quarta-feira, 22 de abril de 2009

Entrevista: Giovanni Sérgio

A PALAVRA POR TRÁS DA IMAGEM

O jornalista Carlos Roberto Pereira e eu conversamos durante mais de uma hora com o fotógrafo potiguar Giovanni Sérgio. O meu xará caicoense e Giovanni estiveram em Brasília por questões profissionais. A coincidência serviu de senha para essa entrevista que há tempos eu gostaria de ter feito. Infelizmente, quando trabalhei como repórter em Natal não dividi coberturas com ele. Ler essa entrevista é receber uma aula sobre a fotografia do Rio Grande do Norte e, sobretudo, testemunhar o que significa a paixão de um homem pela sua terra. (robertohomem@gmail.com

GIOVANNI - Vou afiar a língua, pra começar a mentir... (risos)
ZONA SUL – Giovanni, com dois enes?
GIOVANNI - G-I-O-V-A-N-N-I Sérgio Rêgo.

ZONA SUL - Sérgio tem acento?
GIOVANNI - Tem.

ZONA SUL - E Rêgo?
GIOVANNI - Também. Já viu Rêgo sem acento? (risos)

ZONA SUL - Hoje em dia muita gente não está mais usando acento...
GIOVANNI - Onde já se viu um Rêgo sem acento, que história é essa... Só se for o seu! (risos)

ZONA SUL – Onde você nasceu?
GIOVANNI – No quarto Lírio dos Campos, da Maternidade Januário Cicco, em Natal. Acho que foi Leide Morais quem batizou os quartos da maternidade com nome de flores. Nasci em 1955.

ZONA SUL – E seus pais, são de onde?
GIOVANNI - Meu pai é de Pau dos Ferros, minha mãe de Currais Novos. Meu avô é de Currais Novos, minha avó é de Parelhas. Nossa raiz é seridoense.

ZONA SUL – Por que seus pais trocaram o interior pela capital?
GIOVANNI - Eles se conheceram em Natal. O motivo da mudança foi o estudo. O pai do meu pai era comerciante em Pau dos Ferros. Surgiu a possibilidade de ele fazer negócios em Florânia. Ele abriu uma Lojas Pernambucanas lá e migrou com a família. Naquela época, era comum mandar os filhos estudarem em Natal. Meu pai ficou interno no Colégio Santo Antônio, o Colégio Marista. Meu avô materno, Arthur Dias, foi um dos percussores da linha de transporte Natal – Caicó. Quando chegaram os primeiros ônibus, em 1927, ele tinha uma sopa. A sopa era o seguinte: a pessoa comprava um caminhão Dodge ou Fargo – que era vendido somente o chassi motorizado e a cobertura do motor – e mandava um marceneiro construir a cabine e a carroceria de madeira.

ZONA SUL - Seu pai começou a trabalhar logo com fotografia?
GIOVANNI - Não. A fotografia na minha família não é ele, é mamãe, Lolita. A família já tem três gerações de fotógrafos. Minha mãe, Lolita Rêgo, eu e a minha irmã Alenuska Rêgo, e agora o meu filho Renan Rêgo, que tem vinte anos e fotografa em São Paulo. Mamãe nunca foi exatamente uma dona de casa. Minha avó materna foi a grande matriarca. Minha mãe tocava piano, pintava. Então ela se interessou pela fotografia. Papai, que sempre gostou de livros (a maior biblioteca da cidade é dele) começou a abastecê-la de livros e revistas. Natal não tinha livros de fotografia, ele mandava buscar no Rio de Janeiro. As coisas que ele lia, mostrava para ela ler. Mas minha mãe é quem era a artista. Ele não. Ela era a intuitiva, ele não. Ele lia, tentava aplicar algumas das técnicas, mas não era o artista da fotografia. A coisa dele era ligada mais a palavra, era jornalista. Ele fotografava raramente. No jornalismo, na nossa profissão, a valoração da palavra é muito maior que a da imagem. Apesar do valor, da importância da imagem.

