segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Entrevista: Paulo Lima


O HOMEM FORTE DO AGRESTE POTIGUAR

Paulo José de Lima nasceu em São Paulo do Potengi no ano de 1950. Se fosse natural do Sertão – e não do Agreste, como é - esse fotógrafo potiguar radicado em Brasília confirmaria a tese levantada por Euclides da Cunha no seu principal livro, “Os Sertões”. O jornalista de Cantagalo escreveu: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Certamente quem conhece Paulo Lima apenas superficialmente vai estranhar essa minha comparação. Deverá estar se perguntando agora: como Paulinho pode ser equiparado ao nordestino de pele queimada e curtida pelo sol, portador de músculos esculpidos na batalha diária de afastar a fome de si e de sua família, e dono de um comportamento rude e áspero pela falta de uma melhor formação educacional? Essa mesma pessoa poderá estar pensando: “Paulo Lima é exatamente o contrário: baixa estatura, franzino, branco como são todos aqueles que raramente se expõem ao sol, tranquilo, fala mansa, extremamente educado, fino, elegante, discreto...”. Não culpo quem chegar à conclusão de que “o autor dessa apresentação deve estar louco!”. Mas, não. Não estou maluco. Paulo Lima é um sobrevivente, um batalhador, um trabalhador, um forte! Graças à sua persistência, ele deixou o roçado e o posto de substituto do pai no balcão da “venda” da família no Rio Grande do Norte para se transformar no fotógrafo mais querido pelas socialites do Distrito Federal. Vamos ver, agora, como isso tudo aconteceu. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Como se chamava o seu pai?
PAULO – Gregório José de Lima. Ele era comerciante. Tinha o que, antigamente, se chamava de mercearia. Hoje mudou o nome para supermercado ou alguma coisa do gênero. Deixou a vida de comerciante quando foi nomeado juiz de paz. Minha mãe, Sebastiana Maria de Lima, também era comerciante. Tinha uma loja de papelaria.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre os seus irmãos.
PAULO – Éramos oito irmãos, mas, infelizmente, um morreu. Restamos sete.
Apenas um, César, continua morando em São Paulo do Potengi. Ele tem uma pequena loja de conserto e venda de peças para eletrodomésticos. O que faleceu, Lázaro, também morava lá. Ele tinha um bar. Era gêmeo de César. Sua esposa tinha uma loja de roupas, uma butique, digamos assim. Lázaro morreu do coração. Os demais construíram a vida em Natal. Edson, o mais velho, tem uma marmoraria. Ele é o pai da jornalista Eliana Lima, da Tribuna do Norte. Depois vem a Edite, ela tem uma deficiência visual, enxerga pouco. Antonio é aposentado. Estudou em Recife para ser padre, mas desistiu e foi trabalhar em uma empresa de turismo. João se dedicou à vida de mecânico. Meu pai, sabendo que ele não queria estudar, comprou uma oficina, para ele, em Natal. O caçula, Celso, morou comigo na Casa do Estudante de Natal. Consegui trazê-lo de São Paulo do Potengi. Nessa época eu trabalhava no Touring Club do Brasil. Cedi essa vaga a ele e fui para as Confecções Guararapes. Depois de um tempo ele foi convidado para trabalhar na Secretaria de Fazenda da Prefeitura de Natal. Começou, ainda de menor, trabalhando na entrega de carnês do IPTU. Depois fez concurso e passou a ser fiscal de tributos. Com o tempo virou auditor fiscal.
ZONA SUL – São Paulo do Potengi, hoje, tem mais de 15 mil habitantes, A cidade tinha quantos moradores naquela época?
PAULO – Não sei responder, mas o certo é que a cidade evoluiu bastante, daquele tempo para cá. Morei lá até completar 14 anos. Eu ajudava o meu pai no trabalho. Ele não queria ver a gente dormindo até mais tarde. Com oito anos de idade, eu já trabalhava, ajudando na mercearia. Meu pai também tinha um roçadinho, onde eu pegava na enxada, capinava. Na mercearia, aos dez anos, eu já vendia os produtos, na ausência do meu pai.
ZONA SUL – Nas horas de folga, você costumava brincar do que?
PAULO – Eu gostava de futebol e de jogar pião. No futebol, eu era atacante. Era rápido e fazia muitos gols. Algumas vezes os colegas diziam: “hoje você está elétrico!”. Eu era mesmo muito rápido.
ZONA SUL – E os estudos?
PAULO – Estudei, até os 13 anos, em São Paulo do Potengi. Primeiro em uma escola pública e, depois, em um colégio particular dirigido por freiras. Saí da cidade para prosseguir os estudos, em Ceará-Mirim. Fui, como interno, para a escola agrícola de lá. Minha família continuou em São Paulo do Potengi.
ZONA SUL – Você sofreu muito com a mudança?
PAULO – A princípio, não foi fácil. Minha mãe não queria, de jeito nenhum, que eu saísse do seu convívio. Talvez por eu ser o filho mais ligado a ela. Esqueci de dizer que, além da mercearia, meu pai, logo no início, tinha uma desnatadeira para separar a gordura do leite e produzir manteiga e queijo. Ele comprava o leite, desnatava, fazia a manteiga e o queijo e levava para vender em Natal. Quando meu pai acabou com esse comércio, mamãe passou a fazer para o consumo de casa. E, com nove anos, eu ajudava muito a ela. Eu fazia tudo: moía o leite para tirar a nata - a manteiga - de um lado e o leite desnatado do outro.  Ajudava a fazer o queijo. Sempre fui o filho que mais gostei de trabalhar e o mais apegado à minha mãe. Modestamente falando, nunca fui preguiçoso. (risos) Eu ajudava muito a minha mãe na fabricação do queijo e também colaborava com o meu pai na mercearia. Quando ele viajava para Natal para levar os queijos e a manteiga, toda semana, eu ficava na mercearia.
ZONA SUL – Para sua mãe não deve ter sido fácil concordar com a sua ida para morar em Ceará-Mirim.
PAULO – É verdade, por isso meus pais não queriam que eu fosse. Eu tinha 13 anos quando resolvi pedir a um primo que ajudasse a convencer minha mãe a me deixar ir. Ele tinha estudado no Colégio Agrícola de Jundiaí. Além de gostar de trabalhar, sempre adorei estudar. No primário, minhas notas foram ótimas. Por tudo isso, minha mãe me olhava com muito carinho. Meu primo pediu para eu fazer a prova de seleção, que seria realizada no Colégio Agrícola de Jundiaí. Os testes eram para a primeira turma de alunos da escola de Ceará-Mirim, que seria aberta no ano seguinte. Depois de muito meu primo insistir, minha mãe me autorizou a fazer a prova. Fiz e passei em terceiro lugar. Disputei com mais de 200 outros candidatos. Desse total, 49 foram aprovados. Posso dizer com orgulho que sou da primeira turma do Colégio Agrícola de Ceará-Mirim!
ZONA SUL – Você ainda não respondeu se enfrentou muitas dificuldades com a mudança de São Paulo do Potengi, de junto da família, para o internato em Ceará-Mirim.
PAULO – Sim, no começo senti muito. Nas primeiras semanas a saudade era tanta que eu tinha vontade de ir todo sábado visitar meus familiares. Por eu ser muito apegado aos meus pais, dava uma agonia, um desespero... Eu era um adolescente, um garoto de 14 anos. Com o tempo, as visitas foram passando a ser feitas de mês em mês, de semestre em semestre... E, por fim, só nas férias. Com o tempo, fui me adaptando. Quando completei 16 ou 17 anos, eu já ia com menos frequência. Nas férias ia a São Paulo do Potengi, passava uns dias, e viajava para Natal.
ZONA SUL – O Colégio de Ceará-Mirim provoca saudades em você? Quais as recordações daquele tempo?
PAULO – A lembrança mais forte que tenho daquela época é o conjunto musical que foi criado no colégio. Eu tocava triângulo, um colega era o responsável pelo violão, outro pela sanfona. Tinha um terceiro, no pandeiro. O repertório era Luiz Gonzaga e aqueles forrós que faziam sucesso naquele tempo.
ZONA SUL – Você entrou nessa banda porque gostava de música ou seu objetivo era impressionar as mulheres?
PAULO – (risos) Acho que foi pelos dois motivos. Naquela época, de tudo eu gostava um pouco, mas o que eu não perdia mesmo era o futebol. Eu sempre era o primeiro a chegar no futebol de salão, e o último a sair.
ZONA SUL – Ceará-Mirim, hoje, tem quase 70 mil habitantes. É mais do que quatro vezes a população de São Paulo do Potengi. Naquela época a diferença entre um município e outro deveria ser proporcional. Mudar para uma cidade tão grande o impressionou?
PAULO – Sim, fiquei impressionado com o tamanho da cidade, com a maior quantidade de pessoas nas ruas e com o comércio, que também era bem mais diversificado. Fiquei em Ceará-Mirim de 1964 a 1968. Foi o tempo de completar o curso. De lá fui estudar na Escola Técnica Federal, que hoje se chama Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte. Fui morar, em Natal, na casa de um irmão. A princípio ele não concordava muito que eu fosse morar com ele. Mas, a esposa dele, minha cunhada - percebendo que eu queria estudar e que estava batalhando para vencer na vida - ficou ao meu lado. Ela ajudou a convencer meu irmão a concordar que eu ficasse morando lá para poder estudar. Eu já frequentava a casa deles. Nas férias da escola de Ceará-Mirim ou nos feriados prolongados, eu ia para lá pensando em já me acostumar com Natal.
ZONA SUL – Ela conseguiu convencer o marido?
PAULO - De tanto insistir, meu irmão cedeu aos pedidos da esposa. Meus pais também pediram a meu irmão para eu morar lá. Matriculei-me no curso de técnico em Edificações, mas estudei apenas um mês. Fui prejudicado porque estava perdendo muitas aulas. Meu irmão tinha uma mercearia. Quando ele saía, me deixava tomando conta. E eu não podia ir para a escola. Para não ser mais prejudicado ainda e correr o risco de perder o ano letivo, resolvi sair da Escola Técnica. Fui cursar o científico no Padre Miguelinho. Como meu turno era o noturno, eu não era atrapalhado quando tinha que passar o dia no comércio do meu irmão. Ainda fiquei morando com ele durante um ano, até que consegui uma vaga e fui morar na Casa do Estudante de Natal.
ZONA SUL – Você morou na Casa do Estudante em qual ano?
PAULO – Em 1970.
ZONA SUL – Nesse ano a ditadura estava no auge. Você sentiu esse clima morando na Casa do Estudante? Envolveu-se politicamente com alguma atividade?
PAULO – O clima era realmente muito tenso, já que alguns colegas tinham uma tendência de esquerda. E eu nunca fui adepto dessa ideologia. Ao contrário: quando completei 19 anos fui colaborar com a Polícia Civil. Eu tinha carteira e tudo, da instituição. Pelo fato de eu ser colaborador da Civil, fui ameaçado. A princípio minha situação ficou complicada, até quiseram me bater. Um colega que estava comigo foi quem me defendeu, naquela hora. Alguns estudantes achavam que eu tinha denunciado um dos moradores da Casa, que havia sido preso. Mas, não fui eu. Minha atividade dentro da Polícia Civil não era política. Eu não estava lá para investigar nada disso, mas para cooperar na área criminal, no combate ao crime.
ZONA SUL – Como se deu essa sua aproximação com a Polícia?
PAULO – Meu pai alugava uma casa para o delegado de polícia de São Paulo do Potengi, que era muito bem relacionado com o secretário de Segurança Pública. Então esse delegado falou para o secretário que eu era uma pessoa idônea, que tinha bons antecedentes pessoais e familiares, e me indicou. Eu não recebia nada pelo trabalho, era um serviço voluntário.
