sábado, 29 de junho de 2013

Entrevista: Falves Silva

OS 70 ANOS DO POETA “MALDITO” DA IMAGEM

Foi Falves Silva quem viabilizou a primeira entrevista dessa série de trabalhos que faço com a ajuda de amigos para o “Zona Sul”. Ele foi quem conduziu a sua companheira, Terezinha de Jesus, para a conversa realizada na I Bienal do Livro de Natal, em 2003, no Centro de Convenções. Dez anos passaram até que surgisse a oportunidade de eu satisfazer o sonho profissional de entrevistá-lo também. Como as melhores coisas da vida, a ocasião veio por acaso. Melhor não sairia se fosse combinado previamente. Estávamos todos no Sebo Vermelho, de Abimael Silva. Saímos direto para o bar “Point da Princesa”, na Princesa Isabel, centro de Natal. Graças às intervenções do próprio Abimael, do músico Paula Neto; da blogueira (http://escritosdealicen.blogspot.com.br/), escritora e professora Cellina Muniz; e do meu parceiro e amigo para todas as horas, o jornalista Roberto Fontes, acredito que essa entrevista poderá servir como presente para o septuagenário Falves Silva. Que Natal também possa oferecer uma homenagem digna ao nosso maior poeta visual. Todas as mais de 100 entrevistas que fiz para o “Zona Sul” estão disponíveis, na íntegra, no site http://zonasulnatal.blogspot.com.br/. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL – Como é o seu nome verdadeiro?
FALVES – Meu nome verdadeiro é Falves Silva. O mentiroso é Francisco Alves da Silva. (risos)
ZONA SUL – Você não manteve o Francisco Alves para não ofuscar o cantor homônimo, Francisco Alves, considerado “o rei da voz”?
FALVES – Para falar a verdade, a história foi outra. O Falves surgiu depois que eu fiz um curso de desenho por correspondência, em 1964. Um dos ensinamentos do curso era o fato de o artista - da mesma forma que o jornalista, o cientista e o escritor – poder mudar ou criar seu próprio nome. Pensei em escolher Chico da Silva, mas já havia um pintor do Acre, descendente de cearense, que havia ficado famoso com esse nome. Resolvi, então, colocar Falves Silva. Inicialmente confundiram um pouco. Talvez devido ao movimento de pintura “fauvista”, chegaram a escrever meu nome como Fauves, com “u”. Com o tempo, corrigiram. Resolvi mudar o nome porque, desde criança, sempre pretendi ser artista.
ZONA SUL – Vamos retroceder um pouco na sua história. Onde você nasceu?
FALVES – Em Cacimba de Dentro, uma cidade pequena da Paraíba. Só fiz nascer lá. Minha mãe e meu pai eram itinerantes. Logo cedo fomos para Japi, terra da minha mãe. Depois mudamos para Nova Cruz. Aos cinco, fui morar em Santa Rita. Fiquei lá até os dez anos. Em 1953 meus pais se separaram e eu mudei para Natal com a minha mãe.
ZONA SUL – Seus pais faziam o que da vida?
FALVES – Meu pai era carpinteiro e a minha mãe cuidava da casa. Meu pai é de uma família de Rio Tinto, na Paraíba. Ele era muito violento: batia na minha mãe e em mim também. Minha mãe teve vários filhos, mas só escapamos eu e um irmão. Naquela época, a mortalidade infantil era grande: quando sobrevivia um filho, escapava fedendo (risos). Vim para Natal e foi aqui onde aprendi a discernir a vida.
ZONA SUL – De onde são as suas primeiras recordações? Da Paraíba?
FALVES – Algumas são de lá, mas outras tantas são daqui também. De lá recordo o fato de eu ter começado a desenhar desde menino. Antes de completar cinco anos, eu já desenhava. Certa ocasião, desenhei as partes genitais de uma mulher, por cima de um desenho de um vestido publicado por uma revista de moda. Esse desenho foi uma coisa rude. Quando meu pai viu, me deu um grande esculacho. Chorei que só a porra! Provavelmente por conta disso, depois que aprendi a desenhar o corpo da mulher, era como se eu estivesse fazendo uma coisa contra o meu pai.
ZONA SUL – Menino, morando no interior, como você conseguia material para desenhar?