ZONA SUL – O senador Mão Santa não cansa de repetir o velho dito popular: “uma imagem vale mais que mil palavras”.
GIOVANNI - A imagem comunica a nós, que sabemos ler, mas comunica também ao analfabeto. Ela é importante. Nosso índice de analfabetismo, que já foi maior, gira em torno de 15% da população. Era comum ver nas bancas de revista de Natal localizadas no Centro, aqueles homens, mãos pra trás, olhando as figuras das primeiras capas dos jornais.

ZONA SUL - Mas você estava falando sobre a sua mãe. Ela chegou até que ponto na fotografia?
GIOVANNI – Antes de continuar a falar sobre ela, vou voltar um pouquinho no tempo. Os primeiros fotógrafos que chegaram ao Rio Grande do Norte vieram da Alemanha, através de Dom Pedro. Dom Pedro foi um grande incentivador da fotografia, dessa forma de comunicação e de preservação da imagem além da existência. Em 1836, quando a fotografia foi descoberta na Europa, ele incentivou fotógrafos alemães e italianos a virem para o Brasil. Primeiro chegaram os alemães. Você vê muito nesses cartões fotográficos, nessas cartes des visites, atrás você olha e tem: fotografia alemã. No final do século XIX, 1897, por aí, chegaram a Natal os primeiros fotógrafos. Eram dois irmãos alemães, Bruno e Max Bougard. Estavam instalados em Recife e percorriam as principais cidades da região, em lombo de jumento ou em carroça e depois no trem, para fotografar. Anunciavam nos jornais que iam passar tantos dias ali e que estavam à disposição dos interessados. Faziam fotos de famílias e também eram contratados pelos governantes da época para fazer alguns panoramas da cidade. Algumas igrejas também encomendavam fotos de procissões. Tem alguns registros disso em Caicó.

ZONA SUL – Tem muitas fotos de Natal tiradas nessa época?
GIOVANNI - O registro das cidades era pouco. Eles fotografavam mais famílias e iam embora. Mas completamos agora em março 100 anos da realização, no Palácio do Governo, da conferência “Natal daqui a cinquenta anos” feita por Manoel Dantas. Foi um manifesto futurista, uma premonição, onde ele previu que Natal teria o avião, que ele chamava de transatlântico do ar, a televisão, o telefone... Também falou em uma ponta que saía da Inglaterra, passava pelos Estados Unidos, descia a Cordilheira dos Andes, passava por Natal e retornava para a Europa.

ZONA SUL - Deve ter sido nele que Miguel Mossoró baseou-se para propor a ponte Natal – Fernando de Noronha. (risos)
GIOVANNI - Essa visão futurística causou impacto. É uma bonita peça literária. Manoel Dantas foi advogado, juiz, educador, jornalista, geógrafo, historiador, intendente do município, prefeito da cidade, literato... E ele foi também importantíssimo para a fotografia no estado. Como falei há pouco, os irmãos Bougard vinham fotografar as famílias do Rio Grande do Norte. Mas eles não entravam nas casas. Traziam uma lona e também uma coluna capitolina, onde o homem ficava postado, ou uma cadeira, na qual ele sentava-se. A mulher ficava em pé, com a família ao lado. Manoel Dantas encomendou uma câmara fotográfica e passou a fazer fotos da casa dele, da família dele. Esse material é um trabalho importantíssimo sobre o mobiliário, as paredes, o que decoravam as casas, como elas eram construídas, os arcos, as portas, tudo. Manoel Dantas foi o primeiro grande fotógrafo do Rio Grande do Norte, por ser um amador e por ser único. Em certas solenidades ele era o orador e o fotógrafo. Quando terminava de falar, se afastava um pouco e fazia a foto.

