quinta-feira, 21 de julho de 2011

Entrevista: Josenir Melo

O CINEGRAFISTA DE CHICO MENDES

Luiz Josenir Melo da Silva nasceu no ano de 1966, mais precisamente no dia 11 de abril, na
cidade de Tarauacá, na fronteira do Acre com o Peru e a Bolívia. Repórter cinematográfico responsável pela maior parte das imagens gravadas com o seringalista Chico Mendes, Josenir foi sabatinado para essa entrevista por uma equipe já conhecida do leitor do Zona Sul. De Brasília: eu, a jornalista Myriam Violeta e os repórteres fotográficos Waldemir Rodrigues e Roque de Sá. De Natal, ao vivo pelo Twitcam, Roberto Fontes. Os hoje entrevistadores Waldemir (junho/07), Roque (maio/11), Myriam (janeiro/10) e o meu xará Roberto (maio/09) já sentaram na cadeira de entrevistado do jornal. Josenir se esquivou bastante até ser convencido a falar para o Zona Sul. Mas quando ele abriu a boca, quase não parou mais de falar. A transcrição dessa e das demais entrevistas pode ser encontrado no site http://zonasulnatal.blogspot.com/ (robertohomem@gmail.com)


JOSENIR – Se eu soubesse que tinha esses salgadinhos, sucos de várias frutas, vinho e cerveja tinha vindo antes...
ZONA SUL – Pode ir comendo e bebendo enquanto conversamos...
JOSENIR – Pois não, meu rei, estou à disposição.
ZONA SUL – Sua família é de onde?
JOSENIR – Meus avós são do Ceará. Meus pais nasceram no Acre. Meu avô foi soldado da borracha. Deixou sua terra para trabalhar nos seringais da região Norte. Na II Guerra o Brasil assinou um acordo com os Estados Unidos para fornecer borracha. Meu avô foi um daqueles homens que, entre os anos de 1943 e 1945, foram alistados e transportados para a Amazônia para trabalhar nos seringais. Meus avós achavam que um dia retornariam ao Nordeste. Naquela época, a propaganda do governo dava duas opções: ir para a guerra, para o fronte de batalha, ou ir cortar seringa na região Norte. Minha avó chegou no Acre novinha. Naquela região tinha
muitos índios. Os soldados da borracha desbravaram grande parte da Amazônia. Diferente de hoje, que a borracha é prensada, naquele tempo ela era defumada. Era um processo complicado. O combustível que se usava para produzir a fumaça era o coco do mato. O carvão dele tem mais resistência que o carvão comum. Só que essa fumaça é mais prejudicial à saúde, exala uma substância muito tóxica. Vários seringueiros ficaram cegos sem nem saber que a causa foi a fumaça. Naquela época, nos seringais, não se usava dinheiro. Tudo era na base da troca. Isso impedia o seringueiro de voltar para a sua terra, pois quando ele chegava com a borracha, já estava precisando de óleo, sal, pólvora, chumbo e munição para poder matar sua caça e sustentar a família. Meu pai, Francisco Porfírio da Silva, também foi seringueiro e vítima desse sistema.
ZONA SUL – E a sua mãe?
JOSENIR – O pai de minha mãe era seringalista, era o patrão. Minha mãe, Teresinha Melo da Silva, estudou: se formou em Pedagogia... Meu pai é analfabeto. Meus pais viveram aquela história de amor comum na literatura: a filha do rico com o filho de um pobre. Fugiram para ficar juntos. Naquela época era comum o casal fugir quando os pais não aceitavam o relacionamento. A convivência normal só voltava com o passar do tempo. Meu pai costumava caçar na floresta. Mesmo sem bússola e sem GPS, nunca se perdeu. Minha mãe se apaixonou quando o viu tocar violão em uma festa, no seringal. Sou o filho mais velho. Os outros são Gilsenir, Samuel (Samuca), Suely e Ismael. Meu pai acordava às 4 da manhã, comia uma farofa de carne, pegava sua faquinha de seringa, o balde de leite, o sapato de seringa e saía pra estrada. Nós permanecíamos dormindo.
ZONA SUL – Quais suas primeiras lembranças da época de criança?
JOSENIR – Eu tinha 12 anos quando a televisão chegou em Tarauacá. Tínhamos chegado há pouco tempo na cidade.
ZONA SUL – Mas você não nasceu em Tarauacá?
