domingo, 10 de fevereiro de 2008

ENTREVISTA: GERVÁSIO BAPTISTA

VIROU MANCHETE NAS LENTES DE GERVÁSIO





Há uma polêmica sobre o início da carreira do repórter fotográfico Gervásio Baptista. Segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tal fato se deu ainda nos tempos de Dom Pedro I. Já o ex-senador Antônio Carlos Magalhães garantia que o entrevistado do mês do Zona Sul tinha fotografado a Santa Ceia. Quando FHC defendeu sua teoria, na presença do ex-ministro Pratini de Moraes, Gervásio elogiou a “memória prodigiosa” do então presidente da República. Por sua vez, ACM também não ficava sem resposta quando, com a intenção de alardear a longevidade do fotógrafo, tentava o ligar à última refeição de Cristo: “e o senhor era o meu repórter”, rebatia Gervásio, lembrando a Antônio Carlos que, além de baianos, os dois eram contemporâneos.


A conversa com Gervásio Carlos Baptista, travada no Hotel Esplanada, em Brasília, durou quase duas horas. Pouquíssimo tempo para ele contar tanta coisa. Para quem não sabe, foram captadas pelas lentes deste baiano de Salvador - entre tantos outros registros históricos - as últimas fotos de Tancredo Neves vivo, no Hospital de Base, e a famosa fotografia de Juscelino Kubitschek levantando sua cartola, durante a inauguração de Brasília. Ele também cobriu a guerra do Vietnã, foi fotógrafo oficial dos antigos concursos de miss, foi preso mais de 40 vezes... Bom, melhor é parar com esse blá-blá-blá e deixar o homem falar... Fala Gervásio!!! (Roberto Homem)


ZONA SUL – Você nasceu em Salvador, em ano desconhecido. Quem foram seus pais?
GERVÁSIO – Meu pai, Aristides Baptista, era motorista de automóvel. Trabalhou em uma repartição pública, acompanhando os mata-mosquitos daquela época. Ele abandonou esse emprego quando comprei um táxi para ele dirigir. Minha mãe, Alexandrina Baptista, era dona-de-casa. Fui filho único até meu pai cair na gandaia e me arranjar mais alguns irmãos, que eu e minha mãe ajudamos a criar.

ZONA SUL – A fotografia apareceu cedo na sua vida?
GERVÁSIO – Muito cedo. Segundo meus pais, lá na boa terra, na Bahia, antigamente existiam fósforos de cera, não sei se ainda existem. A caixa de fósforos de cera vinha estufada. Eu abria a caixa, tirava os fósforos de cera, desenhava uma figura em uma tampa e brincava de tirar retratos. Era meu brinquedo preferido. Quando eu completei nove anos, meu pai chegou pra mim e disse: “filho, um homem que não tem uma profissão não merece viver, pois ele vai passar fome”. Ele informou que tinha escolhido uma profissão para mim. Como eu vivia brincando de tirar fotos com caixas de fósforos, ele me botou pra trabalhar no Foto Jonas, lá mesmo em Salvador. Desde os nove anos de idade labuto com a fotografia.

ZONA SUL – O que você fazia nesse laboratório?
GERVÁSIO – Aprendi a fazer contato, a fixar, lavar e virar cópia em sépia. Naquele tempo tinha essa história de lavar fotografia. Em menos de um mês eu já estava apto a fazer qualquer tipo de banho. Aprendi rapidamente o nome das químicas para fazer revelador. O dono do foto ficou impressionado e resolveu me dar um salário decente. Eu ganhava, na época, 30 mil réis por mês. Pedi que ele me pagasse diariamente, para eu ajudar meus pais.

ZONA SUL – Você teria como comparar quanto, mais ou menos, seria esse valor, hoje, em reais?
GERVÁSIO – Uns 200 reais, meio salário mínimo. Talvez não chegasse a tanto, acredito que era na faixa de 150. Naquela época a gente comia 100 gramas de carne seca por alguns centavos.
ZONA SUL – Como foi a transição do laboratório para a atuação em foto-jornalismo?
GERVÁSIO – Eu trabalhava de calça curta no laboratório. Um dia apareceu um médico político que depois foi senador da República, Rui Santos. Ele precisava tirar uma fotografia urgente. A secretária disse que não tinha retratista. Doutor Rui disse que estava com pressa e perguntou se eu sabia fazer. Se o senhor confiar em mim, eu faço; foi o que respondi. Puxei uma cadeira, subi nela, coloquei ele no lugar...