ZONA SUL – Pelo que se deduz da história da sua vida, você nunca teve objetivos políticos, mas sempre buscou se preparar para construir as bases de um futuro melhor. Paralelo ao curso no Padre Miguelinho você conseguiu algum emprego? Qual sua primeira atividade em Natal, depois do período em que passou ajudando o seu irmão na mercearia?
PAULO – Quando fui morar na Casa do Estudante, arrumei um emprego no Touring Club. O Touring vendia títulos que davam direito à assistência técnica, oficina e reboque. Eu cobrava dos sócios, todos os meses. Meu trabalho era voltado para a área de cobrança. Também com essa meta de vencer na vida, trabalhei como cobrador em uma loja no Alecrim, que não recordo o nome. Fiquei nesse emprego até o dia em que eu estava fazendo uma cobrança e o cliente jogou um copo de água na minha cara. Fui cobrar dele e saí todo molhado. A história foi assim. Quando cheguei, logo apresentei a cobrança, mas ele disse que não estava devendo. Falei que tinham me mandado cobrar, e que eu não tinha culpa. Naquele bate boca, ele disse: “aguarde que vou buscar o seu pagamento”. Ele voltou e jogou a água no meu rosto. “Vá embora daqui, rápido!”.
ZONA SUL – Essa foi a única vez em que você se sentiu ameaçado?
PAULO – Trabalhando com cobrança, sim. Quando eu estava no Touring Club, o então governador Lavoisier Maia era cliente. Fui algumas vezes pegar a mensalidade em sua casa. Ele sempre pagou direitinho. Quando deixei a vida de cobrador, depois de passar por uma loja instalada no Alecrim, fui trabalhar com faturamento no escritório das Confecções Guararapes.
ZONA SUL – Até então a fotografia significava alguma coisa para você?
PAULO – Sempre gostei de fotografia, mas era um hobby caro. Eu não tinha condições financeiras, ainda, de mexer com foto. Quando morava na Casa do Estudante, eu passava muito em frente a um foto que tinha na Cidade Alta, perto do Palácio Potengi. Eu ficava olhando para aqueles retratos. Parece que era uma intuição que eu tinha.
ZONA SUL – Você saiu da Guararapes com qual idade e foi fazer o que da vida?
PAULO – Saí com 26 anos. Fui para Brasília, estudar. Eu tinha um primo, Stoessel, que já morava em Brasília desde 1974. Era militar. Ele vivia me chamando, dizia que lá eu teria muitas chances de vencer na vida. Uma tia também morava em Brasília, com seus dois filhos. Liguei para ela, para sondar, mas minha tia colocou muita dificuldade. Terminou concordando em me hospedar quando falei que queria só passear na capital do Brasil. Disse que vinha apenas passar as férias. O apartamento da minha tia era realmente pequeno, e as dificuldades eram muitas. Tinha dois quartos, sala e cozinha. Em um quarto, minha tia morava com uma neta. No outro ficavam os dois filhos, meus primos. Eu dormia na sala. Naquela época eu achava que o segundo grau não era suficiente para mim: eu queria estudar mais. Um desses primos sentia certo ciúme pelo fato de eu gostar muito de estudar. Quando ele me via lendo, dizia que eu estava gastando energia. Rapidamente comecei a conhecer Brasília e descobri a Biblioteca Demonstrativa de Brasília, na W3 Sul. Às vezes eu ia lá a pé, para economizar, já que o dinheiro que eu havia trazido não era muito. Eu não podia gastar porque sabia que não ia voltar para Natal.
ZONA SUL – E o emprego na Guararapes?
PAULO – Eu já havia pedido as minhas contas, ao deixar Natal. Não viajei para Brasília de férias. Então, naquela dificuldade até para estudar à noite, falei com Stoessel. Mas ele morava em uma república que já estava com todas as vagas ocupadas. Foi quando resolvi fazer algum concurso. Fiz a inscrição em três: Correios, DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público) e Polícia Federal. Isso tudo em um período de um mês após eu chegar. O resultado do concurso dos Correios saiu logo: fui aprovado. Contei à minha tia e aos meus primos que tinha passado nesse concurso e pedi para eles me segurarem mais um pouquinho, até eu começar a trabalhar e receber meu primeiro salário. Meu primo mais velho era legal, o mais novo encrencava mais. O fato é que cumpri o que tinha prometido: quando recebi meu primeiro vencimento, saí de lá. Fui morar em um apartamento pequeno, dividindo com seis. Era uma república, no Cruzeiro. Como era muito apertado, de manhã, quando alguém ia tirar algo do guarda-roupa, eu tinha que levantar da minha cama de campanha para a porta poder ser aberta. Com os salários seguintes, fui me organizando e passei a procurar um lugar melhor para morar. Mudei para Taguatinga, para outra república. Era mais espaçoso e eu dividia meu quarto apenas com uma pessoa. Era muito mais confortável. Morei um bom período. Nesse tempo, trabalhando nos Correios, saiu o resultado do DASP. Aprovado, fui chamado para trabalhar lá. Tive que assinar um termo desistindo desse concurso. Preferi os Correios porque lá tinha concurso interno de seis em seis meses. Havia a possibilidade de crescer internamente. Não passei na Polícia Federal. Tinha que fazer 70 pontos, fiz 68. Furei uma resposta errada no gabarito. Ainda tentei colar, apertando. Mas não deu certo. Como eu estava nos Correios, nem me importei muito. Comecei como auxiliar administrativo, com seis meses fui aprovado, entre os primeiros colocados, em um concurso interno para assistente. Outros seis meses depois teve para técnico administrativo. Fiz e passei também.
ZONA SUL – E a fotografia?
PAULO – Meu primo, Stoessel, tinha uma loja de fotografia em Brasília. Eu tinha casado em 1980 com uma moça de Sete Lagoas (MG). Com ela tive uma filha, Paula. Eu sempre tirava fotos da menina. Stoessel me chamou para fotografar congressos e outros eventos. Aceitei. Foi assim que entrei na fotografia. A chefe da comunicação dos Correios, Aldenira Cabral, soube que eu estava mexendo com fotografia nas horas vagas e me convidou para trabalhar com ela e ser fotógrafo do diretor regional dos Correios. Continuei a cobrir os grandes eventos sociais e fui me entrosando. Comecei a gostar. Eu aproveitava as horas vagas para desenvolver esse trabalho paralelo. Muitas vezes eu deixava de almoçar para ter tempo de levar filmes para revelar e copiar no laboratório, para eu poder entregar à noite. Assim fui começando na fotografia e, também, fazendo os meus trabalhos particulares. Tirei umas férias e nem viajei: dediquei-me unicamente à fotografia, só fazendo eventos e ampliando a minha clientela. Foi quando conheci o empresário Paulo Octávio e ele me convidou para ser o seu fotógrafo. Comecei a fotografar para ele nos finais de semana, feriados e durante a noite.
ZONA SUL – Você já faturava mais na fotografia do que nos Correios?
PAULO – Ainda não, porque não tinha tempo. As pessoas às vezes me chamavam para eventos, mas eu recusava o convite por falta de tempo. Foi quando vi que meu caminho não era dentro dos Correios, mas na fotografia. Pedi uma licença sem vencimentos de dois anos. Eu queria garantir o emprego, caso não desse certo na fotografia. Tirei a licença e fui trabalhar. Fiquei fotografando para Paulo Octávio e cobrindo eventos com meu primo. Comigo o trabalho podia ser qualquer dia e qualquer hora. Tendo serviço, eu estava lá. Nesse período conheci o jornalista Gilberto Amaral, que era colunista social do Correio Braziliense. Ele me chamou para fazer as fotos de sua coluna. Topei. Fui ampliando a clientela, fazendo fotos e ganhando dinheiro. Fui me entrosando, conhecendo mais e mais pessoas no meio social. Nesse período também foi lançada a primeira revista de Brasília, chamada Classe A. Vera Lúcia Rocha, a dona, me convidou para ser fotógrafo de lá. Trabalhando nisso tudo e também fotografando eventos particulares, percebi que era daquilo que eu gostava.
ZONA SUL – O que você fez quando expirou sua licença sem vencimentos?
PAULO - Retornei ao trabalho, mas não por muito tempo. Passei a ter atritos com colegas, nos Correios. Confesso, com toda a sinceridade, que cheguei ao ponto de ameaçar um deles. Jurei que da próxima vez que ele me irritasse eu daria um tiro na sua boca. Eu estava andando armado com revólver. Vivia com dor de cabeça. Aquilo não era normal, eu não era daquele jeito. A cabeça só faltava estourar. Cheguei a fazer um eletro para saber se eu tinha algum problema na cabeça, de tanta dor que eu sentia. Pedi a Deus que me iluminasse e me ajudasse a dar um rumo na minha vida. Foi quando decidi pedir demissão, mesmo perdendo todas as vantagens. Pouco depois seria implantado um plano de demissão voluntária, mas preferi nem esperar.
ZONA SUL – A saúde melhorou quando você deixou os Correios?
PAULO – Depois que saí, a dor de cabeça acabou. Era apenas o estresse por eu não suportar mais o que eu estava fazendo. Com a fotografia era o contrário: quanto mais eu trabalhava com ela, mais vontade sentia de trabalhar. Era de manhã, de tarde, de noite... Fim de semana, dia santo, feriado... Não tinha folga. Minha folga era mais trabalho. Minha mulher é quem reclamava. Ela dizia que eu estava namorando. Mas não era nada disso. Eu não podia largar o trabalho para me dedicar só à mulher porque viveríamos de que? Essa minha obsessão pelo trabalho contribuiu para o fim desse meu primeiro casamento.
ZONA SUL – Trabalhando com coluna social o fotógrafo deve ver muita coisa interessante.
PAULO – Uma história interessante ocorreu quando o príncipe Charles veio ao Brasil. Como ele não havia trazido fotógrafo em sua comitiva - e eu fotografava muito para a Embaixada Britânica - fui convidado pelo embaixador para acompanhar o príncipe nos eventos que ele participou em Brasília. Terminei fazendo parte da comitiva oficial dele. Também fiz trabalhos para a Embaixada da Alemanha, inclusive cobrir a visita de um dos últimos presidentes alemães, de quem não recordo o nome. O mesmo se repetiu com outros países, como o Peru. Tive o prazer de merecer a confiança de ser chamado para integrar a comitiva dessas autoridades como fotógrafo oficial. Também me orgulho de ter fotografado um dos maiores cantores da história da musica romântica, o Julio Iglesias. Em mais de uma vez tive oportunidade de fotografá-lo. Mais recentemente fotografei apresentadoras de destaque como Adriana Galisteu e Ana Hickmann.
ZONA SUL – Você viveu alguma situação inusitada na cobertura da sociedade de Brasília?
PAULO – Certa vez cheguei ao restaurante de um hotel e encontrei um embaixador conhecido acompanhado por uma bela jovem bonita e elegante que não era a sua esposa. Ele me pediu que fizesse a foto do casal, mas com a recomendação de eu não entregar aquela fotografia a ninguém que não fosse ele. Cumpri com o combinado: entreguei a foto nas mãos dele. Também já encontrei uma colunável casada que estava acompanhada por um empresário em um local muito discreto. Eu nem queria fotografar, mas ela me chamou e também pediu que eu só entregasse aquela foto a ela própria. Repeti o procedimento. Em outra ocasião eu estava em um hotel cinco estrelas, em Brasília, e lá encontrei a Teresa Collor na companhia de uma pessoa importante de Brasília. Fiz a foto deles. O homem me chamou e falou que aquela foto era importante e que depois falaria comigo. Não sei se foi um porteiro ou um garçom quem falou, mas a imprensa ficou sabendo que eu tinha essa foto. Na época era filme, a fotografia ainda não era digital. Vários jornais e revistas me ligaram oferecendo bom dinheiro pela foto. Eu não topei. Não vendi por dinheiro nenhum. Depois repassei a foto e o negativo para o parceiro de Teresa Collor na foto. A confiança é fundamental no meu trabalho.