JOSENIR – Nasci. Meus pais moravam em um município chamado Jordão. Quando eu estava para nascer, minha mãe, como filha de seringalista, resolveu que o parto seria em um hospital. Em Jordão as crianças nasciam das mãos das parteiras, não tinha hospital. Só que não deu tempo: antes de chegar no hospital de Tarauacá, no meio do rio, em um barco, nasci através das mãos de uma parteira.
ZONA SUL – A sua primeira lembrança foi quando chegou a TV em Tarauacá? Não lembra das brincadeiras de criança?
JOSENIR – Lembro, mas a televisão me marcou mais. Minha família era humilde, pobre mesmo. Brincar com outras crianças significava pegar uma lata de leite em pó, encher de barro, furar a tampa e o fundo, colocar um arame por dentro, amarrar, e sair puxando. Não tive bicicleta ou velocípede... Brinquei de cavalo de pau com o cabo de vassoura. Encontrar uma jante de bicicleta era uma festa. Com uma vareta, saía empurrando a jante, correndo, feliz da vida. Meus pais foram bastante rígidos. Se minha mãe estivesse conversando com uma vizinha, a gente não podia passar no meio das duas. Até hoje a gente toma a benção. Apanhei muito. Agradeço à minha mãe, que foi quem me bateu mais. Agradeço mesmo. Se os filhos de hoje soubessem o resultado que tem a disciplina, como eu tive, dariam muito valor a levar uma surra e talvez até lutassem por isso. (risos).
ZONA SUL – Você morou em Tarauacá até qual idade?
JOSENIR – Até os 15 anos. Quando minha mãe viu os filhos crescendo e percebeu que não tínhamos futuro ali, resolveu vender a casa e, com o dinheiro, mudar para a capital. Meu pai não quis ir. Ela disse: “então você fica: quem quiser me acompanhar, me acompanhe”. Eu fui, meus irmãos todos também. Graças a Deus e à minha mãe hoje estou em Brasília.
ZONA SUL – Seu primeiro emprego, em Rio Branco, foi na área do jornalismo?
JOSENIR – Antes de responder, me deixe voltar um pouco no tempo. Aos 12 anos, quando descobri a televisão, senti que era aquilo que queria pra mim. Meus pais são evangélicos, da igreja Batista. Meu pai falou logo para eu me afastar da televisão. O pastor tinha dito que “isso é
coisa do demônio, que está chegando para levar as crianças”. Quando a família ia para a igreja, no domingo, eu sentava sempre no último banco. Era só o pastor começar o culto que eu fugia para a emissora, quando todos baixavam a cabeça para orar. O cara que trabalhava lá morava na minha rua. Pedi para ele me ensinar. Nas primeiras idas, meu pai ia me buscar na TV armado com um pedaço de madeira. Quando ele batia na porta, eu já tremia todo. Meu pai me arrastava para casa, puxando pelo braço. Certo dia, meu primo, João Melo, sugeriu que eu fosse trabalhar, pela manhã, em uma olaria. Meus pais saíam de casa antes das seis da manhã. Fui trabalhar escondido. Eu pegava o salário e dava ao meu pai, dizendo que tinha recebido da televisão. A pessoa que morava com minha mãe e tomava conta de nós era minha cúmplice. Eu voltava da olaria às 11 e meia. Tomava banho, almoçava e ia para a escola. Essa moça tirava todo o barro da minha roupa e dos meus chinelos, para ninguém perceber que eu estava trabalhando em uma fábrica de tijolos. Na olaria, na hora do lanche, os outros comiam salgadinho e tudo o mais. Eu ficava pelos cantos, sem comer, para poder sobrar dinheiro e eu dar a meu pai. No primeiro mês, na hora do jantar, fiquei com o salário no bolso da bermuda tentando criar coragem para entregar o dinheiro a ele. Quando mostrei as notas, meu pai perguntou se eu tinha roubado. Respondi que o homem da televisão tinha me pagado para eu trabalhar lá. Pedi permissão para continuar por lá. Ele disse que não, que eu era muito pequeno para trabalhar com aquilo. Mesmo assim, fiquei dos 12 aos 15 anos fazendo isso. Com o tempo ele foi se acostumando e deixando. Mas apanhei muito do meu pai pra poder seguir essa profissão que eu sempre quis. De manhã eu ia para a olaria, à tarde para a escola e à noite para a TV.
ZONA SUL – Você seguiu a religião dos seus pais?
JOSENIR – Sim, mas não deixei de ir à televisão.
ZONA SUL – O que lhe encantou na televisão?
