sexta-feira, 22 de junho de 2007

ENTREVISTA: WALDEMIR RODRIGUES

O GUARANI QUE RESISTIU A SATANÁS





Quando marquei a entrevista com Waldemir José Barreto Rodrigues pensava em conversar com ele a respeito da língua tupi-guarani. Mas os dez minutos iniciais da conversa - travada no bar do Hotel Esplanada, na Vila Planalto, em Brasília – mudaram completamente a pauta do encontro. A vida desse índio guarani nascido no Mato Grosso - quando esse estado ainda não havia se dividido em dois - centralizou o bate-papo. Com nove ou dez anos de idade ele deixou sua família e foi conhecer o mundo. Trabalhou na cidade e dormiu no mato durante muito tempo. Mas, vamos à entrevista. (Roberto Homem)


ZONA SUL – Waldemir é nome de índio?
WALDEMIR – Não sei por que me deram este nome. Mas certamente não é nome de índio. Nem imagino de onde ele surgiu ou como esse nome me foi dado.

ZONA SUL – Você nasceu em uma tribo indígena ou na cidade?
WALDEMIR – Sou filho de índios guaranis. Nasci já fora de uma tribo, mas ainda com laços com a tribo. Nasci em Amambaí, no Mato Grosso do Sul. Eu posso dizer que fui mato-grossense até 1978, quando o estado foi dividido. Desde então, sou sul-mato-grossense. Amambaí fica no sul, perto do Paraná e na divisa com o Paraguai. É uma região de fronteira seca onde até hoje ainda se encontra muitos índios guaranis.

ZONA SUL – Seus pais continuam vivos?
WALDEMIR – Sim. Meus pais moram em Campo Grande. Ele está com 79 anos. Minha mãe tem 67. Minha avó morreu há algum tempo, há uns dez anos.

ZONA SUL – Estes seus parentes também têm nome de cara pálida?
WALDEMIR – Minha avó se chamava Geromita. Ela usava o sobrenome português de Rodrigues. Esse sobrenome foi inventado, já que ele não era usado por nenhum ascendente. Meu pai se chama Salvador Rodrigues. Filho de Geromita. Minha mãe também já tinha um nome português, Enedina.

ZONA SUL – Apesar de nomes não indígenas, são nomes não tão comuns...
WALDEMIR – Sim, são nomes diferentes. Não são nomes que você encontra com freqüência.

ZONA SUL – Você ia dizendo que nasceu na cidade, mas tinha ligação com a tribo...
WALDEMIR – É comum naquela região existirem muitos índios. A aldeia fica próxima da cidade. Hoje praticamente a aldeia está dentro da cidade. A aldeia que freqüentei durante minha infância está dividida hoje. Muitos índios foram morar na cidade. Mas a origem é Jaguapiru.

ZONA SUL – Como foi passar a infância dividido entre o mundo dos brancos e o dos índios?
WALDEMIR – Até aproximadamente nove ou dez anos de idade eu convivia com os índios todos os dias. Vivia mesmo como um silvícola, no mato. Meus afazeres diziam respeito mais aos costumes correspondentes da mata. Tive muitas lições sobre a natureza, de como viver e me alimentar dela. Absorvi muito da cultura indígena, que é totalmente diferente da do homem branco.

ZONA SUL – É verdadeira a visão que o homem branco tem dos índios?
WALDEMIR – Na maioria das vezes, não. Por exemplo: os portugueses inventaram que os índios são preguiçosos, que não gostam de trabalhar, que não cultivam. Tudo isso não passa de lenda. Os índios, principalmente os guaranis, que eram guerreiros, nunca aceitaram a colonização do homem branco, do português. Pelo fato de não aceitarem ser escravos, os portugueses os classificaram de preguiçosos. Os guaranis combateram muito e praticamente foram levados à extinção. Hoje eles vivem em uma área de 60 hectares. Alguns se suicidaram coletivamente. Determinadas tribos até hoje não aceitam a cultura do branco e nem falam o português. Só falam o guarani.