ZONA SUL – Em quais outros veículos você trabalhou?
PAULO – O Jornal da Comunidade foi um deles. Quando Gilberto Amaral trocou o Correio Braziliense pelo Jornal do Brasil, fiquei um bom tempo lá, com ele. Na saída dele para o Jornal de Brasília, continuei colaborando com sua coluna. Foi quando a jornalista Marlene Galeazzi, que também trabalhava no Jornal de Brasília, me chamou para colaborar com sua coluna. Colaborava com ela e Gilberto Amaral no Jornal de Brasília, com o Jornal da Comunidade, e com a Revista Foco, tudo na mesma época. Quando a Classe A acabou foi que comecei na Foco.
ZONA SUL – Quais as características necessárias para um fotógrafo trabalhar na cobertura social?
PAULO – A primeira delas é ser merecedor de confiança. Certa ocasião um ministro do Supremo Tribunal Federal falou para outras autoridades que eu era o único fotógrafo que tinha a porta aberta em todos os lugares porque nunca havia traído a confiança em mim depositada. Você ouvir isso de um ministro do STF é até lisonjeador. Outra característica necessária é saber tratar as pessoas. Também é preciso ter discrição e caprichar no vestuário, estar sempre com uma boa aparência.
ZONA SUL – Você fez outras coisas, como acompanhar o senador Garibaldi Alves Filho no período em que ele presidiu o Senado. Como foi a experiência de trabalhar direto com o presidente de um Poder da República?
PAULO – Foi mais um degrau que galguei na minha vida profissional. Trabalhar com o presidente Garibaldi Alves foi mais uma vitória que alcancei na vida. Acho que, além da confiança, fui lembrado também pelo trabalho que desenvolvi ao longo da vida. Sempre procurei fazer o melhor possível.
ZONA SUL – Depois você prosseguiu na Presidência do Senado acompanhando o presidente José Sarney.
PAULO – Por diversas vezes, quando eu era do Correio Braziliense, cobri aniversários na casa do presidente Sarney. Certa vez um assessor dele me falou que dona Marly tinha dito que não simpatizava comigo, que me achava um pouco antipático e entrão. Com o tempo ela percebeu que havia formado uma imagem errada de mim. Tanto que Dona Marly me convidou para um aniversário que teve na casa dela e pediu a um assessor que tirasse uma foto minha com ela e o presidente Sarney. Mas, respondendo à sua pergunta, quando Sarney substituiu Garibaldi eu continuei um período na Presidência do Senado. Foi quando tive um problema cardíaco e tive que me afastar.
ZONA SUL – Você já superou esse problema? A saúde está em dia?
PAULO – Graças a Deus está em dia, mas às vezes, quando exagero um pouquinho trabalhando muito, o estresse volta. Por mais de uma vez tive que ser internado. Tenho que diminuir um pouco o ritmo.
ZONA SUL – O que você está fazendo da vida atualmente?
PAULO – Continuo na Revista Foco, no Jornal da Comunidade, no Jornal de Brasília e fazendo eventos sociais particulares também, quando sou convidado. Agora mesmo fui chamado para cobrir  um evento na Embaixada da Argentina. Recentemente o senador Aécio Neves sondou sobre a possibilidade de eu trabalhar em alguma campanha sua. Só que acho que para mim foi importante o convite, mas acho um pouco cansativo. Campanha é sempre muito corrido, acho que pela minha saúde não é possível. Eu até gostaria, mas não acho que devo correr o risco. Mas o convite foi importante porque me senti valorizado e com o meu trabalho sendo reconhecido.
ZONA SUL – Qual seu sentimento por Natal? Você continua muito ligado ao Rio Grande do Norte?
PAULO – Continuo. De vez em quando mando fotos para a minha sobrinha, Eliana Lima, publicar em sua coluna da Tribuna do Norte. É bom destacar que ela é considerada por todos uma excelente jornalista. Nas férias, nunca viajo para outro destino. Sempre vou para Natal. Costumo circular por Ponta Negra, Muriú e Pirangi.
ZONA SUL – Que recado você ofereceria para alguém que pretende iniciar na fotografia?
PAULO – Fotografia já foi um bom trabalho para ganhar dinheiro. A mudança para a fotografia digital dificultou as coisas. Não se fatura mais como antigamente. Hoje só o que se vê são pessoas com maquininhas ou até mesmo com aparelhos celulares tirando fotos. Mas, de qualquer maneira, o mercado ainda permite que essa seja uma fonte de sobrevivência. Então, a recomendação que eu faria é que a fotografia é válida para quem realmente gosta. Esse é o primeiro passo: gostar. Se gostar e estiver disposto a trabalhar, vá em frente. É um meio de vida.
ZONA SUL – Fale um pouco sobre sua mulher e seus filhos.
PAULO – Estou casado com Francisca há quatro anos. Ela é aposentada do Departamento de Polícia Federal. Trabalhava na parte administrativa. Com ela não tenho filhos. Tenho uma filha do primeiro casamento, Paula Lima. Ela trabalha em uma empresa que terceiriza serviços para o Senado. É formada em Pedagogia, mas está trabalhando no pós-atendimento, é supervisora. Paula nunca se interessou pela fotografia.
ZONA SUL – Como as pessoas podem lhe encontrar?
PAULO – Meu escritório é em casa. Não uso Facebook, Twitter ou qualquer outra dessas redes sociais da Internet. Mas, quem quiser manter contato, pode enviar mensagem para pjlimarf@gmail.com/. Estou muito feliz por ter concedido essa entrevista onde pude contar um pouco do que foi a minha trajetória. Muito obrigado. 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Entrevista: Nicolas Gomes


FOTÓGRAFO DO ROCK E GUITARRISTA DAS IMAGENS


Por trás da faceta de roqueiro e de um homem acostumado a coberturas jornalísticas e de eventos musicais, a imagem que Nicolas Gomes deixa transparecer é a de um cara discreto, tímido, econômico nas palavras e bom caráter. A rebeldia – que caracteriza o rock and roll – pode ser percebida nas tatuagens espalhadas pelo corpo, mas não no comportamento. Bem educado, o que ele demonstra mesmo sem reservas é o amor pelos filhos Lucas e Alice. Recebi Nicolas em minha casa para que ele contasse ao leitor do Zona Sul a sua história. Foi uma noite divertida regada a risadas, vinho e cerveja. Ele falou sobre rock, fotografia, Vasco da Gama e, sobretudo, contou sua vida. Vamos conferir um resumo da conversa. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL - Nicolas Lira Gomes...
NICOLAS – O sobrenome Lira é por parte da minha mãe, Celi Maria Lira Gomes. Gomes eu herdei do meu pai, Heriberto de Sousa Gomes. Embora a família da minha mãe seja caicoense, ela nasceu em Natal. Meus pais moram em Natal. Tenho um irmão mais velho, Igor Lira Gomes. Minha mãe se formou em Economia, na UFRN, e é funcionária pública. Hoje ela está no Idema (Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do RN). Meu pai se formou em Odontologia, na UFRN. Entrou na Marinha por concurso público. Hoje está na reserva, aposentado. Nasci em 1981, em 1985 mudamos para Recife. Depois fomos para o Rio de Janeiro.
ZONA SUL – Você guarda alguma recordação da primeira fase que morou em Natal?
NICOLAS – Minha família morava em Morro Branco, perto da CEFET, quase esquina com a Rui Barbosa. Quando a gente foi para Recife, esse imóvel ficou alugado. Dessa época lembro-me de festas e eventos comemorativos de datas como “Dia do Índio”, no Colégio das Neves. Também me lembro de ir brincar e andar de bicicleta no Bosque dos Namorados. Mas a maior parte dessas recordações veio depois, vendo fotografias. Meu pai tinha uma casa em Cotovelo. A gente ia para lá quase todo final de semana. Nasci em outubro: em dezembro já estava veraneando. Às vezes até acho que sou mais de Cotovelo do que de Natal. Quando a gente voltou, depois de morar em Recife e no Rio, ficou morando um tempo na praia, até a casa de Morro Branco, que estava em reforma, ficar pronta.
ZONA SUL – Você morou o suficiente em Recife para torcer por algum time pernambucano?
NICOLAS – Não, mas quase. Se eu ficasse mais tempo ia escolher o Sport, que era o mais forte da época. Comecei a acompanhar futebol em 1988. Torci muito contra o Santa Cruz, ouvindo no rádio com o porteiro do prédio. Meu primeiro time foi o Vasco. Apesar de o time ter Romário e Bebeto, eu admirava era o goleiro Acácio, que foi um grande pegador de pênalti. Foi aí que comecei a gostar de futebol. Naquela época eu também era fissurado em jogo de botão.
ZONA SUL – O rádio, além das transmissões esportivas, chegou a ser importante para você como fonte de música?
NICOLAS – Nossa! Boa parte do que sou hoje devo ao rádio. Em Recife mesmo, nessa época, eu e meu irmão ganhamos de minha mãe um microsystem pequeno. Veio com duas fitas e um curso de inglês. Não cheguei a ouvir até o final nenhuma das oito fitas que vieram com o curso. Comecei a gravar as músicas que eu gostava por cima delas.
ZONA SUL – O que você ouvia nessa época?
NICOLAS – Sempre ouvi rock, nunca gostei de outro tipo de música. Ouvia, basicamente, rock nacional: Paralamas, Titãs, Ira!, Inimigos do Rei, Engenheiros do Hawaii... Comecei escutando pelo rádio, depois passei para as fitas e os elepês. O primeiro vinil que ganhei foi do Bom Jovi. A partir daí passei a pedir fita e vinil de presente de aniversário. Também passei a juntar dinheiro para comprar fitas e fui procurando grupos internacionais, como Guns N' Roses.
ZONA SUL – Seus pais ouviam o que?
NICOLAS – Basicamente MPB: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Marisa Monte... Lembro muito de Marina Lima. Minha mãe comprava discos de Cazuza, Lulu Santos...
Eles também ouviam Beatles.
ZONA SUL – Os Beatles lhe interessavam?
NICOLAS – Claro. Mas eu acho que só fui perceber depois, quando comecei a fazer as minhas coletâneas. A partir daí passei a ouvir com calma os discos que tinha lá em casa.
ZONA SUL – Na escola você foi bom aluno?
NICOLAS – Não, sempre fui mediano. Nunca me interessei muito pelo que se ensinava lá. A exceção era Geografia. Era das poucas matérias que eu sempre tirava 9 ou 10. Mas, em 1992 trocamos Recife pelo Rio.
ZONA SUL – Você ofereceu alguma resistência quando soube que teria que ir morar em outra cidade? Foi difícil a mudança?
NICOLAS – Eu tinha apenas onze anos: sabia que ia ser chato, mas não era nada do outro mundo. Meu pai tinha duas opções: Brasília ou Rio. Meu pai nunca gostou do Rio. Nas vezes que tinha ido lá a experiência não foi boa. Minha mãe, utilizando desenhos, pediu nossa opinião. Eu e Igor escolhemos o Rio. Meu pai, que tinha o poder de decidir, foi voto vencido. Senti bastante a mudança, ela foi brutal. O preconceito contra o nordestino, no Rio, é gigante. Naquela época era muito pior. Minha experiência é com aquele Rio não pacificado. Os anos 1990, no Rio, foram muito difíceis, a violência estava espalhada.