ZONA SUL – Você subiu na cadeira porque era muito pequeno?
GERVÁSIO – Sim. Subi, foquei, botei uma chapa nove por doze, que era o tamanho da época. Depois que bati a foto, falei que se ele esperasse um pouquinho, já levava os 3X4 prontos. Desci para o laboratório, revelei a foto, copiei, sequei e entreguei a ele. Demorou uns 30 minutos. Ele olhou pra minha cara e disse que eu era um danado. Perguntou se eu queria trabalhar em outro lugar. Respondi que se me chamassem e tivessem confiança, eu iria. Depois de algum tempo, fui procurá-lo. Ele me indicou a um amigo seu, que era diretor de jornal. Fui conversar com Odorico Tavares, diretor de O Estado da Bahia. Perguntou quanto eu gostaria de ganhar. “Quero ganhar o que o senhor vai me pagar”, respondi. Ofereceu-me 30 mil réis. “Esse valor eu já ganho”. Contrapropôs 40. Topei na hora, mas pedi: “se o senhor não puder me pagar por dia, pague por semana”. Acerto firmado, fiquei feliz que nem pinto em bosta.

ZONA SUL – Como foi o início como repórter fotográfico?
GERVÁSIO – Mestre Brito era o fotógrafo principal - que Deus tenha sua alma em um patamar elevado, pois ele era uma grande figura. Ele me ensinou os meandros da fotografia e do jornalismo. Comecei revelando, copiando e ampliando as fotos de Mestre Brito e também fotografando. Fiz muito esporte, cobrindo os jogos no Campo da Graça, que era o principal estádio de futebol da Bahia. Um dia o doutor Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, ao qual pertencia O Estado da Bahia, agendou uma visita a Feira de Santana para receber a Comenda do Vaqueiro. Mestre Brito adoeceu e o doutor Odorico Tavares pediu para fazer a cobertura fotográfica da visita. “Você garante fazer pelo menos duas fotos?”, ele perguntou. Claro que garanto!

ZONA SUL – Qual sua idade, naquela época?
GERVÁSIO – Deixe de ser curioso! Ta bem, vou dizer. Eu já estava com 12 anos. Lá fui eu para Feira de Santana, ainda trajando minhas calças curtas. Cheguei com uma máquina maior que eu e um tripé. Fui ao hotel onde estava hospedado o doutor Assis. Encontrei os quatro seguranças dele na frente do hotel. Um deles estava segurando um cavalo selado. Apresentei-me. Perguntaram se eu já sabia mexer com aquele equipamento fotográfico. Eu parecia o cão chupando manga ao meio-dia, na porta da igreja. Quando o doutor Assis saiu do hotel, os quatro sujeitos o levantaram para ele montar no cavalo. Fiz três fotos. Com aquele seu rompante habitual, doutor Assis reclamou: “ô menino, onde é que você vai com essa fotografia?”. Expliquei que era ajudante de fotógrafo do jornal dele. “Você quer me desmoralizar?”, ele disse. Perguntei: “desmoralizar como?”. Ele explicou: “eu venho receber uma comenda de vaqueiro e você fotografa quatro sujeitos me carregando para montar num cavalo”. Então ele pediu as fotos.

ZONA SUL – Você entregou as fotos a Assis Chateaubriand?
GERVÁSIO – Não. Disse que ele poderia pegar as fotos em Salvador, com o diretor do jornal. No dia seguinte ele foi. Ao me encontrar, disse que eu tinha valor. Agradeci. “Você quer seguir na profissão?”, sondou o doutor Assis. Eu disse que sim, já que não sabia fazer outra coisa e estava aprendendo a tirar retrato. Ele chamou o diretor e deu a ordem: “Odorico, você precisa dar uma ajuda a esse menino para ele trocar essas calças curtas por calças compridas, até pra gente acreditar mais nele”. Da cobertura que fui fazer, da entrega da comenda, consegui salvar três fotos. Uma foi publicada, outra ficou meio tremida, talvez pela emoção. Antes de ir embora, doutor Assis perguntou se eu gostaria de ir trabalhar no Rio de Janeiro. “O senhor é quem sabe”, eu falei, mas achando que aquele convite era salamaleque dele. Três anos depois, o doutor Odorico me disse que Chateaubriand tinha perguntado por mim e dito que ia mandar me buscar. Pouco tempo depois ele mandou até Salvador o seu secretário, doutor Irani, com a missão de me levar para trabalhar em O Cruzeiro. Ah, tem um episódio antes desse encontro: o Odorico me deu as calcas compridas. A primeira que eu vesti, caí, pois a calça tinha uma boca deste tamanho. Mandaram-me para o Rio. Fui jogado no meio de um Butantã. Só tinha cobra.