ZONA SUL – Qual a diferença do tupi para o guarani?
WALDEMIR – O tupi, na origem, era uma raça que vivia no litoral. Os guaranis estavam mais pra dentro, mais pra mata. De São Paulo para frente era reduto deles, entrando para o centro-oeste. Os dois povos não eram pacíficos, lutaram muito. A diferença é que os tupinambás, que habitavam o litoral, eram canibais. Os guaranis eram índios guerreiros que, na colonização, foram espremidos para fora do país. Foram recuando, obrigados pelos anhangueras. Anhan, em guarani, quer dizer demônio, guera é igual a velho. Os índios chamavam os bandeirantes de anhangueras. Eles foram expulsos do país. Muitos entraram para o Paraguai, outros para a Bolívia. O Mato Grosso com o Paraguai tem uma extensão de 1.500 quilômetros de fronteira seca. Logo acima tem a fronteira com a Bolívia, que também é muito extensa. Os índios que conseguiram escapar foram justamente os que habitavam próximo a fronteira, foram os que sobreviveram.

ZONA SUL – O que você recorda com saudade da cultura indígena?
WALDEMIR – Tudo o que eu aprendi quando era criança e que hoje praticamente não existe mais. A questão de você tirar o sustento do seu suor, da terra. A questão da caça. O índio sabia escolher sua presa, aprendeu com a natureza. O animal mais lerdo, mais lento, era o que ia alimentar a família dele. As fêmeas, nunca, porque elas precisam reproduzir. Caçar as fêmeas acaba com o sistema. Eles sabiam disso. Para fazer uma canoa, por exemplo, eles não derrubavam a árvore. Tiravam a canoa da árvore em pé. Colocavam uma cunha, tiravam na machadinha a canoa com a árvore em pé. Eles sabiam que dessa forma a árvore iria se refazer novamente. Quando ele caçava ou fazia uma canoa, ele adorava a natureza. Muitos distorceram isso, principalmente os católicos, dizendo que os índios tinham vários deuses. Não era assim, eles apenas adoravam e louvavam tudo o que existe na natureza porque é da criação de Deus. O índio conviveu muitos anos com a natureza sabendo de tudo isso. Infelizmente é o contrário do que se vê hoje, o homem branco quando vai à caça ele cerca o animal e não sai de lá enquanto não mata todos, por prazer. Ou quando pesca... O índio quando abate um animal eleva seu pensamento a Deus e agradece por aquilo e pede desculpas, porque aquele é também um ser vivo, como o índio. Respeitar o próximo vai muito mais além do que o próprio homem. Se estende até mesmo ao meio ambiente. Como esse preceito não é respeitado por todos, vivemos hoje conseqüências disso, conseqüências sérias.

ZONA SUL – Essa questão do respeito e do amor do índio pela natureza é bem mais intelectual, algo pensado, do que de sentimento. Ele sabe que, por exemplo, se começar a destruir as fêmeas, diminuirá o número de animais que serão procriados, se derrubar a árvore...
WALDEMIR – Exatamente. Apesar de muitos dizerem que o índio não cultiva, temos aí variedades de milho, a própria Embrapa assume, que vem de descendência dos índios. Tem vários tipos de semente. A agricultura, para o índio, é algo muito especial. Ele sempre cultivou na mata onde não é qualquer um que pode ver. Pra ele o alimento da família é abençoado. Os índios eram nômades, mudavam muito, para respeitar o ciclo da vida. Precisava preservar a natureza para poder continuar sobrevivendo.

ZONA SUL – Você sofreu algum tipo de discriminação ao se relacionar com crianças não índias?
WALDEMIR – Sim. Do tipo: “o que você está fazendo aqui?”. “Você não faz parte desse mundo, volte para o seu mundo”. “Por que você abandonou a tribo?”. “Seu lugar é lá, e não aqui”. Frases desse tipo eu ouvi muitas vezes.

ZONA SUL – Qual sua reação diante desses comentários?
WALDEMIR – Sempre fui uma pessoa teimosa, sempre gostei do desafio. A minha reação sempre foi a de saber que sou um ser exatamente igual, e continuarei assim. Não importa. Eu dizia isso a mim mesmo. Não era algo que eu dizia pra ninguém. Eu dizia a mim mesmo: “continua, não dê importância”. E continuei a minha caminhada.

