segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Entrevista: Titina Medeiros

CONTRACENANDO COM A VIDA E VIVENDO DE ARTE

A acariense Titina Medeiros nasceu Isabel Cristina de Medeiros, em Currais Novos. Atriz, palhaça e jornalista, ela esteve recentemente em Brasília encenando o espetáculo “A mulher revoltada”, produzido pela Fomenta. A peça faz parte do projeto do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) “Novas Dramaturgias Brasileiras”. Na véspera de retornar à Natal, Titina concordou em falar para o Zona Sul. Em pouco mais de uma hora ela fez um resumo de sua trajetória, falou sobre sonhos e planos e também cobrou do Poder Público mais atenção com a arte potiguar. Vale a pena acompanhar o que Titina tem para dizer. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Você nasceu em Currais Novos, apesar de se considerar acariense...
TITINA – Só nasci em Currais Novos, mas sou de Acari. A verdade é a seguinte: minha mãe estava decidida a fazer ligadura de trompas no meu parto. Tive que nascer em Currais Novos porque não tinha essa cirurgia em Acari.
ZONA SUL – O que seus pais faziam?
TITINA – Meus pais eram comerciantes. Minha mãe, além disso, era professora do estado. Quando iniciou a carreira, eu ainda não tinha nascido. Ela lecionou no Mobral, depois atuou no supletivo. Ela ensinava o que se refere à sétima e oitava séries.
ZONA SUL – Qual o tipo de comércio da família?
TITINA – Meu pai tinha uma bodega. Minha mãe bordava e preparava doces, bolo e dindim para vender na bodega.
ZONA SUL – Qual o nome dos seus pais?
TITINA – Maria Isabel de Medeiros e Francisco Torres de Medeiros.
ZONA SUL – Quais suas primeiras lembranças da vida?
TITINA – Lembro de tudo: da rua da Matriz, onde fui criada; dos riscos das calçadas; dos vizinhos; das brincadeiras... As brincadeiras eram sazonais, dependendo da estação do ano, elas eram as mesmas. Tinha a época da corda, a do elástico, da academia, da barra-bandeira, da bila – que em Brasília chama bola de gude e em Natal é conhecida como biloca... Também brincávamos de “tô no poço”, queimada e de contar história de assombração quando faltava energia. Tenho um imaginário infantil muito fértil e devo isso a Acari. Adorava tomar banho no rio ou no açude e passar férias na zona rural. Para a minha profissão, tudo isso foi uma herança valiosa. Fui uma menina que estava o tempo todo na rua.
ZONA SUL – E as brincadeiras de boneca?
TITINA – Vixe, também brinquei muito! As brincadeiras pareciam novelas. Na minha casa e na das outras amigas tinha um quarto no quintal. Lá a gente criava as famílias das bonecas. Eu não tinha barbies, mas também não era como a minha mãe, que dizia que brincava com sabugo de milho. Não fui dessa fase, mas na minha época qualquer ursinho virava o pai. A gente emendava caixas de fósforo para fazer sofá. Customizava, o sofá ficava lindo. A gente construía núcleos familiares que tinham nomes. Essas casas de boneca ficavam armadas nos quartos dos quintais. Ninguém mexia, e era como se fossem cidades.
ZONA SUL – A brincadeira era por capítulos, como nas novelas?
TITINA – Completamente por capítulos. E mais, elas duravam como as novelas. Sofríamos a influência da televisão da década de 1980. As histórias eram criadas no improviso.
ZONA SUL – A novela influenciava na história, no enredo da brincadeira?
TITINA – Não me lembro de ver um assunto na novela e ele passar para a brincadeira de boneca. Mas, com certeza, influenciava. Até homossexualismo era assunto.
ZONA SUL – Você assistiu muita TV?
TITINA – Eu achava que tinha assistido, mas cheguei à conclusão de que não. Tenho convivido com uns amigos que sabem tudo de televisão. E eu não assisti a muitos dos programas que eles comentam. A rua tomava muito mais do meu tempo. Lembro de algumas novelas: “A gata comeu”, “Pão pão, beijo beijo”, “Vale tudo”, “Dona Beija”, “Que rei sou eu”, “Rainha da sucata”, “Ti-ti-ti”. Hoje tenho uma péssima relação com a televisão. Chego a passar meses sem ligá-la. Sou hiperativa: descobri que tenho dificuldade de parar e assistir. Até a Xuxa, de quem eu gostava quando tinha nove anos, eu larguei muito rápido: quando completei onze.