JOSENIR – Aquelas pessoas andando e falando dentro daquela caixa. Eu quase colava minha vista na tela da TV para tentar descobrir aquela mágica.
ZONA SUL – Quando sua situação na TV engrenou mesmo?
JOSENIR – A Globo gerava sua programação para a Rede Amazônica, que retransmitia para a TV Acre, em Rio Branco. Lá eram feitas cópias das fitas e enviadas para o interior. Eu recebia essas cópias para passar na TV de Tarauacá. Às vezes acontecia de a fita não chegar e a gente ter que passar durante vários dias o mesmo capítulo de uma novela, por exemplo. Na emissora eu fazia o controle mestre: pegava a fita U-matic e colocava no ponto. Até o cheiro da fita que saía de dentro da máquina, quando o cabeçote girava, era gostoso. Era emocionante saber que um monte de gente estava assistindo aquilo. Compensava o fato de eu não receber nada por aquele trabalho. Eu trabalhava porque queria aprender. Depois que desmistifiquei a mágica de como era transmitida a imagem, eu quis mais: saber como era o processo para produzir aquela fita. Quando minha mãe falou que íamos pra Rio Branco, fiquei muito feliz. Era a chance de eu descobrir o que queria. Em Tarauacá nunca ninguém tinha aparecido sequer com uma filmadora.
ZONA SUL – Foi fácil conseguir alguma coisa na TV, em Rio Branco?
JOSENIR - Em Rio Branco eu tinha contato com os diretores da emissora, pois falava todo dia com eles através do rádio amador. Poucos dias após chegar à capital, fui à TV Acre. Apresentei-me como Tarauacá, pois era conhecido assim através do rádio amador. Contei que já tinha 15
anos e que queria trabalhar. A diretora disse que tinha um técnico de Manaus desmontando a torre antiga e, ao lado, erguendo uma nova mais moderna e mais alta. Perguntou se eu topava ajudar, em troca de alguns trocados. Topei. O problema é que eu tinha começado a trabalhar como office-boy de uma empresa. Estava com um monte de contas para pagar no banco. Encostei a pasta com os documentos e fui ajudar o cara. Só no final da tarde lembrei que tinha que voltar para o outro trabalho. Quando cheguei lá, sem ter pagado sequer uma conta, fui demitido. Fui irresponsável por ter feito isso, mas eu não podia perder a oportunidade. Era o que eu queria. Depois de uma semana, abriu a Rádio 98 FM, do mesmo grupo. Um técnico tinha colocado a emissora no ar, mas não tinha quem a operasse. A diretora perguntou se eu sabia fazer aquilo. Respondi que sim. Meu pai tinha uma vitrola Rouxinol, de alta fidelidade. Era muito fácil pegar o braço e botar em cima da música. Não tinha locutor, não tinha programação, não tinha nada. Era só pra tocar música. Fui pra lá e tome música. Poucos dias depois, o único cinegrafista da TV Acre – ele fazia todas as reportagens e ainda filmava o jornal ao vivo, à noite – foi filmar uma corrida de motocross e, mal posicionado, foi atropelado por uma moto, com câmera e tudo. O dono da TV chamava-se Tufi Asmar, um turco. Era muito duro com funcionário, muito rígido. Esse cinegrafista foi demitido.
ZONA SUL – O azar dele foi a sua sorte.
JOSENIR - Fiquei na expectativa de me chamarem, até que perguntaram se eu sabia fazer o jornal. Quando a rádio saía do ar eu corria pra TV e colava nesse cinegrafista. Já tinha aprendido um bocado. Eu ganhava muito pouco na rádio. Uma coisinha que dava pra pagar o ônibus. Disse que sabia fazer o jornal. Foi assim que comecei.
ZONA SUL – Qual foi o passo seguinte?
JOSENIR – Fui para a TV Aldeia, retransmissora da Cultura. Por ser uma emissora governamental, a Aldeia dava muita ênfase para o pessoal do campo. Por isso tinha proximidade com Chico Mendes. As outras emissoras, como a Globo, tinham programação local com espaço reduzido. Devido a esse contato, me tornei amigo de Chico Mendes. Ele sofria ameaças de morte e procurava se proteger pedindo para a gente gravar o que ele falava. Essas filmagens geralmente eram feitas em locais afastados da cidade, na floresta. Enquanto caminhávamos, ele contava o que estava acontecendo e previa sua própria morte. Certa vez ele contou que os dois seguranças que o acompanhavam não eram suficientes para garantir sua proteção. Disse que o cara que tinha lhe jurado de morte iria matá-lo realmente.