ZONA SUL – Onde vocês foram morar?
NICOLAS – Meus pais passaram um mês no Rio procurando apartamento, enquanto nós passávamos as férias em Natal. Encontraram alguns apartamentos pequenos, de dois quartos, mas não muito legais. Perto da data da mudança, eles estavam tristes porque não tinham encontrado um local legal. Foi quando surgiu um amigo da minha avó por parte de pai. Ele tinha um apartamento fechado na Avenida Jardim Botânico. Era um cara rico que não tinha interesse em alugar. Através da amizade com a minha avó, ele topou abrir uma exceção. Era em um bloco que tinha sido da Aeronáutica e que depois teve unidades vendidas também para não militares. O apartamento era pequeno, de três quartos, mas a localização era fantástica. Ficava a duas quadras de um clube da Marinha, chamado Piraquê, que é coisa de outro mundo. Minha vida no Rio foi toda dentro desse clube.
ZONA SUL – Onde vocês foram estudar?
NICOLAS – No Colégio Nossa Senhora de Lourdes, em Botafogo, vizinho ao Jardim Botânico. Era um bom ensino a um preço razoável. O custo de vida na Zona Sul era muito alto.
ZONA SUL – Como você enfrentou o preconceito contra nordestino?
NICOLAS – Comecei a superar o preconceito quando comecei a não ligar mais para ele. No começo era muito chato. No Rio você é Paraíba. Em São Paulo você chamado de baiano. A princípio eu tentava explicar que não era da Paraíba, mas do Rio Grande do Norte. Inocência. Como esse preconceito vinha basicamente dos meninos, me aproximei mais das meninas do que dos caras. Elas tinham mais curiosidade do que preconceito.
ZONA SUL – No Rio, o que você buscou primeiro: a música ou o Vasco?
NICOLAS – Saí de Recife sem ser um torcedor fanático pelo Vasco. A paixão pelo time veio naturalmente. A força do futebol foi primeira coisa que senti ao chegar ao Rio. Na escola, na segunda-feira, todo mundo comentava. O futebol me marcou primeiro, até porque o Rio de Janeiro nunca foi forte para o rock. O que me chocou lá foi o funk. Depois de um tempo, cheguei a frequentar bastante as festas e a dançar aquela música tão exótica. É como o forró, no Nordeste. Como a maioria curte, é o que mais toca nas festas.
ZONA SUL – E o rock?
NICOLAS – Em 1992 conheci muitas bandas de punk rock, como Ramones, Nofx, Bad Religion... Em Recife, o rádio só tocava música nacional. O máximo, de internacional, era Guns N' Roses, Iron Maiden... No Rio conheci bandas mais undergrounds, punks. Eu escutava rock em casa e ia curtir o funk na rua. Nas festas, em determinado momento a gente dominava o som e botava nossos discos e fitas. Ninguém gostava quando a gente tocava Ratos de Porão e Sepultura. Enquanto a minha turma vibrava, o resto do povo ficava esperando a hora do funk. Aconteceu o mesmo em Natal, depois, com o forró.
ZONA SUL – Você morou quanto tempo no Rio?
NICOLAS – Fiquei de 1992 a 1997. O clube Piraquê foi muito importante nesse período todo. Quando não estava na escola, ia para lá. Fiz todos os esportes: basquete, futebol, tênis, tênis de mesa... O clube tinha cabeleireiro, boate, restaurante... Era completo. Depois fiz remo, no Botafogo. Apesar de morar no Jardim Botânico, a vida da minha família sempre foi muito simples. Meus pais são muito regrados, nunca valorizaram o luxo. A gente juntava dinheiro para ir para Natal no final do ano. Além do fato de ser nordestino, conviver com o pessoal rico também foi difícil, por causa do preconceito social.
ZONA SUL – A fotografia já lhe chamava atenção nessa época?
NICOLAS – Não, ela veio depois. Porém, de uma maneira subjetiva, eu convivia com a imagem. A especialidade do meu pai, como dentista da Marinha, é radiografia. Ele faz documentação ortodôntica. No Rio ele comprou uma câmera especial só para tirar foto de dente, chamada “dental eye”. Era caríssima. Ele carregava em uma maleta toda alcochoada. Na época de Recife ele reunia os amigos para mostrar os slides das viagens que fazia. Ele só fotografava em positivo, em slide. Fazia um jantar para os amigos e mostrava as fotos.
ZONA SUL – Você guarda algum fragmento na memória de sua primeira ida ao Maracanã?
NICOLAS – Lembro do jogo Brasil e Uruguai, eliminatório para a Copa de 1994. Foi minha primeira ida ao Maracanã. Fomos eu, meu irmão, meu pai e um colega da escola que morava no mesmo prédio. Só não gostei porque a gente ficou do lado da torcida do Flamengo. Mesmo sendo jogo do Brasil, a torcida do Vasco sempre fica de um lado e a do Flamengo do outro. A gente ficou na torcida do Flamengo porque – fazendo uma comparação com o Machadão, seria a torcida do Alecrim – é o lugar onde fica a sombra e sopra um ventinho. As pessoas cantavam as músicas do Flamengo antes do jogo. O clima era como se fosse de Vasco e Flamengo, só que com o Brasil jogando. Depois passei a frequentar o estádio com o meu pai, já que ele não deixava a gente ir sozinho. Uma vez a gente ia para jogo do Vasco, na seguinte para jogo do Flamengo, que era o time de preferência do meu irmão. Tinha também a opção de não querer ir.
ZONA SUL – E as praias do Rio?
NICOLAS – Na época em que morei lá acho que sou fui à praia duas vezes. Aquela água gelada não me fazia falta, até porque eu passava as férias em Natal. Em compensação, quando minha avó por parte de pai, Idelzuithe, ia visitar a gente, mandava carta para a Globo se inscrevendo para assistir o programa do Faustão. Íamos: eu, meu irmão, ela e meu avô. Depois disso a gente chegou a ir a programas que duraram pouco, como o do Luiz Thunderbird. No Jardim Botânico a gente morava ao lado do teatro da Globo. Era o Teatro Fênix, antes de a Globo se transferir integralmente para o Projac.
ZONA SUL – Voltar para uma Natal que até então você só conhecia nas férias foi bom?
NICOLAS – Foi péssimo. Sair de uma metrópole onde eu tinha tudo nas mãos, todo mundo estava envolvido com tudo o que estava acontecendo e voltar para Natal foi horrível. Passei um ano muito ruim, de adaptação. O segundo ano foi de exclusão por opção. Finalizei meus estudos na CAP Colégio e Curso. Quando voltei para Natal foi quando me formei roqueiro mesmo. Foi quando decidi tocar guitarra.
ZONA SUL – Como foi a repercussão familiar dessa decisão de se tornar roqueiro?
NICOLAS – A pior possível. Meus pais sempre foram muito compreensíveis, a gente sempre conversou muito. Eles nunca foram de reprimir, de proibir. Sempre foram abertos. Mas eu decidi a partir da minha experiência pessoal e de amigos também. Envolvi-me por minha conta e risco. Se fosse depender dos meus pais, eu teria seguido a vida do meu irmão: ele se formou em Odontologia, na UFRN, fez o concurso para oficial da Marinha, entrou, e está lá até hoje. Mora no Rio.
ZONA SUL – Como foi o processo para você se tornar um roqueiro?
NICOLAS – Quando voltei para Natal mudei muito e os meus interesses também mudaram bastante. Conheci uma turma legal. Meus primeiros colegas em Natal foram dessa turma. Um deles hoje é músico, Diogo das Virgens. Aprendi a tocar violão através dele. Nunca tive aula, sempre fui autodidata, mas Diogo me ensinou os primeiros acordes. Logo que voltei, nos primeiros dias de aula, sem conhecer ninguém, me sentei ao lado dele. Diogo viu nos meus cadernos os adesivos das bandas Foo Fighters e Green Day. Ele olhou e puxou assunto. Foi minha primeira amizade fora de Cotovelo. Eu tinha decidido que ia tocar guitarra por influência do Slash, guitarrista do Guns N' Roses. Como Diogo já tinha guitarra, pedi que me ajudasse. Ele recomendou que antes eu tinha que aprender a tocar violão, para conhecer os acordes, a teoria. Comprei um violãozinho de 80 reais. Diogo ensinou três acordes e me deu um livrinho. No terceiro mês de treino, consegui tocar a minha primeira música. Tive que passar por essa fase pra comprar a guitarra.
ZONA SUL – Além de tocar, você também compõe...
NICOLAS – Quando aprendi as três primeiras notas já comecei a compor, mesmo toscamente. Eu acordava de madrugada e ia escrever uma letra qualquer pra conseguir tocar. Acho que isso me afastou um pouco de Diogo, que nunca se interessou em compor. O negócio dele, até hoje, é fazer cover bem. Então, com poucas amizades, fiquei um tempo sem sair, entocado. Foi assim até eu prestar vestibular. Eu não sabia para qual curso eu queria fazer. Até que um dia vi um, chamado Engenharia de Produção. Li em um livro sobre profissões que minha mãe tinha me dado, que o cara dessa função ficava na fábrica vendo o controle de produção. Pensei: “se é para ser qualquer coisa, que seja isso”. Fiz o vestibular, mas claro que não passei, porque não estudava. Nessa época eu ficava traduzindo músicas das bandas. Lembro que comecei a acessar a internet entre 1997 e 98. Eu só procurava sobre rock. E era um rock bem específico, não comecei escutando Led Zeppelin ou Black Sabbath, mas bandas bem undergrounds, punks e hardcores da Califórnia. A primeira vez que ouvi uma música de punk-rock fiquei muitos anos só pesquisando e escutando isso.
ZONA SUL – Qual sua primeira banda em Natal?
NICOLAS – No começo tive muitas bandas de ensaio, mas nenhuma que chegasse a ter nome. A primeira vez que gravei foi em 2003, na Banda Radial, integrada por colegas que tenho até hoje em Natal. São os irmãos Rocha (Henrique Geladeira e Gustavo Macaco), Rodrigo Sérvulo (O Homenzinho), e o baterista Augusto. Com exceção do Rodrigo, que era vocalista, os demais continuam envolvidos com música. Tive bandas que não chegaram a gravar nada relevante. Toquei com algumas pessoas conhecidas na cena do rock como Solano (Jane Fonda), Fabio Nunes (Carbura), David Fonseca (Folclore), Rogério Pitomba (grande baterista que hoje toca com vários artistas de Natal), Flavio França (Expose Yout Hate, Outset) e Jussian (O Surto).
ZONA SUL – Nessa época você já fotografava?
NICOLAS – Comecei nessa época da Banda Radial, quando meu irmão foi fazer um curso no Chile e voltou com uma câmera digital. Eu ainda não havia passado no vestibular. Minha mãe sugeriu que eu fizesse para algum curso da UNP, que era perto de casa. Como tinha feito para Engenharia de Produção na UFRN, botei na cabeça que teria que fazer para alguma Engenharia: entrei em Engenharia da Computação. Gosto de computador, tenho facilidade com informática e tecnologia. Mas nunca me dediquei ao curso, que é bem difícil. A pessoa tem que ralar muito para conseguir alguma coisa. No final de 2001 consegui estágio na Caixa Econômica, através do curso de Computação. Fiz um curso de engenharia de redes, da Cisco. Foi o único curso para o qual me dediquei de verdade. Com seis meses de Caixa fui admitido para trabalhar com gerenciamento de redes. Na CEF, trabalhava na agência da Ribeira, onde ficavam todos os roteadores. Eu monitorava a comunicação de todas as agências do estado. Meu turno era o da manhã, era complicado porque eu tinha que estar lá às 7 da manhã com tudo ok. Tinha que acordar muito cedo, foi bem difícil. Foram dois anos bem de ralação.
