quarta-feira, 27 de abril de 2011

Entrevista: Antonio Ronaldo

O MILITANTE DA MÚSICA E DA POESIA POTIGUAR

Direto do Fórum da Zona Sul de Natal, estavam lá Ronaldo Siqueira, Joacy Diniz e Carlos Antônio. Do ramo jornalístico, eu, Roberto Fontes e Costa Júnior. Representando a música potiguar, Geraldinho Carvalho e Ricardo Menezes, o dono do Veleiros, local onde se travou a conversa. Todos reunidos para esmiuçar a vida do poeta e compositor Antonio Ronaldo, que levou o amigo José Gilson para participar do blablablá. As canções de Antonio Ronaldo representam importante capítulo da boa música potiguar brasileira. Seus poemas dão consistência e ajudam a justificar a fama que Natal tem de cidade de poetas. Durante mais de uma hora Antonio Ronaldo respondeu sem rodeios aos questionamentos do time escalado para arguí-lo. Um resumo do diálogo travado você confere a seguir aqui no jornal ou no site http://zonasulnatal.blogspot.com/ (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Fale um pouco sobre você.
RONALDO – Meu nome é Antonio Ronaldo de Sousa Ferreira. Nasci em Mossoró. A família do meu pai é de lá. Minha mãe é de Catolé do Rocha, na Paraíba.
ZONA SUL – Seus pais continuam vivos?
RONALDO – Só a minha mãe. Meu pai era alfaiate e foi cantor de rádio. Era sambista. Seu nome era José Ferreira.
ZONA SUL – Ele também compunha?
RONALDO – Nunca tomei conhecimento de nada que ele tivesse composto. Trabalhou na Rádio Difusora, na época em que o rádio tinha “cast”. Os artistas locais faziam o repertório dos artistas nacionais. Meu pai era especializado em samba: Cyro Monteiro, Roberto Silva e Jorge Veiga.
ZONA SUL – Seu pai ensaiava, ou costumava cantar, em casa?
RONALDO – As lembranças que guardo já começam depois que ele saiu da Difusora. Então, nessa época ele já não ensaiava. Mas ainda possuía um violão que havia trocado por um terno que ele próprio costurou. Era um violão bem artesanal, com tarrachas de madeira e tudo. Esse violão animava a família. Ele sempre cantava. Minha mãe, que tinha participado de coral em igreja, também gostava de cantar. Eles faziam duos, interpretavam guarânias, músicas de Cascatinha e Inhana e um repertório diversificado. Às vezes a gente também cantava com eles, na calçada.
ZONA SUL – Como é o nome da sua mãe?
RONALDO – Maria de Lurdes Ferreira. Ela é aposentada do magistério público. Lá em casa somos quatro filhos, dois casais. Rosane, a mais velha, trabalha no Tribunal Regional Eleitoral, na comarca de Dix-Sept Rosado. Rosemeire é professora. Em breve se aposentará. Meu irmão José Ferreira da Silva Júnior é funcionário público do estado. Formou-se em economia, mas não exerce. Ele também gosta de música e toca. Seu filho já está tocando violão também. A gente sempre se encontra pra fazer alguma coisa juntos.
ZONA SUL – Seu irmão toca profissionalmente?
RONALDO – Não. Ninguém na minha família atua profissionalmente com música.
ZONA SUL – Nem você?
RONALDO – Nem eu. (risos). Não atuo profissionalmente, eu milito organicamente. Vivo para a poesia e para a música. Acho que isso é o que há de mais fundamental na minha vida. Além disso, trabalho para sobreviver. Como diria Caetano, “é um jeito de corpo”.
ZONA SUL – A música, então, seria uma espécie de hobby?
RONALDO – Não vejo dessa forma. Não diminuo a participação da música na minha vida, principalmente pela qualidade que procuro imprimir a esse trabalho.
ZONA SUL – Quais recordações você traz dos tempos de menino em Mossoró?
RONALDO – Não tenho muita lembrança dessa época porque não tive uma infância muito interessante. Comecei a descobrir a vida quando cheguei a Natal, dos 13 para os 14 anos. Fui morar no bairro de Santos Reis. Lá me sociabilizei mais. Em Mossoró, nunca tive muitas amizades, até por não costumar sair. Minha família é ligada em Mossoró. Vou uma vez por ano, com muito esforço. Em 2010, por exemplo, só fui para o aniversário da minha mãe.
ZONA SUL – A música começou a existir pra você em Mossoró?
RONALDO – Quando eu cursava o ginásio, papai pegava o violão e me passava alguns acordes. Eu repassava esses acordes aprendidos para algumas colegas da escola. O interessante de Mossoró é que eu me correspondia com algumas pessoas em Portugal. Mandei um anúncio para um jornal chamado Diário Popular de Lisboa e passei a receber várias cartas. Uma das correspondentes me mandava poemas. Até então eu não escrevia nada. A primeira vez que fui mexer com música foi para musicar um poema dessa minha amiga. Depois dessa experiência passei a escrever. No começo eu escrevia tudo metrificado, rimado, fazia uma coisa inspirada no cordel. Esse formato facilita muito o trabalho musical.
ZONA SUL – E Natal?
RONALDO - Quando cheguei a Natal, depois que passei no vestibular, comecei a procurar emprego. Fui trabalhar na Guararapes. Lá já estava escrevendo com intensidade. Eu datilografava tudo o que escrevia e depois formava uns bloquinhos. Estudava à noite e trabalhava na Guararapes quase 50 horas por semana. Mesmo assim, eu vivia na farra. Natal é uma cidade muito convidativa, principalmente na sexta-feira. Tomar um pileque nesse dia é bem fácil. Comecei a faltar ao trabalho muitos sábados. Quando perdia o sábado, perdia também o final de semana remunerado. Devido a esse prejuízo, preferi pedir demissão. Na época, Diógenes da Cunha Lima era professor de um amigo meu. Foi antes de ele ser reitor. Diógenes, que já era influente, me deu uma carta de apresentação para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Peguei carona e fui. Quando cheguei à universidade, que protocolei aquela carta, uma moça disse que eu tinha perdido o calendário de matrícula. Tive que voltar pra Natal desempregado...
ZONA SUL – Vamos retroceder um pouquinho para você contar como se deu a mudança de Mossoró para Natal.
RONALDO – Saí de Mossoró ao concluir o ginásio. Uma irmã do meu pai morava na capital. Junto com a minha mãe, ela e o marido conseguiram uma vaga para eu estudar na ETFRN, que hoje é o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Cursei o técnico de Estradas. Concluí o curso, mas de uma forma muito irreverente. Nem o estágio eu fiz. Na época as avaliações eram feitas pelo nível médio da turma. Minha turma tinha um acordo que era o seguinte: quem era bom em determinadas disciplinas fazia um esforço para não tirar nota alta. Dessa forma a média ficava menor. Por exemplo: como eu era bom em português, história e geografia, me segurava para que a média fosse suficiente para todo mundo ir sobrevivendo. Quem era bom nas disciplinas técnicas, o que não era o meu caso, puxava o freio de mão, também. Dei-me mal nessa história porque, apesar dessa combinação, não consegui passar em algumas disciplinas. O resultado é que mesmo aprovado no vestibular para jornalismo, em 1976, não ingressei na universidade por não ter concluído o segundo grau. Comemorei com uma farra grande, mas essa festa foi uma farsa. (risos).
ZONA SUL – Mas depois você concluiu o curso...
RONALDO – Fiquei mais um ano só para pagar essas disciplinas técnicas. Foi quando entrei na Guararapes. No ano seguinte fiz novo vestibular para jornalismo. Passei, mas permaneci apenas um ano no curso. Ao término desse primeiro ano, eu já estava desencantado, digamos assim, com o curso. Nessa época eu lia biografia de autores e percebia que quase todos tinham cursado direito. Então resolvi fazer o curso de direito, também. Em 1977, acho, entrei no curso de direito. Concluí porque não dava mais para protelar. Eu tinha que terminar algum curso superior. Do contrário eu estaria na malandragem até hoje.
ZONA SUL – Então vamos retornar ao Rio de Janeiro... Você foi para lá como hippie?
RONALDO – Mais ou menos. Não que eu fosse mesmo hippie, mas era bem ao estilo. Eu era um estudante universitário que nas férias escolares pegava a estrada.
