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domingo, 23 de janeiro de 2011

Entrevista: Mestre Chico Barão

O CEARENSE CONTADOR DE ESTÓRIAS DO PARÁ


Francisco Machado de Andrade, o Mestre Chico Barão, é uma das figuras mais interessantes da atualidade de Belém. Ele é mais um cearense espalhado por esse mundão de Deus. Além de mergulhador, empreiteiro, construtor, escritor, artista plástico, poeta e sambista, entre outros, ele é, sobretudo, um grande e bem humorado contador de estórias. O homem tem uma língua nervosa danada: não para de falar um segundo! Essa entrevista e mais de 70 outras podem ser lidas no site www.zonasulnatal.blogspot.com Com vocês, Mestre Chico Barão. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL - Qual é o seu nome completo?

BARÃO - Francisco Fernando Augusto Machado Coelho Andrade de Vasconcelos. Quando nasci, pensaram que eu era um príncipe. Quando descobriram que eu não era, meu nome foi cortado. Ficou apenas Francisco Machado de Andrade. Por não ser da realeza, deixei de ter aquele nome grande.
ZONA SUL - Você pretendia ser da dinastia Orleans e Bragança?
BARÃO - Orleans e Bragança e adjacências.
ZONA SUL - Onde você nasceu?
BARÃO - Em uma cidade chamada Caucaia, no Ceará. Fica vizinha a Fortaleza. Passei a infância em Fortaleza. Fiquei por lá até os 14 anos. Nasci em Caucaia porque teve um problema de maternidade em Fortaleza.
ZONA SUL - Faltou maternidade em Fortaleza?
BARÃO - Faltou vaga. Como uma pessoa de sangue azul, eu não podia nascer em qualquer lugar. Tinha leito pra gente comum, mas pra pessoas de classe, só em Caucaia. Nasci com médico particular, parteira particular, enfermeira particular... Com tudo particular.
ZONA SUL - Isso representou alguma diferença na sua vida?
BARÃO - Representou, porque depois de ter frequentado o melhor clube de Fortaleza, o Ideal Clube, me vi sem dinheiro. Minha família que era dona de um banco chamado Bancesa (Banco de Sobral S/A, que depois trocou de nome para Banco do Ceará S/A e Banco Comercial Bancesa S/A) foi à falência. Ninguém deu apoio. Meu pai chegou a lavar carro para poder escapar.
ZONA SUL - Vamos deixar essa fase de “liseu” mais pra frente. Conte como foi seu período até os 14 anos em Fortaleza?
BARÃO - Fui um garoto comum. Gostava de soltar papagaio, por exemplo. Só que eu soltava de uma maneira diferente. Todo mundo solta papagaio de baixo pra cima. Eu subia em cima da casa para soltar os papagaios que fazia. Mas eles desciam, ao invés de voar.
ZONA SUL – Seus papagaios respeitavam a lei da gravidade.
BARÃO – É. No dia em que eu achar esse Isaac Newton, ele vai ver só.
ZONA SUL - Além de tentar soltar papagaio, do que mais você gostava de brincar?
BARÃO - De roubar coco. Ainda hoje consigo abrir um coco na mão. Eu morava em frente à Igreja das Missionárias. Os padres queriam que eu fosse sacristão, mas eu não topei. Havia uma construção por trás da casa de minha avó. Tinha um monte de areia. Eu e meus amigos costumávamos ficar em cima da laje ameaçando pular. “Olha que eu pulo, eu vou pular”. O papagaio da vovó aprendeu a dizer essas palavras. Em um dia de missa, peguei esse papagaio e botei ele na torre da igreja. O papagaio começou a falar: “eu vou pular, olha que eu pulo”. O povo que estava assistindo a missa achou que era alguém querendo se suicidar. A brincadeira acabou com aquele ato religioso. Só fui aparecer em casa no outro dia, às 8 da manhã.
ZONA SUL - E o papagaio?
BARÃO - Minha avó pegou ele de volta. O nome do padre era Jessé. Todo dia ele atravessava a rua e ia tomar café na casa da minha avó. Ele ficava insistindo: “leve o Francisco para ser coroinha”.
ZONA SUL - Ele tinha outra intenção nesse convite?
BARÃO – Não, mas depois teve gente naquela mesma igreja que quis me pegar. Mas de outra maneira. Em 1964 quiseram me pegar de verdade porque eu estava gritando: “Costela Branca, Costela Branca”. É que estava por lá um cearense baixinho, chamado Castelo Branco, que tinha acabado de fazer uma revolução. O pessoal da segurança dele ficou com uma raiva danada. Aconteceram várias histórias comigo.
ZONA SUL - Conte mais uma.
BARÃO - Naquela época era costume dos meninos usarem no dedo, como anel, o suporte da antena do Fusca, que era chamado brucutu. Eu estava tirando um suporte desses quando chegou a polícia. “Você está preso, onde é a sua casa?”. Apontei para uma casa de esquina e disse que morava lá. Pedi permissão para chamar meu pai. Entrei naquela casa, que não era a minha. Apareceu uma mulher. Eu disse: “minha senhora, vou buscar uma bola que caiu no seu quintal”. A mulher permitiu. Pulei o muro pelos fundos e deixei os policiais esperando na frente.
ZONA SUL - Você deve ter sido uma criança terrível.
BARÃO - Não contei nada, ainda... Minha mãe tinha uma Rural Willys com marcha na alavanca.
O carro ficava na garagem da igreja, para evitar de eu tirar. Tenho um companheiro sem-vergonha, que hoje é da Receita Federal, chamado Fernando Vasconcelos. A gente pegava a Rural e empurrava para aprender a dirigir. Em uma dessas fugas, a polícia veio atrás. Terminei derrubando a Rural em um buraco. Fugi correndo, a pé. Pulei um portão de uma casa e dei de cara com um cachorro pastor alemão. Quando parei, o cachorro me farejou. No mesmo instante os guardas começaram a bater palmas na porta. O cachorro foi latir para eles. Aproveitei para escalar um muro e pular para um prédio que tinha por trás. De lá, escondido, ainda ouvi quando os soldados comentaram entre si: “só pode morar aqui, o cachorro não fez nada com ele”.
ZONA SUL - Seu relacionamento com a polícia não era bom mesmo. Você chegou a ser preso alguma vez?
BARÃO - Até os 17 anos, não. Depois dos 18, fui várias vezes. Afinal de contas, deixe eu lhe fazer uma pergunta séria. Você já viu algum cavalo preso?
ZONA SUL - Não vi, mas em abril de 2006 publicamos uma entrevista com um cidadão chamado Oswaldo Martins de Oliveira. Apelidado de Wadão do Jegue do Dente de Ouro, ele nos contou que seu jegue chamado Vadico foi preso 12 vezes.
BARÃO - Esse caso é uma exceção. Cadeia foi feita para homem e não para jumento, cavalo ou jegue. Certa vez doei uma área rural para ser construído um posto de polícia e quem inaugurou esse posto de polícia fui eu.