ZONA SUL - É a história do jogador que cobra o escanteio e corre para a área, para cabecear.
GIOVANNI - Depois surgem outros fotógrafos importantes. Vou dar um salto nessa história até chegar a Jaeci Emerenciano. Ele deve ter hoje uns 81 ou 82 anos. Anda de moto, tem câmara fotográfica, tem câmeras digitais. Não fotografa mais profissionalmente, mas se você chamar, ele vai. Jaeci fotografou tudo. Era chamado para fotografar casamento, batizado, estúdio, político, empresas, tudo. As paisagens dele são belíssimas: bem construídas, estruturadas. Os planos e as perspectivas das paisagens dele são muito bonitas. Ele dominou a fotografia por bastante tempo. Mas, como todo fotógrafo, ele gostava muito de mulher. E quando já tinha ganhado muito dinheiro, sentiu vontade de curtir os prazeres. Foi quando começou a se afastar da fotografia. Foi quando surgiu mamãe. Ela passou a ser a fotógrafa da burguesia da cidade. Lógico que não estamos falando do parâmetro do burguês paulista. Mas na nossa estratificação potiguar, a burguesia era a clientela dela. Minha mãe trabalhou profissionalmente por mais de 30 anos. Natal mudou muito da década de 60 para cá. Cresceu muito. As manifestações tornaram-se diferentes. As solenidades de casamento e de aniversário mudaram de conteúdo, de vestimenta e de pompa. Toda essa mudança está registrada na fotografia dela. Uma foto comum em cenas de casamento é a do automóvel que vai conduzir a noiva. Na fotografia da minha mãe está registrada a indústria brasileira automobilística toda, inclusive quando entraram os carros importados.

ZONA SUL – Sua mãe atuo na área de fotojornalismo?
GIOVANNI - Não, sua área era a de documentação fotográfica de eventos. Uma vez pensei, e ainda não deixei de pensar, em publicá-la. Também tenho interesse em Jaeci, estou conversando com ele. Vejo na fotografia de família um estudo sociológico muito grande. A gente acabou de comentar aqui que o homem sentava e a mulher não. Os filhos ficavam na ponta. A partir da década de 30, a mulher passou a sentar também. A fotografia documentou esse gesto. As pessoas podem nem perceber, mas é o testemunho de um avanço, de uma conquista feminina.

ZONA SUL - Por causa da sua mãe, seu pai passou a se interessar pela fotografia.
GIOVANNI - Se interessou pela fotografia, mas nunca foi fotógrafo. Ele era da palavra, foi diretor do Correio do Povo, foi o ghost writer de Dinarte Mariz. Fazia tudo de Dinarte: os discursos, os livros... Se você pesquisar os discursos que Dinarte fez no Senado, vai ver que ele era um homem interessante. Diziam que ele era analfabeto, é mentira. Ele podia não ter escolaridade, mas era inteligentíssimo. Talvez fosse o norte-rio-grandense que mais conhecia e declamava Castro Alves. Navio Negreiro, ele sabia tudo. Gostava muito dos poetas locais, como Otoniel Menezes, que fez Praieira. Também gostava de Ferreira Itajubá e daquele cara autor de Fulô do mato, o assuense Renato Caldas: "Batata, batata doce / Batata que o povo gosta / Um quilo dessa batata / Dá bem dois quilos de bosta”. Os discursos de Dinarte tinham, vez por outra, citações dos Beatles. Dinarte Mariz, prócer da ditadura, citava Blowin' in the wind. "The answer, my friend, is blowin' in the wind"

ZONA SUL - E bem antes de Eduardo Suplicy.
GIOVANNI – “A resposta, meu amigo, está soprando no vento”. Papai explicava quem era Bob Dylan, Dinarte gostava. Meu pai é Joanilo de Paula Rêgo. Eram mesmo muito amigos. Meu pai foi professor de fotografia da UFRN, mas o exercício dele era a palavra. Você viu que eu dei uma derivada grande para dizer que sempre houve o embate da palavra com a imagem. E esse embate sempre foi ganho pela palavra. A palavra do erudito, a palavra de quem estuda, a palavra de quem escreve. A palavra não é do analfabeto. Se você lembrar das redações, vai perceber que a imagem é do bedel que aprendeu a fotografar. Nós fotógrafos, em geral, somos feitos do analfabetismo, somos iletrados. Somos construtores de imagens, gente que compõe bastante bem a imagem. Mas em geral somos limitados: não sabemos escrever, não sabemos nos expressar com a palavra.