ZONA SUL – A ida para o Rio foi importante para você na área de música e literatura?
RONALDO – Não. Não tive contato nenhum. Apenas perambulei pela cidade e conheci alguns
espaços. Fiquei pouco mais de uma semana, apenas. Ao retornar à Natal, voltei à vida de sempre. Foi quando Carminha Medeiros soube que eu estava sem emprego e disse que tinha uma vaga no grupo de teatro da universidade, que era o Tônus Companhia de Artes Cênicas. O diretor era Carlos Furtado. Na época ele também dirigia o Grupo Expressão, que era o elenco da TV Universitária. Ele marcava todos os ensaios lá na TVU. O músico e compositor Babal andava por lá. Foi quando ele conheceu meus caderninhos e musicou algumas coisas que eu tinha escrito. Naquela época Lelé Alves também estava por aqui. Ela cantou música minha em programa da TVU. Inscrevi uma música no festival da Globo, em Recife. Foi classificada. Defendi essa canção sem nenhum profissional me acompanhando. Contratei um bando de amadores conhecidos e enfrentei. Foi um grande mico. Isso ocorreu possivelmente em 1978. Tenho fotos da apresentação. Nessa mesma época passei a ir aos festivais de Campina Grande. Aí eu já participava com Jorge Macedo, Cleudo...
ZONA SUL – Como se desenvolveu sua veia poética até então?
RONALDO – Nessa época havia o movimento de poesia marginal. Tinha vários grupos, me vinculei ao grupo de João da Rua. Não lembro qual nome tinha, nunca me preocupei com essas denominações. Uma casa na rua do motor funcionava como uma espécie de ponto de encontro. Eu morava na residência universitária. Descia de lá para a Rua do Motor, nas minhas horas vagas, junto com esse pessoal. Lá a gente escrevia e publicava em tabloides. No âmbito da universidade teve um projeto chamado “Laboratório de Criatividade”. Foi Socorro Trindade quem trouxe essa experiência, do Rio de Janeiro. Acho que Diógenes da Cunha Lima era reitor. O projeto foi bem estruturado. Os trabalhos selecionados eram publicados em um jornal mural chamado “Dito e Feito”. Saíram cinco edições com poemas e textos em prosa que a gente produzia. Na época os minicontos eram comuns. Diziam que era uma característica da literatura do período da repressão, de uma geração sem palavras. Era uma coisa lacônica. Acreditava-se que as pessoas tinham poucas leituras. Não sei se era bem isso. Alguns minicontos eram um exercício minimalista tão bem feito, que virava uma coisa muito legal.
ZONA SUL – A censura interferiu no seu trabalho?
RONALDO – Eu mandava as minhas letras para a censura, mas eles não davam a mínima (risos). A censura tinha olhos para cachorro grande, não pra mim. Mas, voltando ao Laboratório de Criatividade, é interessante ler o livro “Grande Ponto”, uma coletânea dessa produção. Inclui muitas pessoas interessantes. Não vou citar para não esquecer algumas.
ZONA SUL – Em algum momento você pensou em abraçar profissionalmente a carreira de escritor ou de artista da música?
RONALDO – Em determinado momento, me fixei na ideia de ser um compositor. Nos anos 1990 começou a aparecer em Natal a possibilidade de gravar CD, graças ao Profinc (Programa de Financiamento à Cultura) e à própria tecnologia disponível. Através de Cida Lobo e de Geraldo Carvalho, me projetei como compositor. Foi super-gratificante, mas nunca deixei de almejar um estouro nacional através desses artistas. Porém tudo é muito difícil aqui no Rio Grande do Norte. Não sei se prevalece a maldição de Câmara Cascudo: “Natal não consagra, nem desconsagra ninguém”. Se é coincidência ou maldição, não sei, mas é difícil para o artista local ter uma inserção no mercado. Hoje em dia, pra complicar, o mercado fonográfico é muito precário. O artista está vivendo na incerteza sem saber se esse mercado voltará a florescer.
ZONA SUL – A experiência com o Grupo Trampo se deu em qual época?
RONALDO – O Trampo foi no início dos anos 1990: surgiu a partir de Manassés e Leão Neto. Cada um deles gravou um bolachão em Recife, com quatro músicas. Fizeram um show de lançamento bem arquitetado, no Teatro Alberto Maranhão. Na ocasião, Manassés me chamou pra cantar com ele “Blues da Neblina”, que era uma música minha. Leão Neto convidou Romildo Soares para cantar “Deus não é brasileiro”. Ali começou a se formar uma espécie de instante especial, digamos assim. Iracema, a companheira de Romildo, era muito ligada a Sueldo. Ele se incorporou ao grupo. Eu, que tinha muita ligação com Odaíres, a convidei também. Edimar Costa já era ligado a todas essas pessoas. A partir desse núcleo de sete pessoas, fundamos o grupo denominado Trampo. A gente se reuniu e escreveu um manifesto. A discussão era a dificuldade dos artistas de música no estado eclodirem. Esse ano estamos tentando comemorar os 20 anos do Trampo. A discussão era “por que os artistas são tão cada um por si e Deus contra todos?”. A gente propunha todo mundo “trampar” coletivamente e se esforçar pelo trabalho do outro. Mas uns olhavam com desconfiança, alguns achavam que queríamos fundar um sindicato de músicos, ou coisa parecida. A gente construiu o Trampo fazendo, botando a coisa em prática. Nessa época a gente morava em uma casa na Vila de Ponta Negra, uma casa grande que era de Tião Carneiro. Ele havia alugado. A gente fazia festas do Trampo e cobrava ingresso. Era uma corrida do ouro. O pessoal tinha uma disposição bárbara.
ZONA SUL – O Trampo teve alguma apresentação que se destacou das demais?
RONALDO – Duas festas que fizemos - uma se chamava “É proibido proibir” e a outra esqueci o nome - foram especiais. Também foi muito legal quando os petroleiros nos levaram para participar de um circuito de shows em Mossoró. Fizemos várias festas em Natal. Outra ocasião foi uma noite em que fizemos show com a participação de Sérgio Sampaio. Foi a primeira vez que Sérgio Sampaio veio apresentar em Natal o seu show “Tem que acontecer”. Fizemos a abertura, no Casablanca.
ZONA SUL – Sérgio Sampaio era uma pessoa receptiva?
RONALDO – Meu primeiro contato com ele foi logo que na sua chegada do aeroporto. Tinha
várias pessoas e jornalistas assediando. Mostrei uma música a ele. Lula Augusto estava com a gente e, lá pras tantas, quis interromper. Mas Sérgio Sampaio insistiu para que eu continuasse a tocar. Cida Lobo depois gravou essa música. Mas foi coisa de botequim mesmo. Ouvi Sérgio Sampaio pela primeira vez ainda quando morava em Mossoró. Foi na rádio Rural, quando tocou aquele disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10”, em 1971. Fiquei louco pela música “Todo mundo está feliz”. Mas não sabia de quem era. Em 1973 vi Sérgio Sampaio cantar no programa do Chacrinha “Eu quero é botar meu bloco na rua”. O mesmo arrebatamento aconteceu naquele momento. Esse elepê eu consegui comprar depois de algum tempo. Sérgio Sampaio era considerado maldito. Não aceitou as imposições de gravadora, principalmente de Roberto Menescal, dos enquadramentos que queriam fazer. Ele era mais livre, queria fazer as coisas ao seu modo. Terminou chutando o pau da barraca e se deu mal, como toda uma geração.
ZONA SUL – Suas influências musicais são os malditos como Sérgio Sampaio?
RONALDO – Minha bíblia é o disco tropicalista “Panis et circenses”. Absorvi muito a música popular brasileira. De certa forma até ignoro a música internacional. Meu pai me deu muita informação sobre música. Eu gostava dos sambas que ele tocava, principalmente os de Roberto Silva. Ele falou muitas vezes de um compositor potiguar chamado Raimundo Olavo. Depois vim saber que ele é de Barra de Maxaranguape, mas a referência era das Rocas. Era alfaiate. Certo dia largou tudo e foi para o Rio. Chegou à rádio Tupi e disse a Roberto Silva: “olha, eu faço samba sincopado, do jeito que você gosta e pratica”. Roberto Silva gravou mais de vinte sambas dele. Esse cara tem uma obra esquecida. Nos últimos anos venho empreendendo uma pesquisa sobre a obra dele. Eu e João Barra conseguimos em áudio quase 25 músicas dele, garimpando em sebo, pesquisando na Internet para saber em que disco saiu e mandando comprar.
