educação à distância que apareceram no Brasil. Meu personagem era o Palhaço Bolão, que em pouco tempo virou a sensação da meninada. Gravávamos muito, em um ano fizemos 160 programas. Comecei com Português, depois entrei na Matemática. A força da televisão dava uma resposta muito positiva. Montamos uma caravana, em cima de um caminhão, pra percorrer os sítios da área que a TV abrangia. Foi um momento, na minha carreira como ator, de me sentir muito reconhecido pelo público. Só que tivemos alguns problemas de ordem política dentro da TVU.
ZONA SUL – O que aconteceu?
JÚNIO - Na campanha salarial de 1979, fizemos uma greve. No final de toda essa peleja, desse período em que nos recusamos a gravar programas, dois foram demitidos da TV Universitária: eu e a atriz Quinha Costa, que hoje está na Holanda. Saímos já em 80 e no mesmo ano fui convidado por Racine pra integrar a equipe do Tablado Nordestino. Fiquei até 82, quando fui para um grupo de Petrópolis chamado MIJO (Movimento de Integração Jovem). Era ligado à igreja católica. Lá conheci muitas figuras que marcaram minha vida, entre elas Jorge Romano Neto, hoje arquiteto, que depois me convidou montar um espetáculo chamado O troco, de um autor chamado Domingos Pelegrini Júnior. Rodamos bastante com ele, fomos a Recife, Aracaju...
ZONA SUL – Qual foi o próximo passo nessa sua vida inquieta?
JÚNIO – Passei a pensar que eu precisava ter um grupo. Até aquele momento eu vinha passando por grupo e participando de montagens dos outros. E percebi que havia uma brecha, dentro do Rio Grande do Norte, para fazer uma forma de teatro que não se fazia até então. Como coordenador de alguns festivais no Teatrinho do Povo, o Teatro Sandoval Wanderley, vi que o sonho dos meninos da periferia era um dia se apresentar no Teatro Alberto Maranhão. Imaginei um teatro que não precisasse do Teatro Alberto Maranhão, que não precisasse de palco ou luz. Necessitasse apenas de uma praça e de ter gente ao redor pra assistir. Nessa época fui assistir um grupo chamado Imbuaça, em Aracaju, que fazia teatro de rua. Mas eles trabalhavam só com cordel. Também conheci o Amir Haddad, que já trabalhava seu teatro inquirindo as pessoas sobre determinadas questões. Augusto Boal também já tinha sua forma de trabalhar. Então busquei uma forma papa-jerimum de fazer teatro. Dessa forma criamos o Alegria Alegria.
ZONA SUL – Em qual ano?
JÚNIO – O início foi em 1981, mas somente em 1983 o Alegria Alegria surgiu de fato. Em 1981 promovemos a primeira oficina de palhaço no Teatro Sandoval Wanderley. Fizemos o primeiro cortejo de palhaços, saindo do Alecrim até o Centro da cidade, em cima de uma carroça. Em 1983 entramos na campanha das Diretas Já. Estabelecemos uma relação com os sindicatos. Passamos a ter uma aproximação muito forte com o Sindicato dos Bancários e fizemos várias lutas sindicais. Depois passamos a trabalhar com o Sindicato dos Comerciários e o Sindicato da Limpeza, com o hoje vereador Fernando Lucena. Começamos a operar junto do meio sindical, ocupando uma brecha que ninguém tinha utilizado antes. Antes de nós, já se fazia teatro de rua no Rio Grande do Norte. Nas Quintas, na Rua Baraúna, no final dos anos 70, tinha um espetáculo chamado Dona Baraúna vai à prefeitura. Mas era esporádico e não era exclusivamente teatro de rua. Eles também encenavam nos centros sociais, nas comunidades. O Alegria Alegria foi, de fato, o primeiro grupo a se instalar como teatro de rua. Pra isso a gente teve que ser radical. Definimos que éramos teatro de rua e, portanto, éramos contra o estilo tradicional. Hoje, lógico, somos a favor de todos os teatros. Mas pra gente pegar o número de pessoas interessadas, entramos na radicalização mesmo.