ZONA SUL – Algum ator ou atriz lhe chamou atenção nessa época?
TITINA – Nessa época eu não pensava em ser atriz. Mas fui fã de Lucinha Lins por causa daquele programa “Pirlimpimpim”. Você vai se surpreender, mas fui fã mesmo, aos nove anos de idade, de Maria Bethânia. Sabia cantar todas as músicas. Eu tinha uma relação muito mais forte com a música do que com a telenovela.
ZONA SUL – Você teve oportunidade de conhecer o teatro na sua fase de colégio?
TITINA – Não. Só conheci o teatro aos 16 anos. Não me alfabetizei na escola, mas no sítio de minha tia Luzia, aos cinco anos. Ela tinha uma biblioteca em casa e era diretora da escola do sítio. Tive acesso a livros na casa dela. Aprendi a ler e a nadar no sítio dessa minha tia. Estudei em Acari até a terceira série em uma escola perto da minha casa. Na quarta série fui estudar em Currais Novos. Minha primeira escola foi a Escola Estadual Tomaz de Araújo. Depois fui para uma escola particular, o Educandário Jesus Menino.
ZONA SUL – Você foi uma boa aluna?
TITINA – Fui boa aluna em algumas disciplinas, como literatura, geografia, história e as relacionadas à comunicação e expressão. Nas matérias da área de exatas, sempre tive dificuldades e costumava ficar em recuperação. Apesar de tímida, sempre fui de extremos: muito calada em alguns lugares, hiperativa em outros. Eu conversava muito e sempre sentei no fundão.
ZONA SUL – Quando você foi a Natal pela primeira vez?
TITINA – Comecei a ir a Natal cedo. Meus avós e alguns primos moravam lá. Lembranças infantis de Natal tenho da praia de Ponta Negra. Depois disso lembro que passei a veranear na praia de Búzios, já com dez anos. Mesmo morando em Acari, aos 12 anos eu já pegava ônibus em Natal.
ZONA SUL – Na época de colégio em Acari você imaginava o que para o seu futuro?
TITINA – Eu queria ser musicista e também imaginava algo relacionado à comunicação, como jornalismo. Sempre gostei de notícia. Aos 11 anos entrei na Banda Filarmônica Maestro Felinto Lúcio Dantas, de Acari, para estudar trompete. Eu queria ser trompetista. Aos 15 anos fui morar em Parnamirim durante um ano. Em seguida voltei para Acari e reingressei na banda. Só depois, quando fui morar em Natal para fazer o segundo grau, conheci o teatro.
ZONA SUL – Em qual circunstância se deu essa mudança para Natal?
TITINA – Minha mãe já morava lá. Meu pai morava em Acari. Eles não eram separados, mas meu pai, nessa época, era vereador em Acari e morava na cidade. Eu não gostava de Natal.
ZONA SUL – Por que?
TITINA – Em Acari eu morava numa casa imensa e estudava em uma escola linda e maravilhosa. Em Natal, o apartamento onde fui morar e a escola eram cubículos. Fui estudar no Dinâmico, o antigo Colégio São Luiz. Eu achava a escola feia. Só tinha prédio, não tinha uma árvore. A escola de Acari era o contrário. Em Acari também estavam os meus amigos e a banda de música. Todo final de semana eu viajava para lá, com o objetivo de ensaiar na banda. Eu não tinha motivo para gostar de Natal, até porque eu nem era apaixonada pelo mar. Não sou uma pessoa do mar, sou uma sertaneja. A praia nunca me fez falta. Acho lindo, mas o mar não me faz falta. O campo, sim, me faz falta. Voltei para Acari. Quando fui ficando maior, que chegou o primeiro ano do segundo grau, aí foi o jeito ir. Minha mãe e minhas irmãs já moravam em Natal. Foi quando aceitei na minha cabeça que era a hora. Me senti preparada para ir morar na capital.
ZONA SUL – Por que você não seguiu estudando música em Natal?
TITINA – Porque minha mãe nunca quis comprar o instrumento. Em Acari eu tinha o trompete da Filarmônica, que permanecia sob meus cuidados. Sem instrumento para estudar e dependendo financeiramente dos meus pais, tive que largar a música. A sorte foi que logo em seguida conheci o teatro.
ZONA SUL – Como foi?