ZONA SUL – Qual a sua intenção com essa pesquisa?
RONALDO – Quero revisitar essas composições contemporaneamente, mostrando-as com novos intérpretes e novas roupagens. Gosto de mexer com projetos musicais. Acho que o que desenho pra mim é justamente caminhar em direção à produção artística, literária e musical: a produção cultural, digamos assim.
ZONA SUL – Na literatura, quem lhe influenciou?
RONALDO – Manuel Bandeira é a minha predileção, mas tem também Drummond. Na adolescência comecei a conhecer a literatura mais contemporânea. Um me impressionou muito: José J. Veiga. Li muitos livros dele. Li também outros, como Jorge Amado. J. Veiga era realismo fantástico. Li primeiro “A hora dos ruminantes”. Depois, “Os cavalinhos de Platiplanto” e assim por diante.
ZONA SUL – Os autores beatnick, como Jack Kerouak e Allen Ginsberg, também lhe impressionaram?
RONALDO – Em um primeiro momento, não. Só quando a Brasiliense começou a lançar os livros como “On the road” fui me familiarizando. Fui mais influenciado, para escrever, pela MPB mesmo. Desde muito cedo despertou essa minha sensibilidade para a escrita. Isso independente da leitura, até porque, naquela época, não havia biblioteca na minha casa. Lembrei agora de outro que eu gostava muito: Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta.
ZONA SUL – Antes de gravar seus dois primeiros CDs você já havia feito apresentações solo?
RONALDO – Não. Só passei a fazer em função da gravação do disco.
ZONA SUL – Como foi decidir gravar esses discos?
RONALDO – Sempre tive uma dúvida atroz sobre a viabilidade de eu fazer um disco como intérprete das minhas músicas. Como compositor, digamos assim, eu já tinha me consolidado. Ser
intérprete era um debate que eu estabelecia com amigos mais próximos. Alguns diziam que seria legal se eu convidasse intérpretes para gravar um disco com as minhas canções. Mas Manassés Campos segurou essa onda e defendeu a tese de que eu deveria cantar. Também me sugeriram que eu ao invés de colocar a minha foto na capa do disco, estampasse um desenho. Mais uma vez Manassés foi contra. Acabou me convencendo a fazer o disco chamado “Sátiro”. Aliás, eu não diria que fiquei convencido, mas como o produto ficou bem apresentado ao final, então está tudo bem. Foi prensado na Sony. As fotos são de Giovanni Sérgio e o projeto gráfico é de Cleiton Martorano. Têm participações de pessoas muito especiais. Na bateria, Di Stéffano, que, na minha opinião, é “o baterista”. Os músicos são fabulosos. O maestro foi Jubileu Filho. Depois dessa experiência, resolvi partir para um segundo projeto, dessa vez convidando intérpretes. Esse trabalho está sendo editado.
ZONA SUL – Como as pessoas receberam o “Sátiro”?
RONALDO – Algumas pessoas não gostaram da minha performance, mas adoraram o repertório. Uma coisa que me gratificou é que cada um desses dois discos foi trabalhado dentro de um conceito, coisa que os artistas não costumam fazer. São trabalhos conceituais. Quando você encontra alguém que consegue identificar isso, é gratificante, pois dá a sensação de que o objetivo foi alcançado.
ZONA SUL – Em termos práticos, foi muito difícil chegar a esse resultado final de excelência obtido com o disco “Sátiro”?
RONALDO – Os músicos, intérpretes e outros amigos que de alguma forma contribuíram para o resultado final do CD são pessoas que não me faltam nunca. O mais difícil foi arrecadar os
recursos. O primeiro disco foi praticamente todo autofinanciado, não teve lei de incentivo. Recebi alguns patrocínios pequenos, mas importantes, como os da Potiguar Turismo e dos mandatos de Fátima Bezerra e Mineiro. Mas o grosso mesmo teve que sair do meu próprio bolso. Meu grande desafio é ter fazer o escoamento da minha produção, que é extensa. Não é nem escoamento, é registro. A gente sabe que um dia vai morrer. E, no meu caso, o que tenho pra deixar é isso: são esses meus trabalhos.
ZONA SUL – Qual a tiragem do seu primeiro CD?
RONALDO – Mil cópias. Não consegui distribuir e nem comecei ainda a recuperar o investimento. O que gastei não foi tanto assim, mas, em relação à fonte dessa arrecadação – o meu bolso, como eu já revelei – foi muito significativo.
ZONA SUL – Fale sobre o lançamento do “Sátiro”.
RONALDO – O show de lançamento foi muito legal. Cida Lobo veio. Foi no Teatro de Cultura Popular da Fundação José Augusto. Geraldinho Carvalho, que está aqui conosco, participou do show cantando “Prego”, a segunda canção do disco. Nesse primeiro disco adotei o critério de apresentar 50% do repertório em parceria e a outra metade de composições individuais. Das parcerias, apenas uma era com um músico: Manassés Campos. O restante era com poetas, como João da Rua, Jota Medeiros, Iracema Macedo, Jarbas Martins, Paulo Procópio e Carlos Magno Fernandes.
ZONA SUL – E esse seu segundo disco? O que você poderia antecipar sobre ele?
RONALDO – Foi um projeto da Fundação José Augusto, o “Prêmio Núbia Lafaiete”. O foco era permitir ao artista registrar um repertório em fonograma. Tinha três categorias. Inscrevi-me na mais barata. Fui contemplado e recebi R$ 3,5 mil para fazer esse disco que chamei de “Novos caetés”. Havia um contrato com estúdios para fazer a hora de gravação por um preço determinado: 30 reais. Mas a parte de arranjos e remuneração dos músicos eu tive que correr por fora. Nesse segundo disco, eu pensei: já que não vou cantar, vou colocar só músicas minhas. (risos).
ZONA SUL – Se você só dispusesse do dinheiro para comprar um dos dois discos, qual deles adquiriria?
RONALDO – Compraria o “Sátiro” pela forma como o CD está apresentado. Esse já está editado. Na forma precária como está o outro, eu esperaria até ser feita a edição.
ZONA SUL – Seria fácil eleger sua composição através da qual você gostaria de ser lembrado? Melhor dizendo: qual a canção que você considera a sua obra-prima?
RONALDO – É muito difícil responder, varia de acordo com o momento. No segundo disco existe um fado que eu gosto muito: “Vaivém”. Ele é interpretado por Kalene Fonseca. Diria que é um momento brilhante do meu trabalho. No segundo disco, gosto principalmente da letra de “Novos caetés”, que Donizete Lima canta, e de “Banana si”, com Yrahn Barreto. Gosto também da última faixa, “Girando a roda”, cantada por Leão Neto. Há peças nesse disco que dão unidade, convergem para o conceito do disco. No “Sátiro” tem “Berrar é humano” que é bem coerente com as demais canções do CD. Já a “Ponta do Morcego” está meio solta lá.
ZONA SUL – Quantos livros de poesia você já publicou?
RONALDO – Entre 1978 até 1985 excetuando o Laboratório de Criatividade, que já citei e foi nesse período, o que consegui projetar foi através de edições próprias mimeografadas ou feitas em offset de mesa ou nos tabloides que circulavam. A partir de 1985 tentei editar de uma forma, digamos, mais convencional. O tempo foi passando e o resultado é que fiquei 15 anos sem editar. Em 2000, quando saiu o primeiro livro, foi que publiquei uma seleção dessa produção. Claro que muita coisa foi jogada fora. Não sou muito criterioso para fazer seleção de texto. Não sei escolher pela qualidade literária, pelo estilo, pela estética, por determinadas característica. Em 2003 Abimael Silva, do Sebo Vermelho, me convidou para participar da “Coleção João Nicodemos”. Propus fazer uma antologia do período publicado em mimeógrafo. Eu mesmo fiz a seleção dos textos e ele publicou um livro de poesias chamado “Jeans avariado”.
ZONA SUL – Então você tem dois livros.