ZONA SUL – Qual foi a primeira encenação do Alegria Alegria?
JÚNIO - Aproveitamos um texto do Racine Santos chamado As aventuras de Pedro Malasartes pelos caminhos tenebrosos do sertão. Pedi a Racine para mudar o final, que no original era um Pastoril. Trocamos por um Boi de Reis. O Boi Calemba é uma coisa muito forte. Além de encenar na rua, nosso teatro diferia do outro por não usar maquiagem. O único ator que pintava o rosto de preto era o Alex, porque as Caterinas são feitas por homens que pintam o rosto de preto. Todos os demais atores não usavam maquiagem, era cru. As roupas também eram simples, não tínhamos bagagem. Era só a calça e a camisa.
ZONA SUL – Dessa forma o custo era bastante reduzido...
JÚNIO – Sim. Fomos uma vez fazer uma campanha do Sindicato dos Cortadores de Cana, em Ceará Mirim, todos os sete atores dentro de um fusca. A bagagem maior que tinha era um boi de espuma, feito por João Marcelino. Ele podia ser dobrado todinho e cabia na mala do fusca. Apesar disso, por mais simples que nosso figurino fosse, só aquelas palas, com as cores que a gente chegava, e o boi, já chamavam atenção de todo mundo. A gente tinha pensado em toda essa praticidade. Era um espetáculo de praticidade.
ZONA SUL – Desde o princípio a recepção do público foi boa?
JÚNIO – A nossa estréia já foi maravilhosa, na Praça Kennedy, que antigamente chamava-se Praça da Cocada. Quando terminamos, o povo tava ali junto, querendo saber quando ia ter de novo. Reunimos-nos e definimos que toda quarta-feira faríamos espetáculo no mesmo canto. Nos outros dias estávamos livres para vender a apresentação ou fazer o que quiséssemos. Quando não estivéssemos na cidade, avisaríamos com antecedência que naquela quarta não haveria espetáculo. Quando construíram o Calçadão do Grande Ponto, passamos pra lá. Toda quarta, às cinco da tarde, abríamos a roda ali, com o mesmo espetáculo. Chegou um momento em que estávamos comemorando 500 apresentações do Pedro Malasartes. Só lá naquele local, a gente tinha feito 200. Quase a metade.
ZONA SUL – A imprensa desde o princípio recebeu bem o Alegria Alegria?
JÚNIO – Recebeu, apesar de, como a gente fazia teatro de rua, temos colocado na cabeça que a imprensa tinha que vir a gente. E começou a imprensa a vir. Aparecia sempre um jornalista pra fazer matéria. O Vicente Serejo sempre mandava alguém, a Tribuna do Norte, também. Tínhamos acesso também à coluna de Woden Madruga, que era super-lida. Ele nos cedia espaço para divulgarmos o que quiséssemos. Porém, tinha alguns segmentos da imprensa, alguns jornalistas, que passavam e nem olhavam. Poucos jornalistas discutiam arte, naquele tempo. Diferente, por exemplo, de Rogério Cadengue, que dentro da UFRN, brigava para que os jornais dessem espaço. Estreamos sem material, sem nada. Só com o boi que a gente tinha feito. Em seguida vendemos 10 espetáculos à antiga Secretaria de Turismo e Cultura - que tinha Gileno Guanabara como secretário - em troca do material. O Toinho Silveira também foi uma figura importantíssima. Ele nos deu o prêmio de destaque do ano, em sua coluna. Fomos para a famosa festa que tinha no 1001 Noites. Não pudemos entrar porque não tínhamos smoking. Só entramos na hora de fazer a apresentação. Tudo isso fez com que passássemos a ter um espaço que até então nenhum outro grupo do teatro tinha.
ZONA SUL – Isso provocou muitos ciúmes?