ZONA SUL – Pelo visto, sua caminhada, literalmente, começou bem cedo... É verdade que por volta dos dez anos de idade você deixou a casa dos seus pais?
WALDEMIR – Meu pai era muito exigente. Prezava muito essa coisa de criar os filhos para o trabalho, ensinava a cultivar a terra. E eu tinha que buscar água. Na época se buscava água numa poronga, numa cuia. Não sei como vocês dão o nome disso. Era um instrumento pesado. Dentro dessa poronga deviam caber, entre dez e quinze litros de água. E eu tinha que buscar essa água a aproximadamente uns 15 quilômetros. Fui a primeira vez, a segunda... Isso num dia só. Na terceira vez eu disse que já tinha ido duas vezes, que não ia a terceira. Ele perguntou se eu estava pensando que já era homem. Eu tinha nove, dez anos. Respondi que era homem igual a ele, exatamente igual. Ele mandou eu dar um jeito e me chamou pra briga, já que eu era homem. Respondi que não brigaria porque ele era meu pai, e disse que ia embora, ia descobrir o mundo. Saí no mesmo instante e fui embora. Fui para Campo Grande, que era Mato Grosso, na época. Foi onde comecei a trabalhar.

ZONA SUL – Você saiu sozinho para enfrentar o mundo com dez anos de idade?
WALDEMIR – Sozinho. Eu não tinha dinheiro, não levei nada. Basicamente nem a roupa do corpo. Caminhei. Foram uns cinco dias de caminhada. Eu conhecia muito bem como sobreviver. Não tive dificuldade de conseguir o alimento. Chegando no meu destino, pra mim tudo era novidade. Não sabia nada, era um mundo desconhecido. Eu conhecia o mato, a cidade, não. Comecei a usar os conhecimentos que eu sabia e fui trabalhar. Fui morar na rua, no mato. Não ficava exatamente na calçada. Me virei como um animal se vira, não fiquei dando bobeira. A partir daí comecei a trabalhar.

ZONA SUL – Qual foi a primeira ocupação que você arrumou?
WALDEMIR – Conheci um senhor que era um grego.

ZONA SUL – E essa mistura de um índio e um grego deu certo?
WALDEMIR – Esse grego vendia frutas, laranjas e tal. Passei e trabalhar com ele. Ninguém na época queria trabalhar com o grego. Ele tinha um caminhão, viajava com o caminhão, colhia laranjas e vendia. Ele queria alguém que andasse o dia todo atrás do caminhão, a pé. (risos). Quando alguém quisesse a fruta que ele estava vendendo, a pessoa imediatamente ia atender. Não tinha almoço, não tinha nada.

ZONA SUL – Pelo menos os cinco dias de caminhada serviram de estágio para esse novo emprego... (risos)
WALDEMIR – Com certeza. O costume, o hábito, também. Já que eu, desde menino, andava muito. Não tinha nem salário. A gente saía de manhã, e eu caminhava o dia todo atrás desse caminhão. Por volta de meio-dia, ele parava e comprava uma Coca-Cola, que na época chamava de família, comprava um pão e a gente comia. Essa era a refeição. E laranja à vontade.

ZONA SUL – Você foi morar com o grego ou continuou morando no mato?
WALDEMIR – Continuei no mato. Passava o dia com o grego, depois ele ia para sua casa e eu ia para o mato. Mas foi por pouco tempo que trabalhei para o grego. Logo eu disse que não queria mais. Ele tinha gostado muito de mim, não queria que eu saísse. Falou que após chegar de cada viagem, me daria cinco caixas de laranja para eu me virar com elas. Sem nada em troca. Foi uma das pessoas que me ajudou. Com essas laranjas, eu fazia pacotes de dúzia, e vendia. Arrumei uma bicicleta e passei a vender de porta em porta.

ZONA SUL – Você, de empregado, passou a ser concorrente do grego...
WALDEMIR – Digamos que sim. Comecei a vender. Também foi por pouco tempo. Depois disso tive vários empregos. Fui trabalhar em oficina mecânica, fui lixar carro como auxiliar... Com isso aprendi a ser mecânico.