ZONA SUL – Quais foram os repórteres fotográficos mais expressivos com os quais você trabalhou n’O Cruzeiro?
GERVÁSIO – O principal era um alemão, Ed Keffel. Tinha um piauiense, o diretor de cinema Zé Medeiros, que morreu recentemente. Outro que depois virou diretor de cinema, e com quem trabalhei n’O Cruzeiro, foi o Luis Carlos Barreto. Fiquei lá apenas alguns meses. Saí muito com os cobras, para ver a maneira como eles trabalhavam. Eu me espelhava muito no Jean Manzon e admirava o trabalho de Zé Medeiros. O Zé Medeiros tinha as mesmas características do meu principal dogma na fotografia, o Cartier-Bresson. Esse, para mim, foi o papa do fotojornalismo. Um dia encontrei um colega. Ele me convidou para almoçar em uma empresa que estava para lançar uma revista chamada Manchete. Topei. Foi nesse almoço que conheci um dos maiores jornalistas, Hélio Fernandes, que é dono da Tribuna de Imprensa. Ele olhou pra minha cara e perguntou: você é fotógrafo? “Tou tentando”, respondi. Ofereceu emprego. Eu ganhava 25 cruzeiros por semana. Hoje seria 400 ou 500 reais por semana. Perguntei quanto iam me pagar. Estava havendo uma greve, não sei se de médicos. Hélio Fernandes mandou eu fotografar essa greve. “Quando você voltar com as fotos, eu lhe digo quanto pago”, propôs. Fui, fiz as fotos e voltei. Hélio Fernandes gostou das fotos e ofereceu 40 cruzeiros por semana. Larguei O Cruzeiro e fui para a Manchete, que ainda não tinha circulado.

ZONA SUL – Quer dizer que você conhece a história da Manchete desde o seu primeiro número até o último.
GERVÁSIO – Conheço os meandros totais da empresa. No primeiro número, o Hélio Fernandes perguntou onde eu tinha nascido. Disse que era natural da Bahia, como o Brasil. Ele me mandou fazer uma reportagem na Bahia para ilustrar o primeiro número da revista. Em Salvador, conversando com alguns conhecidos, soube que no dia seguinte haveria uma puxada de rede de xaréu. Dei sorte, era uma manhã de verão maravilhosa. Fiz as fotos e voltei para o Rio de Janeiro. Revelei, mandei ampliar e entreguei ao Hélio. Essa foi minha primeira reportagem, a pesca do xaréu. A partir daí, deslanchei.

ZONA SUL – Foi na Bahia que você aprendeu a lutar capoeira?
GERVÁSIO – Fiz um curso de defesa, saltando capoeira, com mestre Bimba e Mestre Gato. Desenvolvi essa arte de uma tal maneira que ela me serve até hoje. Há mais ou menos um ano, por exemplo, tentaram me assaltar em uma das principais avenidas de Brasília. Um sujeito olhou pra mim e perguntou: “tem cigarro aí, companheiro?”. Não fumo. “Tem dinheiro?”. Tenho pouco. “Tem cheque?”. Ando duro. “Cartão?”. Não sei o que é isso. Quando estava nessa conversa com o malandro, olhando em seus olhos para ver onde ele ia se coçar – já pensando em dar uma cabeçada no plexo dele - outro cara veio por trás e me deu uma cacetada com um porrete. Caí com a cara no chão. Segundos depois, sacudi a cabeça, e passei a mão onde ele tinha batido. Quando senti o sangue, pensei: “é agora ou nunca”. O cara deu a volta e tentou meter a mão em meu bolso. Segurei o pulso dele e meti os dedos em seus olhos. Quando o cara gritou - “me cegou!” - veio outro, pela frente, com um porrete. Levantei, segurei seu braço e comecei a jogar as pernas para um lado e para o outro. Me safei.