ZONA SUL - Você é o contrário dessa regra: é formado em odontologia e abandonou um mestrado na área para dedicar-se à fotografia. Também é formado em jornalismo.
GIOVANNI - Meu pai era formado em Direito, queria que eu fosse advogado. Mamãe queria a área médica. Então fiz odontologia. Cheguei a trabalhar como dentista. Nós edipianos temos mais afinidade de dizer certas coisas às mães. Então minha mãe sabia que eu não iria muito longe como dentista. Por isso sempre me forneceu o elemento, a câmera fotográfica e o filme, para eu fotografar. E comentava as fotografias. Paralelo ao curso de odontologia, estudei bastante fotografia. A fotografia teórica da química, dos papéis, do filme, da ótica, das objetivas, da mecânica - isso eu estudei bastante. Também me aprofundei na estética da fotografia, na pintura como elemento precursor da imagem. Nós fotógrafos temos que estudar bastante isso. Sou muito parecido com papai nesse aspecto: ele nunca foi um intuitivo, eu também não. Como não tinha intuição nem talento, fui buscar através do estudo. Em Natal temos bons fotógrafos intuitivos, tenho a maior inveja deles. Mas o intuitivo tem uma limitação, tem um patamar que apenas os gênios conseguem ultrapassar. Natal tem um artista plástico chamado Jordão, ele é entalhador. É exatamente um intuitivo. Porém, como ele é genial, ultrapassa o limite que a intuição impõe. Como eu não era intuitivo e não era coisa nenhuma, tive que estudar para poder saber o que estou fazendo agora: enganando quem está lendo isso aqui. (risos).

ZONA SUL – Você saberia dizer qual foi o exato instante em que você resolveu abandonar a odontologia para se dedicar à fotografia?
GIOVANNI – Sei. Mas não tem nada a ver com fotografia, mas com a campanha de François Silvestre para deputado federal, em 1982. Eu tinha feito a foto de campanha dele, com uma boina de revoltoso espanhol. A foto é tosca, mas interessante. É inspirada naquela barba dele, naquela figura que se assemelhava a Guevara. Ele me chamou para ir à região Oeste com ele. Eu estava terminando mestrado de odontologia. Deixei um bilhete, no curso, doando os meus livros para quem quisesse. E fui para o interior. Não saiu nada de fotografias interessantes. François só fazia esculhambar comigo em praça pública. Não saiu nada.

ZONA SUL – Então, a partir de 82, você abandonou definitivamente a odontologia.
GIOVANNI – Não. Como eu tinha que ganhar a vida, que sobreviver, continuei trabalhando na prefeitura, no Instituto de Previdência dos Servidores de Natal (Iprevinat). Certo dia, pedi um emprego a Dorian Jorge Freire, na Tribuna do Norte. Ele perguntou o que eu fazia, disse que era dentista, ele me mandou voltar para o consultório. Então expliquei que eu preferia fotografar. “Então pode começar hoje à tarde”. Comecei na Tribuna do Norte. Fiquei dois anos e meio.

ZONA SUL – O salário era parecido com o que você recebia no Iprevinat?
GIOVANNI - Passei a trabalhar meio tempo na prefeitura e meio tempo na Tribuna. Fiquei assim até começar a fazer aqueles frilas que nós da área de jornalismo sempre terminamos fazendo. Saí da Tribuna quando aceitei um convite para trabalhar na Dumbo Publicidade, que na época tinha o designer Marcelo Mariz, o redator Nei Leandro de Castro e o publicitário Cassiano Arruda Câmara.

ZONA SUL – Como repórter fotográfico você só trabalhou esses dois anos e meio?
GIOVANNI – Trabalhei na rua apenas três meses. Depois virei editor. Fui contemporâneo de Emerson Amaral, Argemiro Lima, Ivanízio Ramos, Moraes Neto, Carlos Santos... Estão todos aí, ainda. Também sou do tempo de Carlos Silva e até de Eduardo Maia, que é mais novo.

