sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Entrevista: Manassés Campos

A MÚSICA POTIGUAR NO VARAL DE MANASSÉS


Manassés da Silva Campos nasceu em Natal, no dia 31 de janeiro de 1962. No último sábado de junho, ele foi sabatinado, em Brasília, por uma equipe de primeira que me acompanhou nessa entrevista para o “Zona Sul”. O repórter Roque de Sá (http://agenciatempo.com.br/) cuidou não apenas da cobertura fotográfica, mas também encaixou perguntas que facilitaram a montagem do mosaico da vida de Manassés Campos. O violonista e empresário da gastronomia, Ricardo Menezes (que está de casa nova, o Ancoradouro Sushi & Grill), utilizou sua amizade de décadas com o entrevistado para preencher as lacunas da história que eu e Roque tentávamos destrinchar. E Manassés não mediu palavras para contar seu lado mais conhecido de jornalista, poeta, compositor, músico e servidor público, como também revelou a formação evangélica, a curta passagem pelo Exército e o sonho não realizado de ser um pesquisador de teoria estética da literatura. (robertohomem@gmail.com)


ZONA SUL – Conte sobre sua família.
MANASSÉS – Lá em casa todos temos nome começando com a letra “M”. Miguel, meu pai, é da família Campos, de Lajes do Cabugi. Minha mãe, Maria, é de São José de Mipibu. Míriam é a irmã mais velha. Trabalhou muito tempo com o marido, Orismar Carlos, construindo aquelas lojas da Sport Master. Ela diz que ainda é empresária, mas hoje em dia não faz nada, só aproveita a vida. Milca, a segunda, é servidora pública aposentada. Moisés é servidor da Funasa. Mirtes também é aposentada do serviço público. Depois dela, eu nasci. Em seguida veio Miguel Júnior, que é servidor público da prefeitura de Natal, e Marinésio, que a gente chama de Nezinho. Ele também é funcionário público.
ZONA SUL – O que o seu pai fazia da vida?
MANASSÉS - O homem que morava no interior, naquela época, normalmente trabalhava com a terra. Fazer isso em Lajes, pleno sertão brasileiro (lá passa anos sem chover), era praticamente impossível. Meu avô tinha terras na região, mas improdutivas. Ele criava cabras e, quando chovia, gado. Papai se mudou para Natal na busca de trabalhar em alguma coisa. Virou ourives: montou uma joalheria para comercializar ouro e joias. Mamãe saiu de São José de Mipibu para estudar em Natal. Lá os dois se encontraram, casaram e formaram a família. Meus pais têm mais de 60 anos de casados. Antes de ser ourives, papai foi do Exército, na época da Segunda Guerra. Conheceu mamãe quando deixou a vida militar. Quando casaram, ele se converteu ao evangelho. A minha formação religiosa é evangélica. Meus pais são da Assembleia de Deus.
ZONA SUL – O que a religião evangélica representa para você?
MANASSÉS – Por ter sido criado dentro dos conceitos e da doutrina evangélica, eu, naturalmente, tenho um temor reverencial. Há quem discorde, mas acho que esse temor reverencial de um Deus onipotente, onisciente e onipresente é que segura a humanidade, sobre vários aspectos. Se não tiver esse freio de acreditar em Deus, as pessoas perdem o senso de humanidade.
ZONA SUL – Há diferenças entre o evangélico de ontem e o de hoje?
MANASSÉS – Os evangélicos de antigamente se modernizaram ou se adequaram a uma nova realidade. As igrejas não podem se isolar, como se num mosteiro estivessem, e fugir de um mundo real que a sociedade vive hoje. A televisão ditou novos costumes, rotas e roteiros a serem seguidos. Na minha infância, mamãe não podia usar batom, brinco ou cabelo curto. Tudo o que pudesse proporcionar uma atratividade maior às pessoas do sexo feminino era proibido. Principalmente nas igrejas evangélicas mais conservadoras e tradicionais, havia essa proibição talvez para evitar que os homens olhassem as mulheres com os olhos do desejo, digamos assim. Hoje é diferente: elas vestem calças compridas, cortam cabelo, usam brinco... ZONA SUL – Os pastores ganhavam muito dinheiro?