ZONA SUL – Mas você estava falando da câmera que o seu irmão trouxe.
NICOLAS – Ele trouxe a câmera, mas eu tomei conta dela. No começo, quando precisava, ele até pedia. Essa câmera normal, dessas cybershot, foi a minha escola. A partir dela comecei a tirar foto. As primeiras fotos que fiz já saíram boas. Tenho até hoje. A visão já veio automática. Demorei um tempo para fazer curso. A fotografia estava adormecida, foi um estalo completamente inusitado.
ZONA SUL – Essas primeiras fotos retratam o que?
NICOLAS – Peguei a câmera, abri a porta de casa e fui para a rua tirar foto de qualquer coisa. Saí andando ali pelo lado do CEFET, naquela pracinha ao lado. Tirei foto das árvores, das ruas, de detalhes. Foi a primeira saída fotográfica que dei. Depois abri um fotolog, um site onde você bota foto e as pessoas comentam. Lá publiquei um dos primeiros ensaios da Banda Radial. Levei a câmera, fiz umas fotos e postei. Em pouco tempo as pessoas começaram a elogiar. Fiquei surpreso porque pra mim era normal, não tinha nada demais. Naquela época as pessoas não tinham muito contato com a fotografia, que se popularizou quando se tornou digital. Antigamente todo mundo tinha que posar para o registro. Fotografia custava caro, não dava para ficar tirando foto de qualquer coisa. Com a câmera digital eu tirava foto de tudo: era só descarregar e deletar o que não tinha ficado bom. Não parei mais. O segundo ano que passei na Caixa Econômica foi todo juntando dinheiro para comprar uma câmera profissional.
ZONA SUL – Você saiu da Caixa antes de começar a ganhar dinheiro com fotografia?
NICOLAS – Comecei a trabalhar com fotografia antes de sair da Caixa. O objetivo de comprar o equipamento deu forças para eu acordar às 5h30 para ir trabalhar. Ainda na CEF, fiz um editorial de moda para O Poti com a cybershot. Fui indicado por uma amiga que trabalhava com moda. O produtor me ligou, e a gente marcou. Quando cheguei ao local combinado, que tirei a cybershot da mochila, ele olhou pra mim e disse: “sério que é você quem vai tirar essas fotos?”. Foi um bullying daqueles. Mas as fotos ficaram boas, saiu no jornal e ele gostou. Tanto rolou que depois fiz outros trabalhos para ele. Quanto terminou o segundo ano, a empresa terceirizada pela qual eu prestava serviço à CEF estava meio enrolada. Conversei com meu chefe e ele concordou em facilitar minha saída, dando todos os benefícios. Assim decidi que ia viver me dedicando à música e à fotografia. Eu já não estava mais fazendo Engenharia da Computação e já sabia que não ia terminar esse curso. Ao sair da CEF, fiquei seis meses com o seguro-desemprego, que me permitiu comprar os equipamentos que eu precisava. Com o dinheiro do FGTS comprei uma ilha de edição. Foi nessa época que comecei a parceria com Anderson Foca, do DoSol. Até então eles não tinham nada de documentação de foto e vídeo.
ZONA SUL – Isso tudo foi em 2003?
NICOLAS – Sim, esse ano foi o que marcou tudo: minha primeira banda, deixei o emprego e descobri a minha vocação. Como eu dizia, comprei uma ilha completa, computador, mesa, impressora, câmera, câmera de filmar, mochila. Tudo que é necessário para fazer vídeo e foto eu tinha. A primeira coisa que fiz foi o Festival DoSol, os shows no DoSol Rock Bar, que tinha aberto e videoclipes para bandas que o Foca gravava. Fiquei seis meses fazendo isso. Eu nunca tinha feito um clipe na vida. Cheguei, filmei uma banda e na frente do computador aprendi a editar em três dias, na marra. Aprendi a pegar as imagens e cortar e juntar, botar uma cor. Até hoje mantenho esse perfil de manter as coisas simples, sem muito efeito. Fazer uma boa fotografia, cortar, juntar tudo e fazer o vídeo: essa é mais ou menos a minha filosofia até hoje. Em 2004 eu já estava à toda: tocando, cobrindo festival, fotografando. Já tinha me tornado conhecido em Natal pela fotografia. Todo mundo sabia quem era o Nicbraw das fotos. Foi quando entrei no AllFace, a convite de Anderson. A banda já existia. Foi a época mais legal, em termos de banda. Com AllFace viajei de norte a sul tocando nos melhores festivais do Brasil. Fizemos turnês com bandas que hoje são famosas, como Fresno e NX Zero. Muita gente passou pelo AllFace, como Rafael Calango, Eduardo Passaia, Júlio Cortez, Rafael Bender, Ana Morena, Jussian, Vinicius Menna e Paulinho. A banda sempre foi uma coisa de amizade, de pessoas próximas que estavam ali tocando. Até hoje funciona desse jeito. Não tem competição, é um negócio bem aberto mesmo. A primeira vez que vim a Brasília foi por causa da banda. A gente tocou em Taguatinga, no ano de 2006, em um festival do Senhor F. Um ano depois a gente tocou no Porão do Rock. A gente também tocou bastante em Fortaleza, Recife, Teresina, Brasília, Goiânia, São Paulo e, claro, em Natal.
ZONA SUL – E depois do AllFace?
NICOLAS – No final de 2007 a banda diminuiu bastante o ritmo, ela meio que acabou sem nenhuma nota oficial. Na virada para 2008, conheci a Cynthia, lá em Natal. A gente começou a namorar. Ela nasceu em Recife, mas morou a vida toda em Brasília. Foi para Natal fazer faculdade. Seu pai mora lá com outra família, três filhos e tudo. Com quatro ou cinco meses de namoro, ela ficou grávida. Eu estava no meu último ano da faculdade de Publicidade.
ZONA SUL – Ainda não falamos nessa faculdade.
NICOLAS - Em 2005 - eu já fotógrafo e roqueiro – ouvindo sempre meu pai repetir aquela história de que eu tinha feito um monte de coisa, mas não tinha terminado nada. Resolvi fazer Publicidade, que era mais próximo da minha área. Cheguei a pesquisar faculdades de fotografia e até pensei em sair de Natal. Mas não achei nada interessante que pudesse valer a pena. Fui cursar Publicidade mais para dar uma satisfação aos meus pais. Mas o curso foi ótimo, fiz boas amizades e me ajudou bastante. No final de 2008, me formei. Nessa época Cynthia estava grávida e voltou para Brasília, para ficar com a mãe, que é o porto seguro dela. Veio grávida de Alice, a nossa primeira filha. Eu em Natal, no último ano de Publicidade. Nesse ano mudei bastante: não saía, só pensava em me formar e decidir o que ia fazer. Decidi vir para Brasília antes de me formar. Alice nasceu no dia 27 de dezembro de 2008. Vim para o nascimento dela e voltei para Natal só para colar grau. Quando peguei o canudo, desci do palco, olhei para o meu pai e disse: “pai, esse aqui é pra você”.
ZONA SUL – Quando você se mudou para Brasília já tinha alguma coisa em vista?
NICOLAS – Eu tinha muito equipamento de fotografia, reduzi tudo a uma mochila. Comprei tudo portátil, tudo wireless. Troquei o estúdio completo por um equipamento móvel, para ganhar mobilidade. Vim para cá com uma mala, uma mochila e uns tripés. Vim com meia dúzia de roupa, meu novo equipamento e muita vontade. Era o que eu tinha. Cheguei conhecendo apenas três pessoas: Cynthia, Rafael Bilico – que é de Brasília e se formou comigo em Natal - e Izaac Alves, chamado de Durex, que não terminou o curso de Engenharia e voltou para Brasília. Rafael é designer, tive pouco contato com ele em Brasília. Izaac Durex começou a tatuar pouco antes de voltar para Brasília. Quando chegou, conseguiu um trabalho muito legal em um estúdio na galeria do Hotel Nacional. O estúdio de Jersinho, o Jerson Filho. Ele praticamente tatuava os amigos e foi para um estúdio comercial. No primeiro ano em que eu estava aqui, devo ter saído para ver dois shows de bandas gringas. Fora isso eu ia para o estúdio conversar com Izaac.
ZONA SUL – Sua primeira tatuagem veio dessa época?
NICOLAS – A tatuagem é uma coisa bastante marcante. É uma decisão muito importante, definitiva, não tem volta, e as pessoas não levam isso muito a sério. Demorei um tempo até eu mesmo assimilar a ideia de ser tatuado. E foi através dessa minha proximidade com Izaac que comecei a frequentar o estúdio de tatuagem. Como não tinha o que fazer, ia ver se conhecia alguém para arrumar algum trabalho. Conheci muita gente envolvida com arte. As primeiras bandas que fiz foto aqui foram através desses contatos. Mas a minha primeira tatuagem foi o símbolo de uma banda californiana chamada Strung Out, que é um átomo. Fiz esse átomo na perna. Tinha uma mulher sendo tatuada na mesma hora, ao lado. Ela estava tatuando a costela, que é um lugar que dói muito. Ela estava de boa, enquanto eu, uma tatuagenzinha na perna, estava gemendo e fazendo careta. A mulher ficou rindo da minha cara. Foi um bullying que sofri aqui em Brasília. (risos).
ZONA SUL – Em Brasília, você chegou a se enturmar com alguma banda?
NICOLAS – Quando vim, vendi em Natal praticamente tudo relacionado à música (pedais, amplificador e uma guitarra). Vim apenas com uma guitarra e um macbook. No começo ficava compondo e gravando sozinho, só para gastar a energia e a vontade.
ZONA SUL – Por falar em gravar, como o material que você compôs antes, em Natal, pode ser encontrado?
NICOLAS – Tem alguma coisa no disco AllFace Simples, o último do grupo. (O link direto para baixar esse CD é http://www.4shared.com/zip/TXC8Fiw-/AllFace_-_Simples.html). Encontra também alguns clipes no Youtube. O disco do Radial a gente gravou, mas não foi divulgado. A finalização dele foi ruim, não colocaram pra baixar, nem nada. Mas, voltando a Brasília, conheci Cynthia apresentou um colega antigo dela, o César Pirata. As pessoas que eu conhecia na cidade eram os meus dois amigos e as bandas de Brasília que tocaram em Natal, que eu fotografei e tive contato: Lucy And The Popsonics, Bois de Gerião, Móveis Coloniais de Acaju e Autoramas. Mas era complicado, nas vezes em que eu saía para ver show, só conhecia as pessoas que estavam tocando, e mais ninguém. Ficava sozinho. Então, a primeira pessoa que conheci em Brasília foi o César Pirata, que é baixista. Com ele formamos a banda Mais que Palavras. Fazem parte da formação o vocalista Maneko (Manoel Neto), que é o maior tatuador em Brasília; Tiago Caetano, que é baterista. No começo tinha o Kenji. Ele saiu e entrou o Guto (Augusto Toda), também na guitarra. A gente formou essa banda em 2010, no final do ano. A banda lançou o primeiro disco com seis músicas. O nome é Mais que Palavras, também. Gravamos o segundo agora, deve sair no começo do ano. Vai ser no formato split. Ou seja, vamos lançar em conjunto com uma banda amiga a banda Vida Livre. Cinco músicas de cada banda. Vamos aproveitar esse novo trabalho e tentar viajar bastante em 2013 para divulgá-lo e fazer shows.