ZONA SUL – Esse material que você gravou com ele foi para a TV Aldeia?
JOSENIR – Esse material gravado no Acre, no Seringal Cachoeira, na terra onde Chico Mendes morava, em Xapuri, foi gravado por mim como funcionário da TV Aldeia.
ZONA SUL – Todas as filmagens de Chico Mendes no Acre foram feitas por você?
JOSENIR – Foram feitas por mim. Todas as imagens, que circulam, feitas no Acre, são minhas. Não são minhas as filmagens da ida dele para os Estados Unidos e para o Rio de Janeiro. O material principal do Acre eu filmei, como os depoimentos dele sobre a floresta. Acompanhei até algumas lutas travadas por ele para preservar a natureza. Acompanhei Chico Mendes em idas a acampamentos de pessoas contratadas pelos fazendeiros para desmatar. Ele chegava e surpreendia aquelas homens armados. Até eu cheguei a usar arma.
ZONA SUL – Qual arma? Carregada?
JOSENIR – Um revólver 38, carregado.
ZONA SUL – Chico Mendes usava arma?
JOSENIR – Que eu saiba, não. Usava apenas facão, essas coisas. Só arma branca. Arma de fogo, não. No dia em que o mataram, eu estava na TV, me preparando para ir pra casa. O telefone tocou: “mataram Chico Mendes”. Estava uma chuva, um baita de um toró...
ZONA SUL – Como você, que era amigo dele, recebeu a notícia?
JOSENIR – A primeira coisa que me veio à cabeça foi que aquela era uma morte mais do que anunciada. A sensação era de que eu já sabia que aquilo aconteceria. A tristeza e a emoção foram muito fortes, mas não foi surpresa. Várias vezes comi com Chico Mendes. A gente sentava no chão de uma casa de paxiúba, e fazia a refeição. Todo mundo junto. Eu esperava que ele fosse assassinado, mas não sabia do impacto que a morte dele ia causar no mundo inteiro. Ele era um cara simples que aparecia de chinela na televisão.
ZONA SUL – Chico Mendes tinha noção do que representava?
JOSENIR – Acho que não. Acho que ninguém tinha.
ZONA SUL – Ele cresceu depois que morreu?
JOSENIR – Sim. Ele transformou-se em um mártir. Logo que recebi a notícia da morte dele,
embarquei em uma Caravan velha, o único carro que a TV Aldeia tinha. Fomos apenas eu e o motorista Ruizemar, de Rio Branco para Xapuri. Percorremos os 150 quilômetros de estrada de chão com muita lama e atoleiro em cerca de uma hora e meia, duas horas. Estava chovendo muito. Não levamos repórter porque todos já tinham ido embora, na hora que a notícia chegou. Fui o primeiro repórter cinematográfico a chegar ao local onde mataram Chico Mendes. O clima ainda era de medo. Acreditavam que o assassino ainda estava escondido nas proximidades. Estava muito escuro, acendi a luz na cozinha, local onde ele tinha tombado. Já tinham tirado o corpo dele, mas permanecia lá o sangue no chão e na toalha que usaram para enxugá-lo. Levaram Chico Mendes para o hospital, tentando evitar sua morte. Depois que recebeu o tiro, ele ainda sussurrou algumas palavras para a esposa.
ZONA SUL – O que ele disse?
JOSENIR – “Me acertaram”. Falou isso para Ilzamar, a sua mulher, que também estava lá. O clima era de estupefação. Eu botava a câmera com a iluminação pra fora e as mulheres mandavam eu apagar, com medo de que atirassem de novo. O clima era esse. Foi uma noite horrível. O crime gerou uma revolta grande entre nós que gostávamos dele. O sentimento era o de pegar quem tinha feito aquilo. De vingar aquele assassinato.
ZONA SUL – Onde estão as imagens que você fez nessa noite?
JOSENIR – Um jornalista e produtor chamado Edilson Martins, que tem uma produtora no Rio, estava no Acre, nessa época. Ele disse ao diretor da televisão, que era seu amigo, que as imagens que eu tinha feito de Chico Mendes dariam um excelente material, se fosse bem editado e produzido. Esse cara se ofereceu para fazer a edição no Rio de Janeiro, já que a TV Aldeia não tinha boas condições técnicas.