ZONA SUL – A opção pela área de publicidade foi financeira?
GIOVANNI – Terrivelmente financeira. Não falo do meu caso, claro, mas o jornalismo perde muitos grandes talentos para a publicidade, porque lá paga melhor. Isso tanto na imagem como no texto.

ZONA SUL – Um bom redator pode ganhar, em um dia de trabalho, o que passaria um mês para ganhar em um jornal.
GIOVANNI – E numa fotografia também.

ZONA SUL – O que de expressivo você fez na área de publicidade?
GIOVANNI – Na fotografia, eu sou crítico. Não só essa crítica da interpretação do conhecimento e do conteúdo, sou crítico no sentido do rigor do que eu faço. Acho que ainda estou por fazer o meu trabalho importante. E acho também que vou terminar a vida dizendo que ainda estou por fazer. Mas tem um livro interessante que fiz com uma colega do curso, a Angeles Laporta. Ela é uma chilena que cursou jornalismo na UFRN, depois foi morar na Espanha. O livro é sobre o Rio Potengi. Chama-se “As quatro margens do rio”. Talvez não seja uma grande reportagem para o rio, ou talvez seja a primeira e única reportagem sobre o Rio Potengi. Desde a nascente à foz, fotografamos o curso do rio, a agricultura que se fazia, as moradias, onde se barra ou onde ele tem curso integral, a violência que está sendo cometida contra o rio, a retirada da areia. Ele mal inicia... Mal inicia, não. Mal termina, ele termina. Ele só tem um trechinho na desembocadura da Boca da Barra. Depois ele se acaba. Ele nasce em Cerro-Corá. O grande mérito desse livro, publicado em 1996, não está nem na fotografia. O mérito da fotografia o tempo vai dando por conta das mudanças que vão acontecendo. O tempo cria certa importância. Mas o grande mérito desse livro está na antologia. Ele tem uma antologia do que foi escrito na prosa e na poesia sobre o rio. Os textos são dos escritores do Rio Grande do Norte de todos os tempos que escreveram sobre o rio.

ZONA SUL – Esse livro ainda está à venda?
GIOVANNI – Não. Foi um dos primeiros livros da Lei Mineiro, que hoje é a Lei Djalma Maranhão, de incentivo à cultura municipal. A tiragem de mil exemplares esgotou. É um livro grande, de capa dura, com luva. É um objeto metido a besta e metido a luxuoso. Se você quiser saber o que Zé Bezerra Gomes escreveu sobre o Potengi, está lá. Oswaldo Lamartine, está lá. Cascudo, os contemporâneos, Serejo, Adriano, Diva Cunha. Ta todo mundo lá.

ZONA SUL – Você também fez um trabalho para a Fiern (Federação das Indústrias do RN), com diversas paisagens de Natal...
GIOVANNI – Bira Rocha era o presidente da Fiern, nessa época. Natal ia fazer 400 anos. Ele queria um brinde que marcasse a data. Bira me chamou informalmente e perguntou o que podíamos fazer. Ele tem esse mérito: ele dá liberdade total. Sugeri o livro. O livro é “Natal 400 anos – uma viagem poética”, e tem textos de Nei Leandro de Castro. Feitas as fotografias, levei para Nei Leandro, que ponteou os textos, fez uma leitura das imagens.

ZONA SUL – Esse foi seu único livro?
GIOVANNI – Dois anos depois, a Fiern me convidou para fazer outro livro, certamente por terem gostado do primeiro. Sugeri o livro “Economia no tempo”. Escolhi cinco setores da economia que fundamentam a nossa história econômica. Por exemplo, o gado, a nossa primeira fonte econômica. Na agricultura, a cana-de-açúcar. O sal e o petróleo. O algodão, conhecido como ouro negro.