FALVES – Nesse início, eu desenhava com lápis. Tenho uma fixação pela imagem. Menino curioso, sempre gostei de fotografia, desenho e de ler histórias em quadrinhos. Naquela época eu já dizia que quando crescesse ia mexer com desenho. Acho bonito no objeto da arte quando ele é reproduzido. Do original, nem gosto tanto. Gosto de vê-lo reproduzido... Tem outro brilho.
ZONA SUL – Você valoriza mais a reprodução que retrata fielmente o original ou aquela que acrescenta algo?
FALVES – Depende. Gosto das ampliações e das reduções. Estou com a ideia de fazer uma exposição com trabalhos bem ampliados. Mas, hoje em dia, devido aos custos, fica difícil trabalhar com ampliação.
ZONA SUL – Quando você veio para Natal com sua mãe e o seu irmão, vieram morar onde?
FALVES – Fomos morar com minhas tias em um local que antigamente era conhecido como “Alto do Juruá”, em Petrópolis. A viagem para Natal foi de trem. Tinha uma linha que vinha de Recife e fazia uma parada em João Pessoa. Foi uma viagem longa, chovia pra cacete. Quando cheguei, estava chovendo muito. Após o desembarque, quando estava subindo a ladeira da Junqueira Aires, vi aquele relógio do SESC batendo nove horas da noite. Depois de três meses, foi preciso eu começar a trabalhar. Eu tinha 10 anos e pouco quando a família começou a reclamar: “esse menino tem que trabalhar”, e tal... Eu era o filho mais velho. Meu irmão é mais novo do que eu seis anos.
ZONA SUL – Arrumaram o que para você?
FALVES – Fui trabalhar n’“A República”, como distribuidor de jornal. Depois de algum tempo, saí de lá para o “Diário de Natal”, nessa mesma proposta de distribuir jornais, só que em bairros diferentes. Fiquei conhecendo a cidade toda. Naquele tempo Natal devia ter uns 90 mil habitantes, no máximo 100 mil. Era uma cidade pequena. Como tinha amigos que gostavam de cinema, começamos a assistir filmes assiduamente, quase todos os dias. Passei a me reunir com esse grupo de amigos na Juventude Operária Católica (JOC), uma organização da Igreja Católica. Aprendi muita coisa por lá. Por volta de 1960, o padre Barbosa, da Igreja Santa Terezinha – que sempre gostou de cinema – convidou a gente para participar de umas reuniões. Desses encontros surgiu o “Cineclube Tirol”, em 1961. Lá se reuniram os caras mais importantes da cidade, ainda até hoje: Moacy Cirne, Anchieta Fernandes, Nei Leandro de Castro, Juliano Siqueira, Marcos Silva, Dailor Varela, Fernando Pimenta, João Xavier, Antonio e Franklin Capistrano, Bené Chaves, Francisco Sobreira... O Cineclube foi um verdadeiro foco de novos intelectuais, artistas, críticos de cinema, poetas, romancistas, artistas visuais e políticos. Fizemos três filmes no Cineclube. Filmezinhos curtos, preto e branco, de oito milímetros. Naquele tempo não tinha a tecnologia de hoje. O resultado foi bem interessante, para a época.
ZONA SUL – Como eram esses filmes?
FALVES – Um foi baseado em um texto de Nei Leandro de Castro, “Romance da Cidade do Natal”, dirigido por Moacy Cirne. Outro teve o Forte dos Reis Magos como tema. Foi dirigido por Gilberto Stabili, Franklin Capistrano e Francisco Sobreira. O terceiro, dirigido por mim e Alderico Leandro, foi uma adaptação livre de um conto de Willian Soroyan: “O Ousado Rapaz do Trapézio Suspenso”. Fiz esse filme porque sempre gostei da literatura americana, e pelo fato de o contista Willian Soroyan ter me impressionado. Também porque me identifiquei com o personagem. No fundo eu achava que era o ousado rapaz do trapézio suspenso. O filme ficou legal, mas perdemos todas as películas. Não existe mais nada desses filmes. A película é muito perecível, especialmente aquela antiga.
ZONA SUL – Depois do emprego como entregador de jornais, que rumo a sua vida tomou?
FALVES – É bom dizer que, mesmo trabalhando nessa função, eu estudava no Colégio Alberto Torres. Meu único diploma acadêmico é o ginásio. Como sempre gostei de cinema, de arte e de ler, a leitura me orientou melhor para a vida. Junto com o JOC - que exigia um pouco de leitura - e trocando conversas, terminávamos entrosando os conhecimentos. Porém, eu precisava trabalhar. Depois de passar por “A República” e o “Diário”, fui trabalhar como ajudante de sacristão, na Catedral.