ZONA SUL - Depois de ficar em Fortaleza até os 17 anos, que rumo você deu à sua vida?
BARÃO - De lá vim para o Pará. Quando meu pai quebrou, veio para cá trabalhar na Transamazônica. Ele exportava cera de carnaúba. Recebia a carta de crédito adiantada e tinha que pagar com a cera no valor do dólar do dia. Quando o dólar supervalorizou, meu pai ficou sem condição de entregar em cera o que ele tinha pego através de cartas de câmbio. Com isso perdeu tudo o que tinha. Vim para o Pará e passei a morar no Hotel São Geraldo, no centro da cidade.
ZONA SUL - Quantas estrelas?
BARÃO – Se levarmos em consideração que uma estrela tem cinco pontas, esse hotel tinha quase duas pontas. Não dava nem para ser classificado como meia estrela. Foi lá onde aprendi a comer picadinho, já que não tinha outra coisa. Ia a pé para o Colégio de Nazaré. Nessa época conheci uma menina que trabalhava em uma boate. Ela apaixonou-se por mim. Menino novo, eu não podia olhar uma camisa que ela me dava de presente. Hoje ela ainda mora em Belém. Vez por outra eu pago sua feira, pois ela não tem mais condições de nada. Trabalha fazendo jogo do bicho em banca.
ZONA SUL - Qual foi o seu primeiro trabalho?
BARÃO - Foi cobrador de imobiliária, lá no Ceará. Cobrava alugueis para a imobiliária de meu tio, um dos donos do banco. Mas quando chegava para cobrar e encontrava aqueles velhinhos sem dinheiro, naquelas casas de vila, eu dizia: “deixa pra pagar depois, quando você arrumar o dinheiro”. Quando eu voltava para a empresa, dizia que não tinha arrecadado nada. Mandavam eu ir de novo. Eu ia assistir a um filme. Não ia cobrar de novo porque sentia pena. Hoje sou um empresário de sucesso. Devo esse sucesso a duas coisas: cumprir meus acordos – às vezes até com prejuízo - e não tomar uma gota de suor de quem me ajuda. Isso me fez crescer. Apesar de ter sido sócio do meu pai há algum tempo, quando saí da empresa eu não tinha carro para andar, nem casa pra morar. Tinha apenas 180 reais no bolso.
ZONA SUL – Faz muito tempo?
BARÃO - Foi em 1996. Hoje tenho uma empresa de construção pesada e uma locadora de equipamentos. O carro que eu ando aos finais de semana é um Mustang. Durante a semana uso um Honda Civic. Moro em uma área nobre de Belém, na Doca de Souza Franco, em um apartamento com quatro suítes. Já morei períodos nos Estados Unidos, em Portugal, na França e na Inglaterra. Antes, tive contato com a guerrilha do Araguaia.
ZONA SUL - Como foi essa história?
BARÃO - Participei da guerrilha da pior maneira possível: tanto podia ser morto pelo Exército como pelos guerrilheiros. O Exército podia me confundir com um guerrilheiro e me matar. Da mesma forma os guerrilheiros podiam me confundir com um espião do Exército e acabar comigo. Trabalhei construindo obras prioritárias, como estradas para o Exército poder se locomover. Nessa época o comandante chamava-se Major Curió, que depois virou coronel e tomou conta de Serra Pelada. Mesmo com esse risco todo, passei seis meses na área da guerrilha. Assisti o Genoíno ser amarrado em um poste, igual a um cachorro, e algumas coisas mais.
ZONA SUL – Dizem que ele entregou companheiros de guerrilha.
BARÃO - Não ouvi nada, mas acho difícil alguém ter conversado com Curió e não ter aberto a boca para dizer alguma coisa. Você já apanhava antes de conversar com ele. Não vi Genoíno apanhar. Só testemunhei até quando amarravam ele em um poste. Não era recomendável ficar olhando para esse tipo de coisa. Não acho que o Exército estivesse errado. Da mesma forma também não considero que os guerrilheiros estivessem errados. Cada um tinha a sua razão, sua lógica e a sua ideologia.
ZONA SUL - E você também devia ter a sua razão para não querer se envolver com a confusão.
BARÃO - É verdade. Eu estava ali para ganhar o meu pão de cada dia. Mas posso garantir uma coisa: quem estava lá na área da guerrilha do Araguaia sabe que a maior quantidade de ouro que tem no Brasil está na Serra das Andorinhas. Lá é só ouro, mas nunca foi explorado. O motivo eu não sei.
ZONA SUL - Por que você nunca foi lá explorar esse ouro?
BARÃO - Tenho um negócio comigo: não procuro o que não perdi. Como é que eu vou procurar
um ouro que eu não perdi? Sou realista. A empresa do meu pai trabalhou fazendo rebaixamento na Serra Pelada. Estive lá, mas passei apenas um dia. Os garimpeiros viviam em condição sub-humana. Era como se fosse uma escravidão espontânea. Todo mundo fazia muita força, muitos morriam. A quase totalidade se endividava para sobreviver. Alguns que conseguiam pegar ouro eram mortos, assaltados na saída do garimpo para a cidade.
ZONA SUL – Em Belém sua relação com a polícia melhorou?
BARÃO – Que nada. Certa vez fui agredido por um guarda da cavalaria, na Praça da República. Quando ele tentou me atingir, com o sabre, pela segunda vez, desviei, corri e pulei para dentro de um tanque. O policial estava a cavalo, em um nível mais alto, e eu dentro do tanque. Quando ele se abaixou para desferir o golpe, peguei no seu braço e puxei. Quando ele caiu, mordi a orelha dele e balancei duas vezes. Fui cuspir o pedaço da orelha do soldado na porta do hotel. Em compensação, tenho a marca do sabre até hoje na minha perna.
ZONA SUL - Quer dizer que você antecipou em vários anos o que Mike Tyson faria depois com a orelha de Evander Hollyfield.
BARÃO - Soco eu não dei nenhum, mas a mordidinha... Pior foi que eu nem senti a saibrada. O corte só doeu depois, quando o sangue esfriou. Eu tinha menos de 18 anos. Sempre atirei bem de rifle com uma mão só. Na época da guerrilha o Coronel Curió, que na época era major, chegou no nosso acampamento. A gente costumava matar dois bois pra alimentar todo mundo. O coronel recusou a carne. Disse que preferia comer uma galinha. Apanhei um rifle Remington 22 longo, cabo de madeira, e parti para pegar a galinha no terreno de um colono vizinho. O major reclamou: “que é isso? Vai dar tiro na galinha? Vai pegar no fel”. Disse a ele que atiraria no olho, e que se pegasse na pestana, ele nem precisava comer. Tinha uma castanheira deitada no chão. Botei o rifle em cima dela. A galinha, no terreiro, dava duas bicadas, levantava a cabeça, olhava pra um lado e pro outro e voltava a bicar de novo. Numa dessas, quando ela levantou e olhou pra um lado e para o outro, eu atirei. Não deu pra ver se foi na pestana porque o tiro abriu um chaboque na cabeça da galinha. Mas foi na cabeça. Tempos depois, ele já prefeito de uma cidade chamada Curionópolis, me reconheceu quando fui fazer um asfalto lá. “Rapaz, o menino da galinha”.