RONALDO – Tenho dois livros editados. Também tenho um livro pronto para ser lançado com João Barra. A gente está criando uma firma que deverá se chamar Tabus e Totens Produções Culturais. A ideia da marca foi minha. Cláudio Damasceno fez a logomarca. Tem o livro chamado “Ao Judas atraente”, já com projeto gráfico pronto. Só falta ser rodado. Também tenho um livro minimalista já pronto. Ele se chama “Mínima Lira”. Na verdade eu queria dar esse nome a uma coleção só de poemas minimalistas de vários autores. Reuni três trabalhos nesse projeto: “A divina maldição”, “Todotosco” e “O fim está próximo”. Outro livro que está prestes a ser lançado – uma amiga está trabalhando a diagramação, essa coisa – se chama “Tenho dito – A dialética do coice e da palavra”. Tem outro que estou escrevendo no computador que se chama “Rangue Luz”. É uma alusão àquela saudação dos surfistas, “Hang Loose”. Só que no caso desse livro, Rangue vem do verbo “rangar”, vem de comer. E luz, é luz mesmo.
ZONA SUL – Que nomeclatura você daria ao seu estilo literário?
RONALDO – Já escrevi um texto sobre isso. Nele me classifiquei como lisérgico-planfetário, ou
algo assim. Estou respondendo de uma forma meio anarquizada, digamos assim. Mas não saberia lhe dizer. Minha escola foi a literatura underground. Mas isso é muito datado, a gente evolui. Hoje eu precisaria de alguém pra me dizer isso. Você falou isso e eu lembrei que já fui questão de prova em um concurso do Instituto Federal de Educação Tecnológica (IFERN) para uma pós-graduação na área de literatura. Lá tem questões sobre textos meus e de Adriano de Souza. Um dos capítulos do curso tem um estudo sobre o meu trabalho. É uma novidade, ninguém publica essas coisas.
ZONA SUL – Onde o leitor pode adquirir os seus trabalhos?
RONALDO – É provável que encontre livros meus no Sebo Vermelho. Algumas de minhas publicações já precisam de uma nova edição. Mas o “Jeans Avariado” talvez ainda seja possível encontrar por lá. Até porque o Sebo Vermelho foi a editora.
ZONA SUL – E os discos?
RONALDO – O “Sátiro” ainda existe em meu poder. Certamente eu devo ter mais de 100 exemplares. Tenho o projeto de fazer um site para comercializar esse material, mas ainda não viabilizei isso. Contatos podem ser feitos por e-mail: ronus@act.psi.br .
ZONA SUL – Como você consegue financiar seus trabalhos culturais?
RONALDO – Sou funcionário público. Minha grande aspiração nessa vida funcional é chegar ao término dela. Sempre me considerei um profissional muito responsável. Estou trabalhando no Fórum da Zona Sul de Natal, na 1ª Vara de Família, desde o final de setembro. Antes, passei dez anos na comarca de São Gonçalo do Amarante. Já tinha trabalhado mais de cinco anos no CEFET, onde fui coordenador pedagógico. Também passei pela Polícia Civil, onde fui escrivão durante 13 anos.
ZONA SUL – No princípio, notamos que a sua vida literária e cultural não foi planejada. Hoje existe algum projeto?
RONALDO – Diria que hoje tenho vários projetos. Cada um em certa fase de andamento. Hoje mesmo estou voltando a estúdio para participar de um projeto chamado “Oferenda”, que é um disco que estou fazendo com parcerias minhas com João Barra, interpretadas por cinco mulheres. Também tenho um projeto chamado “Capricho do Destino” que é antigo, só parcerias com João da Rua. Há algum tempo participei da produção do disco de Zila Mamede. Outro trabalho, que já está prensado, é um CD com intérpretes cantando composições minhas. Esse disco sairá encartado no livro “Ao Judas atraente”. Também pretendo fazer um roteiro tematizando Portugal. Gosto de compor fados. Existe uma discussão sobre a origem do fado. Uma das teses, inclusive de Câmara Cascudo, é que o fado nasceu no Brasil. Fernando Pessoa é um poeta muito reverenciado no Brasil. Mais ainda do que em Portugal. A mpb tem uma intimidade muito grande com ele. Comprei um livro de quadrinhas de Fernando Pessoa, lá em São Paulo e andei musicando alguma coisa. No disco de Zila Mamede, sobre o qual falei agora há pouco, também tem um fado que compus para um poema dela chamado “O galo do convento de Santo Antônio”. A música, no disco, tem interpretação de Lene Macedo. Sinto um grande desejo de fazer um trabalho voltado para o tema lusitano, em interface com a cultura brasileira.
ZONA SUL – Você é músico? Toca algum instrumento? Estudou música?
RONALDO – Não. Sou um leigo, em matéria de música. O instrumento que toco, mal e porcamente, é o violão. Meu ritmo é inconstante. Jamais me acompanho quando estou cantando em público.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor?
RONALDO – Quero pedir que as pessoas tenham mais atenção à obra dos artistas potiguares. Não só na música, mas arte, de uma forma geral. Quantos artistas talentosos do nosso estado morreram no esquecimento depois de batalhar tanto? Peço ao leitor do Zona Sul que tem condição de consumir um produto cultural de qualidade que preste atenção no que é produzido em Natal. Aqui existe música de qualidade, existe poesia de qualidade, artes plásticas... Tudo. Nossa cultura é rica e de bom nível. Merece ser apreciada.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Entrevista: Professor Tadeu

O PROFESSOR QUE AMA AS PALAVRAS E OS LIVROS

O professor Francisco Tadeu da Silva nasceu em Campina Grande. Nesses tempos em que a leitura, a formação cultural, a arte de pensar e o exercício da inteligência parecem estar fora de moda, ele é um oásis nesse espectro de ignorância. Para quem aprecia uma conversa com conteúdo, dialogar com o professor Tadeu é como experimentar um manjar preparado pela deusa de mais alto escalão na culinária. Bibliófilo, ele é mordaz nos seus comentários e crítico do que considera menor. Conheci o professor Tadeu em João Pessoa, no final do ano passado. Na primeira ocasião em que nos encontramos, ele esgrimiu tantos conhecimentos e comentários interessantes que tornou-se impossível não agendar essa entrevista. Conversamos em uma segunda-feira pela manhã, em um bar próximo à praia de Tambaú. Não foi fácil encontrar um bar aberto por volta das dez da manhã na capital paraibana. Cidade tão linda e vocacionada para o turismo, JP tem muito a melhorar nos seus serviços. Também não foi fácil localizar novamente o professor. Mas nem essa “seca” que dominou metade da conversa (só começamos a beber meia hora depois do início do bate-papo) comprometeu o resultado. Vale a pena ouvir o que o professor Tadeu tem pra contar. Antes de lhe passar a palavra, gostaria de fazer um agradecimento especial à Josélia Nacre, funcionária da Universidade Estadual da Paraíba. Exemplo de servidora pública, foi ela quem me colocou em contato novamente com o professor para que eu pudesse tirar algumas dúvidas sobre a entrevista que você lê a seguir. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – O que os seus pais faziam?
TADEU – Nasci em Campina Grande. Aos dois anos de idade fui morar em Recife. Meu pai colocou um laboratório em sociedade com um amigo, dos tempos de solteiro. Depois eles passaram para um armazém de grosso. Isso foi já da metade para o final da década de 1950. Desde o exame de admissão, estudei com os padres salesianos no colégio lá de Recife. Fiz a admissão ao ginásio, o ginásio, depois fiz o clássico. Apesar de a ordem salesiana ser até hoje profundamente conservadora, foi com os padres salesianos que despertei para a paixão pela palavra e pela leitura. Tudo começou aí, por volta dos 13 anos.
ZONA SUL – Como saiu muito novo de Campina Grande, você não deve ter lembranças do período em que viveu por lá. Mas, de Recife, o que você recorda?
TADEU – Em Recife fiz o curso de filosofia, a graduação...
ZONA SUL – E antes disso? Por exemplo: como foi a sua infância?