ZONA SUL – E o turismo?
GIOVANNI – O turismo é o último capítulo. São cinco capítulos. A professora Denise Mattos Monteiro fez um ensaio inicial e depois escreveu os textos que intercalam o livro. Ele é professora de pós-graduação em história, na UFRN. “Ela escreveu Introdução à História do Rio Grande do Norte”. Denise tem um certo problema: ela nunca gostou muito de Câmara Cascudo. E eu gosto. A academia sempre a reverenciou como grande historiadora, mas certos setores da literatura não lhe são muito simpáticos por causa dessa antipatia com Câmara Cascudo. Eu já tinha lido outros historiadores do Rio Grande do Norte, mas Denise interpretava a história do ponto de vista do marxismo. E eu não conhecia, até então, nenhuma interpretação da história do Rio Grande do Norte desse ponto de vista. Falei com Bira Rocha e ele autorizou que eu fizesse o convite. Expliquei que ela tinha uma visão marxista e que certamente faria uma crítica ao capitalismo. Ele apenas perguntou se era talentosa. Foi um livro brinde. Tiragem de dois mil exemplares.

ZONA SUL – Vamos falar um pouco de Giovanni fotógrafo dos políticos do Rio Grande do Norte. Praticamente todos os que têm mandato posaram para suas lentes...
GIOVANNI – É verdade. Fotografei os deputados federais todos, todos os governadores desde 1986 pra cá. E os adversários também.

ZONA SUL – Você só fazia a foto de campanha ou era convidado para fazer trabalhos também durante a administração?
GIOVANNI – Sempre fiz trabalho depois que assumiram o mandato. Acho que esse convite não é pelo talento fotográfico, mas talvez por eu me interessar pela história, pela economia e pela política do estado. Eu procuro interpretar o sentimento do governante. Tento transmitir através da fotografia do político a visão pública dele, a imagem pública que ele quer ter.

ZONA SUL – O que lhe pedem mais como resultado final?
GIOVANNI – Quero ficar bem na foto. É um lugar comum. É o que todos querem. Ninguém quer sair mal na foto.

ZONA SUL – Você fez campanhas políticas em outros estados?
GIOVANNI – Não. Eu não fotografo além dos limites do Rio Grande do Norte. É um provincianismo bobo, imbecilizado, mas não perco meu tempo além do Rio Grande do Norte. Não quero um centímetro além do Rio Grande do Norte. Tem tanta coisa para eu fazer que não foi feita.

ZONA SUL – O que, por exemplo?
GIOVANNI – O livro sobre a economia do Rio Grande do Norte foi só uma pincelada. Por exemplo, os caminhos do gado não foram feitos. Se eu começar a falar, vou revelar um bocado de projeto. Mas vou dizer alguns: Lampião, Coluna Prestes... Não tem registro. A Intentona Comunista ainda tem algum registro por causa de um fotógrafo chamado João Alves. Ele era do Instituto Histórico. As fotos que tem da Intentona na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que vi na semana passada, ou que tem no Senado, são fotos dele: João Alves de Melo.

ZONA SUL – E a fotografia aérea? Você foi pioneiro no estado?
GIOVANNI – Não, Jaeci já fazia isso. A foto aérea existe desde que começaram a voar. Mas eu fotografo bastante aéreo.

ZONA SUL – Não tem medo de cair?
GIOVANNI – Já caí de ultraleve.

ZONA SUL – Ah, sim. Acho que foi na Praia do Forte, não é isso?
GIOVANNI – Foi. Acho que faltou gasolina. Minha interpretação foi essa. O piloto subiu comigo. O objetivo era fazer fotos da cidade para um catálogo de turismo. Lá de cima apontei para o Forte, para fazer aquela foto tradicional mostrando que entre o rio e o mar está a cidade. Isso foi usado por Sanderson Negreiros, Woden Madruga, Newton Navarro, Zila Mamede... Essa imagem da cidade está muito presente. Quando apontei para o Forte, o ultraleve fez uma curva brusca. Eu perguntei o que foi. “Vamos cair”, foi a resposta. Só isso. Aí, pronto.