MANASSÉS – Só posso falar pelo que vi. Quem eu vi foi o meu pai. Ele construiu muitas igrejas, não apenas do ponto de vista religioso, mas físico também. Lembro que - com seis ou sete anos de idade - eu o via preparando a massa, carregando tijolo, manuseando a colher de pedreiro e construindo um templo. Papai nunca teve casa ou carro comprados com o dinheiro da igreja. Ao contrário: quando havia algum problema em alguma igreja evangélica do interior, quando algum tempo estava caindo, quem ia resolver era ele. Sobre essa experiência eu posso falar, a dos outros eu não sei. Papai hoje tem 86 anos e é uma referência, é um dos pilares da igreja.
ZONA SUL – E a música, como surgiu na sua vida?
MANASSÉS – Meu pai tocou saxofone, antes de eu nascer. Começou quando era militar e, depois, tocou na igreja. Não o vi tocar. Devo ter herdado geneticamente esse gosto pela música. Quando minhas irmãs se tornaram adolescentes, papai comprou para elas um acordeom. Por volta de 1974, ele adquiriu também um violão. Meu irmão, Júnior, foi quem primeiro começou a tocar alguns acordes. Pouco tempo depois, eu também comecei a me interessar pelo violão. Comecei naquele autodidatismo, buscando as notas. Todos os meus irmãos ou sabem tocar alguns acordes em acordeom ou no violão. Até mamãe tocava pandeiro.
ZONA SUL – Que tipo de música você costumava ouvir?
MANASSÉS – Comecei a me interessar pela MPB aos 12 anos, quando ouvi Milton Nascimento. Um amigo me emprestou o elepê “Milagre dos peixes”. Na mesma época, também fui atraído por músicas de Caetano, Gil e Ivan Lins, entre outros, que tocavam nos carros de som de campanhas políticas. A partir daí, juntava cada tostão que ganhava para comprar discos. Em 1978, eu já tinha uns 200 discos. Além de MPB, tinha rock pauleira (Uriah Heep, Black Sabbath e Kiss) e rock progressivo (Rush). Até hoje sinto uma identidade grande com o “Clube da Esquina”. Me identifiquei tanto com Minas Gerais, que terminei me casando com uma mineira. Quando escutei “Beijo partido” e quando ouvi “Minas” fiquei pensando: “que negócio é esse, quem é esse povo, onde é essa nação?”.
ZONA SUL – Nessa época, onde você estudava?
MANASSÉS – Estudei em São José de Mipibu até completar 14 anos e entrar na ETFRN, no curso de Mineração. Lá encontrei colegas que compartilhavam do gosto pela música. Entre eles, Sueldo Soaress, Ricardo Menezes, Santa Rosa e Zanoni, que infelizmente morreu tragicamente há pouco tempo. Na Escola estudavam pessoas de várias vertentes culturais, étnicas e sociais. A convivência no dia-a-dia permitia a cada um captar e absorver aspectos da vida do colega. Era uma coisa muito louca. Nessa época eu estava aprendendo uns acordes de violão. Quando não sabia uma música, ia procurar naquela revista Vigu (Violão e Guitarra). Ela trazia a informação musical bem organizada. Quando você tocava, sentia que o acorde encaixava direitinho. Depois surgiram outras publicações meio alinhavadas, não muito bem trabalhadas.
ZONA SUL – Por que você optou por Mineração?
MANASSÉS – Na vida, às vezes você faz escolhas sem saber o porquê. Na época a Petrobras estava se instalando no Rio Grande do Norte. Os alunos de Mineração, Eletrotécnica, Mecânica e Geologia, quando terminavam o curso, faziam um estágio de 45 dias e eram contratados, sem precisar de concurso. Não aproveitei essa facilidade porque, quando concluí Mineração, o Exército me pegou. A maioria dos meus amigos fez o alistamento militar em cidades do interior. Eu me alistei em Natal. Para complicar, o tenente que coordenava a comissão de seleção do Exército me conhecia de uma forma não muito boa. Jogando voleibol pela ETFRN, vez por outra enfrentava o time da Brigada do Exército. Além de a gente sempre vencer, em duas ou três ocasiões subi na rede e carimbei uma “medalha” no peito desse tenente. Enquanto ele ficava bravo, eu ria. No dia em que fui me apresentar, quando ele me viu, olhou pra mim e disse: “agora você vai jogar com a gente aqui no time da Brigada”. (risos). Por intermédio de Jorge Moura – nosso treinador de vôlei na Escola – ainda busquei uma alternativa para escapar do Exército e ir para a Petrobras.  O tenente respondeu ao bilhete de Jorge dizendo que não tinha quem me fizesse ser dispensado. Entrei e fiz curso para cabo e, em seguida, para sargento. Por isso tive que ficar três anos no Exército. 