ZONA SUL – Mas as imagens que você fez chegaram a ser noticiadas localmente, através de matérias...
JOSENIR – Sim.
ZONA SUL – Existe alguma forma de provar que essas imagens foram feitas por você?
JOSENIR – Quem conhece a minha história sabe que sou o autor das imagens. Também tenho muitas outras provas de que as imagens são minhas. Como eu era apenas um repórter cinematográfico, não participei da combinação que Edilson fez com a direção da TV para levar esse material até sua produtora, no Rio de Janeiro. A promessa de devolver as filmagens para o Acre nunca foi cumprida. Ele editou minhas imagens e as transformou em vários documentários. O primeiro foi “Amazônia: A última fronteira”. Depois veio “Chico Mendes: Um povo da floresta”. Em seguida vieram outros.
ZONA SUL – Todas as imagens desses documentários são suas?
JOSENIR – Todas as imagens feitas no Acre são minhas.
ZONA SUL – Você foi remunerado pela produtora para ceder os direitos autorais desse material?
JOSENIR – Não fui remunerado e nem fui creditado.
ZONA SUL – Os documentários citam a TV Aldeia como a emissora que cedeu as imagens?
JOSENIR – Não.
ZONA SUL – A produtora foi procurada por você ou pela TV para negociar um acordo? Vocês abriram processo contra ela?
JOSENIR – Procurei Edilson, no Rio de Janeiro.
ZONA SUL – O que ele respondeu quando você o procurou?
JOSENIR – Viajei até o Rio de Janeiro depois de ser incentivado por alguns amigos. Esses colegas alertavam que, enquanto eu sobrevivia com precárias condições financeiras, em Rio Branco, Edilson Martins estava ganhando muito dinheiro negociando para o mundo inteiro as
imagens que eu fiz. Ele morava em Santa Tereza, no Rio. Fui lá pouco tempo depois de ter completado um ano da morte de Chico Mendes. Quando ele atendeu o meu chamado pelo interfone do apartamento onde morava, me identifiquei: “sou Josenir, do Acre, vim acertar os direitos autorais das imagens que produzi de Chico Mendes”. Ele disse que estava descendo e pediu que eu aguardasse um pouco. Quando desceu, estava usando chinela, bermuda, camiseta regata e uma bolsa que parecia vazia. Passou por mim quase correndo: “depois falo contigo, estou apressado”. Ele pulou no bonde que vinha descendo e foi embora. O porteiro do prédio comentou: “nunca vi o seu Edilson assim, ele nunca sai de bonde, o carro dele está na garagem”. Voltei para o Acre de mãos abanando.
ZONA SUL – Por que você não recorreu à Justiça?
JOSENIR – Era inviável, na época, pois eu não tinha como contratar um advogado. A minissérie “Amazônia”, escrita por Glória Perez, rodada no Acre, em 2007, também exibiu imagens minhas no penúltimo ou no último capítulo. Não tive a chance nem de ficar com cópia das imagens. Ele levou tudo.
ZONA SUL – Chico Mendes merecia a fama que adquiriu depois que morreu?
JOSENIR – Merecia. Ele era um cara trabalhador e corajoso. Chico Mendes sabia que ia morrer. Outros, antes dele, pelo menos uns dois, também sabiam e morreram.
ZONA SUL – Depois disso, o que mais você fez de expressivo na TV Aldeia?
JOSENIR – Em 1989, se não me falha a memória, idealizei a primeira cobertura ao vivo do Acre. O carnaval de Rio Branco, além das festas nos clubes, incluía desfile de escola de samba e de blocos. A TV ficava na mesma quadra da avenida, onde o desfile era realizado. Quando sugeri que transmitíssemos ao vivo, fui chamado de doido. A direção só topou quando eu me comprometi a arranjar os cabos e toda a estrutura necessária. Como a emissora não tinha dinheiro para comprar nada, saí pedindo nas lojas. Tantos metros de cabo de áudio, tantos metros de cabo de vídeo, conector RCA... Peguei aparelhos de televisão emprestados pra usar como monitores, na rua. Em troca a gente podia falar o nome e entrevistar os comerciantes... Mas nada de dinheiro, só permuta. Formei a equipe, puxei uma série de cabos, defini a localização das três câmeras... O corte era seco, não tinha mesa, não tinha efeito, nem nada. Joguei quatro microfones na mesa de áudio. Esquematizei tudo, me reuni com a equipe que ia trabalhar na avenida, com os âncoras e com a equipe do estúdio. Essa primeira transmissão ao vivo no Acre obteve sucesso e audiência totais.