TITINA – Foi uma experiência epifânica. Eu nunca tinha pensando em ser atriz. No máximo tinha vivido aquele imaginário de criança, de querer ser levada pelo circo. Mas nunca tinha passado pela minha cabeça ser atriz. O mundo da arte já me encantava, mas não tinha se consumado. Até que Tião (o jornalista Sebastião Vicente) e Nane (Rejane Medeiros, jornalista esposa de Tião e irmã de Titina) me levaram para um festival que teve em Natal, em março de 1992, chamado “Cumplicidades”. O projeto levava espetáculos de Natal para serem exibidos em Portugal e trazia peças portugueses para serem encenados em Natal. Lembro dessa experiência como um clarão na minha vida. Como se tudo tivesse ficado nítido, a partir dali. Foi a primeira vez em que pisei num teatro, no caso o Alberto Maranhão. Fui ver o monólogo da grande atriz portuguesa Maria do Céu Guerra. O espetáculo era “O pranto de Maria Parda”, de Gil Vicente.
ZONA SUL – O que mais a impressionou?
TITINA – Primeiro, aquele espaço, que, por si só, é mítico. Eu nunca tinha frequentado. Quando entrei, as cortinas já estavam abertas e a luz muito baixa. Tinha um amontoado no meio do palco, parecia um saco de juta. Fiquei, na penumbra, olhando para aquele saco. Soaram os toques. De repente, o negócio começou a se mexer. Eu achava que era um saco de batatas, ou algo pesado. Daquele saco saiu a atriz. Essa mulher me levou para Portugal, para a França, me fez ver coisas... Nunca nenhum mágico tinha feito uma mágica daquela na minha vida. Meu universo das brincadeiras de Acari se revelou ali em forma de profissão. Achei que a atriz era uma velha. Ela era sozinha, mas vi muitos personagens. Quando tirou a roupa, vi que não era uma velha. Foi muito louco na minha cabeça. Tão louco que, quando voltei pra casa, Natal tinha se tornado diferente para mim. Nessa volta pra casa, decidi que era aquilo que eu queria fazer na vida. Não foi fácil. Eu não sabia se tinha vocação. Desejava, mas não sabia se podia. Não foi o cinema nem a televisão que me fez ter vontade de ser atriz, foi o teatro. Especialmente essa primeira peça.
ZONA SUL – Qual seu primeiro passo na busca de concretizar esse desejo?
TITINA – Procurar oficinas de teatro no jornal. Encontrei a escola de Jesiel Figueiredo, na Capitão-Mór Gouveia. Fui lá. Era uma escola gratuita, mantida pelo SESI. Minha família não tinha dinheiro, jamais eu ia poder pagar uma oficina de teatro. Meu primeiro espetáculo foi com Jesiel Figueiredo, “A Bela Adormecida”.
ZONA SUL – Você encontrou alguma dificuldade para se adaptar ao teatro?
TITINA – Sim, sobretudo porque o que vi em Maria do Céu Guerra foi algo muito sublime. Vi o ouro mesmo, algo muito apurado da linguagem do teatro. Eu buscava aquela linguagem. Quando fui para Jesiel, não encontrei aquela mágica. Não quero ser injusta com o teatro de Jesiel, mas lá, por exemplo, a roupa da fadinha que eu interpretava era muito ipsis litteris. Já o figurino da Maria Parda, não era real. O teatro trabalha com os signos, com os símbolos. Para mim, quanto mais o teatro se aproxima da realidade, mais frágil ele fica. Mas isso eu consigo explicar hoje, depois de tantos anos de profissão. Antes, era apenas uma sensação, sem nenhuma explicação. Eu não sabia nem o que era teatro.
ZONA SUL – O RN deve a Jesiel mais pelo esforço e por sua dedicação do que pelo talento que tinha?
TITINA – Não digo isso, até porque o tempo era outro. Mas é inegável que ele foi um operário do teatro. Mas, olhe a minha idade: não tenho cacife para analisar a importância de Jesiel Figueiredo. Quando convivi com ele, eu tinha 17 anos. Para complicar, a memória do teatro potiguar é perdida. Não posso falar de algo que não sei. De qualquer forma, considero que tive sorte de participar de um espetáculo com ele. Eu era super imatura e talvez sequer tenha entendido o teatro de Jesiel. Mas se você me perguntar quem é o maior encenador do Rio Grande do Norte, responderei na hora: João Marcelino. Fui discípula de João Marcelino. No trabalho dele achei o que tinha encontrado em Maria do Céu Guerra.
ZONA SUL – Qual o próximo passo que você deu após a participação no teatro de Jesiel?