ZONA SUL – Você enfrentou os bandidos sozinho?
GERVÁSIO – Não. Quando eu estava naquela luta, um cidadão - acompanhado de uma jovem - parou seu carro e saiu com uma tranca de direção na mão, e me ajudou. Um Fiat 147 também parou, e o motorista gritou: “Gervásio!”. Juntamos três contra três e os malandros abriram o gás. Um dos caras que me ajudaram me levou para o pronto-socorro, já que eu estava sangrando no ouvido, por causa da paulada. Pedi ao diretor do hospital, doutor Cabeçudo, que evitasse a publicação de qualquer matéria. Ele disse que já tinha passado um repórter saído com a notícia. No outro dia saiu no jornal: “Capoeira do Gervásio o salvou de um assalto”. Muitos anos antes, briguei com um dos mais fogosos comissários que conheci na vida, o Deraldo Padilha, no Rio de Janeiro. Ele tinha acabado com o trottoir no Rio. O bicho era manhoso mesmo. Fui fazer umas fotos de duas mulheres que estavam sendo acusadas de ter participado do crime do castiçal. Era negócio de pederastia.

ZONA SUL – Isso aconteceu em qual época?
GERVÁSIO – Em 1955 ou 1956. Eu era novo na Manchete. Fui falar com o delegado Baunilha, o chefe da investigação. Ele explicou que não era permitido fazer fotos dentro da delegacia, mas devido à minha delicadeza em pedir permissão, ele avisaria quando o depoimento chegasse ao final, para eu fotografar. A delegacia era na rua Bambina, em Botafogo. Fiquei do lado de fora, com minha Rolleyflex. Ele avisou quando as garotas estavam descendo. Fiquei esperando. Uma das mulheres conhecia o comissário Padilha. Ele era um pornográfico. Com ela de lado, Padilha olhou pra mim e disse: “seu filho de isso assim, assim, você não vai fotografar nem entrevistar essa mulher”. Respondi: “preliminarmente, esses palavrões que o senhor falou aí servem pra você e a sua raça”. “Se você sair aqui com essa mulher, eu fotografo”, emendei. Ele olhou pra mim, e provocou: “metido a machão, né?”. “Metido não, eu sou macho!”, respondi. Quando ele chegou na escada do prédio, ameaçou: “fotografa, se você é homem”. Mal Padilha fechou a boca, eu fiz duas fotos.

ZONA SUL – Qual a reação do inspetor Padilha?
GERVÁSIO - Empurrou a mulher e partiu pra cima de mim, aos palavrões. Na hora em que ele abriu o casaco e meteu a mão no berro, dei um salto e desferi uma cabeçada nos peitos dele. Padilha caiu sentado. Dei outro pulo, joguei os pés pra trás e acertei um coice em outro policial, que caiu para trás. Veio um terceiro, comecei a jogar as pernas. Meu irmão, foi um pega pra capar! Peguei minha máquina e entrei no primeiro táxi que passou. Fui para a redação. Oto Lara Rezende era o diretor. Darwin Brandão, que trabalhava comigo, perguntou o que tinha havido. Contei a história e acharam que eu estava exagerando. Quando revelaram as fotos, viram que eu tinha dito a verdade. Pedi uma grana ir embora de trem, pois eu sabia que em pouco tempo a cana chegaria atrás de mim. Quando eu estava naquele diálogo, a telefonista ligou para a redação e disse que estavam me procurando. Achei que era a polícia. A redação desceu em peso, em solidariedade. Mas não era a cana, era a imprensa do Rio de Janeiro querendo saber quem era Gervásio Baptista, o fotógrafo que tinha batido no fogoso comissário Padilha. O mínimo que deram no outro dia foi esse título, que eu nunca esqueci: “Fotógrafo da revista Manchete acaba com o cartaz do fogoso comissário Padilha”.

ZONA SUL – Deve ter sido por causa dessa sua fama de valente que lhe mandaram cobrir tantos conflitos no mundo todo. Para onde foi a primeira de suas viagens internacionais?
GERVÁSIO – Foi para Nova York. Não foi para a guerra, mas para a inauguração da linha da Varig. Fui com um jornalista que hoje é rei no Rio de Janeiro. Aproveito a oportunidade para cumprimentar meu amigo Armando Nogueira. Ele é uma enciclopédia. Nem a morte pôde com ele. Armando Nogueira já caiu de um avião, arrebentou-se todo, tem o corpo todo remendado, mas a inteligência continua forte.