JÚNIO – Algumas pessoas se afastaram e passaram a nos olhar de forma diferente. Em compensação outras figuras se aproximaram mais ainda. O Chico Villa, que já faleceu, foi diretor nosso em um espetáculo. O João Marcelino sempre estava nas rodas assistindo nosso espetáculo. Mas não tínhamos muito essa preocupação. Sabíamos que não estávamos fazendo um espetáculo para a classe, nem para a crítica, mas para o povo. Fiquei feliz porque passei a ser um dos caras mais conhecidos daquela região ali. Eu morava na Princesa Isabel, e às vezes, quando passava, era reconhecido até pelos mendigos. E eles não me pediam esmolas, mas perguntavam quando seria o próximo espetáculo. Eu chegava a uma sapataria na Doutor Barata e era atendido com uma rapidez muito grande. Uma vez fui comprar um sapato e um dos vendedores falou: “eu gosto muito do espetáculo, mas esse horário não é bom pra gente que trabalha no comércio. Vocês começam às cinco, a gente fecha às cinco e meia e ainda tem que arrumar as prateleiras todas. Quando a gente chega, só vê o final”. Mudamos o horário pras seis horas, para atender nosso público.
ZONA SUL – Qual o espetáculo do qual você participou que mais obteve sucesso?
JÚNIO – O que mais marcou, não diminuindo os outros trabalhos, foi O assalto. Mas só fizemos quatro apresentações, três em Natal e uma no Paraná. Ele marcou muito na minha educação como ator. Agora, o trabalho que mais tempo ficamos em cena e que mudou de alguma forma uma história, foi As aventuras de Pedro Malasartes pelos caminhos tenebrosos do sertão. Eu fiz 1.462 vezes o mesmo personagem, o Pedro Malasartes. A partir desse espetáculo, as portas do interior do Rio Grande do Norte se abriram pra mim. Comecei a ver o quão gostoso é o sertão. E as oportunidades começaram a surgir. Filhos de agricultores em Lagoa Nova formaram um grupo com a bandeira de construir uma casa de farinha. Fomos convidados pra trabalhar com eles. Fomos. Depois apoiamos grupos em Mossoró, Currais Novos e outras cidades. As O mercado de trabalho na área foi ampliado. Tanto que logo em seguida saí da Fundação José Augusto sem nenhum trauma.
ZONA SUL – Como foi sua passagem pela Fundação José Augusto?
JÚNIO – Começou com uma tentativa de dar um viés democrático a cultura, logo no início do governo Geraldo Melo. Porém, talvez por não estarmos na época acostumados com essa primeira abertura democrática, algumas coisas sujaram o processo. Vou explicar melhor. Foi feita uma eleição pra escolher o diretor do Teatro Alberto Maranhão. Em uma reunião na Academia de Letras, eu e a Diana Fontes fomos definidos como candidatos. Depois o Racine lançou o nome dele também. Eu tinha sido presidente da Federação de Teatro durante dois anos. A Federação estava no país todo e tinha algumas realizações muito fortes no Rio Grande do Norte. Ela me indicou para ser diretor do Teatro. No dia da eleição, foi mobilizada uma verdadeira máquina eleitoral. Era ônibus e kombi chegando cheia de gente. Não havia um cadastro de artistas, ninguém tinha uma carteira ou um documento provando que era artista. Qualquer pessoa chegava lá e votava. Perdemos para Diana Fontes, se não me engano, por 10 ou 12 votos. Apesar disso, ela assumiu o teatro com o nosso apoio. O Chico Alves, que estava na Fundação, uma indicação de Woden Madruga, ofereceu a mim, como segundo lugar, o cargo de chefe do Núcleo de Artes Cênicas, que juntava o Circo da Cultura e o teatro.
ZONA SUL – Qual sua principal contribuição ocupando esse cargo?