TADEU – Morei em uma rua chamada Dom Bosco, que era exatamente a rua do Colégio Salesiano. Para ser bem preciso, morei de frente ao Colégio São Vicente de Paula, que é um colégio de freiras. Nesse período fui ajudante de missas. As freiras encontravam dificuldade para arrumar alguém para ajudar o padre, nas missas. Como mamãe era muito religiosa e tinha amizade com as freiras, elas perguntaram se era possível eu ajudar. Me ensinaram e fiquei o tempo todo ajudando. Eu era bem tratado. O colégio era de freiras, só tinha mulheres. Eu e o padre éramos os únicos dois homens que tínhamos livre acesso aos corredores.
ZONA SUL – O padre provavelmente não deveria fazer proveito dessa regalia, mas, e você?
TADEU – (risos) Fui um menino meio treloso. Às vezes tinha umas festas lá e aquelas meninas maiores me colocavam no colo. Eu era menino mesmo, e era muito querido. Em algumas ocasiões, até na hora da missa eu ficava flertando com as meninas menores. Mas eram aqueles flertes bestas. Algumas vezes a freira me repreendeu: “você quando estiver ajudando na missa, preste atenção, porque você às vezes se vira...” Foi um tempo muito bom. Tive um grande aprendizado. No Salesiano também. O colégio ainda hoje tem uma grande estrutura, é muito bom. A biblioteca de lá, pra mim, foi uma grande descoberta. Foi lá que comecei a ler de verdade. Lembro bem que com 13 anos tirei aquela coleção “Titãs da Literatura”. Aliás, é uma coleção muito boa, ainda hoje tenho.
ZONA SUL – O que mais você recorda de ter lido naquela época?
TADEU - Com 13 para 14 anos li “Noites Brancas”, de Dostoiévski. Foi maravilhoso. Nessa mesma época li “A Morte de Ivan Ilitch”, de Tolstoi. Daí comecei também a ler aqueles livros de aventura, como os livros de Karl May. Inclusive, há não muito tempo atrás foi que descobri a biografia dele. Era um alemão que nunca tinha ido aos Estados Unidos. O gozado é que sua obra, mais de seis volumes, é toda voltada para a trajetória do índio americano, aquelas paisagens. Fisicamente ele nunca esteve por lá.
ZONA SUL – Como era o seu ambiente familiar?
TADEU - Eu morava em uma casa que tinha um primeiro andar. Nesse andar morávamos eu e um irmão. Certa vez, antes de minha mãe morrer, a vi conversando com meus dois filhos. Fiquei observando. Ela reclamava por eles não gostarem muito de estudar: “nenhum de vocês puxou a seu pai. Ele estudava demais e eu brigava para ele deixar de estudar”. Na verdade, não era bem assim. Está certo que eu estudava, porém, mais do que isso, eu lia muito. Eu gostava de ler. Me trancava no quarto, após o almoço, e começava a ler. Às vezes a minha mãe vinha e mandava eu descer para brincar. No colégio criei problemas para os padres não por desacato ou indisciplina, mas porque eu não gostava de fazer educação física. Sempre achei aquilo estúpido. O Salesiano tinha um militar como professor de educação física. Ele era de uma rigidez, dando aquelas aulas. Na minha visão aquilo era totalmente estúpido. Eu tinha pavor àquelas aulas de educação física. Ainda bem que parece que tiraram isso dos colégios.
ZONA SUL – E de praticar esportes você gostava?
TADEU – Não. Eu jogava voleibol e basquetebol obrigado. Os padres obrigavam, acho que para incentivar essa coisa do coletivo. Eu era exatamente o contrário. Eu não gostava do coletivo. Eu gostava mesmo era de estar isolado, lendo.
ZONA SUL – Sua diversão era bem individual.
TADEU – Era. Até hoje eu não gosto de praticar esporte nenhum. Nem jogo de salão, nem nada. Não tenho muita habilidade, nem gosto. Eu era muito personalista, gostava de estar isolado, de sonhar com os personagens dos livros. Muitas vezes os colegas tiravam onda e faziam chacota comigo porque eu ficava lá na sala e o padre vinha e me obrigava a vestir calção para ir jogar. No Salesiano, quando um professor faltava – coisa que raramente acontecia – quando era no intervalo entre aulas, tinha uma figura chamada de padre-prefeito. Era uma figura bem durona. Ele escolhia um aluno e colocava no birô do professor para anotar os nomes dos colegas que conversavam. Uma coisa que o meu pai me ensinou desde pequeno foi a não ser dedo-duro. Isso é uma questão de honra. E o filho da mãe do padre, um dia, acho que até por pirraça, chegou e me chamou para aquela tarefa. Foi na segunda série ginasial, lembro como se fosse hoje. Meus próprios colegas começaram a rir, porque eles mesmos entendiam que eu não servia para aquilo. Não que eu fosse tímido, eu até era meio sonso. Aquilo me deu uma raiva danada. Eu estava no bolso da farda com saquinhos de sequilhos. Eu estava com o bolso cheio. Me sentei. Pouco depois que o padre deu às costas, tirei os sacos do bolso e joguei no meio da sala, dizendo: “olha aí para vocês”. Meu amigo, destruíram umas quatro carteiras, quebraram perna de gente, foi um alvoroço... (risos) Lembro disso com muita honra.
ZONA SUL – E quando o padre voltou?
TADEU – Ele perguntou o que era aquilo. Eu disse que o responsável era eu. “O que foi que você fez?”. Expliquei o que tinha acontecido, enquanto o padre olhava um chorando e o outro com a perna quase quebrada. Ainda hoje as salas do Salesiano de Recife são as do tempo em que eu frequentava. Fizeram uma grande reforma, mas continuam as mesmas. Tinha umas colunas enormes. Depois da confusão que provoquei na sala, o padre disse: “pegue seus livros e fique ali em pé, perto das colunas”. E mandou chamar meu pai, que morava perto do colégio. Fiquei de dez e meia ao meio-dia em pé, sem poder me mexer. Os alunos foram embora e nada do meu pai chegar. Já perto de uma da tarde, meu pai chegou. O vi conversando com o diretor. O diretor gesticulava, meu pai falava... Até que meu pai chegou perto de mim e mandou eu pegar os livros para irmos para casa.
ZONA SUL – O que seu pai fez?
TADEU – Fique esperando a reação dele. Meu pai na frente, eu acompanhando. Ele não deu uma palavra. Em casa, minha mãe perguntou: “por que esse menino está chegando essa hora?”. Meu pai respondeu: “eu quero lá saber, esses padres não têm o que fazer, colocam o menino em pé até uma hora dessas por causa de uma besteira”. Meu pai era um homem analfabeto. Aliás, analfabeto em termos, pois ele sabia escrever, e tal. Também dava conta da parte espiritual. Mas era um homem profundamente limitado. Porém, veja a visão crítica dele, que leitura de mundo: não fez nada contra mim porque entendeu meu gesto. Lógico que, quando joguei os sequilhos, eu fiz uma besteira. Mas foi a forma que encontrei para sair daquela função tão violenta.
ZONA SUL – Depois desse episódio você ficou marcado no colégio?
TADEU – Não. Apesar desse meu lado, sempre fui bem tratado. Mamãe frequentava muito o colégio, pois morávamos bem próximos. Lá também funcionava como internato. Muitos ex-alunos do Salesiano depois se destacaram. Alguns politicamente, outros na área jurídica. Aos sábados passava filmes. Também tinha festas e jogos: era muito interessante. Como disse, eu também ajudava na missa, aos domingos. Sempre gostei de ajudar. O sagrado sempre me seduziu. Isso me lembra um episódio interessante. Contei certa vez em uma palestra, ninguém aguentou. Na entrada da capela, naquela nave bonita, tem um Cristo com uma cruz que é uma coisa linda. A religião católica e o cristianismo são meio sanguinolentos. Vejo até com certa brutalidade. Aquele Cristo do Salesiano é uma coisa impressionante. Dia desses estive lá e tive a mesma sensação de quando eu era menino. Só que, no tempo de menino eu tinha até medo daquele Cristo ensanguentado olhando pra mim.
ZONA SUL – Mas qual foi o acontecimento que gerou tanta comoção em sua palestra?