ZONA SUL – E para cobrir algum conflito, qual foi a primeira viagem?
GERVÁSIO – Foi para Buenos Aires, quando tentaram derrubar o presidente Juan Domingo Perón, e ele comeu todo mundo pela proa. Fui informado que, na tentativa de golpe, tinha morrido muita gente e estavam enterrando no Cemitério de la Chacarita, em um valão. Fui lá com um fotógrafo de O Cruzeiro que tinha sido prisioneiro de guerra. Ele não podia ver metralhadora ou pistola que entrava em crise. No cemitério, fui entrando e mandei ele me seguir. Fomos procurar o tal valão. Lá pelas tantas, encontramos um coveiro todo vestido de preto. Em castelhano, perguntei onde estavam os corpos que seriam enterrados. Ele falou que não era possível fazer fotos e ameaçou me prender. Dei um bofetão e ele caiu dentro de uma cova. O coveiro meteu um apito na boca e começou a soprar. Na porta do cemitério, tinham uns caras com metralhadoras. Meu amigo entrou em crise. Pedi para baixarem as armas e disse que não iríamos reagir. Fomos parar no 29º Distrito. O embaixador do Brasil era um sujeito chamado Boulitreau Fragoso. No caminho até a delegacia, de dentro da caminhonete da polícia, vi o doutor Fragoso e gritei: “embaixador, estou em cana”. Ele botou a mão na testa, quando viu que era eu. O embaixador seguiu a viatura da polícia. Dentro da delegacia, um cara tentou me dar uma bolacha, mas eu me agachei. O policial encheu a mão na parede. Eu disse: você se machuca... O cara partiu pra cima de mim, pulei daqui, pulei dali, peguei uma cadeira e mandei. Quando o embaixador me tirou da cadeia, quando eu estava saindo, vi o policial da cadeirada. Não resisti. Saindo com o doutor Boulitreau, eu ameacei: “se eu lhe encontrar na rua, lhe mato!”. (risos).

ZONA SUL – Essa foi sua primeira prisão?
GERVÁSIO – Não, eu já tinha sido preso várias outras vezes.

ZONA SUL – No total, você foi preso quantas vezes?
GERVÁSIO – Olha, somando assim, acredito que umas 40 ou 50 vezes. Só na Revolução de 1964 eu fui preso onze vezes. Mas eu também pude viver o lado bom do fotojornalismo. Por exemplo: cobri durante 16 anos os concursos de beleza, na época em que os concursos de miss existiam de verdade.

ZONA SUL – Você conseguiu fotografar as duas polegadas a mais que a Martha Rocha tinha nos quadris?
GERVÁSIO – Não foi polegada a mais não. Naquela eleição da Martha Rocha, a moça que ganhou o título de miss universo foi uma americana (Miriam Stevenson) que não tinha defeito. De acordo com os padrões de beleza que queriam para o concurso, ela era completa. A omoplata, os quadris, a medida de pernas... Como somos brasileiríssimos, tínhamos que dar um conforto a Martha Rocha, que tirou em segundo lugar.

ZONA SUL – Por que você deixou de cobrir os concursos de miss?
GERVÁSIO – Depois de 16 anos nessa luta, comecei a notar que eu estava ficando afeminado...

ZONA SUL – Afeminado?
GERVÁSIO – Sim. Eu já estava falando meio diferente. Um dia sentei em uma determinada roda, cruzei a perna, e vi aquela perna meio assim. Resolvi deixar pra lá a cobertura dos concursos de miss. Deixei também porque o concurso começou a cair. Eu fazia tudo: fotografava e escrevia... Mas é preciso que se esclareça. A Manchete tinha os maiores copydesks do Brasil. Eles consertavam as concordâncias, os verbos... Por isso eu escrevia.

ZONA SUL – Eles faziam uma cirurgia plástica no seu texto...
GERVÁSIO – Com certeza. Eu acredito que até um pouco mais. Aparecia escrito assim: texto e fotos de Gervásio Baptista. Eu tinha dez ou doze páginas inteiras na revista.

ZONA SUL – Trabalhando na Manchete você fotografou os personagens mais importantes da segunda metade do século XX...
GERVÁSIO – Importantes todas as pessoas são, mas registrei através das minhas lentes as figuras mais curiosas dessa República e do mundo. Passaram pela diante da minha câmera, por exemplo, Juan Domingos Perón, o presidente americano Eisenhower, a Rainha Elizabeth, o astronauta Neil Armstrong...

ZONA SUL – Você esteve no campo de batalha da guerra do Vietnã?
GERVÁSIO – Sim, no front mesmo. Com as balas voando e os tiros de canhões.