JÚNIO - O nosso processo lá foi de rompimento, de tirar a Fundação de uma atuação só metropolitana e levá-la para o interior. Estabeleci convênios com Caicó, Currais Novos, Mossoró, Macau... Uma cidade que pouca gente conhecia, Janduís, perdida lá no sertão, estava vivendo uma efervescência cultural tremenda, principalmente na área da poesia. Foi até tema de matérias em Veja e no Globo. Fui conhecer e me encantei pelo trabalho, até hoje sou janduiense adotado. Minha passagem pela Fundação teve o objetivo de criar a possibilidade de interiorização.
ZONA SUL – Por que você saiu do Alegria Alegria?
JÚNIO – Eu ainda estava na Fundação José Augusto quando, em 1991, surgiu o Movimento Popular Escambo Livre de Rua, que integro até hoje. Fizemos um encontro de três dias em Janduís, onde cada artista levava o seu próprio alimento e lá socializava com os outros, enquanto fazíamos arte. Além disso, realizávamos produção artística. Visitávamos as pessoas procurando saber o que elas podiam oferecer a um grupo local. Levantamos roupas, bengalas, paletó, chapéu. O que era para ser uma experiência única transformou-se em várias. Outra cidade estava passando pelo mesmo problema e nós fomos até lá. Passei a dar uma dedicação muito grande ao Escambo. Quando José Agripino reassumiu o governo, Iaperi Araújo substituiu Woden Madruga na presidência da Fundação. Eu nunca fui muito de jogo político. Teve uma reunião da Fundação e lá foi colocado que a partir daquele dia todos tinham que vestir a camisa da Fundação. Eu disse que já vestia uma camisa que era a da arte. Eu tinha uma relação de respeito e de trabalho com Woden que não era a mesma com Iaperi. Eram outras pessoas que ele admirava e achava que seriam mais importantes naquele momento.
ZONA SUL – Mas, e a saída do Alegria Alegria?
JÚNIO – Eu saí do Alegria Alegria muitas vezes. Sou um eterno iniciante. Vou morrer iniciando. Já entrei em cursos, passo um tempo, depois saio pra começar outro. Com 10 anos de Alegria Alegria entrei no meu primeiro processo de crise. A gente já tinha uma estrutura muito legal. Quando começamos com o teatro infantil, a gente pagava um salário mínimo por mês aos atores. E tinha uma sede com geladeira, fogão, comida e lá se guardava a roupa. Eu estava me separando, praticamente morava lá. Quando o Alegria Alegria pegou um nome, a gente vivia em festivais fora. O grupo estava se preparando pro primeiro festival em Portugal, e eu estava em Janduís fazendo um trabalho e tive um desgaste político muito forte. Eu queria continuar fazendo um teatro comprometido com as lutas sociais, já que o movimento era de muita efervescência. Por outro lado tinha os interesses de profissionalização dos outros atores. De dar vôos maiores, de se firmar como artista, como grupo na cidade. Eu tava também passando do período da minha prisão. Tinha sido preso, um incidente que me levou a responder a um processo, em 1993.
ZONA SUL – Que incidente foi esse?