ZONA SUL – Parabéns!
JOSENIR – O melhor é que essa cobertura me rendeu um emprego. Duas pessoas de Natal estavam acompanhando tudo, sem eu saber. Nadja Farias e Carlos Lacombe tinham sido contratados para montar uma retransmissora do SBT. Eles me viram correndo de um lado para o outro, resolvendo pane em cabo, operando áudio, fazendo corte, falando com repórter... Quem estava em casa nem percebeu o sufoco que foi. Os dois, na arquibancada, acompanharam tudo. Terminado o carnaval, Lacombe me convidou para uma conversa. Propôs que eu selecionasse todo o quadro técnico da nova emissora: 42 pessoas. Topei ser o diretor de operações e iniciei o processo de construção da nova televisão. Filas de gente se formara, à procura de emprego, depois que anúncios foram publicados nos jornais. Fiz as entrevistas e treinei os selecionados.
ZONA SUL – Você tinha alguma experiência em capacitar profissionais para a TV?
JOSENIR – Na TV Aldeia já tinha ensinado a dois dos meus irmãos: Samuca, que trabalhava em um dique de lavar carro e Gilcenir, empregado de uma serralheria. Gil fazia grades, portões e janelas. Mexia com solda pesada. Passava o dia inteiro soldando e à noite mal conseguia dormir, com os olhos ardendo. Minha mãe colocava o colírio mais forte para anestesiar. Mesmo assim, a princípio ele resistiu, achando que não conseguiria aprender aquela nova profissão. Mas conseguiu. Tentei levar minha irmã, mas ela era muito nova e não queria saber de assumir responsabilidades. Gil ficou como meu auxiliar. Depois veio o Samuca. No lava-jato ele ficava com as costas peladas, de tanto se expor ao sol quente para ganhar uma mixaria. Também entrou na TV Aldeia como auxiliar. Quando fui pra TV Rio Branco, Gil e Samuca me acompanharam. Eles ficaram nas duas emissoras. Só que, em 1990 apareceu outro empresário me convidando para participar da instalação de uma TV maior do que a que eu estava trabalhando.
ZONA SUL – Qual emissora foi essa?
JOSENIR – A TV Gazeta, que hoje retransmite a Record, mas na época era repetidora da Manchete. Repeti o trabalho que tinha feito para a TV Rio Branco, mas recebendo o dobro do salário. Samuca foi comigo e está na emissora até hoje, como correspondente em Brasília. Fiquei 12 anos lá. Como diretor de produção eu fazia de tudo. Mas eu não gostava de ficar entre quatro paredes. Queria mesmo era prosseguir naquele sonho de criança de estar na rua, filmar a cena. Certo dia ligaram para a emissora denunciando que tinha um cara derrubando casas com gente dentro, utilizando uma motosserra. O fato se dava em um bairro chamado Belo Jardim, próximo de Rio Branco. Era finalzinho de tarde, em 1991. Fui com a repórter Alcinete Damasceno. A TV Gazeta de Rio Branco tinha apenas um ano de existência. Peguei uma câmera de mão pequena super-VHS, duas baterias e três fitas. Coloquei no bolso, pulei na garupa da moto e fui. Era uma XL. Quando chegamos em determinado lugar, não dava acesso. Deixamos a moto e saímos a pé, nos guiando pelo barulho da motosserra lá ao longe.
ZONA SUL – Esse local ficava na floresta?
JOSENIR – No meio do mato. Ao passarmos por uma casa, uma mulher aconselhou a gente a voltar, pois poderiam nos matar. Ela contou várias casas já tinham sido derrubadas e outras ainda seriam destruídas. Um fazendeiro alegava que aquela terra era dele. Fiquei nervoso, mas como já estava lá, não podia perder a oportunidade. Encontrei uma plantação de macaxeiras. Desse macaxeiral dava para ver alguma coisa: a movimentação, gente, a fumaça da motosserra... Como a câmera não tinha um zoom muito bom, e a imagem estava saindo tremida por eu estar nervoso, tomei coragem e resolvi chegar mais perto. Ao me aproximar, vi policiais. A repórter começou a fazer perguntas enquanto eu continuava gravando tudo. O momento principal foi quando registramos o maior desespero em uma casa que estava sendo derrubada. A repórter entrevistou o cara da motosserra. Ele disse que ia derrubar porque tinham mandado. A polícia falou que estava lá para dar segurança ao cara da motosserra. Havia uma ordem judicial. Naquela época o Acre era violento mesmo. E a câmera registrando. Fiz a cena de uma mulher desmaiando. Naquele suplício todo, o capataz do fazendeiro que se dizia dono das terras disse que seu patrão estava nos chamando na sede da fazenda.