TITINA – Parei porque tinha que estudar para o vestibular de jornalismo, curso no qual tinha pensado a vida inteira. Paralelo, fiz uma oficina com um cara chamado André de Oliveira, uma coisinha curta. Depois fiz uma oficina com João Marcelino. Nessa oficina ele chamou minha prima, Nara Kelly, que também é atriz, para entrar no grupo dele, que era o “Grupo Tambor”. Também entrei na faculdade: prestei vestibular para jornalismo, mas ingressei em artes cênicas, a segunda opção. Não fiquei porque era licenciatura. Fiz o primeiro ano de artes cênicas, mas não me identifiquei com o curso porque não tinha teatro, era arte educação. Se eu tivesse a maturidade que tenho hoje, teria terminado esse curso. Tentei vestibular de novo e passei para jornalismo. Nessa época pedi a minha prima para falar, lá no “Tambor”, para eu assistir aos ensaios. Ela falou e João Marcelino concordou. Era na Vila de Ponta Negra, e eu morava na Cidade Satélite, mas passei a ir todos os dias porque lá tinha o que havia me encantado. Não conseguia me desgrudar deles. Depois de bem um mês indo pra lá todo dia, só para assistir, João Marcelino perguntou: “amanhã você vem?”. Respondi que sim. Eu nem tinha me tocado que eles não me chamavam para voltar: eu simplesmente chegava lá e assistia. Ele completou: “então amanhã traga roupa de trabalho”. Roupa de trabalho é calça leve, blusa velha... Comecei a participar com eles, até que uma atriz teve que viajar e a substituí no espetáculo.
ZONA SUL – Qual era o espetáculo?
TITINA – “O Moço que Casou com Mulher Braba”, adaptação de um texto medieval. Entrei no grupo e depois montamos um espetáculo lindo chamado “O Príncipe do Barro Branco”. Permaneci durante três anos no “Tambor”. Foi minha escola de teatro. O grupo me fez ter a devoção pelo teatro. Trabalhávamos de segunda à sexta, às vezes até aos sábados, das seis e meia às dez da noite. Passei três anos indo todo dia para o grupo de teatro trabalhar como quem vai para a escola. Nesse período montamos dois espetáculos.
ZONA SUL – Sem remuneração.
TITINA – Sem remuneração. Mas no tempo do Profinc (Projeto de Financiamento à Cultura), a chamada “Lei Mineiro”, conseguimos verba para “O Príncipe do Barro Branco”. Essa montagem durou um ano e meio. Graças a essa verba, durante seis meses eu tive um salário até razoável. Pra quem nunca tinha ganho nada, receber para fazer teatro me deixou muito satisfeita. Esse espetáculo me abriu portas e pensamentos sobre a cultura popular, a cultura do Nordeste, a cultura do meu próprio lugar. Me fez não largar esse osso nunca mais. Me fez entender que era aquilo que eu queria: a relação de ator de teatro de grupo. Eu achava que ia completar 50 anos e nunca ia sair desse grupo. Infelizmente o grupo acabou.
ZONA SUL – Quando concluiu jornalismo, o que você resolveu fazer?
TITINA – Quando concluí jornalismo eu já sabia que não ia ser jornalista. Já tinha desistido.
ZONA SUL – O motivo da desistência foi a paixão pelo teatro?
TITINA – Claro. Fiz jornalismo para satisfazer um desejo que vinha desde a infância. Mesmo o teatro vindo depois, eu antes de atuar como jornalista trabalhei como atriz. Trabalhei dois anos com Tácito Costa na assessoria da FIERN (Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte). Desisti do jornalismo sem peso na consciência.
ZONA SUL – Qual era sua preferência dentro do jornalismo?
TITINA – Desisti do curso muito rápido, apesar de ter demorado seis anos para concluí-lo. Eu largava as aulas para qualquer coisa. Qualquer montagem de espetáculo que precisasse ter ensaio, eu não ia para a UFRN. Já sobrevivia de teatro. Era ele que pagava meu aluguel e as minhas contas. Nunca pensei se escolheria rádio, televisão ou jornal. Do jornalismo eu só queria o diploma. Porém, o professor de radiojornalismo, Maurício Pandolphi, disse que eu tinha talento para rádio e muito poder de comunicação. Só que pra mim serviu apenas como bom elogio de professor. Quando gravei umas matérias para a Globo foi que entendi o que o professor havia falado. Ele entendeu antes de mim que eu levava jeito para a comunicação.
ZONA SUL – Como surgiu a oportunidade de você gravar matérias para a Rede Globo?