ZONA SUL – Você correu riscos? Chegou a se embrenhar no mato?
GERVÁSIO – Eu sofri uma depressão muito grande lá. Eu não sabia que a humanidade tinha a capacidade de fazer as atrocidades com as crianças e com o povo, que estavam cometendo dentro de Saigon, na guerra do Vietnã. Aquela nação estava defendendo o torrão deles. Antes de os americanos pousarem lá, os franceses estiveram guerreando. Quando os franceses saíram, os americanos entraram e levaram fumo. Essa é a verdade. Foi essa tristeza que me deu no Vietnã quando estive na companhia de vários jornalistas brasileiros. Fomos cinco ou seis. Eu estava lá quando o José Hamilton, que hoje trabalha no Globo Rural, pisou em uma mina e perdeu a perna. Outro repórter que esteve na guerra no mesmo período, e que hoje é imortal, foi o Murilo Melo Filho.

ZONA SUL – Ele é potiguar.
GERVÁSIO – É preciso que se reverencie esse nome, porque Murilo Melo Filho foi uma alavanca dentro da empresa Bloch. Até hoje ele continua sendo aquela criatura simples, mas de uma inteligência espetacular.

ZONA SUL – Tem alguma cena que lhe chocou, que lhe causou impacto?
GERVÁSIO – Foi deprimente ver a juventude presa, as crianças, os mocinhos, os rapazinhos e as mulheres, todos presos nas cadeias americanas. Mortes eu não vi. Eles bombardeavam um dia sim e um dia não. Tenho fotografia, eu fardado de soldado, com os canhões na frente. Os americanos tinham enviado para a guerra muitos negros. Uma manhã, o comandante das forças americanas concedeu uma coletiva. Expliquei para o ministro da imprensa que o meu inglês não dava para fazer perguntas ao general e pedi para ele perguntar por mim qual o motivo de tantos norte-americanos de cor estarem na guerra. Quando o general ouviu a pergunta, mandou me botar pra fora. Esbravejando, ele disse que não aceitava eu ter ido do Brasil para o Vietnã para provocar o país dele. Uma tarde, conversando com dois americanos, usando o meu inglês de beira de cais, disse a um deles: “você veio para cá brigar pelo seu país”. Ele foi taxativo: “não, não vim brigar porra nenhuma, mandaram a gente pro Havaí fazer treinamento, de lá viemos direto pra cá”.

ZONA SUL – Você também esteve em Cuba, na revolução cubana?
GERVÁSIO – A experiência de Cuba pra mim foi muito válida. Fui lá quando a revolução comemorou seu primeiro aniversário. Quando fui fotografar Fidel Castro, ele começou a fazer um discurso às 11 horas da manhã. Às seis da tarde continuava falando. E eu de saco cheio.

ZONA SUL – Fidel empolgava a massa mesmo...
GERVÁSIO – Empolgava não, ainda empolga. A presença dele ilumina a raça. É um ser humano diferenciado, é carismático. Dialoguei com o que morreu, o Che Guevara.

ZONA SUL – É outra figura controversa. Enquanto uns idolatram, outros o classificam como sanguinário. Deu para você formar alguma opinião?
GERVÁSIO – Não. Lembro que a primeira coisa que perguntei a ele foi: o que você, um argentino, faz aqui em Cuba? Ele parou, olhou pra mim e perguntou se eu era repórter e de qual órgão. Respondi que era de uma revista semanal do Brasil. “O que você faz aqui, tirando suas fotos, é a mesma coisa faço eu. Só que eu defendo o povo”. Foi essa a resposta que ele me deu. Eu me embaracei e pedi perdão. Fotografei Che com um charuto maior que o rosto dele. Anos depois, eu trabalhava como fotógrafo oficial do presidente José Sarney, quando ele recebeu a visita de Che, em um hotel em Nova York. Che Guevara olhou e disse que recordava de mim. Na mesma hora eu respondi: “eu também lembro de você”.

ZONA SUL – E a Revolução dos Cravos, como foi?
GERVÁSIO – Acompanhei o povo. Cheguei lá logo que o governo caiu. Acompanhei uma passeata, as pessoas com os cravos. Foi lindo, lírico. As mulheres dando flores aos heróis que tinham livrado Portugal daquela situação.

ZONA SUL – Como era você fazer uma cobertura desse tipo para um país como o Brasil, que vivia sob o regime militar? Você sofreu censura no seu trabalho?
GERVÁSIO – Sempre tinha alguém espiando o que fazíamos, mas eu nunca tive censura no meu trabalho. Eu reprimia a minha revolta e procurava fazer de um jeito que a fotografia pudesse ser publicada. Afinal eu era pago para mostrar as coisas erradas ou não. Quando eu sabia que os militares não queriam uma foto de uma forma, eu procurava mostrar a mesma coisa, só que de um outro ângulo. Fazia fotografia para as pessoas interpretarem.