ZONA SUL – Quando você deixou de morar no mato para morar em uma casa?
WALDEMIR – Isso foi quando passei a ser fotógrafo. Morei no mato dos dez até os dezesseis anos. Sem residência fixa. Cada dia era um dia, era um lugar diferente.

ZONA SUL – Mas você dava notícias para sua família?
WALDEMIR – Não. Eu sumi.

ZONA SUL – Quando você reencontrou sua família eles disseram que procuraram por você?
WALDEMIR – Só reencontrei minha família quando completei dezenove anos. Eles falaram que tentaram me encontrar, mas não tiveram sucesso porque era realmente muito difícil. Mas, voltando aos meus empregos, trabalhei em construção civil, com mecânica, aprendi a ser mecânico na prática. Depois fui motorista, em seguida fui trabalhar de garçom. Foi meu início pra fotografia. Nunca esqueci de um fato que ocorreu quando eu estava trabalhando de servente, na construção de um prédio. Sempre, na hora do almoço, quando a gente descia, o guincheiro, o cara que trabalha no guincho descendo os caras do prédio, soltava aquele treco. Quando puxava aquele cabo de aço, saía faísca, saía fogo. Tinha um paranaense, que era meu amigo, que sempre estava comigo. Ele costumava chorar. Eu consolava. Chora não, você não é homem não? Tudo é só passageiro. O mundo não é só isso não. Fica tranqüilo. Naquela vida, por ali mesmo eu dormia e fazia minha comida. Fazia um buraquinho na areia para cozinhar.

ZONA SUL – Você precisou comer, em alguma ocasião, algum animal ou alimento não tão comum, nesses dias de necessidade?
WALDEMIR – Não, porque aquela região é muito rica. Com aquela fauna e flora, é difícil alguém dizer que passou necessidade. Quem tem noção de sobrevivência é capaz de tirar seu alimento de qualquer lugar. Tem muito peixe, fruta... É diferente do Nordeste.

ZONA SUL – Então você conseguiu o emprego de garçom...
WALDEMIR – Eu estava naquela vida terrível, pensando em mudar. Um dia vi que estavam precisando de um garçom e fui lá. Bati, perguntei. O cara quis saber se eu era garçom. Respondi que não. Tive que convencer o cara que eu precisava daquele emprego. Fiz uma proposta: não sou garçom, mas tenho boa vontade, sou esforçado. Contei minha história e pedi uma oportunidade. Eu tinha uns 15 anos. O trabalho era das 17 horas às cinco da manhã. Consegui convencê-lo. Naquela época não tinha essa história de menor, de trabalho infantil. Tudo era mais liberado. E eu sempre fui grande e forte, não dava para perceber a minha idade. Não tinha carteira assinada ou qualquer coisa que pudesse apontar isso. Propus trabalhar uma semana de graça, por experiência. Se ele achasse que eu dava para o negócio, me contrataria, se não, eu estaria demitido antes mesmo de ser contratado. Ele olhou, pensou e topou. Chamou os outros garçons e pediu que eles me mostrassem como era o trabalho. Lembro que no primeiro dia fui muito bem. Trabalhei igual aos outros garçons. No mesmo dia, quando fechou o caixa, ele chamou todo mundo e me contratou. Disse que a partir daquele dia eu ganharia o mesmo que os outros e estava contratado. Trabalhei por pouco tempo também. Até conhecer um fotógrafo. Era um boêmio, chegava às três da manhã quase que religiosamente. Eu sempre o atendia. Determinada ocasião, ele me perguntou sobre minha vida, e contei. Ele propôs que eu fosse trabalhar com ele, morar com ele e aprender a profissão de fotógrafo. Mas sem salário. Eu ia para aprender. Topei. Eu ainda não tinha residência fixa, continuava dormindo em qualquer lugar, como um cachorrinho.