ZONA SUL – Você recomendaria ao seu filho servir às Forças Armadas?
MANASSÉS – A dinâmica social, hoje, é diferente. O mundo mudou. Hoje, quando a família se organiza, ela tem condições de disciplinar e administrar a vida de um adolescente para que ele exerça sua cidadania. Por isso eu não diria a meu filho para ele cumprir o serviço militar. Mas, para mim, foi importante. Pude exercitar a autodisciplina e a determinação e também pude traçar objetivos e buscar alcançá-los. O serviço militar contribui para o amadurecimento do ser humano, o tempo que passei lá não foi perdido. Fui para o Exército na época em que estava começando a ingressar num tipo de leitura que era marginal e a me envolver com movimento estudantil. Aos 18 anos, eu estava acostumado a participar de rodas de violão com amigos, a jogar vôlei e futebol, a namorar e ir para boteco, a curtir a praia e me divertir. Nessa época eu já ensaiava tocar meia hora no “Boca da Noite”, na subida da Rio Branco. De repente esse cenário mudou radicalmente e eu me vi no Exército.
ZONA SUL – Onde você foi servir?
MANASSÉS - No 2º Batalhão de Engenharia e Construção, lá em Teresina. De lá me despacharam para o destacamento Rodrigo Otávio, entre Xambioá (na época município de Goiás, hoje pertence a Tocantins) e São Geraldo do Araguaia (no Pará). O rio era a divisão entre Goiás, Pará e o Mato Grosso. Fiquei exatamente na região onde poucos anos antes, tinha sido debelada a Guerrilha do Araguaia. O destacamento existia naquela região para não permitir a repetição da experiência.
ZONA SUL – O que de interessante, sobre a guerrilha, você pode contar?
MANASSÉS – Diziam que as armas dos guerrilheiros eram importadas da Rússia e de Cuba, mas elas não passavam de espingardas de soca usadas por trabalhadores e caçadores da floresta. Falam na prisão de gente com arma automática, mas, pelo que presenciei, elas não existiam. Não vi metralhadoras ou fuzis. Como a coisa ainda estava fresca, os moradores tinham medo de fazer muitos comentários sobre o assunto. Mas ouvi que algumas pessoas teriam chegado por lá incentivando a tal guerrilha. Porém, o povo da região nem sabia o que era. A população só veio compreender depois. O Exército pensava que queriam fazer uma revolução, mas não existia nada disso. Muita gente morreu sem saber porque. Arquivos mostram que pessoas foram presas, torturadas e mortas.
ZONA SUL – Que conclusão você tira desse período no Araguaia?
MANASSÉS – Na época, eu não tinha uma leitura política adequada. Hoje entendo que, a exemplo de tantos fatos brasileiros, sufocaram uma coisa que não existia. Houve um exagero. Em Xambioá tentaram sufocar uma guerrilha rural que na verdade não existia. O que tinha era gente passando fome e procurando terra, mas o latifúndio não deixava. Mas, naquele tempo, eu era um militar que nem sabia onde estava. Um jovem de 18 anos que tinha saído de Natal e largado aquela rotina de ir para escola, tocar violão e me divertir com os amigos. Me vi dentro do Exército, no meio do mato, na divisa do Pará. A experiência me chocou, mas também contribuiu para eu ter uma visualização de que o mundo não era só aquele habitat que eu compartilhava com a família e os amigos. Os horizontes ampliam quando você sai do seu círculo natural. Passei seis meses em Xambioá. De lá voltei para Teresina e retornei para Natal.