ZONA SUL – Você também foi preso por razões políticas ou apenas por causa de episódios violentos?
GERVÁSIO – Também fui preso por razões políticas, mesmo sem ser político. Quando eclodiu o problema militar, eu era amigo do presidente João Goulart. Eu tinha um acesso razoável para chegar até ele. Antes de ele ser presidente, éramos amigos: eu fotógrafo, ele ministro. Quando ele assumiu a Presidência, continuei com a mesma liberdade de aproximação. Um dia ele me perguntou se eu só trabalhava na Manchete. Me ofereceu um emprego no Instituto Brasileiro do Café, em Nova York. Expliquei que de café eu só sabia beber. Tomei posse mas fiquei apenas uma semana por lá.

ZONA SUL – Sentiu saudades do feijão brasileiro?
GERVÁSIO – Sim, e voltei para o Brasil. Disse ao presidente que não tinha me adaptado bem ao trabalho e que ele podia cancelar minha admissão. Mas Jango telefonou para o ministro da Educação, não lembro o nome dele, e mandou arranjar outro emprego pra mim. Fui contratado como conservador de museu. Fiquei alguns meses examinando as obras de arte. Quando a crise eclodiu, comecei a ser perseguido. Os caras me viam em pé no ponto de ônibus e já paravam. Entra. Eu entrava na caminhonete e ia para o quartel.

ZONA SUL – Circula um boato que você chegou a emprestar seu carro para Jango farrear...
GERVÁSIO – É verdade. Não foi uma vez só. Ele usava um carro que eu tinha para dar umas voltas e ver como estava a cidade.

ZONA SUL – E você sabe o nome dessa cidade que ele costumava ver?
GERVÁSIO - Sei, Angelita Mart... Ôoo (risos). Carlos Machado tinha as maiores coristas. Entre elas, tinha essa moça, Angelita. Ela tinha um paiol pra homem nenhum botar defeito.

ZONA SUL – O patrimônio era grande...
GERVÁSIO – Não sei se era patrimônio, mas era o ganha-pão dela...

ZONA SUL – Antes de Jango, tem uma passagem marcante, sua, no funeral de Getúlio Vargas...
GERVÁSIO – Quando Getúlio faleceu, eu estava na Manchete. Adolpho Bloch pediu para eu fotografar o sepultamento, em São Borja. De Porto Alegre para lá, de ônibus, demorava umas quatro horas. Era mês de agosto, um frio terrível. Fiz boas fotos de Tancredo Neves chorando, do chanceler Oswaldo Aranha discursando emocionado, do Jango, da Alzirinha Vargas. Quando concluí o trabalho, alguém sugeriu que eu tentasse arrumar uma carona em um dos dois aviões da Presidência que tinham ido levar as autoridades para o enterro. Na pista do aeroporto encontrei um soldado, em pé, todo enrolado em uma capa. Ele perguntou se eu era passageiro do avião presidencial. Respondi que sim, que estava esperando o general Caiado Castro, que era um dos homens fortes de Getúlio. O soldado sugeriu que eu entrasse na aeronave, para escapar do frio. Fiquei sentado em uma das poltronas até que as autoridades começaram a entrar. Quando percebi que vinha o grosso dos passageiros, me escondi no banheiro do avião. Decolamos e eu tiritando de frio. Depois de 40 minutos de viagem, abriram a porta do banheiro. Era o general. Ele abriu, pediu desculpas e fechou imediatamente. Segundos depois, abriu de novo e perguntou: “o que você está fazendo aí?”. Deu voz de prisão. Fui colocado em um banco, perto do banheiro. Samuel Weiner estava no avião: “Gervásio, me dê seus filmes que eu quebro seu galho”. Não aceitei, mas ele insistiu. Respondi que só daria o filme com autorização do doutor Adolpho. Viajei sentado perto do banheiro e da porta traseira do avião. Quando chegamos ao Rio, o avião começou a taxiar, no aeroporto Santos Dumont. A porta foi aberta para despressurizar. Olhei para fora e vi que dava pra pular. “Eu me arrebento, mas vou”, pensei. Quando o avião começou a fazer uma curva, dei um salto. Caí na grama e sai correndo, abraçado com a bolsa de fotografia. O marinheiro que tava servindo de garçom gritou: pega! Entrei no aeroporto, peguei um táxi e fui pra Manchete. Fui recebido com um esporro. Seu Adolpho Bloch, quando me viu no corredor, disse: “eu não lhe mandei cobrir o enterro do Getúlio?”. Concordei. “E o que você está fazendo aqui?”, completou. Quando eu expliquei que tinha vindo escondido no avião, que a cana devia estar atrás de mim e que eu estava com as fotos, ele mandou fazer uma edição especial da revista. Foi da Manchete a primeira edição especial com o sepultamento do Getúlio Vargas.