ZONA SUL - O que você foi fazer nos Estados Unidos?
BARÃO - Participar de um curso de mergulho. Sou instrutor divemaster de mergulho. Faço busca e resgate, além de mergulho noturno. Fiz essa capacitação já com 30 anos de idade. Fui
primeiro lugar e fiquei como professor adjunto. Quando cheguei lá, não abri conta em banco. Certa vez a pessoa que estava tomando conta do meu dinheiro foi para a Itália, visitar a família da esposa. Fiquei sem dinheiro. Eu morava com uns paraenses. Tinha uma bicha paraense que alugava um quarto para outra bicha. Essa bicha tinha um carro. Um dia os colegas da casa tomaram café da manhã cedo e saíram. Quando acordei, não tinha nada pra comer. Fui até o quintal onde tinha um pé de grapefruit, fruta que parece uma laranja. Quando passei pelo carro da bicha, peguei uma lasca de madeira e botei na válvula do pneu. Fui, comi o graperfruit, e quando voltei o pneu já estava seco. Tirei a vareta, sentei no batente e fiquei esperando. A bichinha passou toda saltitante, “good morning, good morning”. Ela olhou pro pneu e deu um grito. Perguntei o que tinha havido e me ofereci pra trocar o pneu. Tirei o pneu, coloquei o suporte. Nos Estados Unidos o estepe é bem fininho. Ele me deu 20 dólares para eu mandar consertar o pneu. A bichinha saiu para o salão onde trabalhava e eu fui para uma loja de conveniência da rede 7-Eleven. Tomei um café reforçado, comprei umas Budweiser e uma carnezinha pra fazer um barbecue (churrasco). Enchi o pneu e fui para o salão devolver o carro. Chegando lá, ela me deu mais 50 dólares e cortou o meu cabelo. Quando a negada chegou do trabalho eu estava lá melado, às quedas, fazendo churrasco. Eles perguntaram: “Ceará, qual foi o McDonald’s que você roubou? Quando saímos daqui você não tinha dinheiro para tomar um café, e agora está fazendo derrame”. Até hoje ninguém sabe desse segredo. Depois fui trabalhar em um car wash (lava-jato de automóveis) de um brasileiro. Fiquei por lá até a imigração vir atrás de mim. Arranjei uma francesa que tinha dois carros. Quando eu ia pra casa dela e dava prego no meu Camaro velho, ela oferecia um dos seus. Mas não queria que eu dirigisse o carro dela de trabalho. Preferia me dar sua Mercedes. Às vezes eu dava um balão. Quando não arrumava nada, voltava de novo. Certa vez chegou uma amiga dela da Suiça. Dei mais uma vez o golpe. Desliguei o cabo da bateria do Camaro, peguei o carro dela e saí para uma boate chamada Via Brasil. Tomei umas seis doses de whisky. Quando voltei pra casa, meti a mão na porta, abri, tirei a roupa, passei no bar, peguei um whisky casco de louça, botei uma dose e fui pro quarto, já nu. Quando chego lá, vejo as duas no maior amor do mundo. “No have trouble, I understand this”. Não tem problema, eu entendo disso. Fui pro meio. A partir disso, compadre, minha vida melhorou. Era uma coçando a minha cabeça, a outra coçando o meu pé. Uma assando uma carnezinha, outra preparando uma dose de whisky. Quando vim embora para o Brasil, elas queriam vir. Só que eu era casado. Então me deram um pacotinho para eu abrir no avião. Quando abri, tinha um cartão: “esse presente é para você dar a sua mulher, em agradecimento”. Tinha um rolex de ouro branco e amarelo. Depois tiveram em Fortaleza, comigo lá. Minha ex-mulher ficou até com raiva porque fiquei com minha filha menor brincando com elas na praia.
ZONA SUL - E na França, o que você foi fazer por lá?
BARÃO - Fui curtir. Certa ocasião eu estava com uma Mercedes alugada. Na França, Mercedes é táxi. Parei perto de Neris, em um castelo, para olhar e bater umas fotografias. Quando estava andando, vi um cara cuidando do jardim. Indo para o castelo, escuto aquele comentário, em português: “lá vem outro turista filho da puta”. Olhei para ele e perguntei: “baiano, você é brasileiro?”. Ele respondeu que sim, que era do Piauí. O piauiense tomava conta do castelo. Fiz amizade com ele. Me convidou para ficar uns dias no castelo. Compadre, só dormi legal o primeiro dia. Quando comecei a lembrar que lá tinha assombração e visagem, passei a dormir do lado de fora. (risos).
ZONA SUL - E Portugal? Como foi sua estadia por lá?
BARÃO - A vida lá é muito boa: tomar vinho em adega, na bagaceira... Só que lá os caras são filhos da mãe. Você chega a uma adega daquelas e se toma só uma caneca de vinho, o cara fica puto. Se não beber mais três ele fica pensando que você não gostou do vinho dele. Faça quatro visitas em um dia... Num instante você fica pra lá de Marrakesh, e não aproveita nada. Em compensação, foi lá que senti o prazer de comer um pêssego no pé. Era um dos sonhos que eu tinha.
ZONA SUL – Onde você arrumou dinheiro para essas viagens?
BARÃO - Nos Estados Unidos eu estava sem dinheiro, mas eu tinha as coisas aqui, com meu pai.
Mas ganhei dinheiro de várias formas. Uma vez, pescando, tirei uma botija com 86 moedas de ouro e mais de cem de prata. As que não eram de prata ou de ouro, eu tenho todas. Vendi as que valiam mais e fui para o Rio de Janeiro. Hospedado no Hotel Glória, aluguei um saveiro, e peguei uma artista da Globo. Não vou dizer o nome porque ela ainda é viva. Quando voltei pro Pará, tava liso. Também ganhei um dinheirinho por conta da Eletronorte. Estavam fazendo uma subestação aqui e o projeto exigia tijolo maciço. Aqui na região não tinha. Os caras se viram aperreados. Vamos supor que o milheiro do tijolo furado fosse 200 reais. Cobrei, pelo tijolo maciço, 4 mil reais. Toparam a parada, porque estavam sem poder fazer nada. Peguei um adiantamento para entregar 20 milheiros. Quando fiz a primeira entrega, os caras me xingaram, disseram que não era tijolo maciço. Eu disse que eles mandassem o tijolo para São Paulo, para fazer o teste de qualidade. Fizeram, o tijolo foi aprovado e eles mandaram continuar. Eu entreguei. Sabe qual foi o tijolo maciço que entreguei? Peguei o tijolo furado, botei de boca pra cima, fiz um traço de areia e cimento de um pra 16, com fator água cimento que dava pra uma textura ali mole, entupi todos os tijolos e deixei secar. Quando secou, entreguei.