JÚNIO – Fomos fazer um espetáculo do Pedro Malasartes em frente ao Palácio do Governo. Era para o primeiro grupo de apoio aos aidéticos de Natal. O hospital que cuidava disso era o Gizelda Trigueiro e lá só tinha cinco leitos e o material ficava enrolado em jornal. Era um espetáculo de solidariedade, a gente não cobrava. Enfoquei esses problemas dançando com minha boneca. Quando fomos saindo, um carro da Polícia nos cercou e nos convidou para ir à Secretaria de Segurança. Éramos três pessoas. Como o João Pinheiro tinha um carro, um fusquinha, pedi que ele fosse até a sede do PT - o partido estava em reunião - e comunicasse que eu estava descendo pra Secretaria de Segurança. O Luis Humberto, que fazia o Xexéu comigo, me acompanhou. Doutor Maurílio Pinto estava sentado em uma cadeira quando entramos. Ele disse: “como é que pode, com tanta tristeza, se prender o Alegria Alegria?”. Ele aconselhou: “Júnio, evite fazer espetáculo no Palácio, têm algumas pessoas que não gostam disso, procure outra praça”. Nessa hora entrou Manoel de Brito, o secretário de Segurança, que estava em uma vaquejada em Macaíba. Ele entrou e nem conversou conosco. Foi citando cinco artigos pra nos enquadrar. Era atentado ao pudor, formação de quadrilha, perturbação da ordem pública, desacato à autoridade... O Maurílio ainda tentou conversar com ele, mas não teve jeito. Fomos para a Delegacia de Candelária. O delegado de lá era Buenos Aires, já falecido. Ele disse que não ia lavrar o auto porque aquela prisão era inconstitucional, já que a censura tinha acabado. Do lado de fora começou a chegar gente. A alegação era que tínhamos chamado o governador de Galega do Alecrim. Expliquei que, como artista de rua, como não vivia nos palácios, não tinha como saber o apelido do governador. Galega do Alecrim era a boneca com a qual eu dançava. Dormimos na delegacia, eu e o Beto. Ele armou a rede dele, eu botei um colchão no chão. No outro dia tinha um grande café da manhã oferecido por Fernandão, do PT com quem eu tinha tido problema. Numa montagem, ele tinha parado o espetáculo pra fazer um discurso político e eu tinha brigado com ele. Socializamos o café com os policiais e com os presos e de lá saímos para a primeira audiência. As testemunhas de acusação todas tinham sido arranjadas pelo Palácio do Governo, pelo Leônidas Ferreira, o chefe de gabinete. Na noite anterior tinha havido jogo em Natal e Júnior Baiano tinha dado murro num repórter. Ele pagou a fiança às 4 da manhã pra poder viajar com o Flamengo. Quando foram nos liberar eram 4 da tarde. Os bancos já estavam fechados pra pagar a fiança. Tive que conseguir um atestado de pobreza para não dormir de novo na cadeia. Ficamos respondendo processo. Na última sessão, na qual nem precisei comparecer, o promotor viu que a testemunha de acuação tinha todas as respostas anotadas em uma agenda. Eles criaram a testemunha e deram tudo por escrito. Fomos absolvidos.
ZONA SUL – A desilusão com essa prisão motivou a saída do grupo?
JÚNIO – Foi um processo doloroso ver um ato cênico de teatro, voltado pra um problema de saúde, se transformar numa polêmica toda dessa. Mas ao mesmo tempo nos deu mais coragem de continuarmos fazendo do nosso teatro uma arma também de denúncia. Por outro lado, essa história também forçou minha saída de Natal. Havia uma idéia de perseguição também. Foi no período em que o Centro de Direitos Humanos começou a denunciar os Meninos de Ouro de Natal. Um dos acusados tinha me prendido. Alguns de nós tínhamos que sair de Natal. Gonzaga foi pra São Paulo e eu saí para Icapuí. Fiz um trabalho interessante que depois a prefeitura assumiu. Criamos a Escolinha de Arte. Vivo por lá esse tempo todo. Contribuiu para minha saída também o fato de eu estar querendo criar um centro e não mais um grupo de teatro. Não queria continuar com a responsabilidade de montar espetáculos, mas ajudar pessoas que estavam sem condições de fazê-lo. Criamos o Centro Volante de Assessoria Teatral, que a gente chama de Cervantes do Brasil.
ZONA SUL – Como está sua vida hoje?
JÚNIO – Estou mais uma vez morando em Icapuí, continuo dentro do movimento popular Escambo Livre de Rua. São 17 anos e 24 realizações. Estou fazendo mestre de cerimônias de abertura de encontros do movimento popular, sem aquela formalidade. Tenho dito muito nesses encontros que o movimento popular – que hoje recebe muito recurso – tem que destinar uma parte considerável pra esse trabalho de arte. O teatro pode contar a história do movimento de uma forma muito mais viva do que uma palestra. Somos verdadeiros livros andantes. Os artistas são livros que andam, livros que falam, livros que cantam. Sem tirar a força do livro.