ZONA SUL – Existe essa profissão?
FALVES – Não tem ajudante de pistoleiro? Por que não teria ajudante de sacristão? Interessante é que a minha mãe sempre foi protestante, mas eu me desviei e fui para o catolicismo.
ZONA SUL – É raro um artista assumir que tem uma religião.
FALVES – Não sou frequentador assíduo, mas lá dentro sinto que a coisa da religiosidade, da Igreja Católica, tem muita força sobre mim.
ZONA SUL – Você seria um “católico do IBGE”?
FALVES – Acho que sim. Sou aquele católico que aparece na estatística, mas pouco comparece às missas. Depois da experiência com o padre, fiz de tudo. Até vendi cocada e laranja na praia, pra escapar. Em 1976 fui a trabalhar na Tipografia Galhardo, que era embaixo da “Boate Arpége”. Comecei varrendo e ajudando na limpeza. Depois, aprendi a profissão de gráfico. Nesse trabalho, me especializei em cortar papel. Sempre gostei de papel, de sua parte física. Esse primeiro emprego de carteira assinada data de 1957. Trabalhei lá até 1964. De lá fui para a Livraria Ismael Pereira, tomar conta do depósito, de todo almoxarifado que chegava. Por isso é que me arrisco a dizer que fui o primeiro cara a ler “Ulysses”, de Joyce, em Natal. Quando veio a primeira remessa, quando abriu a caixa, eu já comprei um exemplar. Parte do dinheiro que eu ganhava trabalhando ficava lá mesmo, porque eu sempre comprava muito livro. Depois de Valter Pereira, onde fiquei durante cinco anos, passei um período de bobeira, naquela coisa de porra louca.
ZONA SUL – Você tentou sobreviver da arte?
FALVES – Nunca sobrevivi de arte, antes pelo contrário. Do pouco salário que recebia, gastava comprando material, tirando cópias e enviando meus trabalhos pelo correio. Nunca ganhei dinheiro com arte, salvo – evidentemente - aqui e acolá, quando fazia uma exposição ou acontecia algo diferente e eu vendia um ou dois trabalhos. Mas isso não é suficiente para sobreviver. Por ter consciência disso, nunca me arrisquei. Aliás, até me arrisquei nesse período entre 1968 e 1971, mas não deu certo.
ZONA SUL – Como foi essa experiência?
FALVES – Horrível! Eu morava em Mãe Luiza com o meu irmão, Natanael Virgínio, que era jornalista da “Tribuna do Norte”. Ele trabalhou lá durante 21 anos, depois foi para o “Diário”. Vivi esse período na porra-louquice de só ficar curtindo, tomando birita e tirando onda. Passei dois anos sem trabalhar. Nessa época conheci todo tipo de droga. Tinha uma lenda, na cidade, dizendo que a fumaça da maconha fazia o usuário adormecer para os ladrões roubarem. (risos).
ZONA SUL – A droga ajuda o artista a produzir mais?
FALVES – Depende muito. Eu não gosto de fazer nada drogado, nem com bebida. Não gosto de cocaína, nem de pico, a cerveja é a minha droga predileta. A mim a droga não estimula. Só trabalho sem o efeito da droga. Sou um cara totalmente metódico. Todo meu trabalho é feito com linhas, precisão matemática e tal.
ZONA SUL – Mas você estava contando sobre seu período de porra-louquice...
FALVES – Fiquei nessa vida até que Pedro Vicente, sabendo que eu estava desempregado, me arranjou um trabalho na Tipografia Relâmpago, na Ribeira. Fiquei lá durante 15 anos. Me tornei chefe de oficina e editei meus primeiros livros lá. Tipograficamente, ainda sem a tecnologia do offset. Eu aproveitava a sobra de papel. Antigamente, quando se comprava uma resma de papel, sempre vinha uma folha de suporte em cima e outra embaixo. Resolvi aproveitar essa sobra para fazer um livro meu. Não tinha custo para a empresa. Consegui produzir um livro “fodidamente” bonito, “Elementos da Semiótica”, em 1982.
ZONA SUL – Quando foi sua primeira exposição?