ZONA SUL - Como você conseguiu juntar dinheiro depois de ter saído da aba do seu pai “com uma mão na frente e a outra atrás”?
BARÃO - Com o pouco dinheiro que tinha, fui para um leilão arriscar comprar móveis velhos e reformá-los para vender. Quando comprei os lotes de móveis, em um deles, na parte do et cetera, tinha uma máquina de solda rebocável com motor Perkins de três cilindros. Recuperei essa máquina. Eu tinha comprado o lote por 30 reais, só a máquina vendi por 4 mil. Em outros lotes ocorreu a mesma coisa. Dessa forma dei uma capitalizada alta rapidamente. Criei uma empresa individual chamada Cobra Construtora Brasileira. Houve uma licitação, oito pessoas se habilitaram na carta-convite, mas só eu participei. Por que só eu participei? Porque a licitação era de locação de equipamentos. Os caras compravam o edital, tinham o equipamento e queriam alugar. Só que o objeto era locação de equipamentos, mas a única empresa que tinha locação de equipamentos em sua razão social era a minha. Com a licitação na mão, peguei máquina de um e de outro e fiz a obra. Me capitalizei mais ainda.
ZONA SUL - Como foi seu ingresso na literatura? Qual a origem do seu apelido?
BARÃO - Lá no Ceará meu apelido era Barão. Aqui em Belém, virei também Mestre quando conheci o pessoal da música. Foi depois que fiz uma letra chamada “Só não como porque ela não me dá”. Tornou-se um samba altamente paraense. “Só não como porque ela não me dá um pato no tucupi / Só não como porque ela não me dá camusquinho de siri / Só não como porque ela não me dá uma cuia de açaí”. Esse foi o ingresso.
ZONA SUL – E na literatura?
BARÃO - Por incrível que pareça, agradeço à universidade. Em 1984 fiz uma cadeira chamada Estudo dos Problemas Brasileiros. Depois que fiz um trabalho, meu ex-sogro leu e disse que eu tinha uma veia literária. Até meu professor pediu pra eu dar continuidade àquele texto. Era sobre a transposição das águas do São Francisco para o Jaguaribe. Em um dos trechos eu dizia que um rio, cruzando com outro, paria um bocado de riachos. Esse livro, por incrível que pareça, ainda não terminei. Mas foi meu ingresso na literatura. Como artista plástico, tenho quadro na Secretaria de Estado de Transportes, no Banco do Brasil... Minha meta agora é partir para a escultura. Quero ver até onde eu vou.
ZONA SUL - Você é autodidata?
BARÃO - Claro. Sabe por quê? Em arte o que eu tiver pra aprender com alguém não sou eu. Aquela arte não é minha. Não existe ninguém, que seja um verdadeiro artista, que tenha pego lição de alguém. Ele pode ter melhorado seus conhecimentos.
ZONA SUL – O que você gosta de ler?
BARÃO - Tenho um gosto especial de obras sobre Lampião. Meu avô domava cavalos pra
Lampião. Aprendi a atirar de rifle com sete anos de idade, ensinado também por esse meu avô. Coincidentemente nasci no dia 4 de junho, mesmo dia em que o Lampião nasceu. Ele era capaz de matar um cabra dele porque reclamou da comida. Também mandava ferrar uma mulher só porque ela tinha cortado o cabelo. Em compensação era típico dele pegar o dinheiro do bolso e dar pra um leproso se locomover de um canto pra outro. Na minha visão, Lampião acabou com o cangaço quando levou mulher pro meio dos bandoleiros. Passaram a ter uma vida mais ociosa. Viviam até acabar o dinheiro. Pretendo escrever um livro reproduzindo as histórias que meu avô contou sobre a época de Lampião.
ZONA SUL – Fale sobre seus livros.
BARÃO – Talvez meu principal trabalho seja a colação “Boto – uma boneca cor de rosa” que engloba quatro títulos. O boto-cor-de-rosa, depois de conquistar o título de representante
nacional LGBT, vai atrás do título mundial, depois do intergalático e assim por diante. Também escrevi “Visagens falsas, assombrações verdadeiras” com quatro histórias. Outro livro é “Virando bicho, desvirando gente”, contando uma bela história sobre o lobisomem. Outro livro é “O vulto da torre”. No princípio, os padres subiam na torre da igreja pra fazer o acompanhamento de invasão de índio, ataque de bandido... Com o crescimento da cidade, em volta da torre, os padres continuaram com o hábito, só que para verificar o dia-a-dia das pessoas e extorqui-las no confessionário. Escrevi também “A margem assombrada”, que envolve ONGs e meio ambiente. Também escrevi “Delírios e lírios” e “Lírios e delírios”, dois livros de poesias. Os delírios, como o próprio nome sugere, são histórias fantásticas e irreais. Os lírios são mais centrados e lógicos.
ZONA SUL - Como alguém em Natal pode ter acesso a seus livros? Você vende pela internet?
BARÃO - Vendo. O pior não é isso: às vezes dou. Sou uma pessoa que, graças a Deus, não vivo das minhas publicações, das minhas músicas, nem dos meus quadros. Apesar de os meus quadros terem um valor bastante significativo, que não deve ser dispensado. Quando vejo que a pessoa tem interesse, mas não tem condição financeira, eu dou o livro. Meu interesse maior é que minhas ideias sejam divulgadas. O livro nada mais é do que uma tentativa do autor de alienar o leitor à sua maneira de pensar, aos seus pensamentos.
ZONA SUL - Como entrar em contato com você?
BARÃO – É fácil. Meu nome é Mestre Chico Barão. Sou Barão, mas não sou burro. Não tenho
meu dinheiro para jogar no mato. Tanto é que meu email é gratuito, é o Hotmail. Tou colocando isso bem explicado porque dessa forma o cara não vai esquecer nunca. Meu email é mestrechicobarao@hotmail.com/ Esse email também aceita ameaças, não tem problema nenhum. Se ao ler meus livros você se sentir atingido em alguma coisa, pode reclamar. Sua ameaça será muito bem recebida e inclusive catalogada. Pretendo algum dia ainda fazer um livro só das ameaças que recebi por causa dos livros que escrevo.
ZONA SUL - E o Rio Grande do Norte?