ZONA SUL – Caíram...
GIOVANNI – Em 15, 30 segundos, passou o filme da minha vida. É impressionante. Passa todinha. Pouco antes de o ultraleve cair, eu grito: olha as pedras! O piloto puxou o manche, para desviar das pedras, e o ultraleve caiu. Espatifou tudo. Caímos na água e eu afundei. Submerso, tentei soltar o cinto. Quem eu vi passando? Ulysses Guimarães. A imagem de Ulysses surgiu naquele instante. Ele tinha acabado de morrer recentemente em um desastre aéreo. Quando soltei o cinto, tentei flutuar. Só que flutuei de cabeça para baixo. Dentro d’água ainda. A alça da máquina fotográfica tinha enrolado em alguma coisa. Fiz um esforço final, coisa do desespero, quebrei a alça da máquina e me soltei. Quando emergi, o ultraleve estava afundado, com as rodinhas pra cima. Fiquei agarrado nas rodinhas. Com um pedaço, o piloto saiu lá de baixo. Ele já tinha escapado e havia voltado para me procurar embaixo d’água.

ZONA SUL – Fora o medo, você não teve nenhum arranhão?
GIOVANNI – Só umas pancadas, nada de grave. O piloto foi esperto. Na hora do impacto, soltou o cinto e não me disse nada. Quando o ultraleve estava caindo, um mergulhador da Petrobras que estava bebendo na Praia do Meio, viu. Ele pegou uma moto e foi para o local do acidente. Entrou na água para nos socorrer. Quando chegou onde eu estava, mandou-me tirar a roupa e ficar de cuecas. Eu falei pra ele que minhas máquinas estavam embaixo d’água. Ele mergulhou e conseguiu recuperar uma delas. Depois disso, começou a me ajudar a chegar em terra firme. Nesse ínterim, um soldado do Exército, que faz guarda por ali, desfez-se da arma, retirou o coturno e entrou na água de calção e camiseta, para ajudar. Também vi duas mulheres de biquíni, nadando em nossa direção. De repente o soldado começou a se afogar. O mergulhador foi socorrê-lo e as duas mulheres me trouxeram até a praia. Na areia, abracei e beijei muito aquelas duas mulheres que ajudaram a me salvar. Somente depois de algum tempo foi que percebi que eram dois travestis. Eles foram muito carinhosos. (risos)

ZONA SUL – Você fez exposições?
GIOVANNI – Nunca fiz. Acho que uma das características do fotógrafo é a timidez. Acho que todo bom fotógrafo é tímido. Existe a exceção: alguns fotógrafos não são tímidos e são muito bons. Mas o bom fotógrafo é tímido, não é exibicionista, é retraído. Tem um fotógrafo americano, que agora não lembro o nome, que é o papa dos fotógrafos de multidões. Ele consegue captar na multidão esse sentimento da coletividade, que é completamente diferente do sentimento da individualidade. Ele capta não a manifestação psíquica do indivíduo, mas a psiquê da coletividade. Ele consegue porque é anônimo. Vai com uma maquininha, não usa equipamento grande ou nada que o possa denunciar como fotógrafo. E é um tímido. Os fotógrafos exibicionistas, em geral, se vendem muito melhor do que fotografam. São grandes publicitários. O fotógrafo vê o mundo através de uma janela. Ele se esconde atrás dela, daquele biombozinho. Ele se protege, o rosto fica todo encoberto. Não se sabe nem o que ele está vendo ou se ao menos está olhando para você.

ZONA SUL – Como você vê o avanço tecnológico no campo da fotografia?
GIOVANNI – Acho que, quanto mais tecnologia, melhor. As câmeras digitais são fantásticas por permitirem que todos tenham acesso à fotografia. Acho que quanto mais gente tiver fotografando, democratiza mais a forma de você guardar seu tempo. A fotografia era elitista. Ela substituiu a pintura nas imagens dos senhores, dos aristocratas. A fotografia amadora começou quando a Kodak desenvolveu sua primeira câmara portátil, em 1888, e criou o slogan "Você aperta o botão e nós fazemos o resto". Hoje a fotografia está completamente democratizada.