FALVES – Foi em 1966, na Galeria de Artes da Praça André de Albuquerque, durante a administração do prefeito Agnelo Alves. Minha exposição foi a primeira ação da proposta cultural dele de fazer a arte natalense crescer. O problema é que depois ele foi cassado e a coisa não andou. Essa minha exposição estava prevista para permanecer um mês, mas durou apenas uma semana. Só soube há pouco tempo que essa exposição talvez tenha sido censurada por conta da igreja que tinha em frente. Até então eu pensava que tinha sido censura da política.
ZONA SUL – O que você expôs que poderia ser censurado?
FALVES – Tudo! (risos). Ou seja, nada! (mais risos). Tinha uns nus, mas eram nus bem feitos, sem escancaramento.
ZONA SUL – Quer dizer que era uma exposição erótica, apoiada pelo prefeito.
FALVES – Exatamente, recebi apoio oficial da Prefeitura de Natal. Quem me apresentou artisticamente à cidade foi Nei Leandro de Castro. Naquele tempo não tinha televisão. Dei entrevista na “Rádio Cabugi”. Dailor Varela fez o texto do catálogo. Era um catálogo simples, naquele tempo era comum fazer coisas simples. Não tinha offset, nem porra nenhuma. No ano seguinte à proibição dessa exposição, eu, Dailor Varela, Marcos Silva, Alexis Gurgel e mais dois amigos resolvemos fazer uma exposição em um cabaré, só para tirar onda. Como na praça foi proibido, resolvemos fazer a exposição no “Francesinha”, que era um local de dança onde você marcava e pegava o itinerário. Essa exposição foi um terror, a sociedade toda de Natal foi. Até Luiz Maria Alves, que mandava no “Diário de Natal”, foi. A divulgação foi só em jornal e rádio. Dailor trabalhava na “Tribuna do Norte” e Alexis no “Diário de Natal”.
ZONA SUL – Qual a reação das pessoas ao chegar no “Francesinha”?
FALVES – Gostaram muito. Passados quarenta e tantos anos, ainda encontro gente comentando: “você é aquele cara da exposição”. Aí eu pergunto qual exposição, mas já sabendo que ele vai responder que é a do “Francesinha”. Há dois anos encontrei um que me fez essa pergunta.
ZONA SUL – Você foi um grande consumidor de revistas eróticas? Onde comprava?
FALVES - Sempre gostei de comprar livros e revistas. Tenho fixação por fotos, imagens. Eu comprava no Sebo de Cazuza, que funcionava na Rua Ulysses Caldas, em frente ao Camelódromo. Eu comprava muito livro e aquelas revistas proibidas de nudismo. Na ótica de hoje, eram publicações pudicas. Cazuza camuflava, escondia as revistas por baixo das outras. Quem comprava, já sabia onde procurar. Frequentei outros sebos e livrarias, como a Livraria Universitária, que de 1965 até setenta e pouco foi importante ponto de encontro da cidade.
ZONA SUL – Nessas exposições você vendeu muito?
FALVES – Não, só ganhei mixaria com elas. A exposição na qual ganhei mais dinheiro foi a do último “Encontro de Escritores de Natal”, quando roubaram uns trabalhos meus e eu fui indenizado.
ZONA SUL - Seus trabalhos foram expostos e sua obra divulgada em vários países da Europa e das Américas. Você tem memória dessas coisas?

FALVES – Tenho todo esse material arquivado em casa: catálogos, livros, documentações, revistas... O ponto mais alto que cheguei como artista foi ter um trabalho meu publicado na revista “Art in América”, que é editada nos Estados Unidos. É a revista de arte mais importante. Um crítico da revista escreveu sobre a exposição organizada por uma poetisa brasileira que mora em Austin, no Texas, Regina Vater. Essa exposição, em 2002, contou com 57 poetas brasileiros ligados à visualidade, poetas semióticos. Entre esses poetas estão Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Humberto de Campos, Caetano Veloso e sete do Rio Grande do Norte. Tudo isso por conta daquele movimento que nós criamos, o “poema/processo”, de 1967. 
ZONA SUL – Em quais circunstâncias o “poema/processo” foi criado em Natal?