BARÃO - O Rio Grande do Norte é um estado maravilhoso. Já dancei carnaval no parapeito de um hotel em Mossoró. Por aí você vê a largura da parede. Foi feita pra aguentar bala! Tem também uma praia muito boa, chamada Genipabu. Já fiquei hospedado em um motel na praia de Ponta Negra, tempos atrás, porque não tinha vaga em hotel. Passei a maior vergonha no hotel Reis Magos. Eu costumava viajar a me divertindo pelo percurso Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió e Salvador. Em Fortaleza eu pegava uma turista do sul pra fazer o resto da trajetória comigo. Para impressionar, eu pedia sempre um whisky bom, um Royal Salute. Nunca tinha. Aí eu tomava o que eu queria mesmo: Johnnie Walker, Black Label, Ballantines, Old Parr... Só que no hotel Reis Magos caí na besteira de fazer essa graça e o Royal Salute apareceu. Gastei metade do dinheiro que estava separado para a viagem nessa onda. Depois foi que descobri que o nome da boate do hotel era Royal Salute.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Entrevista: Cortez

O sertanejo que ganhou o mundo com as letras


É comum ouvir dizer que a história de alguém daria um livro. A de José Xavier Cortez rendeu muito mais: uma biografia, um documentário em vídeo e um livro infantil. Sua vida não foi fácil. Ainda menino no sítio dos pais, em Currais Novos, ele ajudou a família a tirar da agricultura o sustento. Estudou nas horas de descanso. Maior de idade, deixou a terra natal para buscar um futuro melhor para si e para os seus. Entrou na Marinha, foi expulso de lá após o golpe de 64. Morou em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Em São Paulo, foi lavador de carros em um estacionamento. Nessa condição passou no vestibular de economia, da PUC. Vendeu livros na faculdade. Editou teses de mestrado e pós-graduação. Hoje Cortez é reverenciado no meio intelectual brasileiro. Sua editora completou 30 anos no primeiro semestre. A efeméride serviu como mote para relembrar a história desse potiguar que, apesar de ter ganho o mundo, nunca deixou de ter seus pés fincados no sertão do Rio Grande do Norte. (robertohomem@gmail.com)

ZONA SUL: Vamos conversar um pouco sobre o seu período em Currais Novos...
CORTEZ - Divido minha trajetória em três momentos. O primeiro foi vivido lá no sertão, onde nasci, me criei, trabalhei e aprendi a ler. O segundo foi a fase militar, onde permaneci na Marinha. Aos 17 anos saí do sítio Santa Rita e fui para Natal. Em seguida entrei para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Recife, onde fiquei uns dez meses. Em janeiro de 1956, depois de fazer o curso de habilitação para a Marinha de Guerra, fui para o Rio, onde fiquei até dezembro de 1964. Toda essa etapa foi importante para eu deixar a vida de sertanejo e me adaptar à cidade. Fui punido com o golpe militar de 1964...
ZONA SUL - Vamos deixar os detalhes para depois...
CORTEZ - Certo. Então, continuando, o terceiro e último momento da minha trajetória começou logo após o golpe militar, quando fui desligado da Marinha e troquei o Rio por São Paulo. Essa fase segue até hoje. Nesse ano em que a Cortez Editora completou 30 anos, foram lançados um DVD, um livro e uma publicação infantil contando minha trajetória mais ou menos dividida nessas três fases.
ZONA SUL - Vamos falar um pouco sobre essa primeira etapa. Como foi a vida no sítio?
CORTEZ - Essa fase está muito bem detalhada no livro “Cortez - A saga de um sonhador”. A socióloga e biógrafa Teresa Sales fez uma pesquisa muito séria do meu nascimento até os 17 anos. O final dos anos 1950 e anos 60 do século passado foi um período de rudeza, de trabalho árduo. Não havia tecnologia, energia, água... Enfim, passei, uma fase dura lá no sertão do Rio Grande do Norte, trabalhando com os meus pais e a minha família naquela agricultura de subsistência.
ZONA SUL - Você começou a trabalhar muito cedo?
CORTEZ - Estou na faina diária, no trabalho diário, desde os cinco ou seis anos. Nessa idade eu já puxava boi pro meu pai arar a terra com a capinadeira. É uma das lembranças que eu tenho do tempo de criança.
ZONA SUL - Paralelo a isso você também estudava?
CORTEZ - Meus pais sempre tiveram essa preocupação. Somos dez irmãos, dos 17 que a minha mãe teve. A cada dois anos nos reunimos, em um encontro que apelidamos de Bienal da Família. Mas eu dizia que estudei em escola rural a partir de seis ou sete anos. Lá aprendi as primeiras letras.
ZONA SUL - Ajudando a família na roça e estudando, sobrava tempo para brincar?
CORTEZ - Eu e meus irmãos estudamos sempre no horário, digamos, do almoço: das 11 horas até por volta das duas horas da tarde. Algumas escolas eram distantes. Tínhamos que andar quatro ou cinco quilômetros para ir e a mesma distância pra voltar. Tínhamos que trabalhar de manhã até às dez horas. Tomávamos banho, almoçávamos e saíamos para a escola. Na volta, trocávamos de roupa e retornávamos o trabalho no roçado até o sol se por.
ZONA SUL - Então não sobrava mesmo tempo para as brincadeiras...
CORTEZ - Às vezes brincávamos à noite. Naquela época morava muita gente nas proximidades do sítio. Hoje não existe sequer 10% daquela população da época. Depois do jantar, quando comíamos coalhada ou sopa, vinham os vizinhos. Brincávamos de tica ou de outras brincadeiras no terreiro. No final de semana também tínhamos muita ocupação, como dar comida pro gado e levar os animais pra beber água. Geralmente, nas tardes de sábado ou domingo, sobrava um tempo maior pra brincar.
ZONA SUL - Por volta dos 17 anos você mudou-se pra Natal. Por que?
CORTEZ - Nós percebíamos, e meu pai também falava, que seria muito difícil sustentar toda a família naquele sítio que até hoje preservamos. Mal dava para os dez filhos. Pior ainda ficaria na medida em que fôssemos casando. Sabíamos que tínhamos que procurar alguma coisa. A pergunta era: onde encontrar trabalho com parcos estudos? Antes de ir pra Natal fiz outras coisas, como garimpar. Nos anos de seca íamos trabalhar nos garimpos. Eu, o mais velho dos irmãos, nunca tinha ido a lugares mais distantes até resolver mudar pra Natal. Eu sabia que possivelmente teria que servir ao Exército. Mudei para a capital com a expectativa de servir à Aeronáutica. Eu não tinha noção de militarismo, de nada. Em Natal fiquei durante sete ou oito meses na casa de um tio, o tio Alfredo, já falecido. Não consegui entrar na Aeronáutica, mas entrei na Marinha. Dessa forma fui para Recife e iniciei essa minha viagem. Não era o que eu esperava. Ganhávamos mal e o regulamento era muito rígido. Mas eu tinha como objetivo e projeto de vida fazer alguma coisa pra ajudar minha família. Fui e sou uma pessoa muito ligada às questões familiares. Meu pensamento era o de ajudar os meus pais. Dar algo melhor para eles. Eu via na Marinha o canal para isso. Fiquei lá nove anos.
ZONA SUL - Antes da Marinha você fez outras coisas em Natal?
CORTEZ - Quando mudei pra Natal eu sabia que ali era o ponto de partida da minha caminhada. Não pensava mais em voltar para o sertão. Em determinada época apareceu um conhecido do meu pai, que morava em Campo Redondo. Ele tinha um alambique e me arrumou um trabalho temporário pra encher garrafas nos tonéis de cachaça. Depois me envolvi com os exames da Aeronáutica. Como não deu certo, tentei a Marinha. Fiquei hospedado na chácara do meu tio, no Alecrim. Como lá tinha muitas árvores frutíferas, pedi permissão a ele e passei a vender umas frutas pela cidade. Com o apurado eu comprava uma pasta, comia um pão doce com caldo de cana, ou coisas do gênero. Foi assim até a Marinha me chamar, em março de 1955.