TADEU – Certa vez cheguei em casa depois de ter me confessado. Nós, estudantes, éramos obrigados a assistir uma missa às sete horas da manhã do domingo. Tinha até que levar a carteira, para registrar presença. Valia nota de religião. Havia esse rigor besta, mas tudo bem, isso não me afetou. Nesse dia cheguei em casa e disse a minha mãe que Jesus tinha rido pra mim. Querendo ser santo logo, contei aquela história. Talvez esse episódio tenha ocorrido na época do lançamento de “Marcelino Pão e Vinho”. Fiquei impressionado com aquele filme, ao ver Jesus batendo papo com aquele menino. Quando eu disse a mamãe que Jesus tinha rido pra mim, ela explicou: “meu filho, você se confessou, é até pecado dizer isso. Não quer dizer que você não possa ser santo, mas não é assim, leva tempo. Você pensou que ele riu, mas isso não aconteceu”. Depois que ela deu aquela lição, eu insisti: “ele riu”. Minha mãe foi perdendo a calma: “você não diga que Jesus riu pra você porque isso não aconteceu”. Continuei insistindo: “riu”. Ela pegou a correia da máquina e ameaçou: “diga agora que Jesus riu pra você, cabra safado. Diga que eu vou quebrar você de pau agora”. (risos). Meu pai estava em uma cadeira de balanço e interveio: “deixe de besteira, você se trocando com um menino. Não é possível, uma pessoa adulta”. Foi assim que ela parou, mas já estava me pendurando no braço para dar uma surra.
ZONA SUL – Você era danado mesmo...
TADEU – Escute essa outra história... Nos álbuns de fotografias familiares sempre tem alguns retratos que a gente não gosta. Geralmente um deles é o filho homem vestido de mulher, com uma chupeta pendurada. É um negócio feio danado. Outra foto é terrível é a da tal primeira comunhão. O cara segurando aquela vela que parece um símbolo fálico. O menino todo de branco, com cara de abestalhado. A minha primeira comunhão foi diferente. Certo dia, mamãe, muito religiosa, puxou conversa com meu pai, que estava sentado em uma cadeira de balanço. Ela falou: “temos que providenciar a roupa de Tadeu, porque a primeira comunhão dele é no próximo mês. Vamos ver logo isso”. Na mesma hora eu respondi que não ia fazer a primeira comunhão vestido de branco. Minha mãe era uma mulher muito dura. Ela retrucou imediatamente: “você vai, você vai porque não é diferente de ninguém. Se todo mundo vai de branco, por que você não vai de branco?”. Teimei que não iria. Ela já foi logo fechando a mão: “você não diga que não vai. Quero ver se você não vai”. E meu pai calado. “Vou não”. Mamãe me pegou pela orelha: “diga, safado, que você não vai de branco”. E já foi tirando a chinela. Meu pai intercedeu: “solte o menino. Ele faz a primeira comunhão se quiser. Não botei filho no mundo pra negócio de igreja ou de primeira comunhão. Botei foi pra estudar. Se ele não quiser, não vai. Não vou obrigá-lo”. Aí mamãe recuou, quando viu que eu tinha o apoio logístico do meu pai. Você não vai acreditar, mas obriguei mamãe a comprar um terno azul marinho. Não pude fazer com a turma, porque todos fizeram vestidos de branco. Fiz sozinho. Você acredita nisso? Se você me perguntar por que eu fiz isso, eu não saberei responder.
ZONA SUL – Talvez por pirraça...
TADEU – É, pode ter sido pirraça. Mas, meu amigo, eu tenho a foto lá em casa.
ZONA SUL – Mas a vela você segurou...
TADEU – Nem lembro se segurei a vela. As fotos são sem vela, sem nada. Um tempo desses peguei esse retrato e comecei a rir. Até a minha mãe não aguentou e começou a rir também. Ela já idosa, comentou: “é, ele era assim mesmo, esse menino me deu tanto trabalho”. Mas não era trabalho! Na minha visão já era uma leitura meio crítica do mundo, da realidade.
ZONA SUL – Nessa época você pensava em futuro, em profissão, em direcionar os estudos para alguma direção?
TADEU – Não pensava em nada disso. Mas deixe eu traçar um paralelo. Você conhece aquele livro de François Truffaut, que é uma entrevista que ele fez com Hitchcock?
ZONA SUL – Não.
TADEU - É um álbum fotobiográfico, uma coisa assim, com uma longa entrevista. Eu tenho. Dia desses eu estava lendo. Lá Truffaut faz essa mesma pergunta a Hitchcock: “Você jovem já tinha a ideia do cinema?”. Hitchcock foi um gênio. Eu não lembro se naquela época eu já tinha noção do rumo para o qual desejava direcionar a minha vida. Porém eu recordo que duas coisas eu não queria ser: juiz e militar. Isso eu tenho certeza que não queria. (risos)
ZONA SUL – Nem padre...
TADEU – Nem padre. Tenho a impressão que meu pai queria que eu fosse um jurista ou um médico. Minha mãe é filha de senhor de engenho falido. Eles sonhavam com uma carreira de destaque. Minha mãe sempre nos dizia que saiu do sítio pra poder dar educação aos filhos. Ela não queria que a gente crescesse amarrando cavalos. Logicamente não era isso, há um certo exagero, mas, de qualquer forma, o estudo e a formação são importantíssimos. É muito importante a pessoa ter uma visão de mundo. E essa visão só se adquire através do estudo, da absorção de conhecimentos. Não estou nem me referindo tanto ao estudo formal, mas a descoberta de mundo se dá por aí. Quando isso falta a uma pessoa, é muito cruel.
ZONA SUL – Quantos irmãos você tem?
TADEU – Éramos quatro, mas um faleceu tragicamente, muito jovem ainda. Ele se chamava Paulo Roberto. Morreu aos 12 anos, afogado em Tambaú. Um outro, Francisco de Assis, mora em Belo Horizonte e trabalha com publicidade. É muito interessado na profissão e adora cinema. Tenho uma irmã que mora em João Pessoa e trabalha com seguros: Verônica da Silva.
ZONA SUL – Hoje você acredita que a sua vocação era essa mesmo voltada para o ensino?
TADEU - Naquela época se falava em vocação, hoje não mais. Vivemos em uma sociedade onde se discute muito a praticidade. Vamos ser práticos: atualmente a carreira é o dinheiro. Naquela época não era dessa forma. Falava-se em vocação, que é uma coisa bonita. Eu admirava a figura do professor. E nós tínhamos bons professores. Pra você ter uma ideia, os professores que ensinavam no ginásio, clássico ou científico, terminaram catedráticos da universidade. Tínhamos escritores ensinando português... Isso foi muito bom pra mim. Eu tinha um verdadeiro encanto por aquelas figuras. Assisti aulas maravilhosas. Não esqueço nunca o latim que a gente aprendia.
ZONA SUL – O latim foi abolido há muito tempo das escolas...
TADEU - Na quarta séria ginasial a gente traduzia Cícero, Horácio... Era um negócio bonito. Hoje, muitos alunos na universidade não sabem ler. Vi uma entrevista de Antônio Houaiss, acho que em Jô Soares. Houaiss dominava bem essa questão da língua. Ele comentou que nos Estados Unidos o americano médio (o que completa a universidade) domina um universo de 3.500 a 3.800 palavras. Um indivíduo com essa mesma escolaridade no Brasil domina menos de 900 palavras. Fiquei estupefato com essa informação. Se você não conhece uma língua, como pode pensar? Para pensar tem que ser através de uma língua. Esse talvez seja um dos processos mais violentos de asfixia do pensamento. Vivemos numa sociedade onde a condição de ler é proibitiva. E as pessoas estão fechadas com relação a essa questão. Tirando um pouco o exagero de Darcy Ribeiro, ele colocava isso muito bem quando dizia que aqui se gasta milhões para deseducar. Ele não falou isso irresponsavelmente. É tão forte essa afirmação, que às vezes a gente pode até pensar que seja pessimismo demais. Se você não tiver uma visão crítica, você não quer acreditar nisso, mas é verdade. Esse é um dos grandes crimes da nossa classe dominante. Toda a história da nossa classe dominante passa por uma frase que até virou título de tese do historiador Edgar de Decca: “O silêncio dos vencidos”. A única maneira de silenciar os vencidos, na história, é vedar a eles a capacidade de ler a sua própria história. E no Brasil os vencidos estão silenciados.
ZONA SUL – Estão tentando proibir até Monteiro Lobato...