ZONA SUL – Que rumo sua vida tomou depois do Exército?
MANASSÉS – Quando saí do Exército, alguns amigos da minha época já estavam trabalhando, enquanto outros faziam faculdade. Saí meio sem saber o que ia fazer da vida. Não consegui estudar enquanto estava na vida militar. Depois do Exército passei dois anos parado, só estudando violão e vivendo. Com 23 anos, entrei no curso de Letras, da UFRN. A Mineração eu enterrei de vez. Talvez se eu tivesse ido para a Petrobras, não teria tentado realizar meu projeto de vida: ser um pesquisador de teoria estética da literatura.
ZONA SUL – Por favor, explique essa teoria estética da literatura.
MANASSÉS – Em resumo, ela estuda como definir os grandes clássicos da literatura, como o texto se organiza e o que o conteúdo daquele texto quer dizer. Por exemplo: quando você escreve “no meu jardim existem muitas flores e o jardineiro colhe essas flores para me dar”, não tem coisa mais lógica do que isso. Mas, quando a frase é “no meu jardim existem flores que engoliram todos os monstros”, aí é preciso interpretar o que o autor quis dizer com aquilo. Que flores são essas que engolem monstros? O autor pegou os signos, as palavras, e construiu um texto que vai possibilitar várias interpretações. De certa forma, a teoria estética da literatura é o estudo do que os autores querem dizer com seus textos. Meu projeto de vida, naquela época, era esse. Por isso fui cursar Letras, mas não terminei. No último semestre desisti de ser teórico da literatura. Falou mais alto a necessidade de existência. Mas, até então, meu projeto era ir para São Paulo, tentar ser professor da USP.
ZONA SUL – Durante esse período, onde a música se encaixava?
MANASSÉS – Sempre estive próximo da música. No tempo de São José de Mipibu eu gostava de ficar na praça, tocando com meu irmão Júnior e os amigos Eugênio Parcele e Ismael Alves. Ismael, que é de Parnamirim, nessa época morou em São José de Mipibu. Depois ele entrou em um formato de produção musical vinculado aos movimentos sociais. Na ETFRN, até nas viagens do time de voleibol a gente levava o violão. Mesmo no Exército, nunca deixei de tocar. Continuei tocando violão e lendo poesia. O que me fez sentir necessidade de compor foi ver os caras tocando na noite, em Natal. A noite sempre foi uma escola pra todo mundo.
ZONA SUL – Naquela época se tocava música autoral nos bares?
MANASSÉS – Pouco. Quem começou a tocar um pouco de música autoral foi Expedito. Depois, Nazareno voltou de São Paulo e montou o “Antigamente”. Lá, ele e Silvana tocavam composições próprias. Pedrinho Mendes e Sueldo Soaress começaram mais ou menos na mesma época. Mas a produção não era grande. Infelizmente, Natal nunca oportunizou aos seus artistas uma inserção maior no contexto cultural da cidade. Houve certa efervescência entre os anos 1990 e 2000. Depois começou a queda e hoje está em banho-maria. Natal, do ponto de vista da música popular, está congelada de uma forma meio triste. A primeira vez que toquei em bar foi no “Boca da Noite”. Ao final da apresentação de Sueldo, peguei o violão e comecei a tocar. Como as pessoas gostaram, a dona do bar me chamou e pediu para eu continuar tocando por mais meia hora. A partir daí comecei a tocar na noite, mas esse nunca foi o meu forte. Tocando em bar, fui me aperfeiçoando. Então, resolvi tentar estudar. Entrei na Escola de Música da UFRN e estudei teoria um tempo. Estudei violão clássico para ter uma base e conhecer os acordes todos. Porém, acho que para tocar bem um instrumento musical depende do instrumentista. Ou você estuda por si só, ou termina sem conhecer.
ZONA SUL – E as composições, quando começaram a surgir?