TITINA – Um jornalista da TV Cabugi, Geider Henrique, era meu fã. Assistia todas as peças que eu fazia. Eu e ele frequentávamos a casa de amigas em comum, em Pium. Naquela época, tramitava um projeto de Lei no Congresso que obrigava as retransmissoras a reservarem 15% ou 30% de sua programação para produções locais. A Globo, preocupada com a possibilidade de essa determinação ser aprovada, e também em manter o seu padrão, resolveu investir para descobrir novos talentos. Regina Casé apresentava um programa chamado “Brasil Legal” e, ao que consta, já estava cansada de viajar pelo país. Pela via do “Brasil Legal”, a Globo lançou para as afiliadas o desafio de elas encontrarem pessoas com capacidade para fazer aquilo que Regina Casé fazia, nos seus locais de origem. Cada estado teria uma pessoa fazendo matéria no seu próprio território. Com isso, a Globo também treinava os engenheiros de som e de iluminação, os cinegrafistas, roteiristas, enfim, dava um suporte para toda essa equipe das afiliadas. Na TV Cabugi, três núcleos se formaram pra fazer os testes e mandar pra Globo. Geider se animou com a possibilidade e me convidou, achando que eu tinha jeito pro negócio. Só que eu nunca tinha feito nada na TV. Inclusive, já tinha feito muito teste para comercial e nunca tinha passado. Geider ligou dizendo que gostaria de fazer um teste comigo. Respondi que achava que eu não levava jeito pra coisa. Ele insistiu e me incentivou: “fazer o teste não custa nada”. Topei. Eu só pensava em ganhar algum dinheiro pra sobreviver. Na minha cabeça não era nem fazer um teste, mas algum dinheiro que poderia pingar. Vivia literalmente de teatro em Natal, então, era muito dura. Só tinha roupa que Nane (a irmã Rejane Medeiros) mandava pra mim. Só usava roupa usada. Fiz o teste, achei minha performance péssima. Fiz um monte de burrada.
ZONA SUL – Qual era o teste?
TITINA – Criatura, me botaram pra cobrir um dia antitabagismo na AABB. Os meninos fazendo natação, um dia de divertimento. Chico Daniel também estava lá.
ZONA SUL – Chico Daniel é o maior da história do mamulengo brasileiro. Infelizmente morreu sem o devido reconhecimento.
TITINA – Concordo. Chico Daniel é a coisa mais bonita que nasceu no solo do Rio Grande do Norte. Mas Geider viu que a minha matéria tinha ficado muito ruim e propôs a gente fazer uma gravação com Chico Daniel. Fomos gravar na casa dele. Novamente me achei péssima, mas um mês depois, Geider falou que tinham adorado. Nem existia programa, apenas havia a ideia. A Globo pediu que fosse gravado um piloto. Se desse certo, seria expandido para os demais estados. O piloto rolou, foi bom, e eu fiz quatro matérias. Mas depois eles abortaram o programa.
ZONA SUL – O que você fez nesses quatro programas para a Globo?
TITINA – No primeiro mostrei como se fazia o doce de sangue de porco, o chouriço, lá em Carnaúba. A segunda matéria foi a Paixão de Cristo lá no Sítio Góes, em Apodi. A comunidade inteira faz esse espetáculo, é muito lindo. Tudo isso passou no Fantástico. O terceiro programa foi a facheada, a pesca de siri em Ponta Negra, em Alagamar. A quarta matéria foi exibida no programa do Luciano Huck. Gravei no Rio Grande do Sul mostrando a fabricação de um prato típico da colônia italiana de lá. A Globo escolheu os quatro apresentadores que mais se destacaram no “Brasil Total” daquele ano: eu, um de Recife, outro do Rio Grande do Sul e um travesti de Juazeiro do Norte. O menino do RS foi pra Natal, eu fui para o RS, o de Juazeiro para Recife e o de lá para Juazeiro. Cada um foi encarregado de fazer um prato típico esquisito daquele lugar para o qual tinha ido. Pra conseguir fazer o prato, tinha que cumprir provas. Por exemplo, para eu conseguir o trigo, tive que fazer rafting. Depois tive que subir uma serra gaúcha para encontrar outro ingrediente.
ZONA SUL – Você cozinhava o prato?
TITINA – Não, era uma grande brincadeira. Meu papel era participar das provas e encontrar os produtos para que uma italiana fizesse o prato. Foi apresentado no programa de Natal do Luciano Huck.