TADEU – Pra você ver... Há pouco tempo fiz uma palestra no Instituto de Assistência à Saúde
do Servidor (IASS), em João Pessoa. O superintendente, grande amigo meu, reorganizou uma biblioteca que já existia, mas era como se não existisse, e me convidou. Fui chamado para falar sobre essa questão da leitura, do livro e da biblioteca. O grande crítico literário Haroldo Bloom, que também era professor de universidade, tem um livro chamado “Como e por que ler”. Ele dizia que um dos grandes crimes que a universidade cometeu, e concordo com ele, é que a universidade hoje tirou do aluno a vontade de ler. Não oferece mais aquela leitura prazerosa. Concordo. Às vezes a gente culpabiliza muito o aluno. Falo de cátedra, pois fui professor a minha vida toda. A primeira aula que dei foi em 1968. Hoje o que predomina é uma pedantocracia acadêmica, um bocado de pedante. Fazem esses doutorados chiques em Paris, Inglaterra, Alemanha e não sei o que mais – enchem a boca pra dizer isso. Às vezes um curso todo marcado pelo colonialismo cultural. Alguns chegam na universidade para dar suas aulas e nem na graduação querem ensinar. Se acham pesquisadores. Conheci de perto. Dar aula na graduação, para alguns desses, é coisa menor. Veja que visão. Pra mim era exatamente o contrário.
ZONA SUL – Mas você atuou também na pós-graduação...
TADEU - Minha experiência com pós-graduação não foi boa. O aluno já vinha com aquela visão preconcebida de que ele já sabe. Fica ruim para o professor tirar. Alguns estão fazendo o curso de pós-graduação quase que por exigência, mas não têm nenhum interesse. Às vezes vêm de áreas completamente desvinculadas com aquele contexto. Pra píorar, o professor joga uma apostila, que é uma coisa perversa. Às vezes é o capítulo de um livro que descontextualiza o pensamento do autor e, pior ainda, todo o conteúdo do livro. Às vezes, além de o texto estar descontextualizado, o professor o desconhece também. Isso é mais grave ainda. (Nessa hora o garçom comunica que finalmente o bar pode começar a vender cervejas. São 11 da manhã em João Pessoa. O professor pede uma “mofada”). O aluno, como diz Bloom, passa a odiar a leitura.
ZONA SUL – Como foi a sua transição de aluno para professor? Por favor, fale sobre a sua carreira acadêmica.
TADEU – Quando terminei o clássico, prestei vestibular para filosofia, em Recife. Fiz o curso na Universidade Federal de Pernambuco e vim para João Pessoa. Meus pais vieram morar aqui. Meu pai vendeu tudo o que tinha lá e veio para João Pessoa. Na época fiquei chateado porque queria que ficássemos em Recife. Hoje vejo que ele acertou. Recife, atualmente, é uma cidade terrível. Tenho um primo lá. A cidade ficou horrorosa no sentido de que transformou-se em uma metrópole com problemas gravíssimos. Pernambuco é um estado que estagnou. Meu pai acertou na mosca. Depois de vender tudo, colocou o dinheiro na poupança e veio para João Pessoa. Morreu tranquilo, sem nunca precisar de nada, com 93 anos. Quando cheguei, não podia ensinar, apesar de já ter o diploma. Não podia porque a ditadura estava tirando do currículo o ensino da filosofia e colocando em seu lugar organização social e política brasileira (OSPB) e educação moral e cívica. Na universidade implantaram a tal da EPB, estudos de problemas brasileiros. Eu queria ensinar. Os professores que ensinavam filosofia e sociologia foram absorvidos pelos colégios para lecionar outras disciplinas. Chegar para um colégio particular dizendo que era professor de filosofia era até crime. Eles já olhavam pra você como um possível comunista.
ZONA SUL – Como você superou esse impasse?
TADEU - Fiz outra graduação: geografia. Na época em que entrei na faculdade aqui na Paraíba, no final da década de 1960, início da de 70, tínhamos um dos melhores cursos de geografia do Brasil. A equipe era coordenada por um casal francês. Eles tinham uma metodologia fabulosa, a geografia humana. Quando entrei, a ditadura tinha colocado pra fora, em uma lapada só, quase todos esses professores. E tinha contratado praticamente todos os alunos do último ano do curso. Alguns até inexperientes. O mais grave é que o curso passou a ter nova metodologia, voltada para a geografia física. Isso me provocou uma decepção grande. Eu estava atrás daquela geografia humana. Mesmo assim tirei um grande proveito, mas me arrastei muito para concluir o curso, quase que não termino.
ZONA SUL – Enquanto isso você já lecionava?
TADEU – Sim, logo comecei a ensinar. Na época o estado tinha deficiência de professores. Resolvia contratando estudantes sob contrato de emergência, uma coisa assim. Esse aluno virava professor e ia ficando. Acho que na década de 1970 o governo fez um concurso e aproveitou praticamente todo mundo. Também dei aula em colégio particular, mais no interior, e fui professor de cursinho em João Pessoa e Recife durante vários anos. Minha vida toda foi como professor.
ZONA SUL – E o mestrado?
TADEU - Fiz mestrado aqui na federal da Paraíba, em filosofia da cultura. Na sequencia fiz doutorado na Universidade de São Paulo, na USP, de história econômica. Trabalhei muito tempo em universidade privada, e também na universidade estadual. De lá saí para a federal, depois de aprovado em um concurso para a Universidade Federal de Alagoas. Me aposentei por lá.
ZONA SUL – Durante quanto tempo você morou em Alagoas?
TADEU – Durante oito anos. Fui lá para montar uma pós-graduação.
ZONA SUL – Como foi lecionar durante a ditadura?
TADEU – Havia todo aquele policiamento ideológico e os cursos da área das ciências humanas eram muito fiscalizadas. Em 1978 participei de uma semana da educação, como convidado. Darcy Ribeiro também se fez presente. Todos os debates e palestras foram gravados e repassados aos órgãos de segurança para serem analisados e arquivados. Tive o prazer de receber de um colega esse material todo em forma de revista. Havia muita fiscalização. Marilena Chauí dizia que houve um período na universidade em que havia dois motivos para alguém ser contratado: ser competente ou dedo-duro. Esse era o melhor currículo para ingressar na universidade. Tirando os exageros, tínhamos bons professores. Mas às vezes eles sentiam receio. A leitura era um complemento. Lembro de um colega que tinha aquele livro de Che Guevara, “A guerra de guerrilhas”. Hoje você compra em qualquer supermercado de livros. Aliás, no Brasil a gente tem poucas livrarias e muitos supermercados de livros. Mas combinei com esse colega para ele me emprestar o tal livro de Guevara. Foi um problema. Marcamos às dez da noite, em uma praça de frente ao Palácio do Governo. A Praça João Pessoa. Ele trouxe o livro por baixo da camisa. Já era emprestado de outro. Eu não podia saber quem era esse outro, porque se fosse preso com o livro não tinha como denunciar. Ficamos conversando na praça e em determinado momento ele puxou o livro, me entregou e eu coloquei sob minha camisa. Saí de lá pra casa, lembro bem, parecia que estava levando uma bomba. Cheguei em casa, comecei a ler e amanheci o dia ainda lendo. Hoje tenho esse livro em casa, guardo até como recordação, e é um livro simples, datado. Trás orientações até singelas da vida de guerrilheiro. Se naquela época você fosse flagrado com esse livro, estava perdido. Nunca fui militante, mas li muito.
ZONA SUL – A ditadura o importunou em algum momento?
TADEU – Quando eu ensinava em cursinho, fui chamado duas vezes à Polícia Federal, junto com um colega, para receber conselhos. Sugeriram que não continuássemos debatendo alguns temas considerados inconvenientes pelo regime. Fui bem recebido. O delegado contou que eu e o meu colega havíamos sido denunciados por tematizar nossas aulas. Pediu que a gente evitasse porque aquilo poderia ser mal interpretado e tal.
ZONA SUL – Comenta-se que a educação perdeu muito em qualidade, no decorrer dos anos. Qual seria o motivo?