ZONA SUL – Entraram para a história as fotografias que você tirou do presidente eleito, Tancredo Neves, internado. Houve até uma polêmica. Chegaram a dizer que aquela fotografia foi armada e que havia uma enfermeira agachada por trás do sofá, segurando tubos de soro.
GERVÁSIO – O sofá estava encostado na parede. Essa fotografia vai aparecer agora em uma exposição. A foto que falam era ele e dona Risoleta. A outra foto inclui os cinco médicos que estavam cuidando de Tancredo. Lembro que um dos médicos dele estava abraçado, o doutor João Batista Resende. Pedi ao doutor pra tirar a mão das costas do presidente, pra não dizerem que ele estava sendo amparado.

ZONA SUL – Não houve armação nenhuma?
GERVÁSIO – Não.

ZONA SUL – Qual foi o presidente mais difícil de fotografar?
GERVÁSIO – O mais difícil pra fotografar foi Jânio Quadros. Fui fotografá-lo no Rio, em um estúdio. Levei mais de duas horas e meia. Em determinado momento, doutor Adolpho entrou no estúdio e perguntou como estávamos indo. Jânio respondeu: senhor Adolpho, esse fotógrafo seu é um ditador, ele está me dando ordem há mais de duas horas. Adolpho perguntou a mim por que estava demorando tanto. “Quem manda ele ter o olho torto?”, a resposta que dei foi essa. Jânio emendou na mesma hora: viu? Ainda por cima é atrevido”. Enfim saiu a foto. Consegui nivelar os olhos dele um no outro.

ZONA SUL – Qual sua foto que você considera a melhor? Qual a que teve mais repercussão?
GERVÁSIO – Repercussão, têm duas. Uma foi a de Tancredo Neves. A outra foi a do presidente Juscelino Kubitschek com a cartola na mão. Quanto à melhor foto, essa ainda vou fazer.

ZONA SUL – Qual o bastidor dessa foto que você tirou de JK com a cartola na mão?
GERVÁSIO – Eu vivia viajando com o doutor Juscelino. Ele ia fazer inspeção nas obras, lá ia eu. Tinha acesso a ele. No dia da inauguração de Brasília, viemos uma equipe do Rio para cobrir a festa. Quando eu estava saindo Oto Lara Resende disse que tinha um prêmio de 50 mil réis para quem fizesse a melhor foto. Na hora em que JK subiu a rampa, eu, ao lado dele, disse: “presidente, preciso fazer a capa da Manchete, dê ma parada aí que vou fazer a foto”. Pedi ao Jango, que estava ao lado de Juscelino, para sair um pouco pro lado. Mirei o Congresso, centralizei o presidente em pé e pedi para ele tirar a cartola. “Vai ser rápido, vou fazer uma ou duas fotos e o senhor desmancha”. Ele concordou. Bati duas fotos e ele desmanchou aquela pose. Só eu fiz essa foto. Ganhei os cinquentinha.

ZONA SUL – Você também fotografou Câmara Cascudo...
GERVÁSIO – Fotografei e também dei-lhe um beijo na testa. Ele foi uma sumidade, uma inteligência de deixar de boca aberta. Sabia tudo. Tornou-se cidadão do mundo sem sair do Rio Grande do Norte.

ZONA SUL – Fale sobre sua família.
GERVÁSIO – Tenho dois filhos, Júlio Baptista e Selma Baptista. Minha companheira chama-se Ivonete Baptista. Ela me tolera há 40 anos. Vivemos harmoniosamente dando força aos netos, que são dois: Juan e Pedro. Minha filha é pedagoga, leciona em um colégio da Asa Sul. Meu filho mexe com fotografia, mas agora está fora da profissão. Está cursando marketing na universidade.

ZONA SUL – Que sugestão, que orientação você daria para quem quer entrar na carreira de fotojornalismo?
GERVÁSIO – Primeiro, respeitar o equipamento, a máquina. Ela passará a ser sua companheira eterna. Se você respeitá-la, for honesto e olhar sempre de frente para o horizonte, você chega lá.