ZONA SUL – Você foi remunerada por esse trabalho na Globo?
TITINA – Acho que na época fui bem remunerada. Isso não significa ficar rica com o programa, mas recebi uma graninha legal. Para dois dias de trabalho, não era uma grana que eu ganharia facilmente em Natal.
ZONA SUL – Quando esse projeto nacional naufragou não surgiu a possibilidade de você ser encaixada em outra área da própria Globo ou da TV Cabugi?
TITINA – Não recebi nenhum convite nesse sentido.
ZONA SUL – E se tivesse surgido, você toparia?
TITINA – Nem surgiu convite e eu também não fui atrás. Não mexi uma palha pra isso. Eu era muito satisfeita com a minha vida. Eu sou meio paradona.
ZONA SUL – Se tivesse surgido a possibilidade de você ser contratada, por exemplo, como repórter especial da então TV Cabugi, você teria topado?
TITINA – Acho que sim. Por uma questão muito simples de sobrevivência.
ZONA SUL – Você não estaria se realizando nesse trabalho?
TITINA – Não é por isso. No “Brasil Total” eu me realizava muito. Nem entendia aquilo como jornalismo. Simplesmente o meu trabalho era revelar essas pessoas, deixá-las à vontade. Fui a lugares que me enriqueceram muito. Por exemplo: o sistema social que o Sítio do Góes vive, não existe similar no Brasil. As pessoas usam roupas umas das outras, ninguém é dono das bicicletas, elas são de todos. Só os índios vivem assim. Não encarava aqueles programas como uma chateação ou um mero cumprimento de obrigação. Para mim também era um respiro do teatro. Aquele tipo de trabalho eu faria com prazer.
ZONA SUL – Quem nunca viu essas gravações têm a possibilidade de assistir pelo Youtube?
TITINA – Se buscar por Titina Medeiros vai achar um clipe com alguns trabalhos que eu fiz, incluindo alguma coisa do “Brasil Total”.
ZONA SUL – Você tem algum site para divulgar o seu trabalho?
TITINA – Acho tão estranho isso... Não saberia ter um site Titina Medeiros. Acho que é porque nasci dentro dos coletivos, dos grupos. Porém, tenho um blog http://titinamedeiros.blogspot.com/
ZONA SUL – Você hoje ainda se sente fazendo parte de algum coletivo?
TITINA – É uma resposta bem particular. Desde 2003 trabalho com o grupo “Clowns de Shakespeare”. Sou contemporânea dos meninos: Fernando Yamamoto, Marco França, César Ferrario, Renata Kaiser e mais alguns outros. Trabalho como atriz convidada desde 2003. Nesse ínterim, também fiz parte do “Grupo Carmin”. Éramos eu e Quitéria Kelly. O grupo acabou e voltei a trabalhar com os “Clows”, de novo. Minha parceria com os “Clowns” é muito positiva. Apesar de eu não ser do grupo, foi lá onde tive a chance de exercer mais profissionalmente o teatro. Com eles viajei o país inteiro apresentando “Muito barulho por quase nada”, “Roda Chico” e agora o “Sua Incelença, Ricardo III”. Fizemos temporada em São Paulo, saiu matéria na Folha. Os “Clowns” ganharam Prêmio Shell. Mesmo radicado em Natal, é um dos grupos de teatro mais bem sucedidos do Nordeste e do país. Sou atriz convidada do grupo e tenho seguido junto com ele.
ZONA SUL – Qual o espetáculo do grupo que teve mais destaque nacional com a sua participação?
TITINA – O espetáculo que fez o grupo ser o que ele é hoje foi “Muito barulho por quase nada”. É uma adaptação de “Muito barulho por nada”, de Shakespeare. Com esse espetáculo o grupo fez duas temporadas em São Paulo, no SESC Anchieta, na Consolação; e no TUSP (Teatro da Universidade de São Paulo). O espetáculo rodou 21 estados do país. Foi eleito pela Folha de São Paulo o terceiro melhor espetáculo apresentado na cidade de São Paulo, no ano de 2005. O grupo agora está com um espetáculo que ainda não viajou tanto, mas vai começar a viajar. É o “Sua Incelença, Ricardo III”. Ele vai abrir o “Brasília Cena Contemporânea”, em setembro.
ZONA SUL – Hoje é possível viver do teatro em Natal?
TITINA – Nos “Clowns de Shakespeare”, sim. Outras pessoas em Natal também vivem de teatro.
ZONA SUL – Você teve participação na conquista do Prêmio Shell?