ZONA SUL - Quais suas atividades na Marinha?
CORTEZ - Depois de jurar bandeira em Recife, embarcamos em um navio chamado Barroso Pereira. Eu e mais 200 ou 300 colegas fomos para o Rio. Lá nos dividiram entre vários navios. Servi inicialmente um ano e pouco no contratorpedeiro Marcílio Dias. Nossa função era serviços gerais: faxina e tudo o que havia de pior. Depois que desembarquei fui para um quartel de marinheiros. Contraí esquistossomose e fiquei três ou quatro meses em um hospital naval. Depois fiz curso de especialização em máquinas. O maquinista, claro, trabalha na praça de máquinas. Sua função é fazer o navio navegar. Ao terminar o curso, fui servir no Cruzador Barroso. Fiquei cinco anos nesse navio. Em março de 1964 trabalhei na organização da festa de segundo aniversário da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil.
ZONA SUL - Ao descrever suas atividades na Marinha, você falou: “o que tinha de pior sobrava pra gente”. Como você recebia essa diferença de tratamento?
CORTEZ - Toda pessoa merece ser tratada com dignidade, independente de sua raça, condição social ou grau de instrução. Ao entrar na Marinha passei a conviver com pessoas de outros níveis. Comecei a ler jornais, ver televisão, a me informar. No sertão eu não tinha nada disso. Nunca tinha aberto um jornal ou lido um livro todo. Assim começou o meu contato com esse mundo mais civilizado. Passei a me conscientizar de algumas coisas. Por outro lado, quando eu vivi no sertão - em um lugar muito pobre - nunca fui humilhado. Ninguém deve ser humilhado por condição nenhuma. A Marinha tinha um regime arcaico. Seu regulamento já não condizia com a década de 1960. Nós, marinheiros, começamos a reivindicar algumas coisas. Foi assim que fundamos, em 1962 - quando eu já tinha sete anos de Marinha - uma associação de marinheiros. Nós estávamos sendo muito sacrificados e humilhados. As associações não eram permitidas nas Forças Armadas, como não é ainda hoje.
ZONA SUL - Esse movimento culminou com uma revolta dos marinheiros...
CORTEZ - A Marinha do Brasil teve muita importância na minha trajetória. No entanto, apesar de a Marinha ser considerada uma força armada de elite, somente a oficialidade recebia bom tratamento. Os praças e os oficiais subalternos, não. A história da Marinha é manchada por alguns episódios como a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910. Os marinheiros se rebelaram contra a aplicação de castigos físicos a eles impostos como punição. Em 1888 a escravidão havia acabado no Brasil, mas os marinheiros apanharam de chibata até 1910. Foi necessário haver um levante sob o comando do almirante negro João Cândido para acabar com essa selvageria. Em 1964 fazia apenas 50 anos daquela rebelião. Era um período muito curto. Ainda existiam pessoas daquela época. Em 1960 os marinheiros começaram a estudar e a participar da vida civil. Isso fez com que o pessoal subalterno, entre aspas, se conscientizasse. Foi aí que tudo começou. Resolvemos fazer uma festa para comemorar o segundo aniversário da associação. Era simplesmente uma festa, mas a Marinha proibiu. Dessa forma começou o grande duelo. Nos rebelamos contra as ordens, coisa que a hierarquia não permitia. Acredito que esse nosso movimento, ocorrido de 25 a 27 de março, foi o estopim para deflagrar o 31 de março.
ZONA SUL - Esse foi o motivo do seu afastamento da Marinha?
CORTEZ - Do meu e do afastamento de muitos outros. Estávamos lá no sindicato uns 2 ou 3 mil, não lembro mais. A nossa luta, que era a mesma de muita gente naquela época, era a favor do presidente João Goulart. Não era contra. Defendíamos as reformas de base, por exemplo. Mas o nosso movimento era interno, por mudanças como a permissão para o marinheiro casar, pelo direito a um tratamento mais humano e por uma melhor comida, entre outras reivindicações. Acabamos o movimento após fechar um acordo com o ministro da Marinha, o Leonel Brizola e outras pessoas que intermediaram essas conversações. Nunca esqueço do dia em que os fuzileiros navais - que são a força terrestre da Marinha - foram nos prender. Eram nossos colegas, a associação também era deles. Chegaram em frente ao sindicato e receberam a ordem de nos levar presos. Os fuzileiros desfizeram dos seus fuzis e ficaram ao nosso lado. Você nem pode imaginar a emoção de ver aderir à sua causa um grupamento convocado pra lhe prender. Depois de acertos e conversações, passamos pelo quartel do Exército e depois fomos liberados. Lá deixamos nossos nomes, essa coisa toda. Três ou quatro dias depois aconteceu o golpe militar. Foi facílimo pegar o nome de todos nós que estávamos lá no Exército. Aí começou a caça às bruxas.
ZONA SUL - O afastamento da Marinha foi a única represália que você sofreu ou houve outro tipo de perseguição?
CORTEZ - Sempre tive bom comportamento na Marinha. Nunca havia sido preso, apesar da rigidez do regulamento. Se o sapato não estava bem engraxado, o oficial não deixava sair, quando o navio estava em terra. Se o chapéu não estava branquinho como ele achava que deveria estar, a saída também era proibida. Só que não dispúnhamos de armário para guardar nossas coisas. Ficava tudo em um saco. Dessa maneira era praticamente impossível manter tudo impecável. Havia uma incompreensão grande. Com a associação, passamos a contar com assistência médica, dentária, assistência social e outras conquistas como o próprio direito de estudar. Se a saída era proibida, o marinheiro perdia sua aula. Quando saí da Marinha respondi a um IPM (Inquérito Policial Militar) simplesmente porque participei dos protestos. Eu não tinha ligação com partido nenhum, era praticamente apolítico. Sentíamos na pele a revolta de, por exemplo, ver um oficial ao seu lado ter direito a uma refeição com pratos especiais enquanto você só dispunha de uma comida de péssima qualidade. Servíamos na mesma embarcação, tínhamos o mesmo objetivo de servir à pátria, nosso estômago era semelhante e éramos pagos pelo governo para desempenhar funções militares. Nossa luta era também para que todos pudessem comer de forma decente. Essa foi a situação. Quando saí da Marinha vim embora pra São Paulo.
ZONA SUL – Por que São Paulo?