MANASSÉS - A primeira música que compus foi para participar de um festival interno da ETFRN, em 1979. A música não logrou sucesso. Na segunda tentativa, a música que inscrevi era um pouco melhor, mas também não teve boa classificação. Porém, em 1987 inscrevi duas músicas próprias e uma terceira – em parceria com Edinho Queiroz – no Festival da UFRN. Essa última, chamada “Upstairs”, ganhou o festival. Teve época de eu tocar em bar mais constantemente, mas Natal nunca oportunizou a ninguém a possibilidade de ter uma vida musical autoral fazendo shows e participando de projetos que permitissem sua sobrevivência. É bom lembrar que artista não vive de ar, nem de vento.
ZONA SUL – Será que a competitividade dos músicos potiguares entre si contribui para isso?
MANASSÉS – Até o final da década de 1980, poucos tinham ido buscar espaço no Rio de Janeiro e em São Paulo: Flor de Cactus, Nazareno, Gilson, Terezinha de Jesus, Mirabô (que depois migrou mais para o mundo sindical) e outros poucos. Pedrinho Mendes passou um tempo curtíssimo no Rio, e também não logrou êxito. Teve também Gilliard, Carlos Alexandre... Acho que o grande sucesso potiguar foi a música “Casinha branca”, de Gilson. Mas, curiosamente, o Rio Grande do Norte foi um estado que não projetou ninguém no cenário nacional daquela época. Outros estados que conseguiram formar artistas de sucesso, ainda hoje persistem. Terezinha de Jesus teve um desponte importante. Além de a música dela ser boa, ela sempre foi uma figura maravilhosa. Só Terezinha para explicar porque depois de tanto sucesso ela voltou para Natal.
ZONA SUL – Terezinha fala sobre esse tema em entrevista que deu para o “Zona Sul” e que está disponível na Internet: (http://zonasulnatal.blogspot.com.br/2009/01/entrevista-terezinha-de-jesus.html).
MANASSÉS – Talvez várias circunstâncias tenham impedido que a carreira de Terezinha e de muitos outros tenha decolado e eles não tenham hoje um nome forte nacional.
ZONA SUL – Como está a música brasileira hoje?
MANASSÉS – Esteticamente, até os anos 1990 a música brasileira era bem dividida. Tinha a música brega e uma mais elaborada que entrava no rol da MPB. Sobre a música brasileira de hoje em dia, acho que, do ponto de vista da construção e da produção musical, ela está ótima. Quem procurar vai encontrar compositores maravilhosos elaborando canções com conteúdo e esteticamente bem feitas. Dá para fazer uma listagem enorme de cantores e compositores e ninguém conhece. Por exemplo: quem ouviu falar em Sérgio Santos? É um compositor maravilhoso.
ZONA SUL – Nos anos 1980 você, Antônio Ronaldo, Leão Neto, Edimar, Sueldo e tantos outros criaram um movimento de grande repercussão na cidade. Fale sobre o “Trampo”.
MANASSÉS – O “Grupo Trampo” foi criado naquela época em que os artistas trabalhavam de forma isolada, cada um construindo o seu lado. O músico potiguar, a exemplo do músico brasileiro – principalmente o compositor –, se sentia (e acho que hoje é pior ainda) miniaturizado frente às estruturas engendradas pelo mercado. Não havia uma motivação para ele produzir e divulgar sua música autoral. O mercado não absorvia esse trabalho como deveria. Era difícil até registrar essas canções, já que o formato que a tecnologia da época permitia era muito caro. O único caminho que encontramos foi nos juntarmos e Sueldo tocar a música dele e a minha, eu tocar as minhas canções, as dele e as de Ronaldo, e Ronaldo tocar as nossas e as de não sei quem lá. Tenho até hoje um texto impresso, um compêndio de umas 50 páginas, onde tentamos interpretar aquele momento.
ZONA SUL – Quem é o autor desse texto?
MANASSÉS – Antônio Ronaldo escreveu um bocado, eu escrevi outra parte, Leão Neto corrigiu e deu muitas ideias, junto com Sueldo. Foi feito um “brainstorm” grande para discutir a música brasileira e a potiguar de antes, a daquele momento e a que poderia surgir depois. O fato é que o “Grupo Trampo” gerou um “boom”. Fizemos um show na Rua da Floresta, na Vila de Ponta Negra, que reuniu 1.300 pagantes. Depois dessa festa conversei com umas 30 pessoas do Ceará que tinham ido assistir. O “Trampo” deu uma certa impulsionada na música popular potiguar. Depois o movimento se esvaiu devido a várias circunstâncias. Do jeito que começou, acabou. Não foi um movimento planejado, como também sem planejamento nenhum acabou.