ZONA SUL – Como está sendo trabalhar no Ministério da Previdência?
NICOLAS – Com o nascimento do meu segundo filho, Lucas, em 27 de setembro de 2010, senti necessidade de ter um trabalho fixo, para não depender apenas de freelancer. Quando entrei em contato com o assessor de Comunicação, José Wilde, coincidiu que o senador Garibaldi Alves estava assumindo o Ministério. Estavam sem fotógrafo, fui contratado na hora. Meu pai tinha me passado os contatos de Wilde. Como eu não tinha experiência em fotojornalismo, senti um pouco de dificuldade, a princípio. Mas depois desse período trabalhando lá, posso dizer que hoje sou um fotojornalista e um fotógrafo social com experiência. Aprendi a importância da rapidez, agilidade e instantaneidade. O clima e o protocolo também são outros. Você não pode ousar tanto, tem que seguir o padrão da coisa. Aprendi a dinâmica de trabalhar com fotojornalismo, que é fantástico. Acumulei experiência de gabinete, de rua, de viagem. Além disso, trabalhar com o ministro Garibaldi Alves é muito bom. O que mais destacaria nele não é nem a sua capacidade política – que é indiscutível - mas a característica que ele tem de deixar todo mundo à vontade com sua espontaneidade.
ZONA SUL – Você participa de várias mídias sociais. Onde o leitor do jornal pode lhe encontrar?
NICOLAS – Todos os trabalhos que eu faço são divulgados no Facebook e no Twitter. No Facebook podem procurar por Nicolas Gomes. No Twitter estou lá como Nicfoto.
ZONA SUL – O que você está planejando para o futuro?
NICOLAS – A curto prazo, pretendo viajar mais, tocar em várias cidades e com bandas amigas para mostrar o trabalho da nossa banda Mais que Palavras. Mais para frente quero focar meu trabalho na área cultural, voltar ao que eu fazia em 2005: trabalhar com bandas e espetáculos. O fato de estar morando em Brasília ajuda bastante, pela localização. Depois que vim para cá consegui finalmente fechar trabalhos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ano passado fiz alguns videoclipes fora. Peguei o final de semana e viajei para gravar o vídeo. Editei em Brasília. Fiz da banda Zander, do Rio, e da banda Bob e o Telescópio, de São Paulo. Também não deixe o mercado de Natal. Tenho voltado com constância, inclusive para o festival DoSol. No começo do ano tirei vinte dias de férias. Fui para Natal e passei uma semana descansando e o resto do tempo trabalhando. Faço dez dias de trabalho seguido, volto para Brasília e edito aqui.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do Zona Sul.
NICOLAS – Foi em Natal onde fiz as melhores coisas da minha vida. Precisei voltar para a cidade para me encontrar. Morei em vários lugares, conheço o Brasil todo, mas é em Natal e em Cotovelo que me sinto em casa, me sinto mais à vontade. Vou sempre voltar para Natal a trabalho ou para passar férias com a família. Morando fora, vejo que as pessoas não dão valor às coisas de Natal. Tratam a cidade como se ela fosse um patinho feio. Mas Natal tem muita coisa boa e de qualidade. Comparo as bandas de rock da cidade como qualquer banda de outro lugar. O natalense precisa acreditar mais no que faz. No caso da música, ela não tem fronteira. Essa história de artista da terra não deveria existir. Termina restringido, dá a impressão de que quem é tachado com esse rótulo tem uma menor qualidade. Independente de ser da terra ou não, Natal tem bandas que não deixam nada a dever às melhores do país. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Entrevista: Jonas Escurinho



O CINQUENTÃO ESCURINHO É 100 NO ZONA SUL!
O ano de 2012 tem sido especial para Jonas Epifânio dos Santos Neto. Além de completar seu quinquagésimo aniversário e de conquistar duas das principais premiações em um festival de música na terra onde nasceu – Serra Talhada – Jonas, o Escurinho, voltou a se apresentar na capital do país com a sua banda Labacé e iniciou um novo projeto que tende a render bons frutos: a ciranda de maluco. Para completar, esse paraibano nascido em Pernambuco foi o escolhido pelo Zona Sul para ser o centésimo entrevistado do jornal desde outubro de 2003. E ele se fez presente, junto com a Labacé (Alex Madureira, Igor Aires e Flávio Boy) e a sua esposa Ester Rolim. Para contrabalançar, também participaram da “festa” meus amigos Glauco Porto, sua companheira Maíra Pereira, a carioca papa-jerimum Inês Augusta e o repórter fotográfico Roque de Sá, que mostrou talento usando apenas um telefone celular Galaxy SIII, da Samsung (robertohomem@gmail.com).

ZONA SUL – Você nasceu em qual lugar de Pernambuco?
ESCURINHO – Em Serra Talhada, mas só nasci. Meus pais moravam em uma vila chamada Bom Nome, distante 20 minutos de viagem. Como lá não tinha maternidade, grande parte das grávidas tinha seus meninos em Serra Talhada e voltavam para Bom Nome.
ZONA SUL – A população de Bom Nome deve ser bem pequena...
ESCURINHO – Poucas pessoas nasceram lá, mas tem no mapa! Se botar no Google, também encontra. Meu pai era vaqueiro e agricultor. Quando a CHESF foi construir as subestações de eletricidade no interior, ele foi convidado para trabalhar desmatando terreno. Meu pai era esperto, fez amizade com todo mundo. Quando a subestação foi construída, ele ficou como eletricista. Trabalhou de 1962 a 1969 na subestação de Bom Nome, como funcionário da CHESF. Quando a companhia começou a construir subestações em municípios da Paraíba, meu pai foi para Piancó. A família deixou Pernambuco nessa ocasião, em 1969. Fui para o Vale do Piancó com sete anos de idade.
ZONA SUL – Como é o nome do seu pai?
ESCURINHO – Manoel Jonas dos Santos. Quando foi construída a subestação de Catolé do Rocha, a SAELPA (Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba) contratou alguns funcionários da Chesf, entre eles o meu pai. Mudamos para Catolé em 1973. Eu já tinha onze anos.
ZONA SUL – Você guarda alguma recordação de Serra Talhada?
ESCURINHO – É a terra de Lampião. Recentemente li que a Casa de Lampião conseguiu um projeto com a Petrobras e vai transformar a fazenda onde Lampião viveu em museu, restaurante. Minhas maiores recordações são de Bom Nome. Lembro daquelas coisas de criança, das brincadeiras, de algumas palavras... Por exemplo: tem uma palavra chamada monturo que eu não esqueço nunca. Até porque era onde a gente brincava, no monturo. No monturo era onde tinha os obstáculos e cresciam as frutas gogoia, maria preta, melão de são caetano... Recordando daquele tempo constato que, quando a gente é pequeno, as coisas parecem ser bem maiores. Por exemplo: depois de muitos anos voltei com Ester (Ester Rolim, mulher de Escurinho) e as meninas à casa onde morei em Bom Nome. Eu sempre dizia que era uma casa imensa. Quando chegamos lá, Malu viu aquela casa pequenininha e logo perguntou: “papai, cadê a casa?”. Lembro também que eram imensos os animais que eu via no Sítio Valença, que pertencia à minha família. As aranhas caranguejeiras eram enormes. No caminho de casa para a roça eu via uns bichos que, imagino hoje, deviam ser uns lagartos ou camaleões. Naquela época era como se fossem crocodilos!
ZONA SUL – Quais suas primeiras recordações musicais?
ESCURINHO – Vem das feiras de Conceição do Piancó. Na época de Bom Nome, meu avô Mané Jacinto era dono do que, na época, se chamava Clube Social Brotas. Eles faziam festas e bancavam jogo. Meu avô era uma espécie de produtor de eventos. Todo final de semana tinha a feira do Carmo, no interior, e tinha a Feira de Conceição. Sempre que ele ia, me levava. Eu achava massa porque, na volta, as moedas que ele trazia eram todas para mim. Na viagem eu via os cantadores na feira. Todos eram amigos de Mané Jacinto. Depois que os emboladores acabavam, iam tomar uma com ele. Meu avô faleceu há seis anos. As feiras do Piancó e do Carmo foram marcantes para mim.
ZONA SUL – E os estudos?
ESCURINHO – Minha família nunca vacilou nesse ponto. Naquele tempo não tinha esse negócio de ir para escola com três ou quatro anos. Entrei aos sete, mas já sabendo ler. Minha mãe, minhas tias e minha irmã mais velha ensinaram. Mas, quando entrei na escola, foi até engraçado. Ficavam me comparando com os outros: “o neguinho de Mané Jonas sabe ler e tu não sabe”. Paralelo a isso, havia minha paixão pelo circo. Antigamente todo circo tinha drama, teatro. Quando o circo saía de Piancó, ficava aquela febre de circo na cidade. Então minha mãe, uma tia que morava com a gente, minhas irmãs e algumas vizinhas montavam uns dramas, lá em casa, para arrecadar fósforo, açúcar e o que desse. Armavam uma tenda para encenar peças como “A Escrava Isaura”, “A Cabana do Pai Tomás”, “Sansão e Dalila”... Eu não tinha noção do que era teatro, mas era um momento massa.
ZONA SUL – Como foi a vida em Piancó?
ESCURINHO – Apesar das dificuldades, minha família vivia bem. Era a época dos militares, e eles não deixavam faltar nada para os funcionários da CHESF. Todo final de ano a empresa mandava um caminhão com uma super-feira. Vinha tanta coisa que dava para distribuir com os vizinhos. O almoço de domingo também era uma festa. A gente vestia a roupa de domingo, ia à missa e voltava para comer galinha, que só se comia aos finais de semana. A gente comia com salada de maionese.
ZONA SUL – Você é católico?
ESCURINHO – Minha mãe me levava para a igreja, mas não tenho vínculo com a religião. Depois dos 15 anos não voltei lá e passei a entender a igreja de outra forma. Nos tempos de Bom Nome, quando papai era vaqueiro e trabalhava na agricultura, ele gostava de cantar. Era boêmio e namorador, embora não bebesse nem fumasse. Lá em casa tinha cavaquinho e violão. Meu pai recebia em casa seus amigos, os malucos de Piancó. Muitos deles tinham retornado à cidade depois de ter passado pela universidade em João Pessoa. E tome farra! Lembro daqueles cabeludos lá em casa tocando violão. O término da hora da Ave Maria, no rádio, no final da tarde, coincidia com a hora em que ele chegava da subestação. Então tome forró. Tocava Esmeralda, Luiz Gonzaga... Mas quando a CHESF resolveu levar alguns funcionários para fazer um curso em Paulo Afonso, tudo mudou. Manoel Jonas foi um dos escolhidos. Dois meses depois, quando voltou, estava vestindo uma camisa “volta ao mundo”, que era a foda da época. Trazia também uma carteira de Hollywood no bolso. Voltou todo invocado, usando aquelas escovas de mão para pentear o cabelo, um par de óculos ray-ban e bigode... Era o satanás em gente! (risos).
ZONA SUL – O que sua mãe achou disso?
ESCURINHO - Ficou puta da vida! A partir daí, ele começou a beber e a farrear de verdade. No domingo não era mais só galinha, era cerveja também! Foi por essa loucura dele, no bom sentido, que em 1973 a gente foi embora para Catolé. Na época eu era pequeno, apenas via aquele movimento todo. Só vim entender o sofrimento da minha mãe muito tempo depois. Minha mãe, mulher de família, segurou a onda. Meu pai foi primeiro, para Catolé. Um mês depois passou um caminhão e levou a gente. A partir daí ele sossegou, mas continuou boêmio: aquela figura simpática e querida por todo mundo.