TADEU – Logo após a Segunda Guerra, falou-se muito em um mundo livre, em liberdade. Mas durou pouco, pois logo em seguida veio a Guerra Fria, que para mim se caracterizou como um período extremamente chato, com a divisão do mundo entre capitalismo, de um lado, e do outro o comunismo ou pseudo socialismo. Tudo indicava que o mundo continuaria divido assim. De um lado o bloco dominado pela ideologia da lógica do capital. Do outro o comunismo, a ditadura do proletariado. Diziam que esse cenário duraria até o fim do mundo. Foi preciso a queda do muro de Berlim para entendermos que isso não passava de duas ideologias fajutas. Nem existia comunismo e o capitalismo, na prática, era algo feroz e coisificante que, como dizia o próprio Marx, quebrava qualquer solidez. Nessa desossatura do que era sólido, quando tudo se desmanchou no ar, se inclui a educação. Todas as vezes em que se tentou discutir educação no Brasil foi em período de ditadura. Foi assim sob o patrocínio de Getúlio Vargas, quando o Estado Novo pensou em uma ideologia educacional, e também após o golpe de 1964. Antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação implantada em 1971, a educação era elitista. Só tinha acesso àquele acúmulo de conhecimentos, quem tinha tempo para estudar. Quando eu era aluno do Salesiano, para dar conta daquelas matérias, tinha que estudar o dia todo. Como era elitista, quem não tinha poder aquisitivo econômico bom, era excluído. Era uma educação profundamente elitista. Aliás, era uma escola profundamente elitista. É bom deixar bem claro: no Brasil nunca tivemos uma educação. Tivemos e temos escola. Podemos falar em reforma da escola, de educação, não. Basta ler a história do Brasil para ver que a classe dominante sempre foi sábia nesse sentido.
ZONA SUL – Quer dizer que essa fragilização do ensino foi e continua sendo premeditada...
TADEU – Acredito que é um programa. O próprio Darcy Ribeiro dizia isso. No Império, entre as primeiras escolas criadas no Brasil por Dom Pedro II estão o Instituto dos Cegos e o Instituto de Surdos e Mudos. Darcy Ribeiro - apesar de reforçar seu apreço e consideração com os cegos, os surdos e os mudos – dizia não entender essa preocupação toda com esses portadores de necessidades especiais enquanto quem via, falava e escutava não tinha onde estudar. Quer dizer, esse desapreço com a educação vem desde o Império. E olha que estamos falando sobre escola básica, quando o assunto é universidade, nem se fala. As primeiras escolas de ensino superior de direito criadas no país foram as faculdades de direito de Olinda e de São Paulo. Elas foram fundadas para formar quem? A classe dominante, os filhos da oligarquia falida do açúcar que não queriam trabalhar duro. Eles precisavam se formar para ascender a cargos públicos. Aliás, o funcionalismo público viria a ser a grande promessa do republicanismo. O conteúdo programático dessa escola de direito de Olinda era o pensamento positivista europeu. Os alunos saíam do curso com uma visão cultural europeia, sem conseguir enxergar o Brasil. Eles faziam uma leitura altamente europeia e preconceituosa. Somente na década de 1930 é que vamos ter os primeiros pensadores que foram capazes de tocar no tecido da realidade brasileira. Um dos que está nessa lista é Sérgio Buarque de Holanda, autor de “Raízes do Brasil”, um dos primeiros livros que “redescobre” o Brasil. Também é o caso de Gilberto Freire com “Casa Grande e Senzala”, Capistrano de Abreu com “Ensaios e estudos” e Euclides da Cunha, com “Os Sertões”.
ZONA SUL – Nessa relação caberia Câmara Cascudo?
TADEU – Claro que sim. Ele também foi um dos grandes intelectuais brasileiros. Não tive o prazer de conhecê-lo, mas possuo alguns dos seus livros e já li entrevistas e comentários a seu respeito. É uma figura que tem um trabalho muito sério e deu uma grande contribuição ao país.
ZONA SUL – Cascudo coletou todo o material para seus livros através de cartas e pesquisas pessoais. Mesmo hoje - com o auxílio da internet, do e-mail e de tantos outros recursos - seria difícil alguém produzir uma obra como a dele, imagine naquele tempo. O que ele teria produzido se fosse dessa geração? Mas, mudando um pouco de assunto, o que você diria a respeito do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que vem apresentando tantos problemas?
TADEU – Câmara Cascudo realmente tem uma obra vastíssima e importante. Sobre o ENEM, ele chegou a um ponto que suas avaliações terminam fazendo um perfil até burlesco. O aluno é completamente despreparado, não tem uma leitura de mundo sobre a realidade. De qualquer forma, como avaliação, é importante. Hoje em dia, por causa dessa sociedade globalizada, o conhecimento vem em kit, através dos grandes grupos econômicos. Esses grandes conglomerados determinam o que é ciência. Para um país como o Brasil, que é dependente tecnologicamente, isso é algo gravíssimo, porque somos obrigados a importar. Aí sofremos mais essa grande intromissão.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre sua mulher e seus filhos.
TADEU – Minha mulher, Maria Lindaci, veio de São Paulo para estudar em João Pessoa. Ela fez graduação em história. Foi quando nos conhecemos. Fez mestrado na área de educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Depois fez doutorado na área de educação. Ela trabalha com a importância da charge como instrumento educacional. Sua tese de doutorado foi muito elogiada. Vez por outra professores até da USP pedem cópia a ela. Hoje Lindaci está perto de se aposentar. Tenho um filho de 29 anos que seguiu a carreira militar: Paulo Roberto de Souza e Silva. Ele ajuda a comandar a polícia no sertão, na cidade de Curemas. É primeiro tenente, mas em breve será promovido a capitão. O outro filho, Flávio Rubens de Souza e Silva, tem 26 anos. Ele decidiu deixar o curso de direito no meio do caminho. Tem uma visão muito limitada da universidade. Acha que as carreiras formais não abrem espaço nenhum. Sempre disse que não gostaria de fazer concurso para burocrata. Gosta de estar no campo. Aproveitou essa abertura que o governo deu e está construindo casas populares. Tenho uma filha, Maitê de Souza e Silva, com 22 anos. Ela terminou enfermagem na universidade federal e agora está complementando o seu grande sonho: cursar medicina. Na época, com medo de não passar no vestibular, preferiu fazer enfermagem. Essa é a minha família.
ZONA SUL – Como grande leitor que você é, que livros classificaria como imprescindíveis de ler?
TADEU – É fundamental, até para a formação do cidadão, uma releitura ou até uma leitura dos clássicos da nossa literatura. Existe hoje um grande número de novos autores. Mas os clássicos são imprescindíveis. Leio ficção muito devagar. Prefiro o gênero dos diários, do memorialismo. Essa pe a leitura prazerosa que faço hoje. Porém, não deixo de acompanhar os novos autores através de publicações como a revista Cult. Ela sempre trás dossiês sobre o que de novo é feito na literatura. Aos 63 anos, minha leitura agora é mais exigente. Procuro ler algo que, além de me dar prazer, me ofereça certa solidez para esse percurso que me resta. Parafraseando Guimarães Rosa: há um certo tempo na vida em que devagar já é ligeiro. Estou exatamente nesse trecho. Por mais devagar que eu queira ir, estou notando que a vida está me empurrando com muita velocidade. Então a leitura tem que ser prazerosa e que me possibilite viver e morrer com dignidade.
ZONA SUL – Deixe um recado pro leitor do Zona Sul.
TADEU – Tomo como exemplo Jorge Luiz Borges. Até mesmo pela sua condição física - uma cegueira precoce - ele substituiu o mundo real pelo mundo onírico. Mas não foi uma simples substituição. Para ele o que era ficção era esse mundo que conhecemos como real. A verdade estava nos livros, a sua paixão. Havia muito mais verdade, ele descobria muito mais verdade na condição de cego. Então é bom que se diga que nós também estamos cegos diante de um processo que provocou em nós uma desossatura interior. Perdemos essa condição de humanidade do homem. Nós não construímos o nosso etos, vivemos em uma sociedade que nos impede. Da mesma maneira que Borges foi capaz de descobrir a partir da leitura, da ficção, uma realidade que deu um sentido à sua existência, nós também podemos construir uma consciência de mundo a partir não só da redescoberta, mas da descoberta da leitura. Seria esse meu conselho para o leitor do Zona Sul: a leitura como instrumento não só de formação, mas instrumento produtor de uma consciência de mundo.