ZONA SUL – Existe a possibilidade de o “Trampo” ressurgir?
MANASSÉS – Vez por outra converso com Antônio Ronaldo e Sueldo e a gente até comenta que poderia tentar reeditar. Mas o momento hoje é diferente. O fato é que a partir do “Trampo” alguns discos foram lançados. Eu lancei um, Leão Neto e Edimar Costa lançaram outros. Até então, só Pedrinho Mendes tinha gravado dois discos. “Flor de Cactus”, Nazareno e Terezinha de Jesus tinham produzido elepês, mas fora da cidade. Demos nossa contribuição para o povo perceber que a música local tem valor.
ZONA SUL – Fale sobre esse seu primeiro disco.
MANASSÉS – Lancei em 1989. Naquela época era difícil e caro fazer um disco. O poeta e professor macauense Benito Barros, já falecido, foi quem deu a ideia e me ajudou a buscar uma forma de viabilizar o projeto. Angariamos recursos de um lado e do outro. Fui gravar no estúdio “Estação do Som”, em Recife. O disco se chamou “Nós” e foi lançado com quatro canções, duas de cada lado. Ele rendeu bons frutos, do ponto de vista da divulgação e da ampliação do trabalho musical que eu vinha fazendo. O LP me deu oportunidade de uma entrada maior, consegui participar de vários projetos no Nordeste: João Pessoa, Fortaleza, Maceió...
ZONA SUL – Quando você gravou esse disco já tinha uma ocupação profissional fora da música?
MANASSÉS – Eu era estudante universitário e ainda tinha o sonho de sobreviver da música, de trabalhar nessa área.
ZONA SUL – Quando esse sonho virou pesadelo?
MANASSÉS – Esse sonho não virou pesadelo nunca, mas migrou para o espaço mais concreto da necessidade de sobrevivência. Vendo por um ângulo poético, esse pesadelo perdura até hoje. Pesadelos se transformam em sonhos que emocionam quando consigo construir uma nova canção. Tem certas músicas que começo a tocar e não consigo terminar, emocionado. Às vezes, chego ao final da canção meio cambaleante, carregando aquela emoção forte. O artista da música popular é dotado de conjugações, cores, imagens, verbos e sons para colorir a vida e deixá-la mais prazerosa e emocionante. Ele busca transformar em uma realidade bonita esse sonho que às vezes é pesadelo.
ZONA SUL – Antes de lançar seu segundo disco, que outros caminhos você buscou para poder sobreviver?
MANASSÉS – Quando a pessoa não tem uma família que possa lhe dar uma vida nababesca ou principesca, como aqueles clãs ricos e tradicionais do Nordeste, ela normalmente tem que fazer alguma coisa na vida para sobreviver. No Nordeste - em Brasília também é assim - se procura muito o serviço público. Então decidi: se não conseguia me manter como artista seria servidor público. Fui estudar para fazer concurso público. Dessa forma ingressei no Judiciário e até hoje estou por lá.
ZONA SUL – Você se sente frustrado por isso?
MANASSÉS – Não. Até porque continuei trabalhando com música. Mas, antes de ingressar no serviço público, concluí a universidade. Quando desisti de Letras, fiz reopção e entrei em Direito. Foi outra faculdade frustrada. O Direito é muito voltado para o positivismo, para a preservação do “status quo”, do que está estabelecido, do ordenamento jurídico. Na época eu usava camisa com o poema de Brecht, “O Analfabeto Político”. Sempre tinha uma opinião diferente do que estava tradicionalmente posto. Então desisti do Direito e me direcionei para o Jornalismo. Lá encontrei tudo o que é vertente. Paralelo ao novo curso, comecei a estudar para concurso. Já são 24 anos de serviço no Tribunal Regional do Trabalho, sem abandonar a música. Nesse meio tempo, lancei meu segundo disco, “Varal do Tempo”.