ZONA SUL – Em alguma noite dessas que você dormiu ao relento enfrentou algum perigo? Algum animal tentou lhe atacar, por exemplo?
WALDEMIR – As dificuldades foram mais com as pessoas. Com animal, não, eu sabia muito bem conviver com eles, sabia como me defender. Mas com as pessoas, sim. Nessa época comecei a ter amizade com as pessoas. No período em que eu não estava trabalhando, bebia muito. As pessoas sempre tentam lhe levar para o mau caminho. Minhas amizades não eram boas, tentaram me levar para o caminho do crime. Várias vezes eu fui convidado. Chamaram-me até para assaltos. Eu dizia: “tudo bem, vamos lá, onde é que é?”. Agente combinava tudo, mas eu nunca ia. Fugia deles. Mas não podia dizer para eles que não ia. Dava um jeito de me perder. Depois eles cobravam, perguntavam por que eu tinha sumido. Eu inventava uma desculpa, dizia que tinha me perdido, mas que na próxima vez daria certo. Eu era esperto, sabia que se me negasse, seria pior. Se eles eram espertos, eu teria que ser mais que eles.

ZONA SUL – Então você foi trabalhar como fotógrafo...
WALDEMIR – Fui trabalhar com um fotógrafo. Com ele viajei, saí daquele mundo, tive oportunidade de trabalhar até fora do país, como Paraguai e Argentina. Ele trabalhava para uma agência de propaganda. Eu era auxiliar dele em iluminação e era o responsável pelas lentes e pelo equipamento. Depois aprendi a trabalhar com laboratório. Ele foi me ensinando. O nome dele era Raimundo, o do grego eu não consigo pronunciar, eu o chamava de Grego mesmo.

ZONA SUL – E depois de trabalhar com esse fotógrafo?
WALDEMIR – Um dia, conversando com Raimundo, me denominei fotógrafo. Disse a ele que a partir daquele instante eu seguiria meu caminho como fotógrafo. Ele concordou e perguntou o que eu precisava. Eu respondi que queria um equipamento. Ele mandou eu escolher o que quisesse. E conversou com um cara para eu ser fotógrafo de uma revista. Eu tinha uns 17 anos. Nunca mais saí da profissão. Esse cara foi meu pai. O que eu quis com ele eu sempre tive. Ele sempre soube me reconhecer, nunca explorou minha mão-de-obra. Ele já é falecido.

ZONA SUL – Isso tudo em Campo Grande?
WALDEMIR – Não, isso já foi na fronteira. Trabalhamos em Ponta Porá e depois em Pedro Juan e em Assunção, capital do Paraguai. No Paraguai ele fez trabalhos para o presidente, que na época era um ditador, o Stroessner. Na época se você disse no Paraguai que trabalhava para o Stroessner, tinha carta branca para fazer o que quisesse. Conosco ele sempre foi ótimo, tratou-nos com respeito e dignidade. Essa imagem de ditador eu não vi na prática. Ele nunca maltratou a gente, muito pelo contrário. Também fiz muito trabalho pra filha e pro genro dele, Andréas Rodrigues, que depois foi eleito presidente. Em seguida voltei para o Brasil e trabalhei na Folha de São Paulo e nas revistas Veja e Istoé, sempre nas sucursais do Mato Grosso do Sul. Também trabalhei para os Diários Associados e em revistas locais, além da Secretaria de Comunicação do Governo do Estado. Fui fotógrafo de três ou quatro governadores. Se você procurar, muita gente me conhece por lá até hoje. Não pelo meu nome, mas por Índio.

ZONA SUL – Nessa época você já tinha reatado relações com sua família? Como foi o reencontro com seus pais?
WALDEMIR – Sim. O reencontro aconteceu depois que eu casei. Quando voltei para Campo Grande, casei e comecei minha vida profissional na região. Os procurei. Disse que estava de volta, estava bem. Foi um reencontro normal.

ZONA SUL – Essa mulher com quem você casou também era índia?
WALDEMIR – Não. Ela era uma libanesa.