CORTEZ – No Rio de Janeiro o desemprego era maior. Além disso, onde arranjar um emprego de maquinista? Até então minha experiência era na agricultura de subsistência e na Marinha. Eu até podia trabalhar na Petrobras ou na Fronape (Frota Naconal de Petroleiros), mas todos nós, os que fomos punidos, entramos em uma lista negra elaborada por órgãos oficiais do governo. Fomos considerados maus elementos, comunistas e coisas desse tipo. Nem adiantava ir a um navio qualquer e dizer que era maquinista. Como o nome constava na lista, a resposta era que não havia emprego. Outro motivo para a escolha é que eu tinha parentes em São Paulo. Inicialmente fui trabalhar em um estacionamento, lavando carros. Não sabia dirigir, depois aprendi. Na Marinha aproveitei muito bem o tempo para estudar. Fiz um curso de técnico em contabilidade em um colégio particular graças a uma bolsa de estudos que ganhei. Quando não estava embarcado, ficava na casa de um parente que morava no Rio. Essa família foi muito importate para mim, pois eu tinha onde ir quando saía do navio. Muitos colegas, por não ter onde ir, ficavam a bordo ou iam morar a 40 ou 50 quilômetros de distância. Graças a essa família pude concluir o curso de contabilidade, embora eu tenha adquirido apenas um pouco de teoria. Meus cursos todos, inclusive o de economia, que fiz na PUC, foram mal feitos. Não por culpa das instituições ou dos professores, mas porque eu não tinha base. Reconheço que eu não tinha onhecimento nem método de estudo. Estudei em escola rural. Até hoje sinto falta de conhecimentos gerais e de uma porão de coisa.
ZONA SUL – Você estudou mais por força de vontade...
CORTEZ – A idade boa para eu ter aprendido era 8, 10, 12 ou 15 anos. Minhas filhas tiveram essa oportunidade. Eu não tive. Essa lacuna existe na minha vida ainda hoje.
ZONA SUL – Em São Paulo você começou lavando carros...
CORTEZ – Sim, e eu morava no próprio estacionamento, em uma casinha de madeira. Não gastava nada. Andava de tamanco, chinelo e calção. Fiquei dois anos nesse trabalho. Em frente ao estacionamento tinha um cursinho de alunos da USP. Ganhei uma bolsa para estudar à noite. Com isso passei no vestibular da PUC de São Paulo. Cursei economia a partir do ano de 1966. A partir daí a minha vida começou de fato. Mas deixe eu completar uma informação sobre o período da Marinha. Lá fiz algumas viagens e li bastante. Devo à leitura o que sou hoje.
ZONA SUL – Para ajudar a se manter na universidade, você vendeu livros. Como foi?
CORTEZ – Quando entrei na universidade, eu trabalhava no estacionamento. Um dia apareci com a cabeça raspada, devido ao trote, usando um boné. Os colegas pensaram que eu havia sido preso. Quando expliquei que tinha passado no vestibular, ficaram espantados. Um dos clientes do estacionamento disse que um universitário não podia continuar lavando carros. Conseguiu pra mim um emprego no Ceasa, que hoje é Ceagesp, como escriturário. Aluguei uma quitinete e passei a andar de gravata. Só que, o salário desse emprego não era suficiente para pagar as novas despesas. No estacionamento eu praticamente não tinha gastos. Fui morar ao lado de uma editora. Um funcionário de lá vendia livros na PUC. No intervalo das aulas eu sempre ia ao quiosque e ficava lendo aqueles livros. Ele sabia que eu não tinha dinheiro e me emprestava algumas publicações durante o final de semana. Eram livros de econometria e economia internacional, por exemplo. Ele só pedia para eu não amarrotar os livros. Eu devolvia na segunda-feira. Fizemos amizade. Eu dizia a ele os livros que tinham sido indicados na minha sala e nas salas vizinhas. Enfim, eu dava as dicas para ele levar os livros certos para vender. Após cinco ou seis meses, quando precisou ir embora, ele perguntou se eu não queria ficar com aquele ponto. Aceitei. Por aí começou a minha inserção no mercado livreiro. Depois de algum tempo os livros começaram a dar mais dinheiro do que o trabalho de escriturário. Saí do emprego e me dediquei integralmente à venda de livros. A PUC me cedeu um espaçozinho, abri um balcão com quatro ou cinco prateleiras. Comecei a vender pra psicologia, serviço social e educação. Em dois anos, quando já estava bastante conhecido, mandei chamar um primo, um irmão e assim foram vindo pessoas para me ajudar.
ZONA SUL – Naquela época de censura você conseguia alguns livros considerados proibidos.
CORTEZ – Alguns compradores sabiam que eu tinha sido marinheiro e do problema político. Eu não comentava porque poderia ser ouvido por algum órgão de segurança. Tinha medo que dissessem que eu estava fazendo pregações comunistas. A PUC era a universidade mais importante do país com relação às questões políticas. Quando abri esse espaço, as pessoas começaram a me conhecer e aprenderam a confiar em mim. Dessa forma conheci Florestan Fernandes, Paulo Freire, Otaviani e outros intelectuais que combateram a ditadura. Era a época que nasciam os cursos de pós-graduação na PUC. Foi nesse ambiente que consegui alguns livros que não eram vendidos nas livrarias comuns, por causa da censura. Eu trazia sob encomenda pra algumas pessoas.
ZONA SUL – Como você conseguiu dar o passo de livreiro para editor?
CORTEZ – Fui convencido por alguns professores a começar a publicar também. Comecei de uma forma muito artesanal a publicar teses de mestrado e doutorado. A procura por esse tipo de livro começou na PUC, mas depois se espalhou. Como esses alunos-autores eram bem relacionados pelo Brasil afora, a coisa se espalhou. Publiquei trabalhos de vários estados, inclusive do Rio Grande do Norte, como José Willington Germano e Safira Bezerra Ammann. A Cortez passou a publicar teses que traziam um contexto atual. A Cortez é considerada uma editora histórica porque teve a coragem de começar a publicar esses textos que não estavam de acordo com a política educacional da época, a da ditadura. Outras editoras tinham receio. Foi por aí que começou minha inserção no mercado editorial.
ZONA SUL – De lá pra cá são 30 anos...
CORTEZ – Nessa época a empresa se chamava Cortez & Moraes. Durou nove anos. Depois, por questões societárias, nos separaramos. Foi quando comecei sozinho a Cortez. Na época o nome Cortez & Moraes já estava constituído. Meu sócio, Moraes, era colega de classe. Hoje é professor da PUC, se dedicou ao trabalho acadêmico. Quando nos separamos ele ficou com a Moraes e eu comecei a Cortez, do zero, em janeiro de 1980. Por isso estamos comemorando os 30 anos. A Cortez se espalhou pelo Brasil e até para o exterior.
ZONA SUL – A editora teria um best-seller, um livro que se destacaria diante dos demais?
CORTEZ – O primeiro best-seller da Cortez foi “Metodologia do Trabalho Científico”, de Antonio Joaquim Severino. Foi um dos primeiros livros a ser publicado, no final da década de 1960, quando ainda era Cortez & Moraes. Esse livro sofreu várias reformulações no correr desses anos todos e continua sendo o mais vendido da editora. Temos outros livros que já venderam 500 mil ou 800 mil. Temos Paulo Freire, Boaventura de Sousa Santos e muitos outros intelectuais. Começamos há cinco ou seis anos a trabalhar com literatura infanto-juvenil, que tem dado muito prestígio. Já temos quase 200 títulos. Somos uma empresa familiar pequena. Temos condições de publicar entre 70 a 80 títulos por ano. Nosso pessoal é muito bem preparado.