ZONA SUL – Fale sobre esse CD.
MANASSÉS – Pensei no disco como ele sendo um varal onde eu expusesse a minha vida. Cada peça de roupa, cada camisa estendida seria uma canção. No disco tem canção para mim, para o meu filho, para a minha esposa, para a minha cidade, para os meus amigos, para aqueles que militavam na música... Compus uma música para cada um desses temas e joguei dentro do disco. Acho que saiu um disco bacana em estética e conteúdo. A repercussão foi muito boa, tanto que, surpreendentemente, uma das músicas foi gravada várias vezes por outras artistas. “A Lua, o Amor e o Mar” foi regravada cinco ou seis vezes. Até uma americana, chamada Kate Bentley, gravou e escolheu o nome dessa canção para ser título do seu disco lançado com canções brasileiras. A cantora carioca Claudia Amorim gravou quatro músicas minhas em um disco.
ZONA SUL – Como elas conheceram seu trabalho?
MANASSÉS – Claudia Amorim ouviu o disco, gostou e entrou em contato. Kate Bentley também. Kate é uma diplomata americana que cantava nos Estados Unidos. Morou um tempo em Recife, mas hoje reside em Londres. Fiz o lançamento do “Varal do Tempo” em Natal, Porto Alegre, Brasília e Rio de Janeiro. Um jornalista do “Jornal do Brasil” fez uma crítica interessante do CD e publicou na capa do caderno de cultura de Niterói. Fiz um show no “Armazém da Música”, em Niterói. Na plateia tinha um cara do Pará, em uma mesa com cinco pessoas. Ele foi ao show para me conhecer. Não sei como, ele possuía o meu elepê. Esse paraense comprou cinco CDs para presentear os amigos. No Rio Grande do Sul, um cara já tinha o CD por lá. Se eu fosse me dedicar exclusivamente à música, o resultado da divulgação seria bem maior, já que é um disco bacana, bem tocado. Tem Arthur Maia (baixista), Marcelo Martins (sax e flauta), Sérgio Farias, Jubileu, as cantoras Khrystal, Lene Macedo e Valéria Oliveira, Gilberto Cabral (trombone)... Ricardo deu uma contribuição grande! Agora estou preparando o terceiro.
ZONA SUL – Esse novo disco já tem nome?
MANASSÉS – Deverá se chamar “Terra à Vista”. As músicas já estão gravadas. Nele me mostro enquanto pessoa humana, artista da música e me dou oportunidade para falar sobre o que eu descobri na vida. As canções falam dos boqueirões que a vida me abriu e as interpretações que eu dei a esses boqueirões que a vida me proporcionou. Eu falo da natureza, do amor e de tudo o que acontece na vida de uma pessoa. Está quase pronto. Talvez precise de um detalhe aqui e outro ali. É quase o mesmo time que participou do primeiro: Sérgio Farias, Jubileu, Erick Firmino, Dudu Taufic e Di Stéffano. O CD tem linguagem de banda. Tem também Marcelo Martins (sax e flautas). A intenção era ter lançado no ano passado. Como esse prazo já foi para o espaço, vou ver se consigo lançar o disco até outubro.
ZONA SUL – Fale sobre sua mulher e seu filho, pessoas que compartilham mais diretamente a vida com você.
MANASSÉS – Um pescador vai para o mar na expectativa de buscar a melhor pescaria para si e para a sua família. Um garimpeiro está sempre à procura da melhor pedra preciosa, do melhor mineral. Um cavaleiro escolhe dentre os melhores cavalos a montaria que ele acha ser a ideal. Enfim, o ser humano sempre procura na vida o melhor. Na verdade, o que eu tenho de mais precioso hoje eu não procurei. Surgiu como se fosse um prêmio do qual eu talvez nem fosse merecedor. Nem saí para o mar, como o pescador; nem fui ao garimpo, como o garimpeiro; nem escrevi um bom livro, como escritor teria feito. Surgiu para mim como se presente fosse. Talvez eu até merecesse, mas não estava buscando. Baseado na minha formação religiosa, diria que esse presente me foi dado por eu ter um bom coração. Foi uma recompensa. Ana é uma pedra preciosa que já veio para mim lapidada...