ZONA SUL – Foi essa mulher quem tentou lhe matar? Como foi o episódio?
WALDEMIR – Exatamente. Eu sempre fui uma pessoa batalhadora e sempre me dediquei muito ao trabalho. Você, como fotógrafo ou como jornalista, trabalhando em jornais, os caras te ligam sábado, domingo, e você tem que trabalhar às vezes 24 horas direto. Sempre que eu voltava para casa, ela reclamava, me chamava de vagabundo, perguntava onde eu estava. Por mais que eu explicasse, que dissesse que estava trabalhando, ela não acreditava. Se ela fosse mais inteligente perceberia que era verdade, até pela nossa situação financeira, pelo fato de já termos comprado uma casa, pela estrutura que tínhamos montado. Eu tinha um bom salário. Além da casa própria, eu tinha uma outra e tinha terreno. Já tinha feito um bom pé de meia, apesar de até esse momento, talvez por falta de instrução, eu não ter sentido necessidade de estudar.

ZONA SUL – Qual sua instrução formal?
WALDEMIR – Me formei recentemente. Algumas pessoas chegam cedo, outras chegam tarde. Ninguém disse pra mim que eu tinha que estudar, eu descobri sozinho. Hoje sou formado em administração e marketing. Estou com 43 anos, sou de 10 de setembro de 1963. Sempre dei estrutura à minha primeira esposa. Ela era formada em pedagogia, depois fez orientação educacional. O emprego dela fui eu quem arrumei. Ela era uma pessoa totalmente doente por ciúmes. Acho que eu também tenho culpa nisso, por querer tentar tapar o sol com a peneira. Quando um casamento acaba, acaba mesmo, você tem que tomar providências.

ZONA SUL – Você tem filhos com ela?
WALDEMIR – Sim, duas filhas. Gêmeas. Uma é formada em enfermagem, formou-se agora. A outra é música, resolveu estudar agora. Terminou o segundo grau e está fazendo marketing. Caroline é a enfermeira e Natália é a música.

ZONA SUL – Vamos voltar ao problema que você teve com sua ex-mulher...
WALDEMIR – Devido à profissão, sempre fui muito dedicado ao trabalho. Vivia viajando, ausente à maior parte do tempo. Acho que foi isso o pivô. Em determinado dia, acho que já estava tudo premeditado, ela resolveu me atropelar. Eu estava na rua, de moto. Sempre gostei de moto, até hoje tenho. Parei em uma esquina, numa sinaleira, e ela chegou não sei a quantos por hora, e passou por cima. Era um fusca. Passou por cima, engatou a marcha à ré e passou por cima de novo. Fui para o hospital, fiquei muito mal. Passei um ano no hospital. Tive fraturas na cabeça, fêmur, joelho. Fraturas expostas. Ela depois foi me visitar, pediu perdão. Mas era arrependida só por fora. A maior inimiga que você pode arrumar, talvez, seja uma ex-mulher.

ZONA SUL – Nessa época você teve um encontro inusitado com o demônio...
WALDEMIR – Sim, foi. Fiquei em coma, e quando você fica em coma tem a sensação de que já foi para outra vida. É como você estar editando um vídeo, rebobinando, vendo aquelas cenas passando rapidamente. É impressionante como você lembra de tudo que passou na vida. Lembra até de coisas que você falou e que ofenderam a alguma pessoa. Tudo é muito rápido. Você está em outra dimensão. Não sabe o que está se passando no mundo real. Vê seu passado todo em questão de segundos. Depois disso, senti em um determinado momento um calor muito grande. Como se eu estivesse na frente de uma fornalha. E o Satanás apareceu para mim.

ZONA SUL – Como ele era? É possível descrevê-lo?
WALDEMIR – Aí é que está a moral da história. Ele dizia pra mim: “e aí, você disse que se eu existisse era para aparecer, que você não tinha medo do coisa ruim? Eu estou aqui, e agora? Olha pra mim”. E eu não olhava, não abria os olhos. E ele dizia: “abre seus olhos, olha pra minha cara. Veja sua situação, olha o jeito que você está. Ta vendo? Seu Deus lhe deixou na mão. Eu sou mais do que seu Deus. Eu sou o cara. Olha pra mim. Eu te tiro daí. Você quer? Vou lhe tirar dessa situação”. Ele queria muito que eu olhasse na cara dele. Eu me neguei totalmente. E isso demorou bastante tempo. E de maneira alguma olhei na cara dele. Eu já tinha passado por muitas, já tinha lido a Bíblia de frente para trás e de trás pra frente, várias vezes. No meu pensamento veio o salmo 23. “O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará...” Era como se fosse um sonho. No momento em que comecei a invocar dessa forma, ele se afastou, foi embora. Ele queria que eu fizesse um compromisso com ele, mas eu não fiz.