ZONA SUL – A editora foi palco de uma história pitoresca: um assalto.
CORTEZ – Moro ao lado da editora. Em 2004, fui tomar café em casa, às sete horas da noite. Ficaram cinco ou seis pessoas trabalhando. A editora ainda não era separada da livraria. Logo que saí, chegaram três assaltantes perguntando pela minha filha. Disseram que ela não estava. Realmente Mara tinha saído uns dez minutos antes. Só ela sabia abrir o cofre. Eu não sabia, nem vou aprender nunca. Não ligo para essas coisas. Os ladrões tinham informação de tudo. Um subiu e colocou sentadas no corredor todas as pessoas que estavam lá em cima. Dois ficaram embaixo, tentando descobrir como abrir o cofre. Quando chegaram à conclusão de que não tinha ninguém que soubesse abrir o cofre, tentaram abri-lo com um pé de cabra. Não conseguiram. Nesse ínterim, eu cheguei. Quando entrei, me disseram que era um assalto. Os dois assaltantes estavam sentados, armados com revólveres. Eles deixaram a recepcionista continuar atendendo os telefonemas, mas sem dizer nada.
ZONA SUL – Qual sua reação inicial?
CORTEZ - Fiquei espantado, mas sentei ao lado de um dos assaltantes. Ele perguntou se eu sabia abrir o cofre. Respondi que não, que só a minha filha sabia. Tirei o relógio, a carteira e o celular. Ele disse que não queria nada daquilo. Então o rapaz telefonou para o comparsa que estava fora: “Olha, chegou o homem. Ele também não sabe abrir. Acho que não vai dar nada, melhor darmos de pinote.”. Pinote, nunca esqueci essa palavra. Marcaram de se falar novamente em cinco minutos. Perguntei ao assaltante de onde ele era. Respondeu que era da Paraíba. Eu disse que éramos vizinhos. Expliquei a ele que quem trabalha no ramo de livro não tem dinheiro. A gente compra, vende, paga, compra, vende... Não tem grana. Contei que tinha sido lavador de carros, que ralei muito para melhorar minha situação. Ele falou que procurava emprego e não conseguia. O cúmplice ligou de novo e marcaram de se encontrar em cinco minutos. Eu já estava mais sossegado desde que ele tinha falado que não queria nada daquilo. Ele mandou o colega que estava lá em cima se aprontar. Perguntei se ele tinha filhos. Tinha três ou quatro, acho que de 10, 13 e 14 anos. “Se eu der uns livros você leva para os seus filhos?”. Ele disse que sim. Tinham saído os primeiros 19 livros de nossa coleção de literatura infanto-juvenil. O assaltante levou uma sacola cheia de livros. O comparsa lá de cima desceu com os que estavam reféns e nos colocou a todos em uma sala no fundo da livravia. Disse pra só sairmos depois de 10 minutos. Eu disse ao assaltante: “vou dar esses livros a você porque espero que seus filhos não tenham essa desdita, essa sorte horrível que você tem”. Ele agradeceu, pegou a sacola e foi embora.
ZONA SUL – Uma situação incrível.
CORTEZ - Depois de tudo isso, minha interrogação é se ele realmente levou esses livros, se entregou aos filhos... O que aconteceu com esse filho de 14 anos, por exemplo? Será que hoje ele está na universidade? Não sei. Depois que eles foram embora, morremos de dar risada porque não tinha acontecido nada com a gente.
ZONA SUL - Você é uma pessoa que gosta de preservar as raízes, toda semana frequenta um forró.
CORTEZ - Cultivo muito do Nordeste. Ainda carrego coisas da minha vida de menino sertanejo. A publicação do livro com minha história avivou muita coisa. Teresa fez uma pesquisa muito boa, inclusive do ponto de vista social. Nunca deixei de ir ao Nordeste, à minha casa. Nosso sítio está preservado. Na primeira parte do livro “Cortez – A saga de um sonhador”, a socióloga Teresa Sales conta minha história desde o começo até a minha saída da Marinha. Todo o ambiente do sertão está muito bem retratado lá. Sobre o forró, fiquei muito tempo sem ir a um por falta de condições ou por uma série de circunstâncias. Depois que a vida melhorou, passei a frequentar e não tenho mais como abandonar.
ZONA SUL - Fale um pouco mais sobre o livro.
CORTEZ – Ele foi lançado em comemoração aos 30 anos da Cortez Editora. No começo eu não estava muito confortável com a ideia de ter a minha vida publicada nas páginas de um livro e no som e nas imagens de um vídeo, o documentário “O semeador de Livros”, que saiu em março. Esse DVD foi dirigido por Wagner Bezerra e contou com o apoio da Cosern, Petrobras e da PUC. Uma equipe da TV PUC foi até o sertão gravar tudo sobre o meu passado. Está muito bem feito. A TV Cultura e a TV Câmara transmitiram em rede nacional. Voltando ao livro, a Teresa Sales conversou com muitas pessoas lá no sítio e com meus ex-colegas marinheiros. A segunda parte foi escrita pela jornalista Goimar Dantas, que nasceu na maternidade de Santa Cruz, mas morou em Japi. Ela escreveu do dia 4 de janeiro de 1965 até 31 de março de 2010. Toda essa trajetória desde lavador de carros até o editor que sou hoje. O livro está em todas as livrarias, inclusive na nossa.
ZONA SUL – Teve também um livro infantil.
CORTEZ – O título é “Como um rio - A trajetória do menino Cortez”, de Silmara Casadei. A capa retrata o Rio dos Apertados, em Currais Novos. Os 30 anos da Cortez foram comemorados com uma festa belíssima no Tuca (Teatro da Universidade Católica), de São Paulo. Minha única tristeza em tudo isso é que a Potira, minha esposa, faleceu ano passado. Foi ela quem construiu comigo tudo o que nós temos hoje. Felizmente tenho as minhas três filhas: Mara, Márcia e Miriam, que hoje são minhas sócias e estão tocando o barco.
ZONA SUL – Algum projeto para o futuro?
CORTEZ - Sou muito feliz porque vejo o mundo editorial, livreiro e os intelectuais apoiando meus projetos. Até o final do ano pretendo começar um trabalho novo. Pretendo visitar algumas faculdades, escolas e secretarias de educação de prefeituras. Minha intenção é conversar com professores e alunos a respeito da minha trajetória. Quero dividir com as pessoas tudo o que aprendi: contar como saí do cabo da enxada e me transformei em um editor vitorioso.
ZONA SUL - O que lhe faltou ser perguntado que você gostaria de ter respondido?
CORTEZ - Em linhas gerais, é isso. Mais detalhes estão no livro. Procuro ser uma pessoa ética, compreensiva e cônscia dos meus deveres de cidadão, de brasileiro e de nordestino. Quero ser útil pras pessoas, assim como as pessoas têm sido para mim.