ZONA SUL – Nessa época você já era Escurinho?
ESCURINHO – Não. Quando cheguei a Catolé havia um jogador de futebol do Internacional chamado Escurinho. Ele faleceu no ano passado. Eu jogava na mesma posição do bicho, e corria pra caramba. Os colegas passaram a me chamar de Escurinho. Assim ganhei o apelido. Um ano depois, no meu envolvimento com música, o povo de Catolé já sabia que Escurinho era o neguinho da subestação, o maconheiro da subestação. Catolé foi uma cidade muito louca. Cheguei lá no momento em que estava saindo da confusão do movimento estudantil de 1968. Catolé tinha aura de revolucionária. A influência da música boa da época, a gente tinha tudo lá. Por exemplo: o disco de Elomar, “Das barrancas do Rio Gavião”, ouvi pela primeira vez em 1979, em uma feira na praça de Catolé. Eu também tinha acesso à loja onde Chico César trabalhava como balconista. Onildo trazia tudo que era novidade da Tropicália e botava lá. Foi daí que veio a ideia de fazer música e participar de festivais. Assim surgiu o “Grupo Ferradura”.
ZONA SUL – Fale sobre o “Ferradura”.
ESCURINHO – O grupo nasceu de tanto a gente ir ao Rio Agon. Quando chovia, formava umas cacimbas. A gente comprava umas garrafas de cana, uns tira-gostos, pegava o violão e ia para o rio na sexta-feira de tarde. Se os pais não fossem atrás, a gente ficava até a segunda-feira, escrevendo e fazendo música. (risos). A partir daí passamos a frequentar os festivais nas cidades próximas.
ZONA SUL – Você já começou como compositor?
ESCURINHO – Nessa época todo mundo do grupo compunha.
ZONA SUL – Você chegou a estudar música?
ESCURINHO – Depois. Na época eu tocava percussão, de maneira intuitiva. Nosso trabalho era autoral. Eu compunha, Chico César também. Branco, Adonias... Todo mundo tinha aquela veia. Mas, no final das contas, eu e o Chico - até por a gente se encontrar mais e ficar mais tempo juntos – a gente compunha mais. Adonias tocava flauta doce; Branco, violão. Mais na frente veio Zé Galinha. Chico César tocava uma viola com uma afinação diferente e uma sonoridade foda. Nem ele consegue repetir essa afinação, hoje. Depois, ele ganhou um violão de presente. Eu tocava percussão e cantava. Mas eu não gostava de cantar, tinha medo. Nos festivais todo mundo tocava e cantava. De tanto a gente ganhar festival, quando surgia um os outros concorrentes já começavam a se perguntar: “os neguinhos de Catolé vêm?” (risos). Chico César – apesar de bem magrinho, desse tamanhinho e com aquela cabeçona - quando abria o bico pra falar, todo mundo já ficava de orelha em pé. Ele sempre foi muito seguro, e não tinha boquinha, não. Ele, pra quebrar o violão na cabeça de um, bastava essa pessoa pedir pra ele tocar Roberto Carlos várias vezes, depois de a resposta ser NÃO.
ZONA SUL – A bebida em excesso não atrapalhava?
ESCURINHO – Ela foi boa pra caramba naquele momento, mas começou a ficar ruim porque passamos a exagerar. Na escola, por exemplo, na hora do recreio já ficava combinado que a gente ia se encontrar para tomar a última “meiota” pra voltar e fazer prova. E continuava a beber depois da última aula. Mas, fomos crescendo. Chico César fez vestibular em 1979 e, no ano seguinte, foi para João Pessoa, estudar. Eu fui para Recife, fazer um negócio que não tinha nada a ver comigo: o curso de técnico em Contabilidade, no Colégio Porto Carreiro. Eu queria ter ido para o Instituto da Teologia da Libertação que estava abrindo na Conde da Boa Vista. Dom Hélder Câmara estava instalando esse curso em todo canto. Minha família não deixou. Se tivesse ido, teria sido melhor pra mim: era mais profundo, mais exigente. Eu era muito louco, não tinha disciplina pra contabilidade. No caminho da escola tinha uma casa de vinho quente. Eu guardava o dinheiro da passagem, ia a pé, para tomar vinho. Ainda estava no vício de Catolé. Mas foi um ano massa porque eu saía da escola e ia direto para o Teatro do Parque, pegar o final dos shows: Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Bubuska, Vivencial, Ave Sangria... Vivi esse momento. Foi um ano inteiro assim: só ouvindo esse pessoal. Lá eu não toquei. De Recife fui para João Pessoa. Saí da capital pernambucana em fevereiro, depois do carnaval. Fui direto para a casa de Pedro Osmar, a quem eu só conhecia através da imprensa. Chico César já estava na cidade, mas fui logo procurar Pedro Osmar. Ele foi muito receptivo, ficou bem alegre. Com ele passei a conhecer um pouco do maracatu, da cultura negra. Mas a minha relação com Pedro Osmar, nesse primeiro momento, foi curta. Até porque eu tive que retornar à Catolé. Mas lá percebi que não tinha condições de ficar. Não tinha mais a música, nem os amigos: era só a família pressionando para eu dar um rumo na vida. Resolvi voltar para João Pessoa. Fui morar na Casa do Estudante. Foi quando conheci Odair Salgueiro.
ZONA SUL – Quem é essa pessoa?
ESCURINHO – O professor que formou os principais músicos que mexem com percussão na Paraíba. Comecei a estudar com ele, mas eu era muito irresponsável e louco. Ele apoiou muita gente, nessa época. Inclusive a mim. Quando eu chegava para uma de suas aulas sem ter estudado em casa, sem ter feito a lição que ele havia passado na aula anterior, Odair me dava uma bronca. Ele percebia que eu não tinha estudado logo que eu pegava nas baquetas. Então, Odair dizia: “pode parar, não vou ficar perdendo o meu tempo com quem não quer estudar”. Eu tentava enganá-lo, dizendo que tinha estudado, mas ele sabia que era mentira. Depois criei um pouco de juízo e, nos três anos que passei com Odair Salgueiro, aprendi pra caralho. Muitos aprenderam com ele, inclusive Flávio Teles (Boy), que está aqui conosco. A partir daí fui conhecendo uma turma que tocava na noite. Como eu era muito louco, nunca aceitei muito esse tipo de trabalho. Tocar na noite de João Pessoa, nessa época, era tocar por birita, para beber. Não vou negar que isso era o que eu queria, mas eu também queria pagar minhas contas. E não tinha como. Ainda toquei no Gambrinus, que pagava direitinho, e com Soraia Bandeira e João Linhares. Mas vi que aquilo não servia para mim. Eu achava que não era certo o dono do bar ganhar mais do que a gente e defendia que o “couvert” todo tinha que ser nosso. Eu era bocão. Saí da noite pensando em criar coisas, fazer músicas. Foi quando veio a história do teatro, do “Vau do Sarapalha”.
ZONA SUL – Estamos ansiosos para ouvir essa história...
ESCURINHO – O “Vau da Sarapalha” é um conto de Guimarães Rosa. O “Grupo Piolim”, de Luiz Carlos Vasconcelos, estava trabalhando na adaptação dessa obra para o teatro. Fui o responsável pela parte musical do espetáculo. Viajamos muito pelo Brasil, América do Sul e alguns países da Europa. O ponto de partida foi a visita do então ministro da Cultura, Sérgio Rouanet, a João Pessoa. Quando Luiz Carlos, doido para cavar recursos para o Piolim, soube da visita, convidou o ministro para assistir a um ensaio de “Vau da Sarapalha”. Era a forma de Sérgio Rouanet ir até o Piolim. A gente achava que esse ministro era um cara velho, grandão, importante. Mas ele era novo e já entrou na sala conversando com todo mundo. O ensaio demorou a começar, mas ele permaneceu tranquilo, aguardando. Era noite de lua, e o cenário ficou todo natural, sem aquela luz toda que veio depois. Tinha no máximo uns candeeiros. O ministro pirou. Terminou a peça, ele perguntou onde a gente ia se apresentar. Não tinha nada agendado, mas Luiz Carlos sabia que vinte dias depois seria realizado um festival em São José de Rio Preto. De tão confiante, ele mentiu para o ministro dizendo que nós participaríamos. Rouanet pediu que telefonássemos para ele quando estivéssemos em São Paulo e prometeu que apresentaríamos “Vau da Sarapalha” também em Brasília. Conseguimos participar do festival em São José do Rio Preto. Já chegamos lá com as passagens compradas para Brasília, hospedagem reservada na cidade e uma apresentação agendada no Teatro Garagem, do SESC.
ZONA SUL – Como foi o espetáculo em Brasília?
ESCURIHO – A apresentação era na segunda-feira, pois não tinha vaga na pauta de teatro da cidade. Começava às oito da noite. Duas horas antes, tinha uma fila arrodeando o SESC. Eu, matuto, nunca tinha visto aquilo. Os caras do teatro viram e cancelaram as apresentações dos grupos que se apresentariam no final de semana seguinte, para abrir espaço para o “Vau de Sarapalha”. O fato é que ficamos um mês em Brasília.
ZONA SUL – Qual a explicação para o teatro lotar em Brasília logo na primeira apresentação?
ESCURINHO – A gente tinha vencido os principais prêmios do festival de São José do Rio Preto. Houve também muito trabalho de boca a boca. Além disso, Barbara Heliodora – que tinha nos assistido em São José do Rio Preto - botou uma matéria na “Veja” exaltando a peça. O sucesso em Brasília nos garantiu uma proposta para temporada em São Paulo. Mas antes de ir para lá, voltamos a João Pessoa. Já tinha integrante do grupo reclamando: “vamos pra casa, não aguento mais, quero ir pra casa”. Fomos para São Paulo e fizemos dois dias no Teatro Vergueiro. Tinha mais gente que em Brasília! Saímos de lá para o Teatro Gláucio Gil, no Rio de Janeiro. Era uma quarta-feira e o problema se repetiu: não coube todo mundo que queria assistir. O grupo que apresentaria no final de semana nos cedeu o lugar. Depois disso, passamos mais um mês. Tudo lotado. Na sequência, fomos para Bogotá, na Colômbia. De lá para a Venezuela, onde tivemos prejuízo. O empresário não soube negociar ou roubou. O fato é que ficou de depositar o dinheiro na nossa conta, quando a gente voltasse para o Brasil, e nada...
ZONA SUL – A questão da língua, como ficou?
ESCURINHO – Nunca foi problema. Apesar do texto, a peça é muito plástica e sonora. A estética é muito forte. Nas vezes em que foi tentado botar tradução simultânea, legenda, neguinho reclamou. Na Alemanha, em Hamburgo, aconteceu isso. Colocamos legenda, mas no outro dia pediram para tirar. Enquanto estavam lendo, não assistiam ao espetáculo. Já em Portugal, amargamos um fracasso na primeira temporada. E a gente pensava que ia fazer o maior sucesso. Na primeira viagem a Europa, fizemos Bélgica, Alemanha e Portugal.
ZONA SUL – Até então você estava mais voltado para o teatro do que para a música?