ZONA SUL – A possibilidade de todo mundo ser um fotógrafo não dificulta o trabalho do profissional?
GIOVANNI – Não. É até bom. Cada um de nós está produzindo uma memória, está fazendo a crônica do seu tempo. O que diferencia aí é o cronista. Não é o fato de eu possuir um computador que isso me tornará um literata. Eu escrevo um bilhete de amor ou uma carta para a minha mãe. Mas não faço uma obra literária. Da mesma forma, todos os que estão fotografando podem, eventualmente, fazer boas fotografias. Mas não fazem uma obra definitiva. Tem espaço pra todo mundo. Porém, os fotógrafos que fazem eventos, que vivem da fotografia de casamento, os repórteres fotográficos também, esses sentem a concorrência.

ZONA SUL – O que você acha dos paparazzi?
GIOVANNI - Uma invasão de privacidade. Ele é o veículo da nossa curiosidade, do nosso interesse pela vida alheia. Eles são as candinhas que contemplam essa ansiedade que a gente tem em saber sobre a vida alheia. Eu não seria uma candinha.

ZONA SUL – O que é preciso para ser um bom fotógrafo?
GIOVANNI – Além de uma câmera fotográfica, de um pouco de talento para perceber o mundo, para olhar o mundo, ver as perspectivas, os movimentos, os volumes, as luzes. A comunicação na publicidade é de ponta na área da sofisticação, da modernidade, da palavra bem trabalhada. Às vezes a mensagem é transmitida através de uma palavra, uma frase, um conceito. O resto é imagem. A imagem também tem que sintetizar um ideal de vida, de existência, um ideal que a gente quer. Pra isso você precisa das melhores câmeras. Mas para gente comum, o que a indústria está fazendo é muito superior à necessidade. Uma câmera na faixa de 500 reais possui a qualidade de uma boa câmera de dez anos atrás.

ZONA SUL – Quais seus ídolos na fotografia?
GIOVANNI – Tem um fotógrafo, eu queria ser ele, chamado Walter Firmo. É um fotógrafo carioca. Foi do Jornal do Brasil, da revista Realidade. Esse cara é um cronista do povo brasileiro. Gosto de Sebastião Salgado, toda foto dele é um discurso ideológico ou um panfleto, mas escolho Walter Firmo pela espontaneidade, pela alegria do seu trabalho fotográfico. Eu gostaria de ser um paisagista da condição humana. Mas não para fazer a estética da pobreza. Eu não gostaria de fazer parte daqueles profissionais que podem ser considerados fotógrafos da miséria, que querem ser artistas através do uso da miséria humana.

6 comentários:

  1. Uma verdadeira aula e um prazer enorme em ler e visualizar as palavras e imagens do amigo Giovanni...

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  2. Ramón, fui brindado ao vivo com essa aula do professor Giovanni. Foi uma felicidade! Obrigado pelo comentário. Grande abraço.

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  3. Caramba. só hoje encontrei isso. Sou fã do Giovanni, me inspiro nele na arte da fotografia.

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  4. Eu também sou fã de Giovanni. Fiquei mais ainda quando ele me contou sua história para essa entrevista. Um abraço, George.

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  5. Tenho comigo um exemplar de "A Quarta Margem do Rio". Em se tratando de talento as margens são infinitas, atemporais, e o menino Giovanni que conhecí extrapolou muitas delas. Visitando seu stúdio, na Ribeira, acheio curiosamente familiar; só depois é que descobrí ser uma cópia perfeita do fotografo do filme "Blow-up" de Antonionni. Soube, acho que por intermédio de Woden Madruga, que ele andou rastreando sinais da passagem de Saint-Exupéry aí por Natal. Será que encontrou algo?
    Paulo Nascimento BH/MG

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  6. Entre surpreso e envaidecido ví meu comentario sobre a entrevista de Giovanni Sérgio sair no blogspot do ZONA SUL. De fato Giovanni com falou inteligência luminosa de pessoas e coisas que me são caras e me permito fazer uma breve correção e um angustiado pedido: coloquem o nome de LOURENÇO NASCIMENTO depois da vírgula que segue "Meu avô materno,". O que se segue está tudo certo, mas esse nome citado por absurdo engano, foi um concorrente, desleal ao extremo, e na eternidade onde os dois já se encontram posso imaginar que não se cumprimentam. Não tem como não corrigir.
    Paulo Nascimento BH MG.

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