ZONA SUL – ...E que você guarda como um tesouro...
MANASSÉS – Não guardo como um tesouro. Ela é uma pessoa que me traz um aprendizado constante. Aí é onde reside a maior riqueza pra mim. Esse aprendizado me projeta como ser humano. Quando a conheci, ela me deu a possibilidade de me sentir realizado como ser humano. Depois, com o nosso filho, Eduardo (Dudu), surgiu um pulso de humanidade que – nessa vida conturbada de hoje - ao mesmo tempo me enriquece e me ensina que eu tenho que estar em uma constante desaceleração da ansiedade do dia-a-dia. Quanto menos ansioso estiver, mais em paz estarei com a família. Com eles dois, consigo ser mais humano, mais pai, mais amigo, mais filho, mais indivíduo. A cada dia eles me ensinam a viver melhor.
ZONA SUL – Deixe um recado para o leitor do Zona Sul.
MANASSÉS – Primeiro eu gostaria de sugerir ao povo potiguar que preste mais atenção nos seus artistas. Natal tem uma possibilidade musical riquíssima, tem compositores belíssimos como Antônio Ronaldo, Babal, Cleudo, Luiz Gadelha, Sueldo Soaress, Pedro Mendes e tantos outros. Na música instrumental, também. Tem músicos de qualidade internacional, como Eduardo Taufic, Jubileu, Sérgio Farias, Sérgio Groove e Ricardo Menezes. Infelizmente os veículos de comunicação de massa no Brasil têm prestado um grande desserviço. Desde a Rede Globo até os outros, eles ideologizaram a música nacional colocando a cultura de massa em detrimento das raízes culturais do nosso povo. O que me interessa, aqui no Brasil, conhecer o funk dos Estados Unidos - ou outros ritmos estrangeiros - enquanto não tenho a possibilidade de ouvir e ver na TV o samba, o baião, a marcha-rancho e tantos outras manifestações culturais nacionais? Hoje as pessoas vivem sob a égide da TV e do rádio. O que é veiculado as pessoas absorvem, muitas vezes sem nenhum senso crítico, de goela abaixo.
ZONA SUL – Como as pessoas podem ter acesso ao seu trabalho?
MANASSÉS – Acho que o CD “Varal do Tempo” ainda pode ser encontrado na Cooperativa da Universidade e em algumas livrarias de Natal. Quem não mora em Natal pode mandar um email para manassescampos@gmail.com. Estou no Facebook com o meu nome: Manassés Campos. Para finalizar, eu gostaria de deixar registrado que as entrevistas que o “Zona Sul” está fazendo são importantes porque perpetuam as histórias que são contadas. Como todo esse material está disponível na Internet, as futuras gerações que porventura possam se interessar por esses temas terão um repertório vasto para a pesquisa. Eles poderão saber que existiram pessoas construindo histórias, fomentando novas estéticas, compondo música e fazer artístico e sabendo que a humanidade caminha no sentido da sua evolução. Diferente da sociedade de hoje, buscamos um futuro onde o homem viva em benefício do próprio homem.
 

















7 comentários:

  1. Bob Man, Manassés estava muito inspirado e poético ao falar. Foi preciso também ao comentar o descaso local com os artistas da terra. Muito boa a entrevista. Parabéns e um abraço.
    Roberto Fontes

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  2. Pois é, Roberto, faltou você por aqui.

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  3. BOA TARDE, ESTAVA BUSCANDO XARÁ DO MEU NOME MANASSÉS E ENCONTREI ESSA REPORTAGEM, MEU NOME É MANASSÉS ATÉ AI TUDO BEM, INTERESSANTE É QUE VC TAMBÉM É UM POUCO MEU SÓSIA, PARECE BASTANTE COMIGO, COM O DETALHE APENAS DE SER MAIS NOVO, EU SOU DE 1955 E VC DE 1962. ACHEI CURIOSO TER UM XARÁ DE NOME E AINDA POR CIMA SÓSIA. KKK FORTE ABRAÇO.

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  4. Esse foi meu mano....
    Todo respeito, à ele....

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