ZONA SUL – E depois que você se restabeleceu, foi fazer o que da vida?
WALDEMIR – Continuei em Campo Grande. Minha ex-mulher me procurou, pediu perdão. Eu não a denunciei. Ela até foi julgada, mas como acidente de trânsito, e não tentativa de homicídio. Eu pensei que denunciá-la não levaria a nada. Minhas duas filhas estavam com seis anos de idade. Elas estavam no carro, na hora do atropelamento, juntas com a mãe. Se eu denunciasse, como minhas filhas ficariam? Tentei voltar para o casamento. Foi errado. Hoje vejo isso. Errei pensando em acertar. Algumas pessoas aprendem pelo amor, outras pela dor. Eu aprendi pela dor. As coisas não deram certo e o casamento chegou ao final. Somente a partir daí eu retomei minha vida novamente.

ZONA SUL – O que aconteceu depois que você saiu do casamento?
WALDEMIR – Isso foi por volta de 1995. Eu fui trabalhar na sucursal da Folha de São Paulo. Foi quando conheci minha atual esposa, a Miriam Violeta. Ela era repórter e eu fotógrafo. A gente saiu para uma pauta. Nosso primeiro contato foi negativo pra caramba. Estávamos cobrindo uma mobilização dos sem-terra. A imprensa toda chegou, os fotógrafos saíram em disparada para fazer a mesma foto. Ela perguntou se eu não ia fazer. Disse que não, que os caras já tinham ido. Ela reclamou. Falei pra ela que faria a foto em outro lugar. Tinha um garoto empurrando um carrinho de mão. Ele estava sem roupa, coberto por aquela terra, aquele pó, aquela poeira. Eu já o tinha visto. Pedi ao motorista para me levar até lá e fiz a foto do menino empurrando o carrinho. Ao fundo tinha o acampamento dos sem-terra. Eu disse a ela que ficasse tranqüila, que eu já tinha feito a foto. No outro dia a foto foi capa do caderno. A partir daí começamos o relacionamento. Logo depois, em 1998, ela prestou concurso para o Senado e veio. Fui morar em Brasília com ela.

ZONA SUL – O tupi-guarani que você fala hoje é do tempo de menino ou aprendeu depois?
WALDEMIR – Adquiri na infância. Pela história, o guarani seria nossa língua mãe. Ela foi proibida de ser falada no Brasil pelos portugueses. Os paraguaios adotam o guarani. Mas essa era a língua mais falada no Brasil antes dos portugueses. O tupi se fundiu com o guarani. Mas até hoje ainda se encontra índios falando guarani no sul do país, em São Paulo, no Rio de Janeiro e em algumas cidades do Amazonas.

ZONA SUL – Até quanto você domina a língua?
WALDEMIR – Entendo quase tudo da língua. Como saí muito novo, tenho uma certa dificuldade de falar. É como se você estudasse uma outra língua, mas no seu dia-a-dia, falasse português. Você tem certa dificuldade de pronunciar as palavras. E o guarani é uma língua como o alemão. Você tem que ter uma caixa.

ZONA SUL – Nessas suas andanças você conheceu Natal?
WALDEMIR – Sim, estive lá duas vezes. Natal é um lugar especial onde você tem muita areia, tem as dunas. Em Ponta Negra você tem o Morro do Careca, tem praias maravilhosas. Você tem o maior pé de caju do mundo, em Pirangi. Você tem uma cultura farta de redes, artesanato, cerâmica.

ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do Zona Sul.
WALDEMIR - A grande lição de tudo isso é que a gente tem que entender que tudo na vida a gente constrói. E que a gente nunca deve desanimar. Muitas pessoas vão lhe dizer, o que você está fazendo aqui, não é seu lugar, não vai dar certo. Mas você tem que lutar. Existe espaço para todos.