ZONA SUL – Que situação!
JOSENIR - Eu tinha acabado de trocar uma fita e de pedir a uma senhora para segurar. Umas 30 ou 40 pessoas alertaram que se fôssemos, seríamos mortos. Mas não tinha como recusar, o capataz estava armado. Entrei na caminhonete. Deixei a câmera rodando, apontada para o jagunço. Andamos uns oito quilômetros no meio da floresta. O carro parou e o fazendeiro apareceu, montado em um cavalo. Ele falou: “Com ordem de quem estão gravando na minha propriedade?”. Neguei alegando que não podia dar a fita porque não era minha, era da emissora. Ele apeou do cavalo e veio pra cima. “Você está me desafiando?”. Tomou a câmera da minha mão, arrancou o facão da bainha, tirou a fita, quebrou a câmera e estripou a fita. Mandou a gente ir embora. “Se sair uma linha na imprensa, você é um homem morto”. Fomos embora. Quando cheguei na TV a matéria já estava editada. A senhora a quem eu tinha entregue a fita já tinha levado para a emissora. Pedi ao chefe: “não faça isso, pois serei um homem morto”.
ZONA SUL – O negócio era você pedir demissão e fugir. (risos)
JOSENIR – A Rede Manchete tinha um programa jornalístico chamado Documento Especial. A produção soube do acontecimento e pediu cópia do material. A Manchete enviou a Rio Branco uma equipe do programa para fazer um episódio só sobre o assunto. Eu e o Samuca fomos escolhidos como os cinegrafistas dessa produção. Pensei: agora eu morro. Mas, graças a Deus, a gravação foi tranquila. Na hora da exibição do programa, em rede nacional, gerado em São Paulo, apagou a luz no bairro todo da Manchete em Rio Branco e ninguém assistiu. Deu pane na EletroAcre. Essa matéria de Belo Jardim me rendeu um prêmio Líbero Badaró. Em 1991 fui contemplado com o prêmio destaque do ano de melhor repórter cinematográfico do país. As grandes emissoras concorreram com muito material bom. Eu lá no Acre, no cantinho da Amazônia, fui o grande vencedor. Foi mais uma porta pra que as coisas deslanchassem. Depois desse, vieram prêmios locais, no Acre, que ganhei com outras reportagens.
ZONA SUL – Você nunca pensou em ser repórter?
JOSENIR – Não. Meu negócio é a imagem. Como já dizia o ditado: uma imagem vale mais do que mil palavras. Eu não preciso falar mil palavras se tenho uma imagem que é mais rápida e fiel ao fato. Mais direta e prática, ela fala por si própria. Prefiro criar do que ficar diante das câmeras. Ser sensível e criativo, quando se pode fazer isso, pra mim já tá bom.
ZONA SUL – Como foi sua vinda pra Brasília.
JOSENIR – Eu buscava coisas novas, como tecnologias e emissoras de grande suporte. Sempre desejei, e continuo desejando, aprender mais. No dia em que eu voltar para o Acre quero ter o máximo de experiências possível para poder transmitir aos meus colegas e às emissoras onde eu for eventualmente trabalhar. Brasília é um grande centro. A TV Senado, onde trabalho atualmente, está sendo uma excelente escola.
ZONA SUL – Você veio para Brasília com emprego garantido?
JOSENIR – Não. Vim de férias, em 2007. Aproveitei para deixar currículos na TV Senado, na TV Câmara e em outras emissoras. Naquela ocasião fiz um frila, na TV Senado, cobrindo férias
de um cinegrafista. Gostaram do meu trabalho. Quando voltei para o Acre, muita gente já estava sabendo que eu tinha trabalhado na TV Senado. Insistiram que eu tinha potencial e devia voltar para Brasília. Segui o conselho, voltei e fiquei mais quatro meses cobrindo férias. Nesse ínterim, dois repórteres cinematográficos foram demitidos da emissora. Duas vagas foram abertas. Como eu já estava cobrindo férias e precisavam da contratação imediata, fui um dos escolhidos.
ZONA SUL – O Correio Braziliense lhe acusou de ser afilhado de Tião Viana na contratação pela TV Senado.