FALVES – A coisa começou com Moacy Cirne, que também pertencia ao “Cineclube Tirol”. Ele viajou, em 1965, ao Rio e voltou com uma série de novidades, entre elas um exemplar da revista “Invenção”, publicação literária criada pelos poetas concretos. Apesar de consolidado no Brasil, o movimento da poesia concreta, criado nos anos 1950, ainda era visto com reticências... Anos depois, um dos fundadores da poesia concreta, o poeta Wlademir Dias-Pino, criou uma dissidência. Ele resolveu se separar do pessoal por questões que nunca contou. Wlademir criou um método, um manifesto, com seus poemas espaciais contidos nos livros “Ave” e “Solida”. Com Moacy no Rio, a coisa foi se amplificando. Moacy, Dias-Pino, Alvaro de Sá e Neide de Sá criaram um intercâmbio. Com Moacy sempre voltando a Natal e trazendo as novidades, resolvemos lançar o movimento poema/processo simultaneamente em Natal e no Rio de Janeiro, em dezembro de 1967. A tendência era a de substituir a palavra e dar mais ênfase à imagem. Combinava perfeitamente com a nossa geração, toda ela fanática por cinema.
ZONA SUL – Como o poema/processo extrapolou o eixo Rio-Natal?
FALVES – A partir de exposições que fizemos em outras capitais, especialmente do Nordeste. O pessoal da poesia concreta se concentrava no centro (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e no exterior. Resolvemos investir no Nordeste. Realizamos exposições em João Pessoa, Fortaleza, Recife... Outras pessoas foram se engajando, como José Nêumane Pinto, que fez poema/processo quando morava em Campina Grande. Walter Carvalho, aquele cineasta e fotógrafo paraibano, também fez. O maestro pernambucano Marcus Vinicius de Andrade, que é uma figura genial, foi outro que mexeu com poema/processo. Dessa forma o poema/processo, aos poucos, foi se espalhando.
ZONA SUL – Como o movimento chegou ao exterior?
FALVES - Em 1969 fomos convidados para participar da “Exposição Internacional de Novíssima Poesia”, no “Instituto Torcuato di Tella”, em Buenos Aires.  Como não tínhamos condições financeiras de ir, mandamos os poemas. Nossos trabalhos fizeram grande sucesso. Coincidiu que estava passando por lá o poeta francês Julien Blaine. Ele viu, documentou boa parte dessa exposição e publicou em uma revista cultural francesa. Assim o poema/processo tomou um rumo mais internacional. O poema/processo sempre foi de encontro ao livro tradicional. A gente sempre preferiu produzir páginas soltas, e enviar para centros culturais e artísticos dentro de envelopes. Dessa forma a ideia foi se espalhando. Nesse período também começaram a surgir publicações alternativas. A xerox estava surgindo, de forma embrionária, para substituir o mimeógrafo. A gente foi se adaptando às novas tecnologias e fazendo publicações as mais variadas possíveis. As tiragens eram pequenas, de 100 cópias. Mas elas eram enviadas para pessoas estrategicamente selecionadas, até para fora do Brasil. A gente também recebia experiências análogas às que estava fazendo, relacionadas com a semiótica.
ZONA SUL – Como os irmãos Campos, Décio Pignatari e o restante da turma da poesia concreta recebeu o poema/processo?
FALVES – Eles não gostaram muito e não gostam até hoje, por conta dessa briga com Dias-Pino. Trataram como uma dissidência, sem alimentar muita conversa. Soube recentemente que, depois da morte de Haroldo de Campos, Augusto de Campos tentou entrar em contato com Wlademir Dias-Pino, mas ele recusou. Deve ter sido uma coisa muito chocante para Wlademir até hoje agir dessa forma. Tenho uma afinidade muito grande com ele, que também foi gráfico. Os trabalhos de Wlademir são perfeitos. Cada página é uma surpresa que você tem. ZONA SUL – O poema/processo conseguiu criar um público, uma legião de fãs ou seguidores em Natal?

FALVES – Seguidores, com certeza. Duas dezenas, ou talvez mais. Posso até citar o nome de pessoas que, direta ou indiretamente, sofreram influência do poema-processo: Alderico Leandro, Alexis Gurgel, Bianor Paulino, Franklin Capistrano, Enoque Domingos, Venâncio Pinheiro, Racine Santos, Iaperi Araújo, Bené Chaves... Nei Leandro fez poema processo durante cinco anos. Resolvemos fazer uma parada tática em 1972, para avaliação. Cada artista continuou fazendo suas experimentações da maneira que quis.
ZONA SUL – Você, por exemplo, foi fazer o que?
FALVES – Continuei pesquisando na área da visualidade, sempre desenhando muito. Arrisco-me a dizer que sou um bom desenhista. Gosto do preto e branco, mas fiz experiências com várias técnicas. Tentei pintar, no início, mas devido a um problema de intoxicação, perdi o interesse. Gosto mesmo é de desenho ou de trabalhar com colagens e montagens...