ESCURINHO – Estava dividido. Mas eu sempre gostei de música, e não de teatro. Eu estava envolvido, era um momento massa, estava ganhando um dinheirinho, mas sabia que tinha que me arrumar na música. Depois de uma dessas viagens, comprei um gravador Aiwa para registrar minhas ideias, as composições que eu fazia. Eu já vinha fazendo isso quando houve uma parada do Sarapalha em João Pessoa e eu fui morar com o pessoal do “Carroça de Mamulengo”. Comecei a montar minhas coisas, a tocar em vários instrumentos e a cantar o que eu havia registrado nas viagens. Foram surgindo umas músicas e passei a mostrar esse trabalho. Depois convidei um baixista e um violonista. Rolou um show no Teatro Santa Rosa. No final da apresentação, Alex Madureira, que estava voltando do Rio, chegou gritando, cheio de cachaça: “meu irmão, esse som é muito bom, mas esse violonista não toca nada”. Eu já tinha ouvido falar muito sobre ele. Saímos de lá para a praia, onde bebemos todas. Nem lembro como cheguei em casa, mas na segunda-feira eu estava na casa de Alex, ao meio-dia. Começamos a trabalhar. Em um mês a gente já tinha várias músicas. Depois veio a banda e João Pessoa começou a conhecer o trabalho de Escurinho e Alex Madureira. Primeiro foram os bares da periferia, o Bar da Tapa e os barzinhos do centro. Gravamos o primeiro disco em um período curto.
ZONA SUL – Como é o nome?
ESCURINHO – “Labacé”, gravado em 1995. Fizemos shows em várias cidades. Uma galera de Recife, entre eles Lula Queiroga, estava nos assistindo em um bar em João Pessoa. Rolou um buchicho e logo depois fizemos um show em Recife, no “Rei do Cangaço”. De lá, a gente tocou no “Abril Pro Rock”. Assim começamos a formar um nome naquela região. Depois dessa fase de Recife, percebi que a gente tinha um produto, mas não tivemos a mesma estrutura, por exemplo, que o pessoal do Manguebeat teve. Pernambuco era um estado melhor estruturado e com uma maior visibilidade. A televisão estava se organizando, a mídia de Recife apostava na cultura local. O pernambucano tem orgulho das coisas do seu estado, se valoriza. É assim que tem que ser. Em João Pessoa ainda não tivemos isso. O Labacé fazia um som diferente do que o pessoal do Mangue estava fazendo. Na nossa mistura não entrava só o maracatu, rock, funk, música eletrônica... Nossa influência era muito mais a música da caatinga do que a do mangue. Alex tinha uma proximidade com o cariri, com a cultura indígena.
ZONA SUL – Como a Paraíba recebeu essa novidade que foi o trabalho de vocês?
ESCURINHO – Nem sei se recebeu até hoje, pois a gente ainda está no processo de fazer público, apesar de 16 anos na estrada. Teve recentemente, na Paraíba, um festival nacional de arte. Não fomos convidados para tocar. Alex tocou no circuito do frio de Pernambuco, mas não no da Paraíba. Eu toco em Garanhuns um ano sim, outro não. Mas não toco no circuito da Paraíba. A gente abriu um show para Daniela Mercury, lá no Busto de Tamandaré, em João Pessoa. Tinha gente pra caramba, mas depois nenhum empresário telefonou para negociar a contratação do nosso show. A gente tem que sempre estar correndo atrás, apesar de ter um público fiel. O ideal seria não precisar pedir passagem a um e a outro para viajar, como ocorreu agora nessa vinda a Brasília.
ZONA SUL – O segundo CD foi “Malocage”, lançado em 2003. Em 2004 saiu o DVD patrocinado pelo Itaú Cultural. Fale sobre esses trabalhos.
ESCURINHO – A gente estava interando dez anos de grupo Labacé sem nem se tocar desse aniversário. Foi quando o disco “Malocage” saiu. Um belo dia a gente estava em Recife, quando um amigo, Gil Sabino, disse que uma pessoa da gravadora Atração iria assistir a nosso show na Rua da Moeda. Ela viu o show em Recife e depois em Campina Grande. Na segunda-feira recebemos um telefonema da gravadora. Eles queriam assinar um contrato para distribuir o “Malocage”. Três meses depois do contrato assinado, surgiu a oportunidade do Itaú Cultural. Se não tivéssemos assinado, não teria dado certo, porque eles exigiram vínculo com alguma empresa ligada à música. A Atração entrou na ponte com eles e viabilizou o DVD que selou os dez anos de Labacé.
ZONA SUL – A banda Labacé são vocês quatro há quanto tempo?
ESCURINHO – Podemos dizer que, com esse núcleo aqui, já são 15 anos. Só que vai entrando e saindo gente. Hoje é outro processo, mas, mesmo assim, a gente nunca parou, nunca deixou de compor, de tocar, de viajar. Cada um, lógico, cuidando da sua própria vida. Igor Ayres, carioca, toca baixo. Ele tem a banda Unidade Móvel, que já está no segundo disco. Flávio “Boy” Teles toca guitarra. Já esteve em bandas de rock, como Gargalo, Cobaio... Todo mundo criando suas coisas. Apesar de eu não encontrar mais Alex Madureira com a mesma frequência de antes, a gente continua criando, fazendo música juntos. Se for sentar para organizar, já tem material para outro disco.
ZONA SUL – O DVD abriu portas para você?
ESCURINHO – Não abriu um portão imenso, que tenha proporcionado visibilidade internacional, mas, por exemplo, depois dele comecei a achar meu disco nas “Lojas Americanas”, na Internet, a ouvir em rádios do Japão, da Áustria... Esse processo foi feito pela Atração e, depois, pelo Itaú. Um belo dia o Itaú ligou dizendo que iriam montar um estande na Feira da Música, em Fortaleza. Mandaram as passagens, pagaram cachê, tudo. A gente sempre tocava de graça no Dragão do Mar. Então, o DVD valeu por essas coisas.
ZONA SUL – E a turnê que você fez com Chico César pela Europa?
ESCURINHO – Quando Chico César estava para lançar seu primeiro disco, me telefonou. Ele não tinha gostado do resultado de umas gravações que tinha feito com Paulo Ró. Passamos um mês produzindo, trabalhando e gravando. Quando estava perto de entrar no estúdio, eu estava em João Pessoa, preparado para voltar para gravar. Mas o negócio esfriou. Depois eu soube que Ivan Lins - que era o dono da gravadora “Velas” - tinha dito que o material era muito bom e não deveria ser produzido daquela forma. Ivan Lins desaprovou a produção que a gente tinha feito. Então Chico resolveu fazer o trabalho só. Gravou “Aos Vivos” no teatro, com Lenine e Lanny Gordon. Tudo o que Ivan Lins queria. Mas Chico me chamou para o show de lançamento, no SESC Pompeia, junto com Lanny Gordon, Lenine e Simone Soul. A platéia estava cheia de compositores e cantores, como Leila Pinheiro, Ivan Lins... O bicho detonou ali, com aquele show. Um mês depois fui com ele lançar o disco em Natal. Não tinha ninguém. Passou mais um mês e voltamos para participar do projeto Seis e Meia, no Teatro Alberto Maranhão. Casa lotada. Parecia que não cabia mais. Ainda o acompanhei em Fortaleza. Depois passei um tempo sem tocar com Chico César.
ZONA SUL – Mas você não falou ainda sobre a turnê pela Europa.
ESCURINHO – Simone Soul era quem o acompanhava. Mas quando Chico César foi fazer a turnê na Europa, ela estava comprometida em tocar bateria para os Mutantes, no projeto de retorno do grupo para se apresentar em Londres. Chico me ligou dizendo que tinha uns shows na Europa, mas não queria ir só. Eram doze shows. A maior sorte dele foi que eu estava em uma fase sem beber. E ele estava bebendo muito. Imagina dois loucos, lá do outro lado do mundo, enchendo a cara. Mas a turnê foi ótima.
ZONA SUL – Quais suas influências? Que tipo de música você faz?
ESCURINHO – Minhas influências são a música regional, o violeiro, o embolador de coco, o repentista, o forrozeiro, a literatura de cordel... Quanto ao tipo de música que faço, o normal seria eu dizer: MPB. Mas, se for entrar em detalhe, o que faço é uma mistura. Entra rock, coco, baião... Entra tanta coisa que o melhor mesmo é simplificar e dizer que a gente faz é música popular brasileira mesmo.
ZONA SUL – Você comemorou 50 anos com uma festa, um grande show rodeado de amigos, em João Pessoa.
ESCURINHO – Quando você fala em 50 anos, eu penso logo em meio século. É muita coisa, mas o importante é que a comemoração do meu aniversário foi massa demais. Apareceu até gente que eu não sabia que tocava a minha música. Teve, por exemplo, “As Calungas e Uirá Garcia” tocando um lado B do nosso disco que a gente nunca toca. O bom é que além dos amigos normais, apareceram outras bandas.
ZONA SUL – Escurinho modelo 50 anos abandonou a bebida e hoje é um homem regenerado?
ESCURINHO – Continuo degenerado, mas não bebo mais. Bebida me fez muito mal. Quem quiser beber, que beba, não tenho nada contra. Mas eu não bebo porque sinto que não tenho mais condição de beber.
ZONA SUL – Como foi ganhar o festival de Serra Talhada, sua terra natal, um mês antes de comemorar seus 50 anos?

ESCURINHO – Eu estava em casa quando Ester falou que ia ter um festival em Serra Talhada sobre o cangaço. Como eu não tinha música naquela linha, compus uma: “Nas estradas de Bom Nome”. Fala sobre o cangaço sob a ótica da história da Revolução de Princesa e do coronel José Pereira. Inscrevi-me sem esperar muito. Classificado, quando fui disputar o festival ficaram sabendo que eu tinha nascido lá. Dei entrevista para vários veículos de comunicação da cidade. Depois da apresentação - a minha era a penúltima música - achei que tinha vencido, pela reação do público. Na descida do palco, a TV Asa Branca me entrevistou também como se eu tivesse sido o vencedor. Mas ainda faltava o último se apresentar. No fundo eu pensava que ganharia o terceiro lugar. O prêmio era dois mil e pouco. Eu já estava achando massa demais. Porém, o apresentador começou a anunciar o quarto, o terceiro, o segundo lugar... E nada de chamar meu nome. Eu pensei logo: “fodeu”. Foi quando me chamaram para receber o prêmio de melhor intérprete. Imaginei que era uma premiação de consolação: R$ 2 mil. Depois que recebi, quando estava descendo, me seguraram no palco enquanto fui anunciado como o vencedor do festival. Voltei de Serra Talhada com seis mil reais em dinheiro, porque era domingo e as agências bancárias estavam fechadas.
ZONA SUL – Quais os planos para o futuro.
ESCURINHO – Com essa dificuldade toda de produzir show em João Pessoa, no ano passado me veio a idéia de desenvolver um projeto chamado “Ciranda de Maluco”. A princípio a gente quer tirar momentos dos shows para improvisar. Vamos aproveitar essas improvisações para gravar um disco. Só que está ficando meio diluído. Tem show que é gravado, mas outros não. Mas antes desse CD de cirandas, vamos lançar um disco que já está pronto, chamado “Princípio Básico”. Depois desse lançamento é que trabalharemos o disco de ciranda improvisada.
ZONA SUL – Se despeça do leitor do jornal. 
ESCURINHO – Foi ótimo dar essa entrevista aqui em Brasília na casa do meu amigo Roberto, junto com meus amigos da Paraíba Alex Madureira, Ígor e Boy, da minha mulher Ester, do maranhense Roque, da potiguar Inês e de mais tanta gente que está aqui se divertindo, comendo churrasco e fazendo planos pro futuro. E vamos embora pra frente, que a palavra do poeta é a bala e toda bala atingida tem a meta.