JOSENIR – Pois é, ocuparam uma página todinha com essa informação deturpada. É lamentável isso ocorrer em um jornal de grande circulação. Essa matéria foi reproduzida por muitos outros veículos. Porém, o texto era tão inconsistente que aquela matéria tornou-se positiva. Pude falar da minha trajetória profissional, dos vários prêmios que recebi, do meu currículo. O repórter colocou na matéria. Quem não sabia, por exemplo, que eu tinha um prêmio Líbero Badaró, ficou sabendo.
ZONA SUL – A denúncia foi uma forçação de barra terrível, bem típica do Correio Braziliense. O texto diz que a empresa que terceiriza a contratação de funcionários para a área de comunicação social do Senado foi trocada por outra e que essa outra empresa teria mantido você na vaga de cinegrafista por supostamente ser apadrinhado por Tião Viana. O jornal só omitiu que todos os cinegrafistas ficaram. Nenhum sequer foi trocado. O leitor mais desavisado pode até acreditar.
JOSENIR – Na verdade tentaram me usar para atingir o senador.
ZONA SUL – O que você destacaria nesse período de TV Senado?
JOSENIR – Quando fui contratado, disse à editoria dos telejornais que além de ser repórter cinematográfico eu também editava. Fizeram uma experiência comigo. Editei material de algumas viagens. A partir daí virou rotina, quando se viaja, oferecer ao cinegrafista a alternativa de ele editar o seu material. Assim a cobertura fica mais factual, mais ágil. Outros colegas se interessaram e já estão fazendo isso. Outros me criticaram, alegando que não é função de repórter cinematográfico. Mas eu respondo que faço porque gosto.
ZONA SUL – Hoje o profissional não pode ser mono, tem que ser multi.
JOSENIR – O cinegrafista que cobre eventos ou filma reportagens é o mesmo que faz a entrevista de um senador em seu gabinete. Nos tornamos repórteres cinematográficos mais completos. O que tocar, a gente tem que dançar. Fazemos um pouco de tudo. Na TV Senado eu destacaria os programas do Repórter Senado. São gravações de campo. O Parlamento Mercosul também é muito gratificante cobrir. Você viaja, conhece lugares, conhece pessoas, conhece línguas. Além da vantagem de eu poder editar o meu material, já gravar sabendo o que vou usar nessa edição. É gratificante estar no Uruguai e assistir na TV Senado, pela Internet, o material que gravei naquele dia ser veiculado pelos jornais da emissora.
ZONA SUL – Como é cobrir as reuniões da CPI da Pedofilia? Você viajou muito pelo Brasil para isso?
JOSENIR – Fui a umas quatro viagens dessas. Têm coisas que sequer podemos comentar. Ficamos só nós, os senadores da comissão, as autoridades e os acusados. A reunião é gravada na íntegra. Mas tem coisas que não podem ser tornadas públicas. Eu diria que é muito cansativo e chocante. Não é fácil ficar cara a cara com um pedófilo, ao mesmo tempo em que vemos um pai ou uma mãe chorando porque sua filha foi estuprada. É comovente até para quem está ali realizando um trabalho. Por outro lado, é uma experiência a mais. Aprendi muito nessas coberturas.
ZONA SUL – Você tem quantos filhos?
JOSENIR – Tenho sete filhos: Liliane, Luiz Josenir Júnior, Rawy Kennedy, Sthefany Lawanne, Felipe Basley, Gabriel Eduardo e Fabrício. Comecei muito cedo, mas já terminei. Vou fazer vasectomia. Minha mulher é Rosuley Durales Dominguez.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do jornal.
JOSENIR - Muito obrigado pela entrevista. Agradeço a Deus e aos amigos por tudo que vivi até hoje, desde a época em que eu batia tijolo na olaria. Tenho orgulho de estar entre os poucos profissionais do jornalismo do Acre que moram hoje em Brasília. Gostaria de ter a oportunidade de conhecer o Rio Grande do Norte. Tenho alguns amigos, como Renato Severiano, repórter de Mossoró e Nadja Farias. Sobretudo, gostaria de deixar um abraço para o meu grande amigo Costa Júnior, o dono do Zona Sul. Ele passou uma temporada trabalhando na imprensa aqui do Acre. Júnior conhece tudo o que eu falei nessa entrevista. Ele foi um ótimo repórter em Rio Branco. Suas matérias denunciando a miséria foram importantes para Rio Branco hoje ser uma cidade melhor de se viver.