ZONA SUL – O erotismo é o tema principal da sua obra?
FALVES – Não. Sou mais conhecido pela parte ótica, pelo trabalho com cores e tal. Esse é o meu carro-chefe, mas trabalho em várias vertentes.
ZONA SUL – Vamos falar sobre os seus trabalhos.
FALVES – A ideia do primeiro, “Elementos da Semiótica”, é que livros não são feitos necessariamente com palavras, mas sim com ideias. É uma mistura - no sentido contrário - do que dizia Mallarmé (que um livro se faz com palavras, e não com ideias), com correspondências que troquei com Wlademir Dias-Pino. Meu livro trata das coisas da semiótica.
ZONA SUL – A ditadura militar o perseguiu de alguma maneira?

FALVES – Não. Quando o poema/processo surgiu, em 1967, a palavra ainda era fundamental. Hoje, não. A televisão está aí para provar que a imagem tem muito mais força do que a palavra. O regime militar não compreendia o nosso trabalho, não conseguia detectar o efeito simbólico e satírico dele. Por isso, nunca houve perseguição do ponto de vista político. A gente sempre agiu de maneira sorrateira perante a ditadura. Não só nós, do Rio Grande do Norte, mas os nossos colegas da Paraíba, do Rio de Janeiro, todo mundo agia assim. Na primeira exposição, no Rio, tinha um cartaz: “Abaixo a ditadura da palavra”. Da palavra, do verbo, e na política. Tinha um significado de duplo sentido. Defendia o fim da ditadura, em si, e a extinção da ditadura da palavra. A acadêmica, especialmente.
ZONA SUL – Amante das letras, você nunca pensou em seguir uma carreira dentro da academia, até mesmo para aperfeiçoar e embasar melhor o seu trabalho? Em outras palavras: por que você preferiu o autodidatismo?
FALVES – Nunca pensei em seguir uma carreira acadêmica porque me sinto mais à vontade estudando por conta própria. Óbvio que a questão econômica facilitou essa minha decisão. Nunca tive nada contra a academia, antes pelo contrário.
ZONA SUL – Então vamos voltar a falar sobre suas publicações. Depois de “Elementos da Semiótica”, o que veio?

FALVES – Publiquei o segundo, “Erótica”, pela Fundação José Augusto, em 1975. Mais uma vez sofri com a censura. Tarcísio Gurgel, que trabalhava na gráfica da Fundação, foi quem me convidou para preparar esse trabalho. O objetivo era lançar em dezembro, no final do ano, quando as pessoas gastavam um pouquinho com arte.  A publicação são onze gravuras de nus, impressas. Não sei por que cargas d’água, Sanderson Negreiros, que era presidente da Fundação, vetou a saída do livro, depois de tudo impresso. Depois de tomar conhecimento dessa censura, falei com Chico Alves - que era chefe da gráfica – e pedi para levar algumas cópias do livro. Ele autorizou. Peguei esse material e enviei para várias partes do mundo: Espanha, França, Bélgica, Estados Unidos... E também para vários jornais alternativos brasileiros, que viviam um “boom”. Resultado: o trabalho proibido aqui foi publicado em todos os jornais para onde mandei. Tenho tudo isso em casa, não é lorota. Cinco anos depois, quando Cláudio Emerenciano assumiu a presidência da Fundação, o livro foi liberado. Mas ficou só aquela coisa simbólica, pois o trabalho já tinha se espalhado pelo mundo.
ZONA SUL – Mais algum caso de censura?
FALVES – Sim, nos anos 1970. Eu tinha exposição agendada na galeria da “Biblioteca Câmara Cascudo”, que era dirigida por Zila Mamede. Antes de chegar na data, Diógenes da Cunha Lima assumiu a presidência da Fundação e cancelou a exposição. A censura se deu ainda em virtude da minha primeira exposição e do “Francesinha”. Dei entrevista a Djair Dantas, marido de Diva Cunha, no Diário de Natal. Ele avisou a Diógenes. No outro dia foram Zila Mamede e Mirabô Dantas pedir para eu reconsiderar, para retirar o que tinha dito ao jornal. Não aceitei. No final, concordei em retirar uns trabalhos que fiz com John Lennon e Yoko Ono nus e Jimi Hendrix com um baseado, além de outros dois, para a exposição ser viabilizada. Depois, nós fizemos as pazes: eu e a instituição Diógenes da Cunha Lima. Porque ele não é apenas uma pessoa, é uma instituição.