TITINA – Não. Foi com o espetáculo “O capitão e a sereia”, do qual não participei. O “Clowns de Shakespeare” hoje é patrocinado pela Petrobras. Os atores têm salário. Eu não tenho porque não sou do grupo. A Petrobras tem um projeto para manter grupos de teatro. O grupo precisa ter mais de cinco anos e já ter provado, pelo seu currículo, que consegue sobreviver. Esse projeto dura dois anos. Depois desse período, tem outra concorrência. A sede é toda estruturada para receber espetáculos. Os “Clowns” não dependem mais do Teatro Alberto Maranhão ou da Casa da Ribeira para apresentar seus espetáculos.
ZONA SUL – O que você projeta na sua vida profissional para, por exemplo, os próximos dez anos?
TITINA – Eu gostaria de me firmar como palhaça. Estou bem longe disso, mas meu desejo pessoal é morrer palhaça. O palhaço é a única profissão que, quanto mais velho, melhor você fica. É incrível, mas é fato. Mesmo se o palhaço não tiver alguém para trabalhar com ele, consegue sobreviver de sua profissão. O que eu desejo é que o meu trabalho no teatro seja uma representação da própria humanidade. Quero servir de alguma forma à humanidade. Mesmo que seja trabalhando para ela se ver, se enxergar. O palhaço é um ser muito potente, nesse sentido, quando lida com o ridículo ou com o impossível que é possível. Gostaria que a minha arte tivesse muito clara no ofício as questões humanas. Não quero necessariamente que as pessoas sejam felizes com o que eu faço, mas, sobretudo, quero ser feliz fazendo. Desejo ainda aprender muito. Essa é uma profissão que permite que a gente aprenda muito o tempo inteiro. Nem sempre é fácil, às vezes é doloroso. Minha profissão tem muita dor, talvez por isso seja tão prazerosa. Cada superação de uma dor é como se fosse a superação de si, uma conquista. Se daqui a dez anos eu estiver como estou hoje, para mim já vai estar bom: trabalhando com as pessoas de quem gosto e amo; fazendo o que acredito; tendo o meu café, meu almoço e minha janta; mantendo minha casa; tendo saúde; lendo, aprendendo e conhecendo pessoas e os grandes mestres e atores.
ZONA SUL – Fale um pouco do espetáculo que você apresentou agora em junho, em Brasília.
TITINA – O espetáculo é de uma produtora do Rio de Janeiro chamada “Fomenta”. Ela aprovou um projeto no CCBB chamado “Novas Dramaturgias Brasileiras”, e convidou quatro novos dramaturgos e quatro jovens diretores. Colocou cada texto desses dramaturgos para um dos diretores. No nosso caso, convidaram Fernando Yamamoto, que é de Natal, e Xico Sá, jornalista do Crato, colunista da Folha. Xico escreveu um texto e Fernando dirigiu. Fernando escolheu os quatro atores convidados dos “Clowns” para fazer esse projeto. Parte do espetáculo foi montado em Natal, parte no Rio. A “Fomenta” fez questão que uma parcela do projeto fosse criada no Rio para eles poderem acompanhar os ensaios, estar mais perto. A estreia foi em Brasília. Fizemos cinco apresentações de “A mulher revoltada”. A “Fomenta”, que é dona do espetáculo, está agendando temporadas em São Paulo e em outros lugares.
ZONA SUL – Natal está nessa lista?
TITINA – Natal está na lista dos desejos. Provavelmente o espetáculo será encenado em Natal porque o elenco é de lá, tudo é de lá e a gente tem o espaço. É só achar brecha junto à “Fomenta”. Só vai ter o custo de levar o cenário, que é do Rio, porque o espetáculo deverá ser exibido na sede do grupo.
ZONA SUL – Do que trata o espetáculo?
TITINA – É um texto leve. Trata de uma mulher que se revolta porque morreu o último canalha e só restou homem frouxo. Esse último canalha ressuscita no corpo de um foca e tenta de todo jeito reencarnar para ver se salva o macho. Os machos estão virando todos metrossexuais. É uma história engraçada, boba. Não tem nenhuma ideologia. Voltaremos em Brasília em setembro para encenar “Sua Incelença, Ricardo III”, baseado no “Ricardo III” de Shakespeare. Esse é o espetáculo que, sinceramente, acho a coisa mais linda que já fiz. Nele me realizo completamente como atriz. A direção é de um mineiro chamado Gabriel Vilella, um puta diretor brasileiro que tem espetáculos ícones como “Romeu e Julieta”, do “Grupo Galpão”. Pra mim foi uma honra sem tamanho ser dirigida por esse diretor e voltar a trabalhar com os “Clowns”. Fazia três anos que não atuava com eles. Foi uma volta muito bonita, gostosa. É um circo, é picadeiro, é circense, é cigano, é mundano, é musical. É muito bom.