ZONA SUL – Depois desse, qual o livro seguinte?
FALVES – “Intersigno”, que tem uma apresentação de Dácio Galvão. É um trabalho de folhas soltas, para ser enviado. Em seguida, continuei fazendo experimentações, como livros de carimbo e, em 1978, realizei a exposição de arte correio “Olho Mágico”, na Cooperativa dos Jornalistas, em Natal. Mandei convite para vários artistas. Os cartões que eu enviei tinham só um círculo desenhado no meio, para o cara trabalhar da maneira que quisesse. Houve uma devolução grande e eu fiz essa exposição. Essa exposição foi feita em Recife (1979), João Pessoa (1980) e repetida em Natal (1982).
ZONA SUL – Quem mais mexeu com “Mail Art” em Natal?
FALVES – Fui o primeiro a mexer com isso, a convite de Clemente Padin, com quem eu me correspondia desde o início do poema processo. Ele me chamou, em 1974, para participar de uma exposição no Uruguai. Bosco Lopes tinha editado seu livro há um ano e pouco, e tinham sobrado algumas imagens. Fiz alguns cartões dele e os meus e mandamos. Essa foi a primeira exposição internacional de arte correio que teve a participação de artistas do Rio Grande do Norte. O meu poema relacionado a isso foi “Sorria”. Alexis Gurgel trabalhava no “Diário de Natal” e fez uma matéria de uma página. “Falves Silva: o operário comum, o artista maldito”. Por causa desse título, até hoje sou conhecido como artista maldito. (risos).
ZONA SUL – Quem influenciou você?

FALVES – Na literatura, Edgar Alan Poe, Dostoievski, Kafka e, sobretudo, James Joyce, em quem me espelho bastante. Também leio muito Umberto Eco. Filosoficamente, prefiro a semiótica de Charles Peirce e Giambattista Vico. Nas artes gráficas: Vladimir Dias-Pino, Décio Pignatari e os demais poetas que fazem referência à arte visual. No cinema sou entusiasta de Godard, Hitchcock, Fritz Lang, Nicholas Ray, Buñuel, Fellini e todo esse pessoal.
ZONA SUL – Na literatura você não recebeu influência de nenhum brasileiro?
FALVES – Guimarães Rosa. E no cinema, Glauber Rocha. Gosto também de Anselmo Duarte, especialmente de “O pagador de promessas”, apesar de os intelectuais considerarem meio careta a sua maneira de fazer cinema. O padrão dele é o americano, o de Glauber é o europeu. São dois cinemas diferentes.
ZONA SUL – Você se define como poeta, artista plástico ou como o que?
FALVES – Esse negócio de rótulo é meio complicado, mas sou um artista multifacetário. Gosto de experimentar linguagens, novas probabilidades dentro da visualidade. Acho que o artista tem que experimentar sempre.
ZONA SUL – Ao completar 70 anos, qual seria a homenagem que você gostaria de receber de Natal, a cidade que você escolheu para viver?
FALVES – Pelo menos que eu pudesse fazer uma exposição digna de quem está completando 70 anos. Um artista que vem trabalhando durante meio século tem que pelo menos tentar reverter essa coisa de que o santo de casa não faz milagre. Quero apresentar coisas inéditas e também fazer uma retrospectiva. Estou fazendo livros únicos de toda a minha trajetória. Já tenho 40 volumes prontos, um exemplar de cada. Se eu lançar esse material, o livro que cada pessoa comprar será único. Esse livro será como um objeto de arte. Como se fosse uma tela. ZONA SUL – Fale sobre suas mais recentes exposições.
FALVES – Fiz uma em Fortaleza, no lançamento da revista “Pindaíba”. A revista tem uma entrevista de Celinna Muniz comigo. A “Capitania das Artes” lançou uma edição especial da revista “Brouhaha” quando o poema/processo completou 40 anos. No ano passado fiz uma exposição no Beco da Lama, quando completei 69. Fiz de deboche, só pra curtir.
ZONA SUL – É melhor comemorar o 69 ou 70?
FALVES – Agora reiou-se! Particularmente, prefiro o 69. Mas acontece que a vida continua... (risos). Esqueci-me de contar que na década de 1980 criamos aqui em Natal (eu, Anchieta Fernandes e Franklin Capistrano) um jornal chamado “À Margem”. Nossa proposta, o próprio título do jornal já diz, era divulgar artistas que estavam à margem do sistema literário linear ou tradicional. A intenção era publicar abertamente, sem censura. O que o cara mandava, era publicado sem interferência editorial, mas a responsabilidade era dele. Editamos esse jornal de 1986 até 2001. Era distribuído gratuitamente. Saíram uns 35 números. A tiragem era de 500 cópias. Arte é uma maldição, não é todo mundo que gosta dela. A primeira tiragem de Ulysses, de Joyce, lá em Paris, em 1922, foi de mil cópias. Um ano depois ele voltou para saber como andavam as vendas e soube que apenas cento e poucos haviam sido comprados. Ou seja, só os intelectuais de Paris compraram o livro dele: Henry Miller, Hemingway, Scott Fitzgerald, Ezra Pound... A gente tirava 500 para mandar para as instituições e os amigos.
ZONA SUL – Você teve algum sonho que não conseguiu realizar no ramo da arte?
FALVES – Um sonho que tenho desde pequeno é o de ver meu trabalho publicado em livros didáticos. De certa maneira, eu consegui. Em Natal saiu uma edição do livro “Introdução da Cultura Norte-Rio-Grandense”, com 33 mil cópias, contendo uma boa referência e reprodução de alguns dos meus trabalhos. Em São Paulo, a “Editora Global” publicou, há uns dois anos, um trabalho meu para o ensino fundamental. O livro continha trabalho de oito poetas, dentre eles, o meu. Tenho trabalhos publicados em vários outros livros. Na Espanha, tem um de Álvaro de Sá: “A Poética de Vanguarda do Brasil”. Ele era crítico e grande poeta. Morreu há pouco tempo. Esteve em Natal com sua esposa, que também é poeta. Veio conhecer e dialogar comigo, Jota Medeiros e Anchieta Fernandes.
ZONA SUL – Geralmente a arte e a boêmia andam juntas. Essa afirmação é verdadeira no seu caso?
FALVES – Sempre fui meio boêmio. Não tive regras na minha juventude, pois fui meu próprio pai, já que não tive um por perto e a minha mãe era mais fácil de controlar.
ZONA SUL – Depois que veio morar em Natal você chegou a reencontrar seu pai?
FALVES – Ele esteve aqui uma única vez. Eu também estive em João Pessoa. Tirei umas férias e fui lá. Logo que cheguei a João Pessoa, comecei a tomar umas cervejas. Saí do bar e vi que estava passando o filme “A Doce Vida”, que eu já tinha visto em Natal. Entrei no cinema muito bêbado. Depois de algum tempo, fui ao banheiro. Vomitei e adormeci por lá. Mandaram chamar a polícia. Foi a única vez que fui preso. Depois de um banho me botaram em uma cela. Ainda bem que não havia outro preso, senão os caras tinham me comido e eu nem ia saber. No dia seguinte meu pai foi me buscar. Eu com uma vergonha danada. Nessa viagem foi a última vez que o vi.
ZONA SUL – Que recomendação ou orientação você daria a alguém que está tentando enveredar no campo da arte?
FALVES – A persistência é que faz o artista. Durante todo esse percurso conheci muita gente que se dizia artista, mas desistia. O artista é aquele que persiste, que continua fazendo. Fui a uma excursão no Recife e ouvi aquele famoso escultor, Brennand, contar que ele tinha um ajudante que era um “pintor arretado”. Certo dia o cara chegou pra Brennand e disse que não queria mais trabalhar com ele porque tinha comprado um caminhão e ia voltar para a cidade natal. Esse cara não era pintor, ele era motorista de caminhão!
ZONA SUL – A tecnologia lhe ajuda?
FALVES – Não consegui me adaptar ao computador, até porque o computador não faz arte. O artista é quem usa a imaginação e utiliza um determinado meio para transformar aquela ideia em um trabalho. Eu faço manualmente, outros usam o computador. Eu não estou sozinho. Outros poetas da minha geração também não usam. Caetano Veloso disse que não tem nem celular!
ZONA SUL – Quem seria o herdeiro do seu trabalho, a pessoa que continuaria a sua obra? Você está passando seu conhecimento para alguém?
FALVES – Já passei pra muita gente nesse período todo. Herdeiro, eu diria que Jota Medeiros é um deles. Tem Avelino de Araújo, também.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do jornal.
FALVES – Aprendam a ler. Não só as palavras, mas, sobretudo a imagem. Uma boa imagem vale mais do que mil palavras. Já dizia o velho ditado chinês.