ZONA SUL – O que deixei de perguntar?
TITINA – Nem sei, não tenho a cabeça muito boa.
ZONA SUL – O que você gostaria de ter falado?
TITINA – Gostaria de registrar que a política cultural do Rio Grande do Norte está muito sofrida. Estamos numa situação muito difícil, muito aquém do Brasil. Enquanto o Brasil, nacionalmente, tem dado uma guinada, culturalmente falando, o Rio Grande do Norte não tem se atentado a isso. Nossos políticos são muito insensíveis. As coisas que circulam no restante do país não chegam no Rio Grande do Norte e a gente está ficando para trás. Isso dá muita pena porque é só uma questão político-administrativa. Nosso estado tem uma história linda, têm pessoas muito potentes, ótimos artistas, tem um povo muito lindo. Mas os nossos políticos são muito insensíveis, são muito emergentes, são muito brutos, artisticamente. Não são apreciadores, não consomem cultura.
ZONA SUL – A arte depende do poder público?
TITINA – Só depende. Sobretudo a arte de pesquisa e essa arte que a gente faz. E não depende só hoje, sempre dependeu. E precisa depender. O Estado precisa oferecer à sociedade o que a indústria não oferece. Ele tem que garantir o respiro, dar o direito à humanidade da diversidade. No mundo capitalista em que a gente vive, se o estado não subsidia a cultura diversa - seja a performance, seja a dança contemporânea ou clássica, seja o que for - essas manifestações artísticas acabam, sucumbem. Dessa forma, o ser humano não vai ter como se manifestar. O Estado tem obrigação de subsidiar as manifestações artísticas que não sejam de nível industrial. Essas manifestações precisam existir. Se não estão dentro da indústria e não recebem o apoio dos governos, elas morrem. Aí a humanidade empobrece de vez. Não é de hoje, os mecenas sempre existiram. Sempre foi o Estado e o poderes que criaram seus Da Vinci, Michelangelo, Mozart ou quem quer que seja. Está muito enganado quem pensa que a commedia dell'arte vivia só de o povo jogar doce de goiaba e de banana na cara dos artistas na rua. Eles se apresentavam nas ruas, mas também nas cortes. Eles eram mantidos pelas cortes e eram esperados por elas. O Estado tem que manter, sim, o que é diverso. Não pode é bancar Ivete Sangalo. E o engraçado é que o Estado banca Ivete Sangalo! Não está certo, pois ela já se banca por si só, a indústria já paga. O carinha já reserva 50 reais para assisti-la. Ela não precisa de dinheiro público e mais os 50 reais da bilheteria. Um trio de sanfoneiros ou qualquer outra manifestação folclórica que não tem quem pague os 50 reais, precisa sobreviver da mesma forma que Ivete Sangalo. Não estou dizendo que precisa ganhar o que ela ganha, mas precisa existir.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do jornal.
TITINA – É complicado deixar recado. Mas, vamos lá. O potiguar tem que se amar mais, se valorizar mais. Não quero sair de Natal. O potiguar tem, por exemplo, um cenário musical que está faltando ao Brasil: Simona Talma, Rosa de Pedra, Valéria Oliveira, Isaque Galvão, Babal, Mirabô, Mingo Araújo, Luiz Gadelha, Joca Costa... A música instrumental do Rio Grande do Norte é uma coisa absurda, é um abuso, de tão boa. Na música é que essa qualidade se aflora com mais força. O potiguar sai pouco do seu estado. O artista natalense parece que não tem vontade de ir para outros lugares. O cearense vive no mundo. O potiguar não, ele se basta.
ZONA SUL – Pode até se bastar, mas parece que o povo potiguar não dá ao artista da terra o reconhecimento que ele merece.
TITINA – O problema é que o povo não tem mecanismos de acessar. Simona Talma leva 2 mil pessoas no seu show. O “Retrovisor” leva isso também, quando tem show público na rua. Acho que quem tem acesso, gosta. A população sequer sabe que essas pessoas existem. Quem sabe, valoriza. Os administradores públicos precisam ser mais sensíveis, mais inteligentes.